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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.17 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

https://doi.org/10.32467/issn.199821492v17n2p163174 

Formações e transformações - o olhar de um aspirante a grupoterapeuta

 

Training and transformations a glance of an aspirant to group therapist

 

Capacitación y transform aciones la mirada de un aspirante a terapeuta de grupo

 

 

Marcio Gonçalves Vieira

Psicólogo, especialista em Saúde Coletiva pelo HCFMUSP e em Gestão de Redes de Atenção à Saúde pela FioCruz. Realizou aprimoramento de Coordenação e Manejo de Grupos em Diferentes Contextos pelo Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações vinculares (NESME )). Membro do NESME. mgv@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo o relato de uma experiência pessoal e profissional de inserção em espaços prático-pedagógicos que oferecem o ensino da coordenação/manejo de grupos psicanalíticos em seus diferentes contextos. Este trabalho é dividido em quatro partes. Discute-se a questão do trabalho com grupos em serviços da Saúde e Saúde Mental e as dificuldades enfrentadas. Posteriormente são relatadas experiências pessoais do autor em diversos espaços grupais e sua inserção em espaços prático-pedagógicos de coordenação de grupos e suas características. Por último, nas considerações finais, é reforçada a importância destes caminhos para que uma pessoa possa se enquadrar como coordenador de grupos psicanalíticos.

Palavras-chave: grupos; formação; psicanálise das configurações vinculares.


ABSTRACT

This article aims to report a personal and professional experience of inclusion in practical-pedagogical spaces that offer the training of coordinating /handling of psychoanalytic groups in their different contexts. This work is divided into four parts. Firstly, the issue of working with groups in Health and Mental Health services and the difficulties faced are discussed. Afterwards, the author's personal experiences in several group spaces and his inclusion in practical-pedagogical spaces for group coordination and their characteristics are described. Finally, the conclusion reinforces the importance of these paths so that a person can fit in as a coordinator of psychoanalytic groups.

Keywords: groups; formation; psychoanalysis of linking configurations.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo relatar una experiencia personal y profesional de inclusión en espacios práctico-pedagógicos que ofrecen la enseñanza de la coordinación/gestión de grupos psicoanalíticos en sus diferentes contextos. Este trabajo está dividido en cuatro secciones. Primero, se discute el tema del trabajo con grupos en los servicios de Salud y Salud Mental y las dificultades que enfrentadas. Entonces, son informadas las vivencias personales del autor en varios espacios grupales y su inclusión en espacios práctico-pedagógicos para la coordinación grupal y sus características. Finalmente, en la conclusión, se refuerza la importancia de estos caminos para que una persona pueda encajarse como coordinadora de grupos psicoanalíticos.

Palabras clave: grupos; capacitación; psicoanálisis de configuraciones de vínculo.


 

 

INTRODUÇÃO

Profissionais que trabalham na área da Saúde e com mais ênfase na Saúde Mental são a todo o momento convocados a se colocar na posição de coordenadores de grupos, sabendo ou não realizar esta tarefa. Tal convocação se dá por este tipo de estratégia ser largamente utilizada nos diversos serviços de saúde, sendo um modo de responder a um aumento da demanda, não ocorrendo proporcionalmente ampliação dos serviços e profissionais que realizam este cuidado. Com receio de uma inflação dos serviços de saúde os gestores tentam encontrar meios de atender um maior número de usuários, o grupo surgindo como possível resolução para esta problemática.

Entretanto, a prática mostra que esta atividade tem diversos nuances que a tornam complexa e de extrema dificuldade, quando o profissional não está habilitado para sua realização. Somam-se a tal dificuldade duas outras questões observadas nas Políticas Públicas de Saúde: uma falta de interesse, dos diversos profissionais que se inserem em instituições de Saúde, na aprendizagem técnico-prática do manejo de grupos; ao mesmo tempo não se verifica nos gestores das Políticas Públicas de Saúde um interesse em inserir dentro dos processos de Educação Inicial e Continuada dos servidores (sejam eles em serviços de Administração Direta ou Indireta) formação para o manejo de grupos.

Este artigo tem como objetivo o relato de uma experiência pessoal e profissional de inserção em espaços prático-pedagógicos que oferecem o ensino da coordenação/manejo de grupos psicanalíticos em seus diferentes contextos. O autor trabalha dentro da rede de Saúde Mental e enfrenta os diversos dilemas que foram rapidamente pincelados anteriormente. O objetivo indireto é oferecer um aprofundamento na teoria sobre grupos trazendo um contorno das angústias que outros sujeitos também podem sentir diante desta prática.

Coordenação de grupos e caminho para os grupos

As facilidades e dificuldades que um coordenador de grupos enfrenta ao estar nesta posição, tem relação com suas experiências em situações grupais ao longo de sua vida.

Como coloca Fernandes (2019), para atuar de modo eficaz no papel de coordenador psicanalítico de grupos são necessários alguns dotes humanos, como saber ouvir, "ser confiável, despertar confiança e esperança, tendo fé em si mesmo, em cada um, e no processo vincular." (Fernandes, 2019, p. 93). Para desenvolver estes dotes e se sentir à vontade na situação grupal o autor traz como imprescindível o tripé de formação do psicanalista: análise pessoal, supervisão e estudos sobre a teoria.

Neste sentido, a construção deste artigo está centrada na trajetória pessoal, profissional e de formação como grupalista deste autor, da infância aos espaços de formação teórica, refletindo assim os elementos do tripé psicanalítico, como veremos a seguir.

Incubando o vírus grupalista ou notas de uma formação pessoal

Desde criança tive diversas dificuldades em me inserir e fixar em espaços grupais. Estes nunca foram locais onde me sentia à vontade e os conflitos e angústias que surgiam neste campo eram muitas vezes insuportáveis de serem vivenciados. No período da faculdade consegui experimentar isto de outra forma, principalmente nos últimos anos quando comecei a fazer análise pessoal. Entretanto ainda era (e é) um ponto em que há diversos nós e assim qualquer atuação em que fosse necessário estar à vontade em situações coletivas eu não iria me aventurar. Apesar de ter feito na graduação algumas disciplinas obrigatórias de atendimentos em grupo - tendo como principal o Psicodrama - sentia um incômodo que se transformava em piadas quando precisava praticar esta técnica. Neste período da graduação tive a oportunidade de realizar um estágio em que atuava coordenando um grupo de crianças. Atuava neste papel de forma tímida, mostrando maior dificuldade quando precisava realizar tal coordenação em dupla.

Após a saída da graduação realizei uma pós-graduação que propiciou os primeiros contatos com a teoria de Pichon-Rivière e tive mais algumas experiências coordenando grupos, não sendo o foco de estudos naquele momento. Entretanto esta aproximação deixou uma semente que rapidamente germinou e se viralizou dentro de mim.

Iniciei então minha trajetória profissional trabalhando em um Centro de Acolhida para pessoas em situação de rua, onde me inseri em diversos espaços grupais, principalmente em reuniões com outros serviços da rede intersetorial. Neste momento compreendi que me sentia à vontade em ocupar espaços heterogêneos, de multiplicidade de profissionais com atuação em serviços diferentes.

Após este período fui trabalhar em uma UBS (Unidade Básica de Saúde). Passei por dois períodos distintos em que pude me transformar como profissional.

Em um momento inicial sentia a necessidade de "tomar conta" de todo o processo de trabalho em que estava atuando. Para chegar a este objetivo alterei grande parte do fluxo de funcionamento da Saúde Mental do serviço deixando-o "com a minha cara" e alinhando-o com as necessidades do território. Esta fase trazia um elemento que se ligava com uma dificuldade pessoal: necessidade de controlar as diversas circunstâncias que atravessavam a minha prática com consequente irritabilidade quando as coisas ficavam fora do lugar em que gostaria. Ligado a esta perspectiva aparecia também um isolamento dos profissionais de outras áreas, visto que o compartilhamento de ações e reflexões tem como consequência a criação de um produto que está fora do controle de cada sujeito criador.

Estabeleço aqui um paralelo com o termo contrato narcísico, conceito cunhado por Piera Aulagnier e retomado por René Kaës. Podemos compreendê-lo como um processo imprescindível para o surgimento dos sujeitos desejantes, assim como dos grupos e instituições como espaços de continuidade. Para entender este termo, Castanho (2018) retoma o texto de Freud sobre narcisismo, de 1914, ao trazer o contexto em que os bebês nascem em nossa sociedade. A chegada dos bebês é antecipada por diversos conjuntos sociais que o contém - pais, família, instituições. O investimento destes conjuntos possibilita que o bebê possa vivenciar plenamente seu narcisismo primário, fundamental processo para a formação do eu. Este processo retoma nos sujeitos o seu próprio narcisismo primário, "pela possibilidade de depositar no bebê seus próprios desejos irrealizados e de ludibriar a certeza de sua própria morte" (Castanho, 2018, p. 86). "O sujeito que recebe o investimento do conjunto, recebe com ele um lugar de pertencimento e da possibilidade de se constituir como eu (Je)" (Castanho, 2018, p. 87).

Temos desta forma um movimento duplo: o bebê é colocado em um lugar, ou seja, as fantasias, expectativas de seu nascimento fazem com que ele ocupe um espaço pré-determinado na dinâmica familiar e social, oferecendo um espaço de continuidade em um grupo, entre gerações; por outro lado espera-se que o bebê se constitua como sujeito e possa se afastar deste lugar (com certos limites) construindo seu próprio espaço dentro dos conjuntos sociais. "O sujeito busca e deve encontrar, nesse discurso, referências que lhe permitam projetar-se para o futuro, para que seu afastamento do primeiro suporte, constituído pelo casal paterno, não se traduza em perda de todo suporte identificatório" (Trachtenberg et al, 2011, p. 264)

Desta maneira é formado um conjunto bebê/meio social que podemos considerar ser um originário de todos os outros grupos que o sujeito vai se inserir ao longo de sua vida.

Assim, ser membro de um grupo, estar investido do narcisismo dos pais, ter o ideal compartilhado com o conjunto social ao qual pertence, faz com que cada recém-nascido seja portador da continuidade do grupo e, reciprocamente, com esta condição, o conjunto sustenta um lugar a esse bebê.

Os termos do contrato são definidos para que cada sujeito singular ocupe um lugar oferecido pelo grupo. Este é o significado pelo conjunto de vozes que, antes de cada sujeito, desenvolvem um discurso conforme o mito fundador do grupo. Cada sujeito tem que retomar esse discurso, pois, mediante ele, pode se conectar com o antepassado fundador. (Trachtenberg et al, 2011, p. 264)

A inserção de um sujeito em determinado grupo ou instituição supõe um lugar que existe para ser ocupado dentro da dinâmica deste conjunto precedente, ao mesmo tempo que deixa um lugar vazio para que o sujeito possa "cavar o seu espaço". Foi este movimento duplo que vivenciei intensamente neste primeiro momento na UBS.

As UBS tradicionais, vindas da tradição dos Centros de Saúde, funcionam por meio dos programas - de atenção às mulheres, aos idosos, às crianças e adolescentes, à Saúde Mental etc. Esta divisão do serviço em setores tem como consequência um funcionamento fragmentado onde cada parte realiza ações isoladamente sem intersecções com os outros.

Com o passar do tempo delimitei o meu lugar na UBS e surgiu um incômodo com esta falta de constituição de uma equipe interdisciplinar - este sofrimento foi se potencializando com a produção de ações em saúde compartilhada com serviços de outros setores (educação, assistência social, cultura, esporte).

Surge então o segundo momento na UBS, em que passo a me inserir em mais espaços grupais e realizar ações compartilhadas. Percebendo os contratos da instituição e compreendendo quais estão alinhados ou afastados às minhas características pessoais e profissionais, não me sinto mais pertencente àquele espaço. Experimento então um grande sofrimento psíquico durante o segundo semestre de 2017. E foi exatamente neste momento que duas mudanças ocorreram ao mesmo tempo: a saída da UBS para a inserção em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), e o início do meu aprofundamento no estudo de grupos e sua coordenação.

Colando a teoria na prática ou notas de uma formação profissional

O ano era 2017. Após dois anos de trabalho na área da Saúde Pública coordenando diversos tipos de grupo, uma angústia percorre meu corpo quando estou ocupando este papel. Sem conseguir nomeá-la, sozinho surge uma oportunidade de estudar esta perspectiva, o que é agarrado rapidamente por mim.

O início desta trajetória trouxe memórias do tempo da graduação (alguns anos antes) e da infância (muitos anos antes). Da infância, uma inserção em espaços grupais permeada por uma angústia, medo. Na faculdade, com o aprofundamento de questões inconscientes através da análise pessoal individual, tal inserção passou a ocorrer de modo mais "suave", sendo possível uma integração interna e com os outros integrantes dos grupos. A partir da supervisão em grupo das primeiras atuações como coordenador de grupos, ainda como estagiário, é iniciada a ligação entre o profissional-grupalista e o sujeito-grupalista. A faísca de tal imbricação despertou um desejo de estar nesta posição que me acompanhou até hoje.

Após o fim da faculdade, mais dois anos de estudos sobre a relação dos sujeitos e coletivos com as instituições que realizam os cuidados em Saúde. Percebi a importância de se cuidar destes espaços onde o adoecimento psíquico é intenso. Soma-se a isto mais três anos e meio atuando em espaços heterogêneos grupais e coordenando grupos dentro de serviços públicos. Após este percurso considerei imprescindível um aprofundamento no manejo de grupos, visto que este modelo de atendimento é amplamente utilizado na Saúde Mental. Meu interesse por esta abordagem se iniciou já nos tempos da minha graduação em Psicologia, porém só pude praticar tal modalidade intensamente quando adentrei na Saúde Pública no segundo semestre de 2015. Nesta atuação percebi a potência e a dificuldade em coordenar as diferentes modalidades de grupos, considerando imprescindível um aprofundamento teórico neste modo de atuação.

Iniciei esta jornada a partir de um curso oferecido pela Prefeitura de São Paulo -aprimoramento em coordenação de Grupos pela perspectiva do Psicodrama.

Depois de muitos anos de análise e início de atuação na coordenação de grupos decidi me aventurar na teoria que me forçaria a desmembrar intensamente a resistência que tinha de atuar -pensando nos vários significados desta palavra - nos espaços grupais. Após este ano de aprimoramento consegui chegar a duas conclusões: minha paixão pela coordenação de grupos e que a teoria do Psicodrama não é a minha predileta.

Um ponto importante neste período foi a construção de um espaço de experimentação que alinhasse a teórica/prática de grupos com a reflexão sobre a prática nos serviços da Saúde Pública. Semanalmente nos encontrávamos para aprender como coordenar grupos e, ao mesmo tempo, éramos sujeitos em grupos coordenados por colegas que tinham como temática a nossa própria prática profissional. Isto possibilitava a criação, como dizem Lima et al (2007), de um diário de campo que auxiliava na reflexão, compreensão e transformação da ação profissional. Chegávamos nas aulas angustiados com as situações coletivas em que estávamos inseridos e com a nossa atuação na coordenação de grupos e então reformávamos nossa identidade profissional observando os limites e desafios de uma atuação tão complexa nos serviços de saúde pública. (Lima et al, 2007)

Tal espaço, que podemos considerar de certa forma como de supervisão coletiva, porém diferente por ser também de "análises e/ou diagnósticos sobre a realidade social e sobre as demandas singulares da população atendida. (Lima et al, 2007, p. 95)", também propiciava um aprofundamento teórico do Psicodrama ao ter como base de sustentação, vivências psicodramáticas coordenadas pelos próprios alunos do curso. Desta forma revivíamos os acontecimentos do processo de trabalho e apreendíamos os conceitos teóricos desta linha de pensamento.

Enquanto forma de documentação profissional articulada ao aprofundamento teórico, o diário de campo, quando utilizado em um processo constante, pode contribuir para evidenciar as categorias emergentes do trabalho profissional, permitindo a realização de análises mais aprofundadas. (Lima et al, 2007, p. 97)

Após a finalização deste curso, decidi que queria continuar com este caminho, porém seguir na linha em que sempre tive mais proximidade: da psicanálise e análise institucional. Conheci então uma instituição pelo qual poderia seguir neste caminho. Iniciei a participação em grupos psicanalíticos de discussão, realizei um curso breve de introdução em coordenação de grupos e dando continuidade nesta jornada comecei um aprimoramento de coordenação de grupos pelo viés da psicanálise vincular. Neste processo entrei em contato com dois espaços de grande relevância na atuação de grupos sob o viés da psicanálise: os grupos psicanalíticos de discussão e de reflexão.

Nos grupos psicanalíticos de discussão, como diz Fernandes (2003), "procura-se quebrar, ao menos parcialmente, o nível de funcionamento grupal de dependência, tradicional nos congressos, para uma discussão horizontal e criativa'" (Fernandes, 2003, p.212). A ideia destes grupos é a circulação do saber, do pensar de cada participante de forma democrática onde, partindo-se de um tema, de um texto, de uma fala, todos os participantes deste espaço podem se colocar e têm o mesmo valor em suas colocações.

Neste período estava iniciando o trabalho de psicólogo em um CAPS que é um serviço com reuniões semanais e, em alguns casos, até diárias para discussões de casos, fluxos de serviços. Comecei a perceber a dificuldade em promover espaços grupais horizontais onde a troca de saberes e afetos pudesse ocorrer livremente, talvez pela falta de pessoas com uma formação para coordenação de grupos.

Neste momento de minha história estava entrando em uma instituição que funciona a partir de espaços de trocas horizontais e em outra, onde estes espaços são difíceis de ocorrer de modo efetivo. Foi um momento de sofrimento por conta da lacuna existente entre estas duas experiências, porém importante para exercitar um olhar ampliado e crítico na minha atuação profissional, podendo compreender a complexidade dos grupos e instituições.

Ainda neste período conheci outro grupo que considero tão potente quanto o de discussão: os grupos psicanalíticos de reflexão. Pela primeira vez pude experienciar um grupo sem um tema fixo e que se diferencia de um grupo terapêutico psicanalítico. O objeto do grupo não é a terapêutica individual e coletiva, mas a relação do sujeito e do grupo com a instituição na qual ele está inserido. Como diz Fernandes (2003)

A meta maior é o conhecimento que se pode adquirir na vivência grupal: conhecer mais os temas estudados, os vínculos com os colegas e os professores, a pertença à instituição formadora, etc. O fato de não existir um tema pré-fixado deixa um espaço pouco definido, o que facilita as projeções e a construção do tema pelos próprios participantes. (Fernandes, 2003, p.205)

Além da relação com a instituição, o participante pode se indagar a relação com o grupo e com contexto social.

Aqui cabe fazer uma rápida digressão à experiência anterior da formação de coordenação de grupos pelo viés psicodramático realizado em 2018. Como disse, considerava que os grupos que realizávamos condensavam um aprendizado teórico com a vivência teatral das experiências e conflitos vivenciados no trabalho em instituições de Saúde. Vejo que o grupo psicanalítico de reflexão consegue cumprir também este papel dentro dos cursos de coordenação de grupos. Comentando sobre as primeiras experiências de grupos de reflexão realizados por Alejo Dellarossa, Fernandes (2003) revela este aspecto: "Grande parte do que mobilizou esses colegas foi incluir na formação algo que permitisse aos alunos viver a experiência de participar na instituição como membros de um grupo" (Fernandes, 2003, p.206).

A experiência como membro de um grupo com objetivo de aprendizagem e compreensão da transferência institucional permite aos alunos conhecer em ato os aspectos, os movimentos deste tipo de processo. "(...) Outro ponto é que tanto os coordenadores como os demais participantes do grupo são sujeitos e objeto do conhecimento, facilitando o aprendizado teórico a respeito da experiência grupal" (Fernandes, 2003, p.206).

Esta compreensão dos movimentos e conflitos grupais e institucionais permite que possamos atuar nas diversas instituições que estamos inseridos a partir de outro lugar. Se os grupos de discussão iniciaram este processo dentro do CAPS, os de reflexão o reforçaram ao permitir um questionamento da dinâmica do serviço. Voltando-se a análise dos primeiros grupos de reflexão na Argentina, Fernandes (2003) coloca que

Pelo que se pode deduzir atualmente, tal participação pôde dar aos alunos a compreensão desse grupo de grupos tão particular que é uma instituição, permitindo-lhes averiguar em que medida se sentiam estranhos ou pertencentes e determinantes das características institucionais naquele momento (Fernandes, 2003, p.206).

Assim, esta modalidade do grupo psicanalítico de reflexão auxilia na aprendizagem de um duplo movimento necessário nos coordenadores de grupos e analistas institucionais: de distanciamento e de aproximação do grupo e da instituição, como se com um olho aberto observássemos a dinâmica daquele conjunto de sujeitos, enquanto com o outro fechado nos abríssemos para vivenciar junto com aquelas pessoas esta mesma dinâmica. Este duplo olhar pode ser usado em momentos em que estamos coordenando grupos, como também ao sermos integrantes de grupos, facilitando neste último caso a nossa transformação dentro da instituição, a nossa mudança permanente de papéis. Isto é possível por meio do contato com as ansiedades que surgem durante o processo de formação e desenvolvimento de um grupo, das defesas que utilizamos para dar conta destas ansiedades. "Uma das consequências é possibilitar maior respeito e entendimento às dificuldades alheias e seus valores, desenvolvendo a empatia e principalmente o sentido de identidade de grupoterapeuta" (Fernandes, 2003, p.209)

Considero que o coordenador psicanalítico de grupos precise de uma boa compreensão das bases para a formação e desenvolvimento dos grupos para que a teoria faça parte do seu "fluxo sanguíneo" para que quando estiver atuando fique presente neste espaço sem precisar racionalizar, afetivamente disponível.

Enquadre como base para a formação

Como foi colocado no início deste trabalho, para que um analista possa se constituir - seja ele um analista de indivíduo, grupos ou instituições - é imprescindível que ao longo de todo seu percurso profissional esteja inserido no tripé de análise pessoal, supervisão e teoria. Dentro desta perspectiva, o coordenador de grupos psicanalíticos precisa ser enquadrado em uma história com grupos para que possa desempenhar esta função de modo eficiente e espontâneo, tendo a técnica e a dinâmica destes espaços "em seu sangue". Assim, como forma de finalizar este trabalho vamos refletir sobre o conceito de enquadre na psicanálise.

Como coloca Bleger (2002) falando sobre a situação psicanalítica: ela "(...) compreende fenômenos que constituem um processo, que é o que estudamos, analisamos e interpretamos; porém inclui também um enquadre, isto é, um 'não processo', no sentido de que são as invariáveis que formam a moldura dentro da qual se dá o processo" (Bleger, 2002, p. 103). Assim, para que possamos analisar o processo individual ou grupal da terapêutica psicanalítica necessitamos de fatores que não variem, que sejam constantes e enquadrem, ofereçam um suporte para então interpretarmos todos os outros aspectos que variam.

Freud (1913/2010)1, no início do texto "O início do tratamento" traz a metáfora do jogo de xadrez também para falar do processo de análise psicanalítico e da importância de se colocar um enquadre nesta situação.

Quem desejar aprender nos livros o nobre jogo do xadrez logo descobrirá que somente as aberturas e os finais permitem uma descrição sistemática exaustiva, enquanto a infinita variedade de movimentos após a abertura desafia uma tal descrição. Apenas o estudo diligente de partidas dos mestres pode preencher a lacuna da instrução. As regras que podemos oferecer para o exercício do tratamento psicanalítico estão sujeitas a limitações parecidas. (Freud, 1913, p. 164)

No desenvolvimento do texto, Freud vai trazendo algumas "regras do jogo" do início dos processos anímicos que supõe ajustes a tais regras. Porém, para que o jogo tenha início, algumas regras precisam ser acordadas. Não é possível jogar um jogo sem regras, pois são elas que diferenciam os diferentes jogos que existem. Conhecendo as regras básicas, os pormenores do jogo vão ser entendidos com a prática e a expertise do processo

Pelo enquadre ser a base que sustenta uma relação, Bleger (2002) o define como uma instituição. "O enquadre é então uma instituição dentro da qual, ou em cujo seio, acontecem fenômenos que denominamos comportamentos." (Bleger, 2002, p. 104). E como instituição, é ele que define a relação do dentro com o fora, do eu com o outro, mesma função que o corpo estabelece para o sujeito. "Porém, mais do que essa interação indivíduos-instituições, as instituições funcionam sempre (em graus variáveis) como os limites do esquema corporal e o núcleo fundamental da identidade." (Bleger, 2002, p. 104). É algo que tende a não aparecer a não ser em momentos em que se falta. "Aquilo que existe para a percepção do sujeito é aquilo cuja experiência mostrou-lhe que pode faltar." (Bleger, 2002, p. 104).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo tenta mostrar o início do processo de formação do autor como analista de grupos e instituições. E isto foi possível através de uma divisão em dois atos que não são cronológicos, mas lógicos, ou seja, falam do mesmo período, mas de tipos de vivências que são diferentes. Dentro da dinâmica do tripé que é a base de formação do analista, podemos alinhar o primeiro ato à análise pessoal e o segundo ato à supervisão e estudos sobre a teoria psicanalítica dos vínculos.

Apresentamos dois espaços que estiveram presentes neste processo do autor e que potencializaram a constituição de sua identidade grupalista: o grupo psicanalítico de discussão como modelo de um espaço onde a circulação de ideias pode correr livremente favorecendo a participação horizontal de todos os membros; e o grupo psicanalítico de reflexão como estratégia para a aprendizagem teórico-prática. Esta técnica é utilizada com o objetivo que cada coordenador-aluno vivencie e compreenda a sua relação com o grupo e a instituição de ensino.

Por último realizamos uma passagem pelo conceito de enquadre como uma forma de reforçar a importância da formação pessoal e profissional para que o analista tenha uma base para realizar seu trabalho espontaneamente, que é a maneira escolhida desde Freud como método de atendimento na psicanálise - vide o uso da atenção flutuante.

Dentro desta perspectiva podemos entender algumas angústias vividas por este aspirante a grupanalista. Suas dificuldades de viver e de entender as instituições pelas quais passou e por encontrar uma que permitiu compreender alguns mecanismos que estão presentes em todas as outras, e poder conhecer fenômenos que permitam a compreensão deste processo. Foi através deste curso e de minha inserção nesta instituição que estuda, pratica e vive grupos que me possibilitou crescer enquanto profissional e aluno.

 

REFERÊNCIAS

Bleger, J. (2002, setembro). Psicanálise do enquadre psicanalítico. Revista Latinoamericana de Psicoanálisis, 5,103-113. Recuperado de http://www.fepal.org/images/2002REVISTA/bleger.pdf        [ Links ]

Castanho, P (2018). Uma introdução ao trabalho com grupos em instituições. São Paulo: Linear Abarca.         [ Links ]

Fernandes, W. J. (2019). Formação e capacitação continuada do trabalhador da saúde para atuação com grupos. Vínculo, 16(1),89-97. https://dx.doi.org/10.32467/issn.1982-1492v16n1p89-97

Fernandes, W. J., Svartman, B., & Fernandes, B. S. (Orgs.). (2003). Grupos e configurações vinculares. Porto Alegre: Artmed.

Freud, S. (2010). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia relatado em autobiografia: ("O caso Schreber"): artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras.

Lima, T C. S., Mioto, R. C. T., & Dal Prá, K. R. (2007). A documentação no cotidiano da intervenção dos assistentes sociais: algumas considerações acerca do diário de campo. Textos & Contextos (Porto Alegre), 6(1),93-104. Recuperado de https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/view/1048.

Trachtenberg, A. R., Piva, A. B. S., Heaberle, D., Pereira, D. Z., Soares, G. F., Avritchir, R. A., & de Mello, V. H. P (2011) Por que René Kaës? Revista Psicanálise, 13(1),257-270. Recuperado de http://sbpdepa.org.br/site/wp-content/uploads/2017/03/Por-que-Ren%C3%A9-Ka%C3%ABs.pdf

 

 

1 A primeira data indica o ano de publicação original da obra e a segunda data indica a edição consultada pelo autor; que só será pontuada na primeira citação da obra no texto. Nas seguintes será registrada apenas a data de publicação original.

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