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Vínculo
versão impressa ISSN 1806-2490
Vínculo vol.19 no.1 São Paulo jan./jun. 2022
https://doi.org/issn.19982-1492v19n1a5
ARTIGOS
https://doi.org/10.32467/issn.19982-1492v19n1a5
Objetos mediadores e a entrevista devolutiva em grupo de pais no contexto do psicodiagnóstico interventivo
Mediating objects and the feedback interview in a parent group in the context of interventional psychodiagnosis
Objetos mediadores y entrevista devolutivo en un grupo de padres en el contexto del psicodiagnóstico intervencionista
Mariana do Nascimento Arruda Fantini 1,; Andrés Eduardo Aguirre Antúnez 2; Pablo Castanho3
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo-SP, Brasil
RESUMO
O modelo do psicodiagnóstico interventivo em grupo de pais no contexto da Clínica-escola considera a variabilidade de demandas clínicas, os objetivos formativos, a oferta de atendimento psicológico e a vulnerabilidade social da clientela assistida. Este método extrapola objetivos investigativos distinguindo-se pela realização de intervenções durante os procedimentos de avaliação psicológica. Uma série de devolutivas parciais são realizadas para intensificação dos efeitos terapêuticos, discutindo-se os resultados das técnicas diagnósticas no grupo de pais. O objetivo deste trabalho é apresentar o potencial clínico de um dispositivo do diagnóstico interventivo que considera os instrumentos de avaliação como objetos mediadores e trabalha-os grupalmente. Trata-se de um estudo teórico-clínico que discute o potencial do dispositivo através de duas vinhetas clínicas que permitirem a discussão das possibilidades terapêuticas das sessões devolutivas realizadas em grupo de pais na situação do psicodiagnóstico interventivo. Focaliza-se a última devolutiva conduzida pela atividade de recorte e colagem, tomada como expressão do alcance terapêutico do procedimento clínico em questão. Apresenta-se a hipótese de que as técnicas diagnósticas podem ser pensadas como objetos mediadores e guias para o trabalho com os pais.
Palavras-chave: mediadores clínicos, psicodiagnóstico interventivo, devolutiva em grupo.
ABSTRACT
The interventional parent´group psychodiagnostic model in the context of the School-Clinic considers the variability of the clinical demands, the educational goal, psychological care´s and the social vulnerability of those assisted. This method goes beyond the investigative objectives, distinguishing itself by carrying out interventions during the process of the psychological assessment. Thus, a series of partial feedbacks are carried out so to intensify the therapeutic effects. The objective of this study is to present the clinical potential of an interventional diagnostic device that considers assessment instruments as mediating objects and works on them in groups. This is a theoretical-clinical study that discusses the potential of the device through two clinical vignettes that allow the discussion of the therapeutic possibilities of the feedback sessions held in a group of parents. It focuses on the last partial feedback session conducted from the cut-and-past activity which is seen as an expression of the therapeutic reach of the clinical procedure here discussed. It presents the hypothesis that diagnostic techniques can be thought of as mediating objects and guide for working with the parents.
Keywords: clinical mediators, interventional psychodiagnosis, group feedback.
RESUMEN
El modelo de psicodiagnóstico intervencionista en un grupo de padres en el contexto de la Escuela-Clínica considera la variabilidad de las demandas clínicas, los objetivos formativos, la oferta de atención psicológica y la vulnerabilidad social de la clientela asistida. Este método va más allá de los objetivos investigativos, diferenciándose por realizar intervenciones durante los procedimientos de evaluación psicológica. Se realizan una serie de devolución parciales para intensificar los efectos terapêuticos. El objetivo de este trabajo es presentar el potencial clínico de un dispositivo de diagnóstico intervencionista que considera los instrumentos de evaluación como objetos mediadores y los trabaja en grupo. Se trata de un estudio teórico-clínico que analiza el potencial del dispositivo a través de dos viñetas clínicas que permiten discutir las posibilidades terapéuticas de las sesiones de devolución. Se centra en la entrevista final realizada por la actividad de cortar y pegar y que se toma como expresión del alcance terapéutico del procedimiento clínico en cuestión. Se plantea la hipótesis de que las técnicas de diagnóstico pueden concebirse como objetos mediadores y guías para trabajar con los padres.
Palabras clave: mediadores clínicos, psicodiagnóstico intervencionista, devolución grupal.
Introdução
Os serviços-escola dos cursos de Psicologia no Brasil e suas modalidades de atendimento, devem estar articulados em torno de dois eixos estruturantes: 1- disponibilizar atendimento gratuito (ou com valor social) de qualidade à população e 2- formar os alunos-estagiários. Assumem, portanto, um relevante papel social por possibilitarem o ingresso ao atendimento psicológico a uma população carente ou em condições sociais de marginalidade, que não teria acesso a formas de cuidado psicológico, não fora os serviços da instituição (Amaral et al, 2012). Considerando a complexidade dessa conjuntura e, procurando zelar pela qualidade do atendimento psicológico, compreende-se que o valor do serviço psicológico se aloja na possibilidade de construir dispositivos que possam dialogar com as demandas da população que frequenta a Clínica-escola, o curso de Psicologia da Universidade Paulista veio estabelecendo, ao longo de sua história, uma forma característica de atendimento e recepção dos pacientes (Ancona-Lopez, M., 1995).
Como consequência, os estágios clínicos que são desenvolvidos nos Centros de Psicologia Aplicada organizam-se a partir dessas mesmas premissas, orientando-se para que o processo de formação não se sobreponha ao atendimento clínico, privilegiando o encontro do paciente com psicólogo. No caso específico, por se tratar de um serviço-escola, e como forma de cumprir o duplo objetivo desta instituição, o atendimento clínico é desenvolvido de forma conjunta contando com a presença do supervisor / psicólogo e dos alunos-estagiários. Desta forma, o supervisor funciona tanto como um modelo inicial de atuação para o aluno-estagiário, que pode ir aos poucos assumindo uma atitude terapêutica, quanto sua presença garante qualidade de atendimento para o paciente.
Isto posto, focalizando o atendimento de crianças, os responsáveis têm seu primeiro contato com o serviço através da triagem interventiva realizada em grupo. A intenção maior é que o psicólogo possa transformar a entrevista de triagem em um momento significativo. Ou seja, procura-se ir além da coleta ou identificação da queixa por compreender que a busca pela ajuda psicológica se relaciona a um momento de crise existencial. Assim, a triagem interventiva objetiva fundamentalmente, oferecer uma consulta psicológica ao cliente (Ancona-Lopez, S., 1996).
Na conformação inicial desta modalidade de atendimento, o dispositivo grupal é entendido como um ingrediente técnico ofertado para que este momento de triagem seja mobilizador, uma vez que:
Os projetos, sentimentos, ansiedades e conflitos expressos no grupo produzem movimentos de identificação e diferenciação, através dos quais se delineiam as individualidades dos adultos e das crianças... Reconhecer a experiência do outro significa entrar em contato com uma possibilidade pessoal até agora desconhecida, o que facilita o conhecimento de si e a ampliação do campo vivencial. (Ancona-Lopez, M., 1995, p. 97)
Atualizando essa premissa, encontramos a contribuição de Safra (2006), ao abordar a dimensão polifônica do idioma pessoal, na afirmativa de que "há inúmeras experiências em nós mesmos que existem porque tivemos a possibilidade de acompanhar a experiência de uma outra pessoa" (p. 46). A partir da experiência nessa modalidade de atendimento, ao longo de dezoito anos de prática como supervisora de estágio nesta Universidade, a primeira autora observa que o atendimento em grupo também promove o sentimento de pertencimento e reduz a sensação de solidão. Os pacientes percebem que não são os únicos a terem sofrimentos e dificuldades e que não estão sozinhos frente às suas vivências psicológicas e situações de vida.
Geralmente, após a entrevista de triagem, as crianças são encaminhadas para o psicodiagnóstico interventivo que também é realizado no enquadre de grupo. O traço essencial desta forma de conduzir a avaliação psicológica, e que a distingue do modelo tradicional, encontra-se, como define Barbieri (2010), na "realização de intervenções (assinalamentos, interpretações, holding) durante as entrevistas e aplicações de técnicas projetivas" (p. 505). Isto é, a composição de um psicodiagnóstico-intervenção desarticula a visão clássica na qual a etapa diagnóstica, ou de coleta de dados, deve estar claramente separada do contexto terapêutico ou interventivo. Para tanto, as intervenções no psicodiagnóstico interventivo acontecem à medida que se realiza uma série de devolutivas parciais em grupo ao longo do processo, com o objetivo de fazer uma costura entre a situação da criança em questão, o contexto familiar e social.
As sessões de devolutiva desafiam frente à necessidade de ajudar os pais a recuperarem a confiança em si, e a sentirem-se seguros para o desempenho das funções parentais superando, assim, sentimentos de fracasso. Para Safra (2005), o psicanalista servirá "de ego auxiliar, refletindo junto com os pais sobre a situação de sofrimento da criança e relacionando-a com aspectos da realidade" (p.38), oferecendo um distanciamento importante para refletir os acontecimentos. Nesse passo, o psicólogo terá a possibilidade de, como definiu Motta (2006), aumentar o contato dos pais com a realidade psíquica dos filhos, com sua própria realidade psíquica, compreender o sintoma da criança a partir das questões do processo maturacional e diminuir o uso do filho como receptáculo de identificações projetivas. Nem sempre é viável alcançar todas essas metas com todas as famílias. Muitas vezes, na etapa diagnóstica é possível abrir um espaço de revisão das compreensões costumeiras sobre o filho e suas problemáticas, sensibilizando-os para um trabalho que se aprofundará em uma fase posterior: psicoterapia para a criança com orientação de pais, psicoterapia individual para os pais, psicoterapia de casal, ou de família.
Considerando este modelo clínico, as entrevistas de devolutiva parcial ocorrem em uma frequência quinzenal, intercalando-se aos procedimentos de avaliação psicológica realizados com as crianças4. Geralmente, após a realização da entrevista inicial, da anamnese, da observação lúdica e de algum procedimento clínico como colagem, ou desenho, acontece a primeira entrevista de devolutiva parcial seguindo, a partir deste momento, a regularidade quinzenal. Alterna-se, portanto, os encontros com a criança com as devolutivas aos pais. Basicamente, cada uma das devolutivas estará mais diretamente vinculada aos procedimentos realizados com as crianças na semana anterior. A última devolutiva parcial pretende integrar o processo de diagnóstico como um todo, alinhavando compreensões realizadas, retomando momentos significativos que favoreceram o entendimento sobre as dificuldades e sofrimentos vividos pelas famílias. Além de se retomar as razões para a escolha das indicações terapêuticas, assegurando que os caminhos apontados atendem à família. As técnicas diagnósticas utilizadas com os filhos, e seus resultados, constituirão o meio pelo qual as compreensões diagnósticas serão comunicadas e tratadas com os pais.
Objetos mediadores para o trabalho com o grupo de psicodiagnóstico
Tendo como referência a proposta de Castanho (2018a) para o trabalho com grupos a partir da psicanálise, acreditamos ser adequado considerar os métodos de avaliação psicológica como mediadores, ou seja, elementos materiais introduzidos no espaço grupal como veículos de comunicação e facilitadores do desenvolvimento da cadeia associativa. E, neste contexto, favorecedores do propósito interventivo.
Ao longo dos anos, procurando dar atenção tanto ao universo singular de cada família quanto à dimensão grupal, intersubjetiva, passou-se a utilizar mediadores clínicos (colagens ou desenhos) para a efetivação da proposta desta devolutiva, pois como definido por Vacheret (2015): "O objeto mediador é um objeto entre o sujeito e o grupo, entre os membros do grupo e, além disso, ele pode ser representativo do próprio grupo como entidade" (p.90). Diante das particularidades das famílias, começou-se a identificar certa "sujeição" dos pais à palavra do psicólogo e, no trabalho terapêutico questionava-se o quanto teriam elaborado e internalizado o que tinha sido apresentado e compartilhado pelo grupo. Então, seguindo as formulações de Vacheret (2015), a inserção de um objeto mediador surge como alternativa uma vez que, ele "produz uma liga nova, uma combinatória diferente, favorável ao desencadeamento de certos processos criadores de sentido." (p.90). Logo, o desenho, a colagem, ou as frases produzidas são mediadoras, servem como fio condutor, para que a conversa de conclusão do processo psicodiagnóstico possa acontecer.
Assim, a opção pelos atendimentos em grupo não se dá simplesmente por uma adequação ao ambiente institucional, Clínica-escola, e à grande demanda pelo serviço (Castanho, 2018b). Mas, a realização de entrevistas devolutivas em grupo de pais, evidencia que esta escolha se faz em função da concepção de sujeito e de adoecimento subjacentes. O trabalho em grupos, aqui apresentado, sustenta-se na concepção de sujeito de René Kaës para entender que:
Tornar-se humano exige sujeitar-se a um grupo humano, e neste processo cria-se um fim em si mesmo e um elo em uma cadeia de transmissão psíquica... É por tudo isso que Kaës afirmará que o sujeito do inconsciente é o sujeito do vínculo... (Castanho, 2018b, p.56)
Destacando a característica vincular do ser humano, o grupo não seria um espaço artificial para o encontro com o psicólogo, mas o lugar originário, nativo, capaz de favorecer o acontecimento humano, mudanças psicológicas, descobertas sobre si. Em consequência, o artifício grupal e os recursos de mediação, no contexto do psicodiagnóstico interventivo, são entendidos, neste trabalho, como o solo que pode trazer saúde para os vínculos familiares através do reencontro com o filho e com o lugar materno e paterno.
Metodologia
Buscamos neste trabalho, a partir da apresentação de duas vinhetas clínicas, discutir as possibilidades terapêuticas das sessões devolutivas realizadas em grupo de pais que integram a proposta de psicodiagnóstico interventivo realizado em uma Clínica-escola. Focalizando, especialmente, a última entrevista de devolutiva parcial e a descrição dos cartazes de recorte e colagem produzidos pelas mães dos pacientes durante o atendimento. Ou seja, a atividade de colagem será tomada como expressão, ou produto final, que revela o alcance terapêutico do procedimento clínico em questão. Por justaposição, retrato, ao mesmo tempo, o uso de um mediador clínico, no caso recorte e colagem, como estratégia de intervenção junto aos pais por ocasião da atividade diagnóstica. Como desdobramento das entrevistas devolutivas, visamos apresentar a hipótese de que os procedimentos realizados com as crianças durante o psicodiagnóstico interventivo podem ser pensados como objetos mediadores, guias para o trabalho e intervenções desenvolvidas com os pais.
Na entrevista devolutiva mediada por materiais plásticos, a tarefa é para que os pais construam um percurso temporal retratando como chegaram com a criança à clínica e como se apercebem no momento de conclusão do trabalho. Todos trabalham em conjunto, pacientes pais ∕ responsáveis e equipe terapêutica (supervisor de estágio ∕ coordenador do grupo e alunos-estagiários ∕ coterapeutas). Após a conclusão dos cartazes, abre-se uma conversa na qual espontaneamente cada membro do grupo descreve sua colagem e, na sequência, os outros integrantes do grupo podem fazer comentários. Neste momento, encerramento do psicodiagnóstico, o foco é descritivo, procura-se contar, ou recontar para os pais o que eles mostraram sobre o trabalho clínico realizado, sobre os encontros, através de suas composições.
Resultados e discussão
O labirinto matemático da família de Jorge
Três anos atrás, recebi a família de Jorge5. Seus pais, Vera e Roger, procuraram por atendimento porque o filho era inteligente demais, já haviam realizado um trabalho psicológico anterior com a suspeita de hiperatividade, mas o atendimento realizado identificou que Jorge era superdotado. Receberam orientação para estimulá-lo e oferecerem possibilidades para que ele pudesse usar e desenvolver seus recursos intelectivos, caso contrário ele estaria sempre inquieto. Os pais seguiram esse caminho usando, primordialmente, de seus recursos como professores de ensino, mas com o tempo, viram-se aprisionados a um circuito insaciável e obsessivo. Jorge estava sempre buscando solucionar desafios matemáticos, realizar olimpíadas de ciências e, assim, a relação com o filho havia se transformado em uma relação professor-aluno. Viviam em função da "mega inteligência" da criança; estavam exaustos. Como Jorge já tinha um diagnóstico e, o relato dos pais evidenciava a existência de uma dissociação entre mente e psique-soma6, ainda na etapa de triagem, considerou-se que a criança poderia ser encaminhada diretamente para a psicoterapia. No entanto, a mãe do menino expressou a vontade de que ele frequentasse o psicodiagnóstico alegando que "sei que os estagiários, como estão em processo de formação, tem toda uma dedicação e um carinho".
Assim, a família foi encaminhada para o psicodiagnóstico interventivo sendo agrupada com outras três famílias monoparentais femininas. Além da entrevista inicial e de anamnese, este grupo recebeu cinco devolutivas parciais. Os primeiros procedimentos realizados com Jorge, observação lúdica e a construção de um cartaz através de recorte e colagem que representasse a vida da criança, traziam muito fortemente, como fantasia de cura, a necessidade de, nos termos da criança, "um ambiente natural", ou seja, a premência de recuperar e integrar aspectos instintivos, sensoriais, afetivos. Anseios que foram sendo comunicados para a mãe durante as entrevistas devolutivas.
Neste início do trabalho, a descrição das imagens selecionadas pela criança na atividade de colagem e dos desenhos feitos durante a hora de jogo diagnóstica foi utilizada como forma de um "pensamento em imagem... carregado de estados afetivos" (Vacheret, 2015, p. 90) com a intenção de evocar na mãe da criança associações que pudessem colaborar na construção de um entendimento sobre o sofrimento do filho. Ampliando sua forma de pensar sobre a situação familiar e, no fundo, aproximando-a de Jorge; de sua realidade psicológica.
Esse processo intensificou-se, após a aplicação do teste projetivo HTP. A análise dos conceitos interpretativos do teste consolidou o diagnóstico de imaturidade emocional de Jorge e, a expressão constante de necessidade de apoio impactou a mãe do menino, indício sentido, inicialmente, como paradoxal. Uma vez que, na perspectiva dos pais, eles estavam o tempo todo envolvidos com o filho. O trabalho desenvolvido nesta devolutiva, expôs algumas chaves interpretativas do teste, buscando instrumentalizar os pais a compreenderem o desenho produzido pelo filho. Configura-se um campo que visa favorecer a ligação entre o pensamento em imagens, no caso específico, o desenho confeccionado pela criança, ao pensamento em ideias, que seriam articulados pelos pais com o auxílio do grupo, em busca de um sentido.
A partir da visão de Vacheret (2015), compreendemos que a conversa que se estabelece em torno dos desenhos do H-T-P assemelha-se a um jogo em torno das imagens, uma vez que se caracteriza pela fórmula "como se". Assim, não se fala diretamente do filho, mas da representação de uma árvore com determinadas características, trabalha-se em registro de transicionalidade7: mantendo-se o paradoxo sobre a "árvore" ser e não ser o filho, é possível colocar a experiência em jogo, em trânsito, propiciando o reconhecimento da realidade permitindo ao mesmo tempo, a integração da experiência de si. Os desenhos gerados a partir de uma técnica projetiva com as crianças oportunizam o pensamento metafórico, modalidade de pensamento "que se aproxima da realidade por semelhança de forma, de cor, de movimento, de sensações perceptivas, e se afasta disso, ao mesmo tempo, pelo fato de se apoiar no princípio da analogia" (Vacheret, 2015, p. 100).
Seguindo este caminho, Vera pôde ir alcançando a percepção de que, na verdade, ela e seu marido, viviam envolvidos com os desafios matemáticos, mas estavam distantes de Jorge, o que gerava a sensação de falta de apoio e de presença. A terapeuta pensa que essa nova perspectiva foi efetiva, pois, o resultado do WISC III indicou inteligência acima da média, mas foi recebido com pouca relevância. Afinal, já estava claro que ser muito inteligente não "resolvia a vida da criança."
A observação do percurso de outras duas crianças do grupo, uma menina e um menino da mesma faixa etária de Jorge e que tinham dificuldades de aprendizagem significativas, foram mencionadas diversas vezes pela mãe da criança nas devolutivas em grupo, quando referia perceber como eles eram "iguais", ou seja, aproximava-se da compreensão de que ser muito inteligente não diferenciava o seu filho das crianças de sua idade. Na devolutiva sobre a aplicação e correção do WISC III, estas duas crianças tiveram a inteligência avaliada como na média, indicando que as dificuldades escolares se assentavam em aspectos emocionais e relacionais. Frente a estas evidências, um interessante debate sobre a importância de um desenvolvimento equilibrado nos diversos aspectos pôde se estabelecer no grupo de mães. Equivale dizer que as mães aprendiam, com os resultados do psicodiagnóstico, que somente os recursos cognitivos não são suficientes para um desenvolvimento suficientemente saudável. Aquisição possível pelo estabelecimento de um campo de jogo, criado pelo grupo, com o apoio da mediação.
Na última devolutiva, Vera elaborou um cartaz que integrava desenho e colagem. Com a folha no formato paisagem, desenhou do lado esquerdo um labirinto, dentro dos caminhos do labirinto ilustrou números, cálculos, um cubo mágico. Ao fundo, estava representada a família. Fez uma seta no meio da folha, entre o desenho do labirinto e a imagem (recorte) de uma flor de Dente de Leão, conhecida por sua delicadeza e por facilmente se esvair ao vento. Ao falar sobre sua produção disse: "quando chegamos, pedindo ajuda psicológica, estávamos em um labirinto matemático. Presos, sem liberdade! Na verdade, estava distante do meu filho, não sabia mais quem ele era, nem quem nós éramos porque vivíamos cumprindo tarefas. Vi que o Jorge precisava ser criança, precisava de liberdade, ele não estava feliz... Agora estamos tentando estar em família, ajudar o Jorge a se libertar da exigência de ser o melhor e mais inteligente. Na semana passada compramos uma bicicleta para ele, agora ele não para em casa!" (sic). Vera se emocionou e agradeceu. A terapeuta também se emocionou com a imagem do Dente de Leão que retratava o "ambiente natural" desejado por Jorge.
As outras mães do grupo também trouxeram, em seus cartazes, representações que falavam de situações de aprisionamento e conquista de liberdade, ilustrando a concepção de Vacheret (2015) de que o objeto mediador faz uma tradução do grupo, pois, recolhe
os conteúdos imaginários de cada um e do conjunto, do grupo inteiro que se autorrepresenta aí, como tal... o objeto mediador reúne, em um cruzamento de representações, os vínculos pelo pensamento intrapsíquico do sujeito singular e os vínculos produzidos pelas trocas intersubjetivas... (Vacheret, 2015, p.90)
Assim, retrataram, um casulo como representação da situação inicial e o "nascimento" de uma borboleta, o desenho de um menino fechado dentro de um armário e posteriormente em uma situação escolar e, de fato, a imagem do rosto de uma pessoa atrás das grades de uma janela seguido do recorte de mãe e filho "passeando" em um gramado. A terapeuta recorda, neste momento, ter compreendido, consolidado a ideia, que este grupo tratou de famílias e crianças que estavam, por diferentes razões, aprisionadas.
Um espelho mal assombrado
A terapeuta recebeu um grupo de psicodiagnóstico Rosana, mãe de Felipe de 9 anos. Do mesmo grupo participavam outras três famílias sendo; uma mãe solteira, um casal e um avô materno que tinha a guarda da neta. Trazia uma queixa difusa; algo a estranhava em relação ao filho. No fundo, perguntava-se se ele era normal. Explorou-se os comportamentos da criança e nada de fato chamava a atenção, não encontrava um núcleo que se pudesse considerar como problemático. Paralelamente, Rosana relatou seu histórico de vida com o pai da criança, seu ex-marido, uma história bastante conturbada que incluía uso de drogas por parte do pai da criança, violência física, perseguições. Em algum momento do seu relato Rosana disse: "eu pergunto para o Felipe você é normal, você é bipolar? (sic)." A terapeuta havia compreendido, até este momento, que assombrada pelo histórico do ex-marido e culpada pelos transtornos que a criança havia passado na primeira infância, Rosana assustava-se com condutas "normais" de uma criança, como, por exemplo, envolver-se em uma briga durante um jogo de futebol, imaginando que seu filho já estava marcado para um destino semelhante ao do pai.
No entanto, na primeira intervenção, trouxe uma notícia um pouco mais incômoda, a terapeuta falou que a bipolaridade é uma doença grave e que lhe parecia ser difícil para uma criança ser questionada pela mãe se ela é doente. Concluiu dizendo que lhe parecia que esses questionamentos traziam uma insegurança para o menino sobre seus recursos e "normalidade". Rosana desconcertou-se e a intervenção de outra mãe que fazia parte do grupo foi fundamental para que a conversa com Rosana pudesse continuar e abrir uma nova perspectiva para ela. Acolhendo e traduzindo o que a terapeuta havia dito, a segunda mãe falou: "sabe, o que a psicóloga está querendo dizer é simples... Outro dia eu peguei meu filho repetindo em voz baixa no cantinho do banheiro eu sou burro, eu sou burro! De tanto que a professora e os coleguinhas falam que ele é burro ele mesmo já tá se achando! A mesma coisa com o seu! (sic)."
No decorrer do psicodiagnóstico e com a administração dos procedimentos, as fantasias iniciais da mãe de anormalidade não se confirmaram. Ao contrário, Felipe se mostrava com muitos recursos psicológicos, excetuando uma elevada exigência pessoal. Mostrava-se de forma meticulosa, inseguro sobre seu desempenho, como se nunca pudesse atingir a expectativa do outro. Os estagiários realizaram tanto uma visita escolar quanto uma visita ao CCA que o menino frequentava no contraturno. O relato, realizado durante uma entrevista devolutiva, sobre a ida nestas instituições de educação, selaram a compreensão de que esta "super" exigência referia-se à relação com a mãe tendo em vista que não existiam queixas, ou reclamações da parte de nenhuma das duas instituições.
Recolocava-se, então, a percepção da entrevista inicial de que, como a cada conduta do menino, Rosana pressupunha algum transtorno, angustiando-se, Felipe sentia nunca satisfazer a mãe e ficava incerto sobre sua competência. Como postulado por Winnicott (1971/1975), a função especular cumpre papel fundamental na constituição do self, ofertando para o bebê uma imagem que o represente e na qual ele pode se encontrar. De outro lado, em muitos casos, ao olhar para o rosto da mãe o bebê pode não se ver, mas encontrar-se com o humor ou, ainda, com a rigidez das defesas maternas transtornando, desse modo, o processo de apercepção. São situações nas quais, a pessoa constitui-se em favor da percepção dos objetos e não da apercepção. Como desdobramento, ao longo da vida, orientam suas condutas tentando ajustar-se à imagem que o objeto insinua.
O cartaz que Rosana elaborou na última devolutiva continha quatro figuras; a primeira era a ilustração de uma mulher cabisbaixa encostada em um espelho. Ao falar sobre essa imagem Rosana disse que, quando chegou pela primeira vez à clínica, estava como aquela pessoa; aflita. Que se olhava no espelho e não se reconhecia, ficando nervosa com as coisas que ela tinha medo de ver. Diz ter percebido que acabava coagindo os filhos com as aflições dela. Considerou-se que esta primeira ilustração, era de fato, o encontro com uma metáfora de si. E, como demonstra Vacheret (2015), este estágio do pensamento revela a possibilidade de criar uma história "É uma fase criativa, transformadora e organizadora no plano psíquico" (p. 96).
A segunda figura reproduzia uma cena do desenho infantil Alvim e os esquilos. Rosana justificou essa escolha dizendo que os filhos gostam dessa série e que tinha escolhido esta imagem para representá-los. Na interpretação da terapeuta, com essa foto Rosana indicava a possibilidade de ver os filhos a partir do universo infantil, menos invadido pelas suas projeções, ou refletidos pelo seu espelho escurecido.
De modo análogo, poderíamos pensar que, de início, existia uma distorção transgeracional da função especular e, que os procedimentos diagnósticos funcionaram como o olhar de um terceiro, um novo olhar, que a permitiu ouvir e ver facetas dela mesma. Interessante que para Roussillon (2013) a transferência com o objeto intermediário é da ordem da transferência com o objeto primário, frequentemente a mãe dos estados iniciais do desenvolvimento. Nesses termos, ao que parece, Rosana pôde movimentar a etapa do processo maturacional articulada à função especular.
Retomando o cartaz de recorte e colagem, a terceira imagem era a fotografia de uma mulher com uma criança sorrindo numa praça de alimentação. Rosana comentou que se tratava dela e do filho e que eles estavam muito felizes. Pensamos que o encontro, a possibilidade de se nutrirem da presença um do outro, em função da matização das projeções terroríficas da mãe introduzia-se como uma vivência inaugural.
Concluiu seu relato dizendo que pôde perceber que os seus pensamentos são seus piores inimigos. Menciona que está brigando com eles e que tem melhorado. Relata que, no início do atendimento, ela pensava que seu problema era o "pior do mundo", mas que, no decorrer do processo, conheceu situações "piores" e fez menção ao caso de outra criança que também estava sendo atendida pelo grupo. Referia-se a situação de uma menina de seis anos que atualmente era cuidada pelo avô materno, mas que viveu abrigada desde o nascimento até os três anos, pois, foi encontrada em um lixão, pois, quando a criança nasceu a mãe era dependente de crack. Enfim, a visão de outras situações de vida, a partir da participação no grupo, também funcionou como um corretor de reflexo para seu espelho distorcido e opaco, possibilitando uma percepção "mais limpa" de si e do filho. Fenômeno explicado na afirmação de Safra (2018) de que "é no espaço potencial que a pessoa pode dar continuidade à constituição de seu self, à medida que pode vir a interagir com o outro" (p. 46). Assim, se abre a possibilidade de entender que esse movimento se explica no fato de que cada membro do grupo é um objeto para o outro, ou melhor, que os diferentes integrantes do grupo constituem, em si, uma via de mediação (Castanho, 2018a).
Encerrou sua participação solicitando um encaminhamento para psicoterapia, indicação que a terapeuta vinha tratando com Rosana ao longo das devolutivas, mas que, agora, ela assumia, formulando um pedido próprio. Atitude prevista por Claudine Vacheret (2000) ao propor que "o trabalho com objetos mediadores em grupo torna-se às vezes uma preparação para um trabalho psicoterapêutico pessoal..." (Castanho, 2018a, p. 189). Sobre este caso clínico não se pode esquecer da participação fundamental, decisiva, da outra mãe que integrava o grupo, e que funcionou como interlocutora, aproximando o pensamento da terapeuta dos referenciais compreensivos de Rosana. Bem como, aponta Narvas (2010) que uma das qualidades dos grupos que reúnem várias famílias (multifamiliar), relaciona-se ao fato de que a população que procura instituições de atendimento gratuito muitas vezes experimenta um sentimento de impotência, sente-se marginalizada, ou empobrecida e o encontro com psicoterapeutas detentores de um suposto saber, pode reforçar essa vivência de incompetência. Assim, entre as famílias, a diversidade vivenciada "é mais rica que os meros conselhos de um único terapeuta, geralmente forasteiro àquela cultura particular" (p. 06).
Considerações finais
Considerando os objetivos do psicodiagnóstico interventivo, presumimos que as situações clínicas apresentadas demonstram que o processo como um todo é competente para ajudar os pais a alcançarem a compreensão sobre os problemas dos filhos e sobre como a família participa da problemática apresentada como queixa. Auxiliando o resgate das funções parentais (Safra, 2005), a aproximação com a realidade psicológica do filho (Motta, 2006) e como efeito, na aceitação do encaminhamento.
Verifica-se que o dispositivo grupal foi elemento fundamental para se alcançar os propósitos do atendimento uma vez que "O grupo, como a mãe, exerce a função de intérprete, de tradução, de transformação de atos ou de sinais mensageiros de um sofrimento" (Vacheret, 2015, p. 89). Nesse sentido, a tarefa de cada sessão devolutiva é para que todos os integrantes do grupo, as outras famílias, colaborem para a construção de uma compreensão sobre a problemática da criança e, de que forma, os pais estão nela implicados.
Apreciando a questão dos objetos mediadores, julgamos ter apresentado situações clínicas que descrevem como os procedimentos de avaliação diagnóstica inserem-se nas entrevistas devolutivas em grupos de pais como mediadores, colocando-se como um terceiro, favorecendo a transicionalidade e o desenvolvimento de uma cadeia criadora de sentido através da elaboração intersubjetiva da mensagem: dados diagnósticos. Os relatos clínicos sobre a última devolutiva do processo, mediada pela atividade de recorte e colagem na qual a tarefa de integrar o trabalho realizado fica "para os pais", estabelece-se como uma conclusão diagnóstica autoral. À medida que a criatividade é "a ação que possibilita o acontecer e o aparecimento do singular de si mesmo" (Safra, 2004, p.61). E, uma vez que, potencialmente, favorece a integração do sentimento, do pensamento e da ação, pensamos que se trata de um momento de apropriação e de assunção de responsabilidade sobre as dificuldades da criança e sobre a dinâmica familiar. Evidencia-se, também, que a introdução de uma estratégia de mediação durante as devolutivas em grupo de pais, contribui para a compreensão e, consequente, trabalho sobre a dinâmica do grupo já que,
o objeto mediador reúne, em um cruzamento de representações, os vínculos pelo pensamento intrapsíquico do sujeito singular e os vínculos produzidos pelas trocas intersubjetivas, estando ativo em vários níveis simultaneamente. (Vacheret, 2015, p. 92)
Por fim, vemos que este dispositivo confere uma legitimidade com dois pilares do fazer psicanalítico: "O espaço psicanalítico necessita ser constituído por um conjunto de elementos que permitam as "emergências" psíquicas... Espaço que exige ainda uma escuta específica" (Castanho, 2018a, p. 142). Premissa que se articula ao pensamento de Vacheret (2015) de que "A psicanálise clássica não pode responder a todas as eventualidades, ela deve ser substituída por outros dispositivos mais adaptados às disfunções psíquicas e sociais do mundo contemporâneo" (p. 106). Incluímos, nesta variabilidade de demandas, o contexto da Clínica-escola: clínico e formativo e, a vulnerabilidade social da clientela por ela assistida.
Referências
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Endereço para correspondência
Mariana do Nascimento Arruda Fantini
R. Amaro Cavalheiro, 347, cj. 1109, 05426-011, São Paulo-SP.
E-mail: mariana.fantini@docente.unip.br
Andrés Eduardo Aguirre Antúnez
Av. Prof. Mello Moraes, 1741, 05508-030, Cidade Universitária, São Paulo-SP.
E-mail: antunez@usp.br
Pablo Castanho
Av. Prof. Mello Moraes, 1741, 05508-030, Cidade Universitária, São Paulo-SP
E-mail: pablo.castanho@usp.br
Submissão em: 20/09/2021
Aceite em: 01/04/2022
1 Doutora em Psicologia Clínica IP/USP, Mestre em Psicologia Clínica PUC/SP, Professora Adjunta da UNIP.
2 Psicólogo, Livre-Docência em Psicologia Clínica IP/ USP.
3 Prof. Dr. do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
4 O processo é composto da entrevista inicial, anamnese, observação lúdica, devolutivas parciais, técnicas projetivas, testes psicológicos específicos, sessões de família, visita domiciliar, visita escolar, devolutiva final para a criança e para os pais.
5 Todos os nomes mencionados são fictícios, foram alterados para preservar a identidade dos pacientes. Ao iniciar o atendimento no Centro de Psicologia Aplicada, os pacientes assinam um TCLE autorizando a utilização de dados para estudo, pesquisa e publicações, tendo em vista o caráter formativo da instituição clínica-escola.
6 Leitura psicológica embasada no referencial da psicanálise winnicottiana.
7 Remetemos o leitor ao texto Winniccott, D. W. (1993). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In: Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. (cap. 18 p. 389-408). Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Obra original publicada em 1951).