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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.20 no.1 São Paulo  2023  Epub 20-Set-2024

https://doi.org/10.32467/issn.1982-1492v20n1a4 

Pesquisa Documental

A Relação Materno-Infantil e suas Implicações na Queixa Psicossomática

The Maternal-Infant Relationship and its Implications in Psychosomatic Complaint

La Relación Materno-Infantil y sus Implicaciones en la Queja Psicosomática

Beatriz Aparecida da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-8053-8681

Hilda Rosa Capelão Avoglia2 
http://orcid.org/0000-0002-3459-0542

1Universidade Metodista de São Paulo. Rua Geraldo Pedro Correia, 80. Vila Lisboa, Mauá – SP. CEP: 09330-570. Celular: (11) 9.5133-1493. E-mail: beapa2014@gmail.com

2Universidade Metodista de São Paulo e Universidade Católica de Santos. Rua José Benedetti, 237 – apto. 102. Bairro Santo Antônio, São Caetano do Sul. – SP. CEP 09531-000. Celular: (11) 9. 9635-5506. E-mail: hildaavoglia@terra.com.br


Resumo:

A somatização é uma manifestação corporal carente de simbolização. Relaciona-se com aspectos psicológicos tendendo a surgir no bebê, que se vê como uma extensão da mãe. O objetivo foi analisar aspectos psicológicos da relação materno-filial e suas implicações nas manifestações psicossomáticas. Trata-se de uma pesquisa documental, considerando os prontuários de crianças entre fevereiro/2015 e dezembro/2019, de uma clínica-escola do Grande ABC-SP. A busca realizada a partir de um software específico para arquivamento dos prontuários, utilizou como filtros os termos: infantil, queixas somatoformes, distúrbios alimentares e distúrbios do sono. Os dados foram categorizados em: a) identificação; b) evolução clínica; e c) aspectos da personalidade e o relacionamento materno. A análise qualitativa, de base psicanalítica, apontou que a dificuldade das mães em lidar com seus próprios conflitos influenciou no surgimento dos sintomas nos filhos. Observou-se relação entre os conflitos maternos e o tipo de queixa apresentada. Os resultados sustentam a importância da relação entre mães e filhos na queixa psicossomática. Fatores orgânicos no desenvolvimento infantil precisam ser considerados para além da natureza biológica, mas da dinâmica psíquica, ampliando a compreensão diagnóstica.

Palavras-chave: Medicina Psicossomática; Relação Materno-Filial; Psicologia; Psicanálise

Abstract:

Somatization is a bodily manifestation lacking symbolization. It relates to psychological aspects tending to appear in the baby, who sees himself as an extension of the mother. The objective was to analyze the psychological aspects of the mother-child relationship and its implications for psychosomatic manifestations. This is documentary research, considering the clinical reports of children between February/2015 and December/2019, from a clinical school in Grande ABC-SP. The search performed using clinical reports record file software, used terms as filters: infant, somatoform complaints, eating disorders and sleep disorders. Data were categorized into a) identification; b) clinical evolution; and c) aspects of personality and maternal relationship. The qualitative analysis, based on psychoanalysis, showed that mothers’ difficulty dealing with their own conflicts influenced the appearance of symptoms in their children. There was a relationship between maternal conflicts and the type of complaint presented. The results support the importance of the relationship between mothers and children in psychosomatic complaints. Organic factors in child development need to be considered beyond the biological nature, but the psychic dynamics, expanding the diagnostic understanding.

Keywords: Psychosomatic Medicine; Mother-Child Relations; Psychology; Psychoanalysis

Resumen:

La somatización es una manifestación en el cuerpo del no simbolizado. Se relaciona con aspectos psicológicos que tienden a aparecer en el bebé, quien se ven a sí mismos como una extensión de la madre. El objetivo fue analizar aspectos psicológicos de la relación madre-hijo y sus implicaciones en las manifestaciones psicosomáticas. Es una investigación documental, que toma en cuenta las historias clínicas de niños en los períodos de febrero/2015 y diciembre/2019, de una clínica escuela del Grande ABC-SP. La búsqueda fue hecha con auxilio de un software específico de archivo de las historias clínicas, se utilizó como filtros los términos: infantil, quejas somatomorfas, desórdenes alimentarios y desórdenes del sueño. Los datos se clasificaron en: a) identificación; b) evolución clínica; y c) aspectos de personalidad y relación materna. El análisis cualitativo de base psicoanalítica señalo que la dificultad de las madres para lidiar con sus propios conflictos influyó en la aparición de los síntomas en sus hijos. Hubo relación entre los conflictos maternos y el tipo de queja presentada. Los resultados respaldan la importancia de la relación entre madres y hijos en quejas psicosomáticas. Factores orgánicos del desarrollo infantil necesitan ser considerados más allá de la naturaleza biológica, más de la dinámica psíquica, para ampliar la comprensión del diagnóstico.

Palabras clave: Medicina Psicosomática; Relaciones Madre-Hijo; Psicología; Psicoanálisis

Psicossomática

A psicossomática é um tema debatido em diversas áreas, dentre elas, a Psicanálise. Nessa abordagem, Joyce McDougall se destaca por formular uma teoria acerca da relação entre mente e corpo e natureza das doenças psicossomáticas baseada tanto em conceitos teóricos quanto em sua prática clínica. Em sua obra ‘Teatros do corpo: o psicossoma em psicanálise’, McDougall (1996, p. 22) define como fenômeno psicossomático “tudo aquilo que atinge a saúde ou a integridade física quando os fatores psicológicos desempenham algum papel”.

Seguindo essa perspectiva, é possível dizer que praticamente todas as pessoas somatizam. Entretanto, existem diferenças entre aqueles que eventualmente não são capazes de lidar com a angústia de forma simbólica e aqueles que sempre recorrem ao corpo biológico na busca de alívio contra ela. Este tópico visa elucidar algumas questões básicas para a compreensão dessas diferenças. Assim, apontam-se as seguintes indagações: qual a distinção entre histeria neurótica e arcaica? O que significa desafetação e qual sua relação com a incapacidade de simbolizar?

De acordo com McDougall (1996), a histeria neurótica se refere à analisada por Freud no início de seus estudos e que o levou a descobrir o inconsciente. Sendo assim, nela o corpo é usado como símbolo, com um membro geralmente tomando o lugar do órgão sexual e tendo suas funções inibidas. Portanto, essa histeria diz respeito aos conflitos do Complexo de Édipo. Por outro lado, na histeria arcaica não há uma simbolização que torne o corpo erótico, mas a manifestação do corpo biológico, com a ocorrência de um dano real do ponto de vista fisiológico. Essa histeria remete a experiências mais primitivas, centradas na época em que o indivíduo era bebê e não sabia diferenciar seu corpo e o de sua mãe (McDougall, 1996).

A desafetação, por sua vez, ocorre quando a palavra é usada desprovida de afeto, ou seja, não tem sentido simbólico. Sendo assim, ela pode ser compreensível e até mesmo intelectualizada, mas não se relaciona com as emoções e não serve para canalizar as excitações provenientes do meio interno e externo. A desafetação se torna possível devido à forclusão, onde os afetos são lançados para fora e passa-se a agir como se eles não existissem, o que leva à sua volta nos sintomas psicossomáticos (McDougall, 1996).

O ‘Eu-pele’ de Anzieu e as doenças de pele

De acordo com Jorge, Müller, Ferreira e Cassal (2004) na pele estão expressos conflitos que podem decorrer de dificuldades na relação entre a díade mãe-bebê, seja porque ela o estimula pouco ou porque estimula em excesso, causando dificuldade na delimitação do Eu e não-eu. Refletindo sobre a relação entre pele e psiquismo, Anzieu (1989) construiu o ‘Eu-pele’ como uma metáfora representante da fronteira que separa o Eu e o meio externo. Este conceito se refere a uma consciência do Eu anterior ao Eu-psíquico que possibilita sua formação na medida em que dá ao bebê a segurança para efetuar trocas com o meio. Nesse sentido, o ‘Eu-pele’ é a membrana que contêm o sujeito e lhe dá a sensação de ser alguém. A partir dele, o Eu herda a possibilidade de filtrar suas trocas com o Id, Superego e mundo externo e de estabelecer barreiras através dos mecanismos de defesa. Além disso, por guardar uma estreita relação com o corpo, o ‘Eu-pele’ tem funções psíquicas que se relacionam com as funções da pele. Uma dessas nove funções é a de sustentar o psiquismo como a pele sustenta o corpo. Outras funções são a de continência, de sensação de unidade, de permitir o contato com a realidade, dentre outras (Anzieu, 1989).

O bruxismo como expressão de tensão emocional

O bruxismo é caracterizado pelo apertar ou ranger de dentes que geralmente ocorre inconscientemente durante o dia ou à noite, sendo que neste último caso acontece durante a fase REM do sono (Schalka, Cunha, Leber & Corrêa, 2011). Sobre sua etiologia, trata-se de uma condição multicausal, sendo que no que se refere aos fatores psicológicos “O bruxismo é um problema primeiramente do Sistema Nervoso Central devido a uma tensão emocional. Existe relação entre ansiedade, repressão agressiva e bruxismo” (Schalka et al., 2011, p. 726).

Em seu estudo, Cariola (2006) buscou comprovar a eficácia do uso do Desenho da Figura Humana (DFH) no diagnóstico de crianças com bruxismo, concluindo que as que manifestavam a patologia apresentaram indicadores gráficos que apontavam para conflitos emocionais associados à realidade interna ou externa. O primeiro indicador gráfico foi a figura de tamanho pequeno, presente em 72,7% dos desenhos, sendo, neste caso, associado a sentimentos de inferioridade perante as exigências do ambiente e inadequação (Levy, 1991). O segundo indicador, ausência de mãos, apareceu em 22,7% dos desenhos, indicando que “o sujeito está expressando dificuldades de contato ou sentimentos de culpa em função de atividades manipulatórias (masturbação)” (Levy, 1991, p. 81-82). Por fim, a omissão do nariz apareceu com a mesma frequência que o indicador anterior e foi associada à angústia de castração, visto que o nariz é um símbolo fálico e sua ausência indica conflitos relacionados àquilo que o mesmo representa (Levy, 1991).

A encoprese como expressão simbólica da relação com o outro

De acordo com o DSM-5 (American Psychiatric Association, 2014), a encoprese se refere ao ato de defecar em locais inapropriados, podendo estar associada ou não à constipação. É considerada de tipo primário quando a criança não chegou a atingir a continência fecal e de tipo secundário quando foi precedida de um período de continência fecal. Do ponto de vista psicanalítico, as fezes tomam o valor simbólico de presente durante a fase anal e entregá-las ao outro representa um ato de amor (Freud, 1917/2010). Para Anna Freud as fezes representam tanto impulsos amorosos quanto agressivos, em uma ambivalência que vai desembocar na integração das atitudes de limpeza ensinadas pela mãe ao ego e superego (Freud, 1971/1987, citado por Barbieri, Ujikawa e Mishima, 2011).

Em sua pesquisa Pinto e Neto (2012) analisaram algumas das crianças que atenderam no ambulatório de Psicologia Infantil da unidade de saúde em que trabalhavam e tinham em comum o fato de defecarem na roupa. Concluíram que essas crianças muitas vezes haviam alcançado a maturidade do ponto de vista biológico, mas não do ponto de vista psicológico, ou seja, a demanda do outro não se tornou sua própria demanda. Isto pode se dar quando há imposição para que a criança largue as fraldas, sendo que nesse caso as fezes são tratadas de forma concreta e não simbólica pela mãe, pois ela não se guia por seu desejo, mas pela exigência (Ajuriaguerra, 1983; Pinto & Neto, 2012).

Em seu estudo Barbieri et al. (2011) analisaram o brincar de crianças com encoprese, concluindo que elas eram extremamente rígidas porque tinham medo de que os impulsos destrutivos fossem mais fortes que os amorosos e destruíssem o objeto. Dessa forma, não havia espontaneidade no brincar e, por consequência, a simbolização se tornava bastante limitada, fazendo com que houvesse muita proximidade entre o símbolo e o que era simbolizado nas brincadeiras. As referidas autoras observaram, ademais, que as mães dessas crianças também apresentavam esse medo, o que influenciou na maneira como criavam seus filhos. Em dois dos casos essa influência se deu através da excessiva rigidez e controle, enquanto em outro a tarefa de cuidar da criança era delegada a outros, pois a mãe se sentia frágil e incapaz.

Relação materno-filial e sua importância no desenvolvimento

Uma das teorias com aprofundamento na temática do psiquismo do bebê é a de Melanie Klein, que apresentou conceitos e noções imprescindíveis para a visão atual em Psicanálise. Para a autora, o primeiro objeto com o qual o bebê se relaciona é o seio materno, sendo que essa relação ocorre de forma cindida, com divisão entre seio bom, que alimenta e dá carinho, e seio mau, que frustra e causa sofrimento. A cisão é usada como forma de proteção contra as ansiedades causadas pela sensação que o bebê tem de que sofrerá algum dano. Uma das fontes dessa ansiedade é a pulsão de morte. A pulsão é projetada no seio, que se torna persecutório. Além da projeção que torna o seio mau, o bebê também faz uso de introjeção, visto que há incorporação, dentre outras, de partes do seio bom.

Os aspectos mencionados acima fazem parte da posição nomeada por Klein (1975/1991) de esquizoparanoide. Nela a projeção mencionada ocorre através de um mecanismo conhecido como identificação projetiva, no qual o que foi projetado volta de maneira persecutória. Além disso, há identificação porque partes do self foram projetadas, o que também pode levar a um entendimento de que o objeto é extensão desse self e empobrecimento do ego (Klein, 1975/1991).

Além dos ataques lançados pelo bebê, também há projeção de aspectos positivos, o que permite que em condições adequadas ele estabeleça uma boa relação com o objeto e consiga integrar seu ego. Assim, torna-se possível apreender o objeto em sua totalidade, o que permite que o bebê tenha uma visão mais pautada na realidade sobre sua mãe e surja a culpa por havê-la atacado (Klein, 1975/1991).

A culpa reparatória é uma das emoções que torna possível o amadurecimento e passagem para a posição depressiva. Nessa posição, segundo Klein (1975/1991), há necessidade de reparar os danos causados e surge a gratidão por parte do bebê pelo seio que o alimenta. Dito isso, é importante compreender o que ocorre nesse processo que pode levar a uma futura forma desafetada de lidar com o sofrimento psíquico, o que tende a aumentar a chance de ocorrência de somatizações.

Se na visão de Klein (1975/1991) o período da posição esquizoparanoide se associa à psicose, para McDougall (1996) a época na qual mãe e bebê se veem como um único ser pode estar relacionada com a somatização. Isto porque é nesse momento que a mãe traduz para a criança o que ela sente e assim lhe ensina a representar as pulsões através da palavra. Caso esse processo não ocorra normalmente, diversos problemas podem surgir.

Segundo McDougall (1996), a fantasia de vivência em unidade com a mãe aparece ao bebê como resultado da unidade da vida intrauterina. Assim, ele sente que a mãe-universo lhe dará tudo que precisar. Se por um lado essa situação gera dependência, por outro o bebê deseja se tornar independente, surgindo nessa contradição, em condições saudáveis, a introjeção de uma figura materna protetora, carinhosa e atenciosa, que o reconforta sem impedi-lo de alcançar a individuação (McDougall, 1996).

McDougall (1996) também menciona os objetos transicionais como componentes importantes na conquista da independência. Eles permitem que o bebê suporte os afastamentos de sua mãe e são posteriormente substituídos pela palavra ‘mamãe’ quando ele aprende a falar. Assim, a palavra se torna símbolo para a mãe que ele introjetou e permite que ele exerça suas funções quando necessário. Se tudo correr bem, a criança se tornará um adulto capaz de simbolizar e lidar com as ansiedades provindas do meio interno e externo (McDougall, 1996).

Entretanto, uma má resolução pode fazer com que o bebê não chegue a se ver como um sujeito diferente de sua mãe e à sensação de que seu corpo é uma extensão do de outras pessoas, bem como à incapacidade de lidar com situações ansiógenas. Essa incapacidade decorre do fato de que algumas mães não conseguem amenizar as angústias de seus filhos, chegando até mesmo a impor seus sentimentos, o que aumenta seu sofrimento e a ideia de que é refém de um ser indestrutível. Assim, só lhe resta usar forclusão, que leva à desafetação (McDougall, 1996).

Analisando sinteticamente o perfil de mães que impedem o desenvolvimento representacional de seus filhos, pode-se ver que McDougall (1996) considera que muitas delas não executam corretamente ou suficientemente a função de para-excitação, que é justamente a de fornecer uma significação do mundo para o bebê, possibilitando que futuramente ele faça isso sozinho. Essa incapacidade pode decorrer de sentimentos de que seu bebê é um corpo estranho, devido à exigência de autonomia precoce ou à incapacidade da mãe de se separar do bebê, impossibilitando sua independência, bem como devido a outros conflitos inconscientes (McDougall, 1996).

Procurando compreender os aspectos mencionados, o presente artigo buscou analisar aspectos psicológicos da relação materno-filial e suas implicações nas manifestações psicossomáticas. Ressalta-se quanto aos objetivos específicos: investigar queixas de natureza psicossomática de prontuários de crianças atendidas em clínica-escola; analisar os registros dos procedimentos diagnósticos descritos e arquivados nos prontuários de crianças com queixas psicossomáticas atendidas na clínica-escola.

Método

A pesquisa qualitativa do tipo documental pode ser definida como fazendo uso de materiais obtidos de forma indireta, sendo que no caso do presente trabalho foram utilizados prontuários com a descrição de procedimentos diagnósticos efetuados por estagiários de Psicologia. Os documentos encontrados são de segunda mão, visto que já foram analisados pelos estagiários da clínica-escola onde ocorreram os atendimentos (Gil, 2008).

Participantes/Prontuários

Foram utilizados os prontuários arquivados em uma clínica-escola de Psicologia de uma universidade na região metropolitana do Grande ABC-SP. A clínica oferece serviços à comunidade como: atendimentos odontológicos, fisioterapêuticos e psicológicos. Os prontuários pesquisados referem-se aos atendimentos na modalidade Triagem e Psicodiagnóstico de crianças com idades entre 3 e 10 anos, com queixas de natureza psicossomática, e foram considerados os registros contidos nos referidos prontuários com relação aos procedimentos diagnósticos descritos de todas as crianças que tenham dado entrada na clínica-escola com queixas somatoformes. Foi utilizada a totalidade dos prontuários, conforme critérios acima descritos referentes ao período de fevereiro de 2015 a dezembro de 2019.

Os instrumentos foram os prontuários contendo a descrição de dados gerais de identificação, além de procedimentos diagnósticos, evolução clínica, relato das entrevistas iniciais e de anamnese realizadas com os pais ou responsáveis pelos pacientes selecionados para compor a amostra prevista para esta pesquisa. Além disso, a partir de palavras-chave (‘infantil’, ‘queixas somatoformes’, ‘distúrbios alimentares’ e ‘distúrbios do sono’) foi possível fazer uma busca dos prontuários desejados através de um software específico. A evolução do caso contém uma rápida descrição do que foi feito em cada uma das sessões de atendimento psicológico, entre estes, a descrição dos diversos procedimentos aplicados ao caso.

Procedimentos

O arquivo dos prontuários é eletrônico, por meio de um software específico para essa finalidade. Desse modo, a coleta foi realizada utilizando-se dos seguintes filtros para busca nos prontuários armazenados online da clínica-escola: ‘infantil’, ‘queixas somatoformes’, ‘distúrbios alimentares’ e ‘distúrbios do sono’. Após essa seleção foi possível conhecer os dados através do relatório de evolução, sendo que o documento foi analisado unicamente dentro do espaço da clínica-escola, em local isento de contatos externos visando garantir o sigilo quanto à identidade das crianças.

Como se tratou de uma pesquisa com desenho metodológico do tipo documental, inicialmente buscou-se a leitura e análise do material registrado nos prontuários, seguida da categorização a posteriori dos dados encontrados na forma de três tabelas, sendo que a análise das tabelas foi elaborada qualitativamente em uma perspectiva psicanalítica.

Nesse sentido, a análise implicou em um processo de decomposição de um todo em partes menores (Cervo & Bervian, 2002), buscando-se compreender, através desta fragmentação, a significação que determinado indivíduo dá para um fenômeno ou conjunto de fenômenos, pois é através dela que ele se organiza (Turato, 2005). Pode-se concluir então que a decomposição não foi feita de forma aleatória, mas buscou manter em cada um desses fragmentos um conteúdo que compreendesse o sentido em si mesmo, de forma que eles se tornassem unidades passíveis de interpretação e comparação.

Aspectos éticos

Os riscos foram praticamente nulos, visto que não houve contato direto com os participantes, apenas o uso de prontuários que foram redigidos pelos estagiários sob orientação de seus respectivos supervisores, ou seja, docentes especializados na prática clínica, havendo a autorização por parte dos responsáveis. Ademais, as identidades foram preservadas utilizando-se apenas nomes fictícios. No que se refere aos benefícios, estes foram científicos, pois os resultados puderam contribuir com a compreensão clínica e diagnóstica de crianças com queixas psicossomáticas. Foram excluídos da amostra prontuários que não contavam com o registro dos procedimentos diagnósticos descritos, ou aqueles nos quais os dados registrados se mostraram escassos ou incompletos e, portanto, insuficientes para cumprimento dos objetivos pretendidos.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP-Metodista) conforme o documento de n° CAAE 23622719.7.0000.5508.

Resultados e Discussão

Para a apresentação dos resultados obtidos, a pesquisa expõe as tabelas abaixo que contêm informações extraídas dos relatórios de atendimentos realizados por estagiários aos pacientes, ou seja, sujeitos da pesquisa. Assim, apresenta-se a Tabela 1 com dados de identificação das participantes, a Tabela 2 com a evolução das queixas, a Tabela 3 com a descrição dos atendimentos em Psicologia e com outros especialistas, a Tabela 4 com informações sobre alguns aspectos da personalidade das participantes e a Tabela 5 com dados de seu relacionamento com a mãe. À Tabela 1 é seguido o resumo das informações e às Tabelas 2, 3, 4 e 5 se segue a análise dos dados apresentados.

Tabela 1 Dados de identificação das participantes 

Nome (fictício) Sexo Idade no momento do atendimento Grau de escolaridade Pessoas com as quais reside
Ana Feminino 5 anos Não é mencionado Mãe e pai
Catarina Feminino 3 anos Não é mencionado Mãe e pai
Sabrina Feminino 10 anos 4° ano (escola pública) Mãe e irmão (12 anos). Os pais se separaram quando ela tinha 2 anos e o pai vive em outro Estado

Tabela 2 Evolução clínica dos casos atendidos 

Nome (fictício) Queixa inicial Queixa secundária Surgimento dos sintomas Desenvolvimento da queixa inicial ao longo dos atendimentos
Ana Crises alérgicas ao comer alimentos com corantes Afasta-se da mãe, sobretudo se o pai está presente Primeira crise ao assistir ao parto de seu primo por ter ficado muito ansiosa e animada Comeu alimentos com corantes aos poucos e não teve alergia, assim como não teve crises alérgicas durante o período dos atendimentos
Catarina Retenção de fezes (encoprese) Não dorme em sua cama nem se alimenta corretamente.
Começou a segurar a urina além das fezes
Há cerca de um ano e meio Evacuou ao fazer uso do supositório e ao final dos atendimentos pedia para ir ao banheiro, apesar de não ‘fazer cocô’
Sabrina Bruxismo Ansiedade, cobrança e depreciação excessivas No início do ano do atendimento, ao voltar a morar em sua antiga casa por ocasião do segundo divórcio de sua mãe Houve uma melhora significativa no quadro de bruxismo

Tabela 3 Dados referentes aos atendimentos 

Nome (fictício) Modalidade de atendimento Consulta com outros especialistas Encaminhamento após conclusão do psicodiagnóstico
Ana Psicodiagnóstico Não há menção a consultas com outros especialistas Paciente encaminhada para psicoterapia
Catarina Psicodiagnóstico Passou com o pediatra, que não encontrou nenhuma causa fisiológica para a queixa apresentada Paciente encaminhada para nutricionista e psicoterapia.
Mãe encaminhada para psicoterapia
Sabrina Psicodiagnóstico Passou com o dentista, que a encaminhou para a psicoterapia por acreditar que o bruxismo tinha causa emocional Paciente encaminhada para psicoterapia

Tabela 4 Aspectos da personalidade das pacientes participantes 

Nome (fictício) Aspectos da personalidade da paciente Capacidade de simbolização da paciente
Ana É muito apegada ao pai, mostrando-se muito carinhosa com ele.
Demonstra grande ansiedade em diversas situações
Demonstra ser capaz de simbolizar conflitos e angústias relacionados à sua enfermidade através do brincar durante as sessões
Catarina Verifica-se que é muito apegada aos pais e costuma fazer birra.
Demonstra timidez durante os atendimentos.
É relatado que tem muita dificuldade em se relacionar e não costuma brincar, nem mesmo sozinha
Demonstra capacidade de simbolizar conflitos referentes à queixa durante as sessões através do brincar
Sabrina É muito ansiosa, autocrítica e tende a se depreciar.
É muito rígida e usa frequentemente o mecanismo de racionalização. Expressa-se bem verbalmente, segue as regras dos jogos e a mãe a acha muito madura para sua idade
Apresenta capacidade de simbolizar conflitos durante as sessões através do brincar e da verbalização

Tabela 5 Aspectos do relacionamento entre mãe e filha 

Nome (fictício) Gravidez Relacionamento entre mãe e filha
Ana Foi planejada.
O descolamento da placenta deixou a mãe muito ansiosa e com medo, mesmo depois de dizerem que sua filha estava segura.
O pai comenta que a criança era agitada já na barriga, pois se mexia quando falava com ela
Aos 8 meses ficou 15 dias isolada na UTI.
Aos 2 anos sua mãe foi sua professora e não a pegava no colo em nenhuma situação.
Foi relatado um afastamento da paciente em relação à sua mãe
Catarina Não foi planejada, a mãe decidiu sozinha deixar de tomar os anticoncepcionais Mostra-se muito apegada à mãe, que se mostra permissiva, não cobrando que a filha coma toda a comida e durma em sua própria cama
Sabrina A mãe queria outro filho com o mesmo pai ao perder um dos gêmeos, por isso planejou a gravidez.
Sentiu-se triste e só durante parte da gravidez por ir morar em outra cidade, o que mudou quando voltou a morar com sua mãe perto do nascimento da filha
Relação de identificação projetiva.
A mãe lhe trata ‘de igual para igual’, expondo com sinceridade acontecimentos de sua vida.
Com 4 meses começou a frequentar a escola

É importante destacar que as crianças são identificadas por nomes fictícios visando à garantia do sigilo sobre sua identidade, atendendo-se, assim, as exigências éticas.

Conforme indica a Tabela 1, Ana, Catarina e Sabrina são três meninas com diferentes idades, 5, 3 e 10 anos respectivamente, e que frequentavam a escola no momento em que foram atendidas na clínica-escola de Psicologia. Sabrina estava no 4° ano, estudando em uma escola pública, mas não há informação sobre o grau de escolaridade de Ana e Catarina, o que aponta para as possíveis limitações no que se refere aos dados registrados no prontuário. Sabrina era a única das crianças com pais separados, morava com a mãe e o irmão e via o pai quando ele ia visitá-la. Ana e Catarina residiam com ambos os pais (pai e mãe) e não tinham irmãos.

De acordo com a Tabela 2 é possível identificar a presença de queixas iniciais de natureza somática nas três crianças integrantes da amostra, além de pelo menos uma queixa secundária em cada caso. No que se refere à Ana, além das manifestações de crises alérgicas, os pais se queixaram no decorrer das sessões que a menina se afastava da mãe. No caso de Catarina, além da encoprese houve o relato de que ela não dormia em sua própria cama e não comia corretamente além de que, em determinado momento, passou a segurar a urina além das fezes. Entretanto, como esta última queixa não foi mencionada em mais nenhum atendimento, supõe-se que, possivelmente, não perdurou muito tempo. Por último, Sabrina apresentou como queixa inicial o bruxismo e como secundária as características apontadas pela mãe de que a filha era excessivamente ansiosa e se cobrava e depreciava constantemente. Observa-se nestes casos uma relação entre queixa inicial e queixas secundárias que será explorada ao longo dos próximos parágrafos na análise.

Especificamente sobre as queixas iniciais, para McDougall (1996) existem dois motivos pelos quais uma pessoa pode apresentar um quadro de somatização. Uma possibilidade se deve à eventual dificuldade em lidar com alguma situação e a outra surge da incapacidade de simbolizar os conflitos, o que leva o indivíduo a expulsar a angústia, que volta na forma de doença. Analisando o contexto das participantes, identifica-se que Ana, Catarina e Sabrina se encaixam no primeiro caso, visto que foram capazes de simbolizar seus conflitos e angústias, ainda que de diferentes maneiras e em diferentes graus. Enquanto, conforme apontado na Tabela 4, Sabrina se expressava tanto por meio do brincar quanto pela verbalização, Ana representava suas angústias durante o brincar e Catarina, ainda que com certa rigidez, apresentava um brincar simbólico. Provavelmente foi essa capacidade que levou a uma melhora no quadro das três durante o psicodiagnóstico, uma vez que elas puderam representar o que sentiam através do brincar e da associação livre e, assim, canalizar a ansiedade e a angústia que sentiam (McDougall, 1996).

Analisando mais detalhadamente aspectos acerca da rigidez apresentada por Catarina, esta se manifestava com frequência nas poucas vezes em que a menina brincava, considerando que suas brincadeiras se mostravam repetitivas durante o atendimento, conforme dados registrados no prontuário, sendo as fezes representadas através do desenho e do manuseio da massinha de modelar em diversos momentos. Entretanto, segundo Barbieri et al., (2011) isso é comum em crianças com encoprese e, de acordo com as autoras, deve-se ao medo que as crianças têm de que seus impulsos destrutivos aniquilem o objeto de amor, o que leva à rigidez e à dificuldade de simbolizar, tornando a brincadeira muito concreta. Assim, embora Catarina tenha alcançado a continência fecal em etapas anteriores de seu desenvolvimento, parece que desenvolveu um quadro de encoprese secundária (APA, 2014) porque não estava psicologicamente preparada para deixar as fraldas (Pinto & Neto, 2012).

O quadro de encoprese também parece estar associado a alguns temores advindos de sua mãe. É importante pontuar que a mãe da paciente se tratou em processo de psicoterapia porque sentia muito medo de morrer e ainda apresentava dificuldades em lidar com situações que fugiam ao seu controle, um indicativo de seu temor diante dos seus impulsos destrutivos (Barbieri et al., 2011). Este medo interferiu em seu relacionamento com Catarina visto que, conforme consta na Tabela 5, ela agia de forma permissiva com a menina, cabendo ao pai impor limites à filha, característica também presente em um dos casos que Barbieri et al. (2011) analisaram em seu estudo.

Diante de tudo isso, Catarina voltou a segurar as fezes após um período sem usar a fralda. Assim, suas atitudes indicam que as fezes possivelmente representavam para ela tanto o amor quanto o ódio, visto que em alguns momentos ela chorava ao ‘fazer cocô’, como se estivesse perdendo alguma coisa, e em outros se mostrava muito nervosa quando lhe pediam que usasse o penico ou fosse ao banheiro (Freud, 1971/1987, citado por Barbieri et al., 2011).

Sua melhora ocorreu quando ela passou a usar o setting como um espaço para lidar com seus conflitos, o que foi simbolizado em um fragmento do processo lúdico no qual fez a divisão da massinha e de pedaços de papel, objetos que representavam as fezes, com a estagiária responsável pelo atendimento. Ademais, parece que a mudança de atitude de seus progenitores, principalmente do pai, com relação a suas idas ao banheiro também foi essencial para a evolução positiva do caso. Ao se mostrarem mais calmos, os pais de Catarina deixaram de exigir que ela ‘fizesse cocô’, passando assim a tratar as fezes de forma simbólica e transformando a exigência em desejo, o que possibilitou que a garota assimilasse a demanda de seus pais como sendo dela própria (Ajuriaguerra, 1983; Pinto & Neto, 2012).

Ana, por sua vez, não apresentava dificuldades em simbolizar seus conflitos e, em diversos momentos de seu processo diagnóstico, demonstrou através dos procedimentos lúdicos que as crises alérgicas estavam relacionadas à falta do toque materno (Jorge et al., 2004). Nesse sentido, em momentos de muita ansiedade ela não conseguia lidar com as emoções e recorria à alergia, que se mostrava relacionada aos conflitos não elaborados (McDougall, 1996).

Sobre a relação entre as crises alérgicas e o toque materno, observando a Tabela 5 é possível associar que a infância de Ana foi marcada por dois episódios que parecem permitir maior compreensão acerca desta questão. Com oito meses de idade a menina ficou 15 dias internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em isolamento, ou seja, sua mãe não podia se aproximar dela e nem mesmo tocá-la. Além disso, quando tinha dois anos sua mãe foi sua professora, uma vez que trabalhava na mesma escola na qual a filha estudava. Nesse período, evitava pegá-la no colo por mais que Ana chorasse. Houve também um episódio marcante em que não lhe permitiram que levasse a filha ao médico quando ela deslocou o braço na escola. Assim, Ana parece haver nutrido sentimentos de abandono pela mãe e demonstrou seu ressentimento ao se afastar dela.

Com base nos pontos mencionados é possível inferir que as manifestações alérgicas de Ana decorreram de conflitos associados à falta de contato físico (Jorge et al., 2004) e à formação do ‘Eu-pele’ (Anzieu, 1989). Isto porque a falta do toque materno parece haver afetado sua construção enquanto sujeito diferenciado do meio externo, tornando pouco clara sua noção do Eu. Dessa forma, ela recorreu à alergia como forma de estabelecer os limites eu-outro ao passar por momentos de elevada ansiedade, nos quais se sentia invadida pela angústia vivenciada nas situações de abandono.

Já no caso de Sabrina, o ranger de dentes possivelmente foi utilizado como forma de lidar com sua ansiedade e agressividade (Schalka et al., 2011). A menina enfrentou diversas perdas, como ter que sair da escola particular e não poder fazer inglês devido à falta de dinheiro, e usou da racionalização como mecanismo defensivo, reprimindo sentimentos de raiva. Essas perdas parecem estar ligadas à angústia de castração encontrada em crianças com bruxismo (Cariola, 2006; Levy, 1991), pois ela se sentiu castrada ao perder objetos de desejo, mas reprimiu a raiva, dando vazão a essa pulsão destrutiva através do bruxismo. Além disso, conforme consta na Tabela 4, tratava-se de uma menina com sinais de excessiva rigidez e elevado nível de autocrítica, que frequentemente se depreciava quando ficava ansiosa, uma característica que pode ser associada aos sentimentos de inferioridade e inadequação (Cariola, 2006; Levy, 1991). Assim, o bruxismo passou a se constituir em uma forma de lidar com os sentimentos de inferioridade manifestados a partir de um ataque voltado a si mesma.

No que tange ao relacionamento com sua mãe, havia uma relação simbiótica entre as duas, o que levou a uma identificação maciça entre elas (Klein, 1975/1991). Devido a isso, os conflitos vividos pela mãe lhe invadiam e causavam ansiedade, assim como seus temores sexuais, que desencadeavam em Sabrina o temor ao pai, ao padrasto e a outras figuras masculinas que acreditava poderem lhe fazer mal. Diante dessas situações angustiantes e das perdas que sofreu, a menina tratava sempre de justificar a mãe, defendendo-a em suas atitudes. Por não externalizar sua raiva, ela possivelmente desencadeou o ranger de dentes como uma forma de lidar com sua agressividade reprimida (Schalka et al., 2011), podendo ser esse ato compreendido também como um ataque à mãe, visto que se sentia ‘colada’ a ela (Klein, 1975/1991).

Por fim, relacionando-se os casos aqui estudados, foi possível identificar que as mães das três participantes apresentaram dificuldades para lidar com seus próprios conflitos. A mãe de Ana passou por um período de grande ansiedade e medo durante a gravidez e não soube lidar com a pressão e a demanda de, ao mesmo tempo, se relacionar com Ana como filha e como aluna. A mãe de Catarina manifestava muito medo de morrer e de perder o controle das situações. A mãe de Sabrina entrou em um estado depressivo devido à perda de um de seus filhos. Desse modo, a análise dos resultados indica que a angústia dessas mães influenciou negativamente a relação que tinham com suas filhas e, ainda que não tenha impactado de forma definitiva em sua capacidade de simbolizar, o relacionamento estabelecido pode ser compreendido como um dos fatores que levou ao aparecimento das queixas somáticas (McDougall, 1996).

Considerações finais

A realização deste estudo permitiu considerar que o relacionamento estabelecido entre as crianças analisadas e suas mães se constituiu em um fator que influenciou na manifestação de queixas psicossomáticas. Em todos os casos analisados, a dificuldade das mães em lidar com seus próprios conflitos influiu no surgimento dos sintomas, sendo que nos casos de Ana e Catarina influenciou também no tipo de queixa apresentada.

No caso de Ana, o fato de não haver suficiente contato físico entre ela e sua mãe parece haver colaborado para que a alergia fosse o sintoma apresentado em detrimento de outras possibilidades. De forma semelhante, no caso de Catarina, a rigidez de sua mãe contribuiu para o surgimento do temor que a menina apresentava com relação às suas pulsões agressivas e na expressão desse medo representado pela retenção das fezes. Finalmente, o vínculo simbiótico estabelecido entre Sabrina e sua mãe fez com que a criança fosse invadida por temores, o que gerou um elevado nível de ansiedade que, por sua vez, foi descarregada através do ato de apertar e ranger os dentes.

Embora os objetivos previstos na pesquisa tenham sido atendidos, é importante considerar as limitações do presente trabalho, como o reduzido número de participantes, o que dificulta a generalização dos resultados encontrados, além de não permitir que se analisem as especificidades do relacionamento entre meninos e suas mães nas manifestações psicossomáticas, uma vez que todas as participantes eram do sexo feminino. Ademais, como a pesquisa foi realizada com base em prontuários, as informações consideradas relevantes pelos estagiários de Psicologia que atenderam os casos seguem critérios diferentes dos estabelecidos para esta pesquisa. Isto foi especialmente relevante em um dos casos, no qual foi utilizada a abordagem comportamental durante o atendimento que, consequentemente, difere da perspectiva psicanalítica aqui considerada.

Entretanto, tais considerações não excluem a relevância do estudo. Os resultados aqui encontrados podem ser úteis na compreensão clínica de casos em que há existência de queixas somáticas, além de demonstrar que os fatores orgânicos do desenvolvimento infantil precisam ser considerados em uma perspectiva para além da natureza biológica, mas sim da dinâmica psíquica, redimensionando a compreensão e o manejo do quadro clínico.

Assim, espera-se que a esse trabalho se sigam outros que busquem ampliar o conhecimento existente sobre o tema da psicossomática infantil, abrangendo outros sintomas e contribuindo com o tratamento da criança que recorre ao corpo biológico para atenuar o sofrimento psíquico.

AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC.

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Recebido: 04 de Maio de 2022; Aceito: 10 de Abril de 2023

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