Pesquisa psicanalítica e pesquisa qualitativa com o método psicanalítico
Quando buscamos entender o modo que ocorre a articulação entre pesquisa qualitativa e psicanálise, deparamo-nos, de saída, com diversas possibilidades. Tal diversidade não pode ser explicada somente em função das teorias e escolas psicanalíticas, apesar de ser um argumento importante, mas deve abarcar também o desenho metodológico de cada pesquisa e o uso da psicanálise em si. Para melhor entender essa questão, voltamo-nos para o modo como a própria psicanálise fora definida por Freud (1923/1955), que foi bem apresentada por Laplanche e Pontalis (1967/1971, p.495):
Disciplina fundada por Freud e, na qual, com ele, podemos distinguir três níveis: A) Um método de investigação que consiste essencialmente na evidenciação de significado inconsciente das palavras, das ações, das produções imaginárias (sonhos, fantasmas, delírios) de um indivíduo. Este método baseia-se principalmente nas associações livres do indivíduo, que são a garantia da validade da interpretação. A interpretação psicanalítica pode estender- se a produções humanas para as quais se não dispõe de associações livres. B) um método psicoterapêutico baseado nesta investigação e especificado pela interpretação controlada da resistência, da transferência e do desejo. Com este sentido se relaciona o uso de psicanálise como sinônimo de tratamento psicanalítico; exemplo: começar uma psicanálise (ou uma análise). C) Um conjunto de teorias psicológicas e psicopatológicas em que são sistematizados os dados introduzidos pelo método psicanalítico de investigação e tratamento.
Como se pode constatar, a psicanálise foi considerada, na perspectiva freudiana, como um método investigativo, de cujo uso derivam teorias e procedimentos clínicos. Como coloca Gilbert (2020, p. 18, tradução nossa): “pode-se considerar que o resultado do trabalho de Freud, por seu grande rigor, não apenas criou a teoria e a prática psicanalíticas, mas também um método rigoroso de pesquisa qualitativa”. Por um lado, convergindo com esta autora, entendemos que o método psicanalítico detém a primazia sobre as teorias e as práticas clínicas. Por outro, compreendemos que haveria diferentes tipos de usar a psicanálise na pesquisa qualitativa. Nesse sentido, é possível distinguir, na literatura científica, no mínimo, cinco destes tipos.
O primeiro tipo de pesquisa versa sobre aquela desenvolvida na clínica, sendo o estudo de caso como o desenho metodológico mais usado. Este tipo de pesquisa remonta desde Freud (1907/1955, 1910/1955, 1914/1955), sendo realizado, até hoje, na universidade (Graça & Figueiredo, 2018; Mencarelli, Baptista, & Aiello-Vaisberg, 2017; Pereira & Coelho Junior, 2019) e nas instituições psicanalíticas, como, por exemplo, nas Sociedades de Psicanálise filiadas à International Psychoanalytical Association – IPA (Mélega, 2017). Do nosso ponto de vista, este tipo de pesquisa mostra-se de extrema relevância para o ensino, a aprendizagem e a transmissão da psicanálise, demonstrando exemplos claros da prática clínica a ser entrelaçada com o método e com as teorias da psicanálise.
As pesquisas do segundo tipo visam entender não somente o pensamento de autores e escolas, mas também o desenvolvimento de conceitos dentro de obras psicanalíticas. Podemos citar os trabalhos tanto da filosofia, como Mezan (2019, 2020) e Loparic (2018), quanto da psicologia como os de Fulgencio (2020) e Dunker (2019) como exemplo deste tipo de pesquisa. No nosso entender, estes trabalhos revelam-se muito importantes no âmbito do ensino da psicanálise, seja na graduação, seja na especialização, com vistas a maior clarificação dos pensamentos dos grandes autores e de seus conceitos.
O terceiro tipo, constituído de estudos que aderem a epistemologias positivistas e neo-positivistas, buscam avaliar efeitos clínicos de terapias psicanalíticas (Leuzinger-Bohleber, Hautzinger, et al., 2019; Leuzinger-Bohleber, Kaufhold, et al., 2019; Woll & Schönbrodt, 2019). Do nosso ponto de vista, este tipo de pesquisa revela-se útil para demonstrar a eficácia de tratamentos psicanalíticos, porém devem ser lidos com extrema cautela, pois o tratamento clínico psicanalítico não se adequa a padrões positivistas. Ou seja, é necessário diferenciar o tratamento em si e a avaliação proposta por alguns pesquisadores.
O quarto tipo de investigação psicanalítica corresponde a produções conhecidas como estudos psicossociais. Caracterizam-se por fazer uso ampliado de teorias e conceitos psicanalíticos no âmbito de pesquisas empíricas de tipo qualitativo, para buscar compreender fenômenos sociais, como, por exemplo, aqueles de Frosh (2017, 2019). Archard, (2020) afirma que estes estudos psicossociais alocam conceitos e teorias da psicanálise para fora de seu contexto clínico tradicional, de modo a pavimentar estudos mais críticos e reflexivos sobre a realidade, os quais vêm sendo produzidos, com entusiasmo, no Reino Unido. Archard converge com Knight (2019, p. 1, tradução nossa), que afirma que “O uso recente de conceitos psicanalíticos em pesquisas qualitativas resultou em uma florescente série de pesquisas qualitativas psicanaliticamente orientadas”. Não desconhecemos a chamada psicanálise em extensão ou extramuros, que investiga questões referentes ao sujeito, desde que compreendido como entrelaçado nos fenômenos sociais e políticos. Desse modo, esse modo não é estritamente ligado ao tratamento psicanalítico. Este é um tipo de pesquisa, denominada por alguns como psicanálise aplicada, converge com este quarto tipo de investigação. No nosso entender, estes estudos oferecem compreensões relevantes sobre dimensões sociais mais amplas, as quais, como sabemos, não são antagônicas às pessoas, mas, sim, constitutivas entre si.
O quinto tipo consiste em estudos que usam psicanálise como método investigativo, para produzir, registrar e/ou analisar materiais produzidos tanto dentro como fora do contexto de atendimento analítico (Archard, 2020; Herrmann, 2001; Hollway, 2016; Kvale, 1999, 2003). Os estudos que realizamos se inserem nesse tipo de pesquisa, considerando que usamos o método na produção, registro e análise de material - o que será foco de discussão na próxima subseção.
Porém, diante destas possibilidades de pesquisa, resta uma dúvida. O que vem a ser exatamente o uso do método psicanalítico na pesquisa qualitativa? Sabemos que há pesquisadores, como Hollway (2016) que usa este método na produção de material clínico. Archard (2020), por sua vez, usou a proposta de Hollway e Jefferson (2013), considerando-a criticamente. Outros, como Ambrosio (2013), usam este método para registrar e analisar o material clínico. Knight (2019), ainda, sugere que o pesquisador mantenha um jornal diário por meio do qual registrará suas associações sobre a pesquisa como forma de manejar a contratransferência. Antes de responder a essa pergunta a partir do nosso entendimento, o que exige um pequeno volteio, lembramos que o método segue duas regras de ouro, a livre associação de ideias e a atenção flutuante, cujas definições são apresentadas a seguir:
Associação livre: método que consiste em exprimir indiscriminadamente todos os pensamentos que acodem ao espírito, quer a partir de um elemento dado (palavra, número, imagem de um sonho, qualquer representação), quer de forma espontânea. (Laplanche & Pontalis, 1967/1971, p. 69)
Atenção flutuante: modo como, segundo Freud, o analista deve escutar o analisando: não deve privilegiar a priori qualquer elemento do seu discurso, o que implica que deixe funcionar o mais livremente possível a sua própria atividade inconsciente e suspenda as motivações que dirigem habitualmente a atenção. Esta recomendação técnica constitui o correspondente da regra da associação livre proposta ao analisando. (Laplanche & Pontalis, 1967/1971, p. 74).
É claro que um exame, mesmo que rápido e até mesmo com pouca atenção, favorecerá o entendimento de que tais regras versam sobre a fala de uma pessoa, por exemplo, o paciente ou o participante de pesquisa. Porém, parece bastante restrito, a nosso ver, considerar que estas regras de ouro versariam somente sobre a fala, o que não significa que estejamos minimizando a sua valiosa e inestimável importância clínica. Queremos dizer que a associação livre de ideias e a atenção flutuante podem ser usadas para abarcar outros atos que não somente aqueles verbais. Exemplos disso seriam, por exemplo, as brincadeiras de crianças nas sessões de análise, a arteterapia psicanalítica (Ambrosio, 2005), o uso de atividades gráfico-narrativas (Zavaglia, Visintin & Aiello-Vaisberg, 2022), além de outros. Ou seja, estes exemplos, somente para nomear alguns, apontam para a consideração de que humanos “falam” por outras vias que não somente a fala. Ou seja, atos humanos, que sempre carregam algum sentido afetivo-emocional, podem ser pensados como expressões de pessoalidades individuais ou coletivas.
Com esta consideração, é possível, com rigor, admitir que as regras de ouro do método psicanalítico não são, exatamente, sobre a fala, mas, sim, sobre a comunicação do drama das pessoas - vale dizer, de tudo aquilo que é emocionalmente relevante - por parte daquele que “fala” e o acolhimento deste drama por parte daquele que “escuta”.
Com este détour, a pergunta “o que vem a ser exatamente o uso do método psicanalítico na pesquisa qualitativa?” pode ser respondida de várias maneiras. Na concepção de Rosa e Domingues (2010), o uso do método “vai do fenômeno ao conceito e constrói uma metapsicologia não isolada, mas fruto da escuta psicanalítica, que não enfatiza ou prioriza a interpretação, a teoria por si só, mas integra teoria, prática e pesquisa”. Do nosso ponto de vista, a resposta de Rosa e Domingues revela-se interessante na medida em que tal uso não dissocia, mas, ao contrário, integra a produção de conhecimento com o auxílio de teorias e com o acolhimento dos atos humanos. Porém, entendemos ser possível responder a essa pergunta da seguinte maneira. Considerando que a empreitada freudiana é um exemplo de um rigoroso processo de pesquisa qualitativa, entendemos que o uso do método psicanalítico na pesquisa qualitativa corresponde a um gesto de criação de teorias locais, maximamente dramáticas e concretas, a saber, a interpretação. Deste modo, o método se presta para interpretar condutas, como fica evidente no capítulo 2 de A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1955). Em outros termos, serve para a criação de significados plausíveis num encontro intersubjetivo sobre o que se vive dramaticamente. Porém, somos levados, agora, a uma outra pergunta: quais são os modos de usar o método psicanalítico na pesquisa qualitativa?
Tendo em mente estes diferentes tipos de pesquisa qualitativa articulada com a psicanálise, voltamos a nossa atenção, nesse momento, àquela relativa ao quinto modo, isto é, àquele que faz uso do método psicanalítico. Sabemos que, nas pesquisas qualitativas articuladas ao redor na psicanálise, faz-se necessário produzir, registrar e interpretar o material de pesquisa.
A produção do material de pesquisa é uma etapa do processo investigativo empírico que se caracteriza pela busca de constituição de um corpus a ser analisado. Seja por meio de entrevistas, recurso valioso e recorrente em pesquisas qualitativas (Kvale, 1999, 2003), seja por meio de materiais disponibilizados on-line, possibilidade interessante em função de sua riqueza narrativa e de seu fácil acesso (Salmons, 2017), focamos, como pesquisadores-psicanalistas, em como configurar um ambiente propício para que seja possível produzir o material empírico. Na pesquisa qualitativa psicanalítica, tal material sempre é produzido intersubjetivamente, considerando suas características que permitem ser abordados em termos de sentidos afetivo-emocionais.
Para produzir o material por meio do método psicanalítico, lembramo-nos, como exemplo, de Kvale (1999, 2003), considerado como um dos maiores expoentes na pesquisa qualitativa na psicologia. Para o pesquisador, a entrevista psicanalítica é aquela que ocorre no setting clínico, podendo ser usada na produção de conhecimento sobre significados. Ao definir este modo de entrevista, Kvale (1999, p. 94, tradução nossa) diz: “A entrevista psicanalítica acontece no enquadre estruturado da hora terapêutica, mas o conteúdo é livre, não-diretivo e prossegue de maneira aberta. As associações livres do paciente correspondem à atenção flutuante do terapeuta”. Afirma que a entrevista psicanalítica contribui para a produção de conhecimento sobre a situação humana, enriquecendo e aprofundando o uso de entrevistas na pesquisa qualitativa. Constatamos, assim, que Kvale (1999, 2003) entende que o método psicanalítico é usado para produzir o material de pesquisa no âmbito da clínica. Hollway e Jefferson (2013), por sua vez, entendem ser possível produzir o material de pesquisa a partir da associação livre de ideias, entendendo que o pesquisador deve favorecer a associação livre de ideias dos participantes. Seria no encontro da dupla participante-pesquisador que o material empírico seria produzido. Hollway e Jefferson (2013, p. 315, tradução nossa) afirmam que tomam “emprestado o princípio psicanalítico de associação livre, que assume que conexões inconscientes serão reveladas através dos links que as pessoas fazem se são livres para estruturar suas próprias narrativas”. Para eles, entrevistas psicanalíticas podem ocorrer em vários âmbitos e sobre diversas temáticas, e não somente no consultório, sabendo que seu trabalho é considerado como um dos melhores modelos de pesquisa qualitativa em articulação com a psicanálise (Midgley, 2006)
A nosso ver, o método psicanalítico presta-se para produzir material, seja na clínica, seja na pesquisa. Tal consideração encontra respaldo não somente na definição de Freud (1923/1955) sobre a psicanálise, mas em todo o seu trabalho clínico com pacientes e com fenômenos outros, como obras de arte e questões sociais. É claro que sabemos que houve um grande desenvolvimento teórico e metodológico desde os tempos de Freud, mas também não desconhecemos trabalhos de autores como Kvale (1999, 2003) e Hollway (2016).
Para registrar o material, pesquisadores optam por anotar, gravar vídeos e/ou áudios, ou ainda elaborarem registros após entrevistas psicológicas, com vistas a apresentá-las em supervisão ou em grupos de pesquisa. O cumprimento deste procedimento está diretamente ligado ao tipo de corpus com o qual se trabalha. Tal cumprimento mostra-se de fundamental importância, uma vez que o acontecer humano pesquisado exige alguma forma de registro, considerando que se trata de um fenômeno evanescente. Seu registro deve ser observado considerando que a produção do material de pesquisa se faz sempre como um acontecer inter-humano, seja entre pessoas, seja entre o pesquisador e uma manifestação objetivada sob forma de uma obra.
Hollway (2016), por exemplo, grava e transcreve seus encontros com os participantes para escutar as suas vozes e não para ouvir o registro em si, o que guarda semelhanças com o trabalho de Aeillo-Fernandes (2013) de um ponto de vista metodológico. Phoenix, Frosh e Pattman (2003) também fizeram o mesmo tipo de registro, porém, em estudo sobre masculinidade com meninos que estudavam em diferentes escolas, valeram-se de outras estratégias de registro:
O entrevistador escreveu resumos muito completos sobre cada garoto, cada grupo e cada escola do estudo, registrando como foram as entrevistas e como ele (o entrevistador) se sentiu com a entrevista e o(s) garoto(s) em vários pontos da entrevista. Este resumo permitiu que o entrevistador registrasse impressões do processo da entrevista (por exemplo, se era “fácil” ou “difícil” e se havia aspectos surpreendentes) e foi usado para fazer conexões preliminares em diferentes entrevistas (Phoenix, Frosh, & Pattman, p. 182, 2003).
A nosso ver, tais registros ipsis literis apresentam certa relevância, porém, no nosso entendimento, não ocorrem à luz do método psicanalítico, uma vez que não se baseiam em suas regras de ouro, vale dizer, na associação livre de ideias e na atenção flutuante, tampouco considera a transferência. Não podemos deixar de destacar que um registro sobre sentimentos durante a entrevista não necessariamente corresponde a uma estratégia baseada no método psicanalítico, por mais válida que seja.
A interpretação do material ocorre quando o pesquisador busca compreender significados, instaurados na transferência, seja com os participantes e o registro desse encontro, seja com outro tipo de material de pesquisa, como blogs, por exemplo. Tal busca por compreensão está sujeita ao aspecto afetivo-emocional do pesquisador, que se mostra intransponível e, até mesmo, requerido em função do método utilizado. Trata-se do momento em que o material será abordado em termos de compreender sentidos afetivos-emocionais possíveis e plausíveis. Contudo, tal análise vem se dando, basicamente, de duas formas, ou a partir de teorias, como fazem autores tais como S. Frosh (2017, 2019) e I. Parker (Parker, 2003, 2005), ou a partir do método psicanalítico, como defendeu F. Herrmann (1991).
Por um lado, Frosh (2017, 2019) entende a psicanálise como teoria a ser usada para interpretar o material. Porém, não se trata de um material visto como comunicação de um inconsciente fechado em si mesmo. Na verdade, o autor trabalha com uma noção que, a nosso ver, pode ser proveitosamente discutida com Bleger (1963/2007). Tal discussão se dá na medida em que Frosh explicita, com clareza, que não haveria uma distinção entre individual e social. Tudo seria social, inclusive a sensação de ser um indivíduo separado dos outros. “Nosso argumento é que existem conceitos psicanalíticos que podem ser úteis na exploração dessa “inscrição” – a inscrição da vida subjetiva na vida social - e, assim, na explicação da trajetória de indivíduos, isto é, seu posicionamento específico no discurso” (Phoenix, Frosh,& Pattman, 2003, p. 39, comentários e tradução nossos). Como exemplo do uso que o pesquisador faz da psicanálise, em estudo sobre masculinidade, Phoenix, Phoenix e Pattman realizaram entrevistas com um grupo de meninos de 11 a 14 anos, para então analisar o material à luz da análise temática. Como discussão, consideram o discurso dos participantes em relação ao modelo de masculinidade socialmente dominante. Argumentam que, a partir de uma perspectiva lacaniana, tal modelo gera negociações que podem ser entendidas “não como uma espécie de ‘escolha’ consciente contra-hegemônica, mas como uma tentativa de usar as possibilidades discursivas disponíveis para lidar com um conjunto de poderosos conflitos inconscientes” (Phoenix, Frosh, & Pattman, 2003, p. 46, tradução nossa). Parker (2005), no mesmo sentido, usa a psicanálise como conjunto teórico para compreender o discurso. Para o autor, a teoria lacaniana pode contribuir à pesquisa qualitativa, pois oferece subsídios para compreender como subjetividade é estruturada nas relações discursivas. Entendendo a psicanálise como um fenômeno social que estrutura como nós pensamos sobre nós mesmos (Parker, 2005), o autor usa essas teorias para demonstrar tal estruturação. Por exemplo, em estudo que tem por foco como narrativas psicanalíticas organizam a subjetividade, Parker (2003) usa aquilo que chama de vinhetas, uma sobre linguagem psicanalítica e a outra sobre ensino da psicanálise, para explicitar a psicanálise como uma narrativa poderosa na cultura ocidental através da qual os sujeitos consideram os outros. Toma, como consideração deste objetivo, que a teoria psicanalítica já está na cultura e que uma forma de usar a psicanálise na pesquisa seria desembaraçar alguns fios de experiência que nos organizam psicanaliticamente como sujeitos (Parker, 2003). Ou seja, Parker (2003) aplica teorias psicanalíticas para compreender discursos e como a subjetividade se estrutura nesses discursos, tendo em mente que a própria psicanálise já faz parte da cultura ocidental. Ou seja, não usa a psicanálise como método, na esteira da abordagem freudiana de problemas clínicos e de fenômenos culturais.
Por outro lado, Herrmann (2001) propõe que o material de pesquisa seja analisado à luz do método psicanalítico, isto é, em estado de atenção flutuante e associação livre de ideias, seja individualmente, seja em o grupo de pesquisa, seja em supervisões com colegas versados no uso do método psicanalítico. Neste momento, é permitido e requisitado que toda e qualquer emoção, sentimento, lembrança e/ou ideia emerja a partir do contato com o corpus de análise.
A nosso ver, o pesquisador, que usa o método psicanalítico para produzir conhecimento compreensivo, deve cultivar a atenção flutuante, que permite que algo no material se destaque, permitir-se ser impactado para, então, completar associativamente a configuração de sentido, chegando a uma interpretação plausível. Nesse sentido, o pesquisador-psicanalista se posiciona de modo semelhante ao sonhador, com a diferença de que busca sonhar algo que ainda não foi sonhado, mas que se encontra em estado potencial.
Modos de uso do método psicanalítico na pesquisa qualitativa
Diante deste cenário, explicitamos que o tipo de pesquisa denominada pesquisa qualitativa com uso do método psicanalítico pauta-se no método psicanalítico para produzir, registrar e interpretar o material de pesquisa. Ou seja, toda a parte empírica, neste tipo de pesquisa, é psicanaliticamente realizada sob a égide da atenção flutuante e da associação livre de ideias.
Em relação à produção do material, buscamos instaurar um ambiente no qual, pesquisador e participantes possam interagir em estado de atenção flutuante e associação livre de ideias. Nesse momento, é proposto que o participante comunique tudo aquilo que lhe é ou parece emocionalmente relevante a fim de que o pesquisador possa ser afetado emocionalmente por tal ato. No caso de pesquisas em que usa outros materiais, como, por exemplo, vídeos do youtube ou narrativas de blogs, esse movimento será preservado, na medida em que o pesquisador deverá “ouvir” aquilo que lhe é comunicado. Ou seja, numa trama transferencial, o material será sempre produzido intersubjetivamente, seja pela dupla participante-pesquisador, seja no encontro do pesquisador com objetos culturais.
Em relação ao registro de material, uma das formas disponíveis para registrar o material, que atende às demandas do método psicanalítico, são as chamadas narrativas transferenciais. Tais narrativas são elaboradas de memória após encontros com participantes ou com manifestações objetivadas, tais como vídeos e produções literárias, caracterizando-se por levar em conta o impacto emocional do acontecer humano.
Por último, em relação à interpretação do material, também ocorre à luz do uso preciso do método psicanalítico, fazendo como Freud e não apenas aplicando as teorias que derivou a partir do que fazia no consultório e na abordagem de obras culturais. Herrmann (1991) traduz o uso do método, quando estamos diante do material já produzido, em termos de palavras de ordem, vale dizer, de passos que explicitam a sua aplicação. “Deixar que surja” pode ser entendido como cultivo de uma posição de abertura de modo a poder ser tocado por toda expressão emocional que possa vir à tona. “Tomar em consideração” pode ser entendido como o acolhimento destas associações, vale dizer, pode ser entendido como manter-se em contato com aquilo que impactou emocionalmente a pessoalidade do pesquisador-psicanalista ao invés de defender-se rapidamente. “Completar a configuração de sentido” pode ser entendido como a tentativa de comunicar aquilo que, como diriam Frosh e Young (2017), makes sense, isto é, que forneça um sentido plausível em função do material. Ou seja, “completar a configuração de sentido” seria um tipo de operação que não se dá exclusivamente pela via cognitivo-racional. Na verdade, tal ato de completar o sentido se dá pela via da experiência emocional em relação com o outro. Seria a possibilidade de instaurar um encontro, seja com um participante, seja com uma obra cultural, no qual todas emoções e lembranças sejam acolhidas, que pode favorecer a produção de uma interpretação, vale dizer, a produção de um conhecimento com vistas a compreender os significados de atos humanos.
Narrativas ficcionais na pesquisa qualitativa
Buscamos, neste momento, inserir um tipo de produção de material no cenário da pesquisa qualitativa em articulação com a psicanálise. De modo mais específico, intentamos alocar as chamadas narrativas ficcionais no panorama da pesquisa qualitativa com uso do método psicanalítico. Para tanto, é necessário, anteriormente, que entabulemos certos diálogos com a literatura.
Quando temos a psicanálise como solo teórico-metodológico, lembramo-nos de que, talvez, Anna O. tenha sido uma das primeiras a experienciar e a reconhecer o potencial terapêutico de narrar suas experiências. Apontou ao clínico, ou seja, àquele se inclinava para escutá-la, os benefícios psíquicos que obtivera com a talking cure, com o narrar o próprio drama. Não é em vão que, na obra que inaugura a psicanálise, definindo seu método psicanalítico e seu campo de estudo, Freud (1900/1955) parte da narrativa do sonho, para instaurar um modelo inicial do aparelho psíquico, com vistas a compreender as comunicações inconscientes de seus pacientes. Deste modo, é possível considerar que, desde os primórdios da psicanálise, há uma próxima trama entre narrar e terapêutica.
Porém, cabe evidenciar que tal propósito da narrativa se dá no âmbito clínico. Quando nos voltamos para o âmbito da pesquisa, reconhecemos uma vasta produção de conhecimento que tem vistas a entrelaçar narrativa e psicanálise com o propósito de produzir conhecimento rigoroso. Exemplo disso seria o trabalho de Granato (2004) que, tendo a prática clínica como matriz no âmbito da psicologia clínica, expõe narrativas da clínica da maternidade como modelos para se pensar o narrar como caminho profícuo na produção de conhecimento ao ser articulado com o método psicanalítico. Igualmente, a psicanálise também pode configurar-se como um corpo teórico que tem como um de seus fins compreender a mente e a cultura, elucidando que a prática clínica, apoiada em certas vertentes teóricas, objetiva oferecer ao paciente uma nova narrativa sobre suas vidas, de modo que este possa descartar narrativas antigas.
Diante do objetivo de alocar as chamadas narrativas ficcionais no panorama da pesquisa qualitativa com uso do método psicanalítico, recorremos a Spence (2001) que, ao que tudo indica, desaconselha, com vistas a um método de registro epistemologicamente mais correto, uma transcrição ipsis literis, mas recomenda uma transcrição completa. Ou seja, para longe da exclusividade da dimensão manifesta da fala, o pesquisador-analista tentaria apresentar a fala em si, mas também seus próprios pensamentos, emoções e associações despertos no encontro inter-humano com o paciente.
Diante do afastamento da superfície rasa de propostas metodológicas do positivismo, sem, contudo, desvalorizar o que indivíduos e grupos vivem às custas de teorizações, o método psicanalítico parece oferecer um caminho profícuo e epistemologicamente correto na compreensão da dimensão emocional dos seres humanos. como constataram Rosa, Lima, Peres e Santos (2019), em revisão de literatura, que apontam para a fecundidade deste método.
Assim, este método pode ser usado para uma tarefa interessante, a saber, a produção de uma narrativa ficcional no âmbito da pesquisa qualitativa. Antes de continuar, contudo, cabe ressaltar que a produção de narrativas ficcionais no que se refere à pesquisa não se restringe a trabalhos psicanalíticos. Exemplo disso seria o trabalho magistral de Gottlieb e Deloach (2016). Dedicadas à antropologia de bebês, as autoras elucidam que as práticas de cuidado infantil variam dramaticamente no tempo e no espaço precisamente porque estão firmemente inseridas em realidades culturais divergentes. Ilustram como os costumes de criação de bebês e crianças, por mais peculiares ou estranhos que possam parecer a um observador externo, ganham pleno sentido no contexto cultural daquela comunidade. No que tange especificamente à metodologia de narrativas ficcionais, foco do nosso interesse neste trabalho, cada capítulo é “escrito” por dois autores. Oprimeiro é o chamado contribuidor real, que é um pesquisador que passou anos pesquisando a sociedade discutida. O segundo é um autor imaginário criado por esse pesquisador, refletindo composições de pessoas reais conhecidas pelo estudioso naquela sociedade. Por trás dessa narrativa ficcional, há fatos provenientes tanto de pesquisas, quanto de experiências do pesquisador. O trabalho de Gottlieb e Deloach, a nosso ver, serve, neste momento, para demonstrar que a narrativa que se pretende rigorosa, seja do ponto de vista metodológico, seja do ponto de vista da comunicação de uma experiência humana, mantém sua coerência a partir do compromisso com o vivido pelo clínico-pesquisador e com o vivido do paciente-participante, afastando-se de uma suposta transcrição literal do encontro. Temos aí uma coerência clínico-epistemológica.
Mais proximamente do método psicanalítico, Corbett (2014), objetivando investigar a experiência emocional de mães que sofrem violência doméstica, valeu-se de narrativas ficcionais para apresentar seu material. Mais especificamente, após ter atendido clinicamente essas mulheres, a pesquisadora registrou os encontros por meio de narrativas ficcionais. Tais narrativas constituem, na compreensão da autora, uma estratégia interessante na pesquisa qualitativa com uso do método psicanalítico, uma vez que diminui a possibilidade de identificação dos participantes, seja por parte de terceiros, seja por parte do próprio paciente, caso entre em contato com o estudo quando publicado. Este tipo de cuidado mostra-se, a nosso ver, correto, uma vez que se defrontar com considerações interpretativas sobre si mesmo, fora de um contexto de tratamento, pode ser vivido como invasão e favorecedor de sofrimento emocional.
Ao se elaborar narrativas transferenciais, Corbett (2014) assinala a necessidade de dois tipos de movimentos. O primeiro se trata na lembrança dos encontros com os participantes e de suas histórias de vida. O segundo se trata da transposição de situações factuais para um tempo e um espaço que não existem realmente, mas semelhantes ao contexto em que vivem os participantes. Como observa Corbett (2014, p. 60), “a narrativa transferencial ficcional supõe uma ativa participação contratransferencial do pesquisador”.
Na nossa compreensão, o rigor das narrativas ficcionais pauta-se exatamente no uso do método psicanalítico. Assim, tais narrativas, afastando-se do registro meramente manifesto, aproximam-se da dimensão latente, foco de interesse do pesquisador-psicanalista. Deste modo, voltando ao objetivo do presente estudo, as narrativas ficcionais conformam-se como meio epistemologicamente correto que agrega, simultaneamente, produção e registro do material, que poderá, então, ser interpretada à luz do método psicanalítico.
Diante deste cenário, apresentamos, a seguir, uma pequena narrativa ficcional baseada na nossa experiência clínica. É necessário frisar que, como na clínica, o rigor não se baseia na veracidade da narrativa em si, mas, sim, no manejo da transferência, no desenvolvimento da capacidade de o paciente criar uma nova narrativa para si mesmo e no uso do método. Tal narrativa, à guisa de exemplificação, deve ser tomada como um modelo do uso do método psicanalítico, colocado em marcha por meio da associação livre de ideias e da atenção flutuante. Segue, então, a narrativa.
Sheila parecia uma mulher tranquila, sem grandes ansiedades. Seu jeito do interior e sotaque acentuado transmitiam uma tranquilidade quase lânguida. Nada mais enganador. Ao narrar seus conflitos e dúvidas, Sheila não admitia a possibilidade de dizer não, sempre se silenciava diante de situações em que não se sentia confortável e sempre tentava ser agradável com seus superiores no trabalho. Ao longo do trabalho analítico, Sheila narrou como gostava de brincar de se cortar quando era criança. “Olhe, mamãe! Dá para ver o osso!” – Sheila contava ao terapeuta animada. O que surgiria quando Sheila cortasse o comportamento de ser boa? Sua raiva mataria alguém? Ela morreria? Sua mãe morreria? Não, não se tratava de uma morte futura, mas de uma morte passada. Sheila sofrera uma perda gestacional que, inconscientemente, ligava ao fato de se comportar como uma mulher que bebia. “Eu não quero mais beber”, o que era escutado, pelo terapeuta, como “Eu não quero mais bebê.”. Ao longo do trabalho, Sheila pôde, em alguns momentos, extravasar sua raiva e sua indignação, sem, contudo, gerar um dano para si mesma e para os outros. No momento, Sheila considera visitar seu ginecologista para refazer todos os exames possíveis para, quem sabe, engravidar novamente.
Com esse exemplo, encerramos a apresentação de um exemplo de uma possibilidade a ser usada na pesquisa qualitativa com uso do método psicanalítico. Entendemos que seu uso pode atender tanto demandas éticas, no sentido de não expor diretamente o paciente, mas também demandas teórico-epistemológicas, na medida em que está calcado no método psicanalítico.
Considerações finais e limitações do trabalho
Neste texto, objetivamos considerar o local de narrativas ficcionais no âmbito da pesquisa qualitativa com método psicanalítico. Sabemos há diferentes tipos de pesquisa psicanalítica em geral, dentre as quais se incluem aquelas que usam o método psicanalítico em investigações qualitativas. Nesse sentido, podemos considerar o uso de narrativas ficcionais podem se manter coerentes do ponto de vista teórico e epistemológico.
Cabe ressaltar, porém, que nos limitamos a considerar o pano de fundo teórico relativo ao locus onde tais narrativas se encontram. Deste modo, constituindo como estratégia interessante na pesquisa qualitativa com uso do método psicanalítico, uma vez que não somente diminui a possibilidade de identificação dos participantes, mas também mantém o rigor clínico-epistemológico, sugerimos, para estudos futuros, investigações que contraponham as considerações aqui tecidas e as narrativas em si.