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Ciências & Cognição
versão On-line ISSN 1806-5821
Ciênc. cogn. vol.9 Rio de Janeiro nov. 2006
Ensaio
Memória motora: por que nunca esquecemos como andar de bicicleta?
Motor memory: why we never forget how to ride a bicycle?
Leonardo Perissé RochaI; Alfred Sholl-FrancoII
IEscola de Educação Física e Desportos, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil;
IIPrograma de Neurobiologia, Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF), Centro de Ciências da Saúde, UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Resumo
O aprendizado motor influi em mecanismos específicos relacionados ao seu armazenamento, a chamada memória associativa, que compreende a aquisição e desenvolvimento de habilidades motoras através da repetição de gestos proporcionando a mecanização do movimento. Sua organização deve-se, possivelmente, à plasticidade no núcleo cerebelar. Com a extinção de sua prática, ao readquiri-lo , seu processo ocorre mais aceleradamente do que a aquisição original. Assim, a memória motora é importante, não somente para, posteriormente, executar a mesma atividade com maior facilidade; como também, no aprendizado de novos gestos que possuem movimentos similares. © Ciências & Cognição 2006; Vol. 09: xxx-xxx.
Palavras-chave: aprendizado motor; memória; cerebelo; Pavlov; condicionamento; treino.
Abstract
The motor learning influences specific mechanisms related with its storage, which is called associative memory and comprehends the motor abilities acquisition and development through the repetition of gesture, what provide the movement mechanization. It is possible that the organization must be derived from plasticity occurring in the cerebellar nucleus. With the performance extinction, when the reacquisition happens, it's faster than the original acquisition. Thus, the motor memory is important not just to repeat later the same activity faster; as well as, in learning of new gestures that have similar movements. © Ciências & Cognição 2006; Vol. 09: xxx-xxx.
Keywords: motor leraning; memory; cerebellum; Pavlov; conditioning.
Por que ao aprendermos uma atividade motora como andar de bicicleta, dançar tango ou mesmo datilografia, podemos permanecer um tempo significativo sem praticá-la, que ao entrarmos em contato com a mesma, parece que ainda, apesar de uma relativa perda de habilidade, ainda sabemos executá-la? Será que realmente podemos guardar gestos motores a partir de um aprendizado? Será que o modo como este processo é realizado é semelhante àquele envolvido em fenômenos cognitivos como é o caso de se memorizar fatos ou eventos?
Sim, existe uma memória para o aprendizado da habilidade motora. Entretanto, antes de tudo, é preciso distinguir os diversos tipos de memória e, principalmente o "como" e o "onde" elas são armazenadas (Squire e Kandel, 2003; Albright et al., 2000). O primeiro nível de memória, a chamada declarativa ou explícita (semântica ou episódica), é utilizado para guardar fatos e eventos e reúne tudo o que podemos chamar por meio de palavras, o que não é o caso do nosso estudo. Assim, quando a memorização está relacionada a eventos datados, que aconteceram ao longo do tempo, ela é denominada de episódica, como, por exemplo, ao lembrar que Ayrton Senna morreu no dia 24 de março de 1994. No entanto, quando a memória se refere à recordação do significado das palavras e abrange conceitos atemporais a chamamos de semântica como, por exemplo, ao relacionar o fato de que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil. O segundo nível de memória, denominada não-declarativa ou implícita, difere da declarativa por não precisar ser verbalizada, sendo também subdividida em dois estados: a memória associativa que compreende a memória motora para aquisição e alteração de habilidades, bem como o condicionamento clássico; e a memória não-associativa relacionada às respostas emocionais (Squire e Kandel, 2003; Lent, 2002 para revisão).
Quando realizamos ou tentamos imitar um ato motor, nossos programas representam nada mais do que modelos para a formação de memórias associativas. Nesse estágio, este tipo de memória se refere à capacidade humana de aprender novos gestos motores, sendo manifestada através da melhora do seu desempenho. Seu desenvolvimento necessita de treinamento repetitivo e, normalmente, é duradouro, de forma que a repetição consiga transformar um gesto, antes, descoordenado em um movimento muito mais harmonioso, através de um processo chamado mecanização (Ohyama et al., 2003). Quando se adquire maior domínio sobre determinado gesto motor como, por exemplo, ao andar de bicicleta, realizamos uma curva ou desviamos rapidamente de um buraco, a ação necessária para execução do movimento é realizada com pouco esforço, sem que seja necessário intenso raciocínio ou programação, pois já houve uma mecanização prévia de possíveis reações, a qual foi gerada, a princípio, pelo treinamento repetitivo. Somos capazes de executar alguns afazeres com nosso pensamento direcionado para outra questão. Como há memória para o gesto motor, seu reaprendizado é muito mais veloz do que um novo aprendizado, de modo semelhante a alterarmos eventos ou fatos em nossa memória declarativa, mas utilizando-se áreas encefálicas completamente diferentes (Ohyama et al., 2003; Doya, 2000, para revisão). Essa é a explicação para a conhecida frase que diz: "quem aprendeu a andar de bicicleta, nunca irá esquecer".
Os mecanismos pelos quais ocorre o aprendizado motor e a melhora de sua performance tem sido amplamente estudados ao longo dos anos, sendo que freqüentemente utiliza-se como base as respostas condicionadas descritas por Pavlov para que se possa entender "como" e "de que modo" isso acontece (Pessotti, 2003; Doya, 2000, para revisão). Evidências experimentais obtidas no início desta década mostram que a principal estrutura encefálica envolvida na memória implícita associativa, relacionada à coordenação da atividade da musculatura esquelética, é o cerebelo, através do processamento sináptico das informações sensoriais e cognitivas que chegam ao seu córtex e núcleos profundos (Voogd e Glickstein, 1998). Sugere-se que a plasticidade, nos núcleos cerebelares é controlada pela quantidade e qualidade das informações que chegam às células de Purkinje, elementos neuronais que concentram todas as informações que chegam ao cerebelo e que são responsáveis pela emergência de informações cerebelares (De Zeeuw et al., 1998).
Medina e colaboradores (2001) testaram, através do condicionamento palpebral em coelhos (fechamento das pálpebras, através do reflexo da pálpebra, que ocorre em decorrência de um estímulo que venha em direção ao olho - condicionamento clássico), um mecanismo para a memorização desta informação no cerebelo. Para tanto, utilizou-se de um método de simulação computadorizada para representar a bem caracterizada organização sináptica e, é claro, fisiológica desta estrutura encefálica. A idéia da pesquisa foi condicionar os animais de forma que estes demonstrassem uma resposta condicionada (aprendizado motor), para que posteriormente fosse realizada uma manobra para que se perdesse este aprendizado (fenômeno de extinção); e por fim um aprendizado fosse desencadeado, de modo que seja plausível uma comparação entre as fases: aprendizado inicial, memorização, extinção e reaprendizado. Registros de atividade celular foram realizados no núcleo interposto anterior (núcleo profundo cerebelar) após realização de treinamento utilizando doze blocos com nove provas, sendo oito pares de apresentações de estímulo condicionado (laser), e estímulo incondicionado (tom); e uma apresentação de estímulo condicionado sozinho com intervalo entre as provas. Desse modo, com a utilização dos estímulos, que seria um laser apontando para o globo ocular do animal, juntamente com um tom (sinal), haveria uma resposta condicionada, o fechamento reflexo da pálpebra, que demonstra a aquisição de uma memória condicionada clássica.
Foi demonstrado (Medina et al., 2001) que a reaquisição da resposta condicionada após extinção foi muito mais rápida que o aprendizado original. Os testes mostraram ainda que há uma correlação da magnitude de plasticidade residual e a magnitude de memorização, pois coelhos que mostraram forte evidência para plasticidade residual no último dia de extinção antes de reaquisição, readquiriram respostas condicionadas relativamente rápidas. Em contraste, a reaquisição foi demorada em coelhos que mostraram pequena evidência para plasticidade residual. Isso pode ser um dos fatores para explicar o porquê certas pessoas têm maior dificuldade em aprender gestos motores. Um importante desafio apontado neste estudo é o de se correlacionar esta forma de aprendizado com a aquisição cognitiva, de forma a precisar e comparar os mecanismos exatos pelos quais a plasticidade medeia as respostas de baixa latência, assim como para se compreender os sinais que controlam essa indução. Foi reforçada ainda neste trabalho a existência de uma forte coerência entre o aprendizado e a formação de memória motora. Sendo assim, nenhuma atividade motora realizada é perdida completamente com o tempo e, desta forma, não pode ser considerada, depois de algum tempo, como algo inútil após desistirmos de sua prática.
Desta forma, o fato de não termos realizado a atividade motora por algum tempo, pode desencadear um falso sentimento de que a mesma não é mais proveitosa e que dedicamos um precioso tempo ao adquiri-la, sem termos certeza de que temos ainda adequada desenvoltura para realizá-la. Entretanto, mesmo que não se realize novamente o mesmo movimento, os gestos motores aprendidos representam um conjunto de movimentos que podem servir de alicerce para outras atividades, em uma forma de aprendizado denominado de assimilação, como observado, por exemplo, em atletas que praticam handebol e que possuem facilidade para jogar basquetebol, ou mesmo indivíduos que gastaram muito tempo de sua infância jogando vídeo game utilizando joysticks, que possuem agora grande coordenação e refinamento no movimento dos dedos, qualidade muito importante por exemplo para cirurgiões; pois como são movimentos presentes nesta nova prática, seu reaprendizado vai ser muito mais rápido do que o aprendizado de algo totalmente novo, ajudando, desta forma, na aquisição de memória e desempenho motores, em sua totalidade.
Referências Bibliográficas
Ohyama, T.; Nores, W.L.; Murphy, M. e Mauk, M.D. (2003). What the cerebellum computes. Trends Nerosci., 26, 222-227. [ Links ]
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Medina, J.F.; Garcia, K e Mauk, MD. (2001). A mechanism for savings in the cerebellum. J. Neurosci., 21, 4081-4089. [ Links ]
Albright, T.D.; Kandel, E.R. e Posner, M.I. (2000). Cognitive neuroscience. Curr. Opin. Neurobiol., 10, 612-624. [ Links ]
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De Zeeuw, C.I.; Simpson, J.I.; Hoogenraad, J.C.; Galjart, N; Koekkoek, S.K.E. e Ruigrok, T.J.H. (1998). Microcircuitry and function of the inferior olive. Trends Neurosci., 21, 391-400. [ Links ]
Notas
L.P. Rocha
E-mail para correspondência: leonardoperisse@yahoo.com.br.
A Sholl-Franco
Endereço para contato: Sala G2-032, Bloco G - CCS, Programa de Neurobiologia, IBCCF, UFRJ. Av. Brigadeiro Trompowiski S/N - Cidade Universitária, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, RJ 21.941-590, Brasil.
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