SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.12Cognição e texto: a coesão e a coerência textuaisMembro-fantasma: o que os olhos não vêem, o cérebro sente índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.12  Rio de Janeiro nov. 2007

 

Ensaio

 

O uso de narrativas autobiográficas no desenvolvimento profissional de professores

 

The use of autobiographical narratives in the professional development of teachers

 

 

Denise de FreitasI; Cecília GalvãoII

IDepartamento de Metodologia de Ensino, Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, São Paulo, Brasil;
IICentro de Investigação em Educação, Departamento de Educação, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal

 

 


Resumo

Utilizar o recurso da narrativa autobiográfica levou-nos a inscrever nossos episódios de vida pessoal e profissional e encontrar lugar para os significados das trajetórias e das práticas de formadoras de professores. A narrativa pessoal nos ajudou a perceber como nos fomos construindo profissionalmente. Duas questões constituíram-se como fios da investigação: 1) Que momentos marcantes identificamos na nossa vida profissional? 2) Como descrevemos esses momentos e como explicamos teoricamente a sua influência no nosso desenvolvimento profissional? A própria construção da metodologia de investigação se constitui em uma narrativa na medida em que a recolha de dados são as escritas autobiográficas sobre os percursos singulares que foram sendo construídas por nós, investigadoras, no entrecruzamento de nossas histórias de professoras e formadoras de professores e pesquisadores. A análise ressignifica e reinterpreta os olhares que temos de nós mesmas, pondo em evidência outras emoções e razões das quais antes não nos tínhamos apercebido. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: ??-??.

Palavras-chave: narrativas de professores; desenvolvimento profissional; pesquisa autobiográfica.


Abstract

Making use of such means as the autobiographical narrative has led us to put into words our personal and professional life stories and to find a place to the meaning of those paths and our practices as teacher educators. The personal narrative has helped us to notice how we've been developing as professionals. Two questions have become the thread of investigation: 1) What meaningful moments do we identify in our professional life? 2) How do we describe such moments and how do we explain theoretically their influence on our professional development? The construction of the investigation methodology becomes a narrative itself, considering that the data collecting refers to the autobiographical writings about the remarkable paths which have been built by us, researchers, in the intersection of our stories as teachers and teacher/researcher educators, and researches. This analysis brings a new meaning and a new reading on the way we see ourselves, also setting in evidence other emotions and reasons which we hadn't been aware of. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: ??-??.

Keywords: teachers' narratives; professional development; autobiographical research.


 

 

"Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa,
de algum modo, escrito em mim. Tenho é que me copiar..."
(Clarice Lispector).

 

Introdução

Olhar para o passado pode ajudar-nos a encontrar explicação para significados nas ações que temos hoje como pessoas que foram construindo um percurso pessoal e profissional rico de cruzamentos com os outros e a dar sentido ao nosso posicionamento como professoras e formadoras de professores. As nossas intenções são acadêmicas, mais do que pessoais, embora saibamos que a pessoa e o profissional se interligam e se expressam de um modo completo e integrado (Moita, 1995). O recurso à narrativa autobiográfica inscreve-se na idéia de que, ao narrarmos episódios com significado, os analisaremos de uma forma contextualizada, tentando que essa análise ponha em evidência emoções, experiências ou pequenos fatos marcantes, dos quais antes não nos tínhamos apercebido.

Para Bakhtin (1981: 345), há uma "decisiva significância na evolução da consciência individual, à medida que a pessoa distingue o seu próprio discurso do de outros, entre o seu próprio pensamento e o de outras pessoas". O discurso internamente persuasivo, para Bakhtin, está fortemente interligado com a "própria palavra"; mesmo no "pensamento próprio" e na compreensão dialógica da linguagem, esse discurso é metade nosso e metade do outro, construindo-se sobre elementos de discursos de autoridade. Para a compreensão dessa consciência individual, o recurso à narrativa, trazendo à luz o que está escondido, configura-se como um método que estabelece ligação entre o processo mental e o discurso que o exprime (Bruner, 1991: 6), isto é, "a narrativa opera como instrumento do pensamento ao construir a realidade". Como diz Hannah Arendt, é no espaço para palavras que se podem produzir verdades de si. E por meio do autoconhecimento e da experiência de si, Michel Foucault considera que se dá o processo de subjetivação, experiência entendida como "o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, o que acontece, ou o que toca" (Larrosa, 2002: 21).

Com esta investigação, procuramos saber quem somos ou, citando Heikinen (1998), como me tornei quem sou?

Florbela Espanca, a esse respeito, diz magistralmente no poema "Eu" o seguinte:

"Até agora eu não me conhecia.
Julgava que era Eu e eu não era
Aquela que em meus versos descrevera
Tão clara como a fonte e como o dia."

"Mas que eu não era Eu não o sabia
E, mesmo que o soubesse, o não dissera...
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim e não me via!"

Quantas vezes nos descrevemos a partir de imagens que fomos criando, longe do nosso verdadeiro eu, tentando que os outros nos devolvam a imagem que pensamos que estamos a transmitir-lhes, mas apenas nos enganamos a nós próprios.

Vamos neste artigo procurar que a narrativa de nós nos ajude a perceber como nos fomos construindo profissionalmente, através de um olhar mais personalizado, tentando que o eu e o Eu do poema se tornem coincidentes e consistentes.

Optamos por partir de um problema central: como construímos, narrativamente, o nosso processo de desenvolvimento profissional? E desenhamos, com base nele, duas questões de investigação:

1) Que momentos marcantes identificamos na nossa vida profissional?
2) Como descrevemos esses momentos e como explicamos teoricamente a sua influência no nosso desenvolvimento profissional?

Na idéia da curvatura de espaço-tempo, em "que o espaço e o tempo interagem e são relativos um ao outro e que o espaço é curvo" (Elbaz-Luwisch, 2002: 25), se harmoniza nosso "desejo narrativo" neste trabalho. Queremos poder revisitar um tempo passado de nossas vidas e, ao recontá-lo, potencializar novos significados do nosso presente e perspectivar a construção do devir, em consonância com a forma como Cavaco (1991: 157) vislumbra esse movimento no meio físico e social.

"Num universo saturado de informação tecem-se as palavras e os factos, as regras e os usos, os implícitos e os explícitos, em processos de fluidez movediça, reveladora do jogo das forças contrastantes. O sentido das coisas torna-se difuso e, todavia, em cada um de nós coexistem, em cada momento, memórias do passado e expectativas de futuro que se combinam na forma como vivemos o presente e contribuímos para o modelar, projetando-o no devir."

Do mesmo modo, desejamos curvar o espaço guiando reflexões que poderão dar novas direções aos conhecimentos no campo da formação de professores e de pesquisadores na educação científica.

Tentaremos, a partir dos momentos que identificamos como marcantes e que nos permitem fazer um balanço retrospectivo, isto é, olhar para o caminho percorrido, para os acontecimentos, as situações, as atividades, as pessoas com significado, perceber:

"os recursos, os projetos, os desejos que são portadores de futuro. No passado não há somente as coisas que ocorreram, há também todo o potencial que cada indivíduo tem para prosseguir a sua existência de futuro." (Josso, 2004a: 16)

O querer da caminhada é guia pela grafia da memória

A própria construção da metodologia de investigação se constitui em uma narrativa, na medida em que não se pode dissociar a fase de recolha de dados dos percursos singulares que foram sendo construídos por nós, investigadoras, no entrecruzamento de nossas histórias de professoras e formadoras de professores e pesquisadores. Ou seja, são duas histórias com começo, meio e fim, que dialogaram para a sua construção.

O início: reconhecimento da empatia para desnudar

Como é natural da vida social dos seres humanos, procuram-se permanentemente situações de estabilidade para manutenção do eu. Dependendo da posição que se ocupa na profissão, impõem-se níveis de exigências mais ou menos elevados em relação à preservação de identidade profissional. Via de regra, na academia a exigência e a inflexibilidade estão colocadas em patamares muito elevados. Dessa forma, a entrega para elaborar nossas próprias narrativas, neste trabalho, não esteve alheia a esse tipo de resistência devido à personalidade, como caracteriza Huberman (1973), uma vez que as nossas imagens pessoais e profissionais poderiam estar em jogo.

Acreditamos que esta perspectiva foi se despontando depois que farejamos e reconhecemos pontos de confluência em nossas maneiras de ser e estar na vida e em nossas trajetórias pessoais. Apesar das diferenças, inclusive de pátrias (Brasil e Portugal), a identificação de inúmeras similaridades permitiu a aproximação por indicar possibilidades de compreensão.

De forma natural, o projeto deste artigo nasce ao mesmo tempo em que incorríamos na etapa do discurso. Era o início de um percurso metodológico para a construção das narrativas em que "a forma oral é importante, pois a memória não funciona num ápice, é necessário criar condições que facilitem a rememorização da sua história" (Josso, 2004b). O "desejo narrativo" foi ativado de forma intensa e logo seus primeiros traços figuravam no papel.

 

Cartografias das Narrativas: os primeiros esboços

Traçando suas escritas...

Uma de nós sentiu necessidade de realizar a narrativa sem interrupção, sem parada, e nessa retrospectiva a narrativa surge como uma catarse constantemente "interrompida" para dar lugar à objetivação. Os fatos da sua história de vida foram ordenados temporalmente e dispostos numa seqüência classificatória de acordo com a expressão máxima de sua relação com os momentos considerados por si como charneiras. Assim, foram dispostos em fila seus antecedentes e suas conseqüências, colocados ali de forma apressada e apertada, quase "pisando os calcanhares uns dos outros".

Para outra de nós, ao começar, a escrita desperta o sabor que a ela lhe é peculiar. Pouco a pouco, lentamente, aquecendo a memória, as reminiscências vão tomando conta de si e ganhando dimensão própria, impassíveis ao controlo. Os acontecimentos, ainda com lugar no tempo, andam errantes. E como que suspensos no ar, sem lacunas, os fatos são detalhados pelo prazer de reviver cada espaço, cada canto, cada cheiro, cada sabor; é a delícia de ser a si reinventada numa escrita livre e marota trazendo para fora o seu lado mais alegre da infância.

Apesar das diferenças culturais, o resultado dessas narrativas foi o mesmo observado por Sousa (2005: 105):

"[...] quando homens e mulheres professores narram suas histórias de vida e de formação observa-se que, em maior ou menor grau, elas estão articuladas à família, à escola, aos grupos de convívio, que funcionam como espaços de construção e de reprodução de padrões socialmente aceitos de feminilidade e masculinidade."

Ao evocarem as memórias nos territórios escolar e familiar, os acontecimentos emergiram e fizeram novamente história. E a força e o poder das palavras escritas fizeram "coisas conosco" e nos colocaram novamente "diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos" (Larrosa, 2002: 21).

Elaborando suas leituras...

Nós, interlocutoras primárias dessas narrativas, trocamos os olhares, os pedaços de vida não revelados. Ao mesmo tempo em que a leitura e releitura evocavam em cada uma nova profusão de acontecimentos, aqueles que foram colocados de lado não por serem menos marcantes, mas por ficarem algures sem sabermos, por ora, os porquês, os significados e os significantes do conteúdo foram intensamente compartilhados. Os focos foram para as diferenças, mas, principalmente, para as similaridades que ajudaram a consolidar a confiança.

Para nós, esta fase funcionou como uma transferência simbólica do processo psicanalítico (Villani, 1999). Uma espécie de ajuste inicial em que aspectos simultaneamente cognitivos e subjetivos entram em jogo. Acreditar que o Outro tem escopo e saber para ajudar e orientar-nos no encontro de nós mesmas foi fundamental para a entrada e a manutenção neste processo quase analítico, mesmo que sustentadas por esta passageira, mas necessária, ilusão.

Desse encontro das leituras, surgem movimentos para inclusões dos acontecimentos. Devemos continuar ou paramos onde estamos? Quais as implicações num e noutro caso? O que interessa para uma pesquisa científica? Interromper o desejo e a necessidade de falar sobre si é lícito na perspectiva adotada da indissociabilidade entre a pessoa e o professor?

Com o apoio advindo do discurso de autoridade, especificamente em Bakhtin (1981), verificamos que as autobiografias ao longo da história da civilização traçam uma tipologia e esta se relaciona com o conceito de público e privado, realidade interior e exterior versus indissociação do campo visível e invisível, esferas do silêncio e da exposição do discurso.

As autobiografias platônicas envolvem uma autoconsciência individual relacionada com as formas estritas de metamorfose. No seu íntimo, está o "curso da vida à procura do verdadeiro conhecimento" (Bakhtin, 1981: 130). Nelas, a vida aparece partida em épocas ou degraus bem demarcados. Vai da ignorância autoconvencida, passa pelo cepticismo autocrítico, por autoconhecimento e, finalmente, por conhecimento autêntico. No esquema platônico, há um momento de crise e de renascimento como um ponto de viragem no curso da vida.

As autobiografias retóricas, desde os primórdios da escrita nos gregos clássicos, são determinadas por acontecimentos; relatos de atos de natureza cívica ou política ou mesmo relatos de seres humanos quando estes dão visibilidade a acontecimentos vividos. Diferentemente, "o mais importante não é o tempo e o espaço da vida representada, mas é o exterior real no qual a representação de alguém ou da vida de alguém é realizada através da narrativa verbal de um ato cívico ou político ou através do relato do self" (Bakhtin, 1981: 131). Este tipo de autobiografia é de uma época em que o privado não existia, tudo era público, nada era secreto, tudo era submetido ao controle público e do estado e era avaliado publicamente. Não havia diferença entre o ponto de vista biográfico e autobiográfico.

Na era Helênica e Romana, alguns retóricos puseram a questão: é permitido um relato do próprio eu? A resposta positiva dirigiu-se para a imagem que os gregos clássicos tinham da existência humana e das coisas e nesta não havia o conhecimento de uma realidade invisível, portanto, "a unidade da totalidade externalizada do homem era de natureza pública" (Bakhtin, 1981: 135). Nas épocas seguintes, a imagem do homem foi distorcida pelo aumento de participação nas esferas mudas e invisíveis da existência. E com elas veio a solidão. O pessoal e dividido ser humano perdeu a unidade e totalidade que tinha sido um produto de origem pública, tornou-se abstrato e idealista. Um vasto número de novas esferas de consciência e de objetos apareceu na vida privada do indivíduo, esferas essas que, em geral, não eram tornadas públicas (a sexual e outras).

Nos dias atuais, portanto, num contexto novo, as escritas personalizadas que refletem a influência do esquema platônico incorporam um novo objetivo. Recentemente, o que obtemos no inventário de uma pessoa é a exposição dos seus acontecimentos, o registro dos seus sucessos, com um comentário autobiográfico público. É a seqüência da obra própria pelo próprio que fornece o sólido suporte para se compreender a passagem do tempo numa vida. A objetivação da narrativa autobiográfica dá-se a partir da seqüência crítica marcante na continuidade da vida relatada. A consciência do eu nesse contexto é revelada apenas para um círculo restrito de leitores (no nosso caso, a academia), a biografia é construída para eles, havendo aqui a noção de público, embora numa dimensão menor (Bakhtin, 1981: 139).

Desse diálogo, algumas respostas provisórias foram construídas para definir esta etapa da pesquisa. Entendemos que, na narrativa, a catarse pessoal é um fenômeno naturalmente humano, ou seja, dependendo da pessoa e do contexto, ele ocorre com maior ou menor exposição do eu. Esta não deve ser evitada, mas orientada definindo os seus contornos dentro do campo científico. Não significa sua castração, muito pelo contrário, abre e aponta perspectivas de construção de outros espaços para sua vazão (social, psicanalítico, autoconhecimento, entre outros). Dessa forma, nossa resposta sobre a continuidade ou não da narrativa caminhou na direção do que consideramos necessário para a explicitação do pensamento dos professores sobre a construção do processo de identidade de modo a fornecer pistas significativas para a compreensão da cognição situada (Roth, 2004). Imbricando o processo de construção das narrativas pessoais com os movimentos iniciais de (de)formação de olhares na investigação, de modo a construir um outro campo de significações, o científico, orientamos a memória das narrativas para preencher os espaços lacunares necessários a esse campo.

 

Dar significado ao conteúdo discursivo no campo da ciência

Na perspectiva de Wenger (1998) de que as comunidades de prática são caracterizadas como histórias partilhadas de aprendizagem em que construir uma identidade significa negociar os significados da nossa experiência como membros de comunidades sociais, entendemos que falar de identidade em termos sociais não é negar a individualidade, mas ver a individualidade como fazendo parte de práticas de comunidades específicas. Na vida do dia-a-dia, é difícil dizer com exatidão onde acaba a esfera individual e começa a coletiva. As nossas práticas, linguagens, artefatos e pontos de vista refletem as nossas relações sociais. Até os pensamentos mais privados fazem usos de conceitos, imagens e perspectivas que compreendemos através da nossa participação em comunidades sociais. A identidade na prática é definida socialmente, não só porque está reificada num discurso social do eu e num discurso de categorias sociais, mas também porque é produzida como uma experiência vivida de participação em comunidades específicas. Uma identidade é uma classe de acontecimentos de participação e de reificação através dos quais a nossa experiência e a sua interpretação social se constroem mutuamente. "Sabemos quem somos através do que é familiar, compreensível, usável e negociável; sabemos quem não somos pelo que é estranho, opaco, inutilizável e improdutivo" (Wenger, 1998: 153).

Numa primeira interpretação, a dialogicidade dos textos indica, de maneira global, que as histórias apresentam momentos por vezes relacionados aos espaços da historiografia, do entrecruzamento cultural, quiçá da evolução das civilizações. Encontramos tempos marcados pelas idéias, filosofias, políticas locais e globais.

Numa classificação tipológica, as narrativas neste trabalho aproximam-se do esboço platônico, em que a exposição dos acontecimentos da vida aparece partida em épocas bem demarcadas por pontos de mudanças identificadas por uma análise autobiográfica pública. Ou seja, não só encontramos episódios que indicam o que pensamos que somos ou dizemos acerca de nós, como também o que os outros pensam ou dizem que somos. Percebemos as esferas mudas e invisíveis da vida privada que, em geral, não são tornadas públicas, ao mesmo tempo em que observamos uma tentativa de recriar a totalidade e exterioridade da existência.

Para Wenger, à medida que crescemos através de uma sucessão de formas de participação na sociedade, as nossas identidades formam trajetórias. Trajetória é um movimento contínuo em que se interpõem os acontecimentos próprios e os de conjunto, produzidos num campo de influências, o qual se delineia numa linha de coerência que liga o passado, o presente e o futuro. Para sua definição, esse autor parte da idéia de que a construção da identidade é um processo que se dá em contextos sociais nos quais ela vai sendo definida pelas interações de múltiplas trajetórias convergentes e divergentes e nesse percurso a temporalidade é fundamental e muito mais complexa do que a simples noção linear de tempo. Para Wenger (1998: 155), as trajetórias podem ser classificadas em:

i) periféricas - caminhos que não levam à participação total;
ii) de entrada - início a novos percursos;
iii) interiores - a evolução da prática continua através de novos acontecimentos, pedidos, invenções, novas gerações, criando ocasiões para renegociar a sua identidade e a dos outros;
iv) de fronteira - algumas trajetórias encontram o seu valor tecendo fronteiras em seus próprios percursos e ligando comunidades de prática;
v) de saída - conduzem para fora da comunidade;
vi) paradigmáticas - fornecidas aos novatos pelos pares mais experientes; a sua comunidade, a sua história e a sua evolução configuram as trajetórias que constroem. São testemunhas vivas do que é possível, do que é esperado e desejável.

Numa análise mais focada nos momentos de crise e de renascimento, nos pontos de viragem no curso da vida encontramos algumas trajetórias que, tendo em vista seu conteúdo, poderiam significar momentos de risco para a evolução de uma identidade profissional.

Em ambas as narrativas, a visão da passagem de uma fronteira para outra parece corroborar a tese rousseauniana de que a infância é para ser passada no seio familiar e que a escola constituir-se-ia num perigo para a libertação das crianças face às restrições das normas e das regras.

"Antes da obrigação da escola, sem pressas, num tempo de férias contínuas, assim se iam tecendo os dias nessa outra escola de avós e de velhos, de muitas crianças e animais. A natureza plena onde, de pés nus sujos de terra e erva, corria horta fora, abraçando árvores e sonhos, inventando vidas." (Formadora A - grifo dela)

"...ir para a escola significou, no primeiro momento, uma "intervenção perigosa", que punha em risco a relação familiar. Uma relação marcada por um sentimento de medo pelo afastamento das pessoas queridas. A imagem da escola era angustiante." (Formadora B - grifo dela)

Percebemos nas narrativas que as trajetórias de entrada no universo da escola pelo papel de alunas deram-se tanto pela transformação da inclinação natural da infância de experimentar as coisas da vida contemplando a natureza de forma solitária como pela percepção de ruptura com os laços afetivos do convívio familiar.

Entretanto, ainda nessa trajetória, o papel da escola ganha contornos significativos. Na linha do pensamento de Dewey e Piaget sobre a importância que assume a escola na construção de um espaço em que as crianças possam desenvolver, ao seu ritmo, a sua aprendizagem, tem-se uma significação desenvolvida a partir das correlações entre o papel da família e o da escola.

"Quando busco rememorar esta fase, duas imagens são fortes: a imagem da pessoa terna e maternal da minha primeira professora e de sua relação de presença com os seus alunos e a imagem do meu jogo de aluna-filha que impunha tacitamente regalias concedidas pela professora para desempenhar o seu papel em algumas ocasiões, privilegiadamente naquelas em que exercia controle, como, por exemplo, verificar as tarefas feitas pelos alunos (colegas da sala) passando visto em seus cadernos. Hoje, penso que essa explicação que construí muito mais tarde pode acobertar outras razões de busca. Da família queria o limite e da escola, a liberdade." (Formadora B - grifo dela)

Em outra narrativa, o fato de a família já ter significação sobre a aprendizagem faz com que a ressignificação se dê pela clarificação da distinção dos objetivos entre a primeira escola (família) e a segunda escola (instituição escolar).

"Quando entrei para a escola na cidade, a aldeia ficou intermitente na minha vida, em que as férias recriavam todas as vivências anteriores. Passei a olhar à volta de outra maneira, a compreender um pouco mais os acontecimentos e a espantar-me por nunca ter notado antes certas ocorrências. Notei como as pessoas pareciam precocemente envelhecidas, como as crianças estavam persistentemente com feridas nas pernas e nos braços, fruto de picadas de insetos, coçadas e não desinfectadas. Incomodava-me o facto de as pessoas não dizerem bem as palavras, "mãos" eram transformadas em "mãs", algumas terminações das palavras não existiam e havia frases e palavras que, por vezes, não entendia por estarem tão deturpadas como a pergunta "aonde vandas?" corruptela de "onde é que vocês vão?" Foi a constatação de que afinal eu não aprendia tudo ali, havia a escola que me ensinava melhor algumas coisas como a fala e a escrita." (Formadora A - grifo dela)

Alguns acontecimentos das narrativas apontam para a constituição da memória coletiva e nesta evidenciam-se alguns acontecimentos que marcam épocas históricas da educação em vários contextos políticos, econômicos e culturais, trazendo à tona o que Charlot (2005) chama de os universais das situações de ensino. Nos dois contextos, temos:

"A imagem é de escola "cinzenta" e castigadora, formadora de espíritos obedientes e sem opinião, modelo de uma época fascizante para quem a educação era uma ameaça. Associo sempre medo ao dia-a-dia, da professora que podia bater, do teste que viria negativo, da matéria que não tinha compreendido, do exame que não me deixaria passar, do que dizer aos meus pais para não os magoar ou defraudar nas suas expectativas." (Formadora A - grifo dela)

"Uma professora temida por todos pela sua relação distante e extremamente rigorosa com os alunos. Desta fase tenho poucas lembranças, mas quando busco evocar, uma me ocorre sempre, que é a de uma professora gordinha, com cara de brava e com expressão tensa de quem está com medo. Lembro-me do dia em que ela bateu com a régua na minha carteira. Era costume fazer em situações de desagrado, batendo, por vezes, na mão ou cabeça dos alunos. Não me recordo de sentir medo, muito pelo contrário, encontro, na escola, o sentimento de indiferença na relação interpessoal, e este não me afetou, nem para calar, nem para bradar." (Formadora B - grifo dela)

Para essas formadoras, a imagem de uma escola fria e de uma professora hostil não teve força para configurar o que Wenger define como trajetórias de saídas. Ou seja, para conduzi-las para fora da comunidade escolar. Contrariamente, como vemos abaixo na narrativa da Formadora B, a sua ligação com a figura materna e as práticas de representação de papéis sociais vivenciadas por ela na infância e apoiadas pelos familiares constituíram-se como trajetórias de fronteiras que acalentaram um desejo crescente pela participação na comunidade escolar, não no papel de aluna, mas sim no de professora.

"[...] elegi como brincadeiras preferidas as de mãe e de professora [...] Tinha o maior prazer em cuidar da minha imagem pessoal ao encarnar a personagem de professora e talvez essa influência tenha vindo da minha mãe, que era uma mulher vaidosa e elegante (...) Por volta dos 10 anos, quando já me sentia envergonhada com os olhares dos outros e quando já não queria mais ser alvo das atenções, é que percebi que o que era no início uma representação, uma brincadeira, tinha se tornado um método de estudo, ou seja, já não conseguia estudar se não fosse dessa forma, ensinando [...] Mais tarde, com 13 anos, essa forma foi transferida para o estudo em grupo. Assim, sempre que possível, eu estudava com os colegas dissertando sobre o que tínhamos aprendido." (Formadora B - grifo dela)

No caso da Formadora B, em que a família e a escola constituem trajetórias de fronteira para a sua inclusão e pertencimento ao mundo intelectual e educacional, vemos que alguns acontecimentos promovidos pelos pais são potencializados pelas ações de alguns dos professores. Conforme excertos de sua narrativa, podemos dizer que essa amplificação de ações tenha, inclusive, definido mais tarde a sua opção pela área Ciências Naturais.

"[...] professor de Ciências que considero uma referência importante, por ter contribuído com a minha mudança na forma de conceber a metodologia de ensino. [...] uma professora de Biologia que [...] todos nós gostamos do seu método de aula. Além disso, admirávamos a sua competência intelectual. [...] professor de Química fantástico [...] muito respeitado pela comunidade escolar por sua competência. De suas características abstraí sua paixão pela Química (área de conhecimento) e respeito e valorização pela profissão professor. [...] Foi a partir daí que comecei a traçar uma meta profissional: queria ser cientista. Nesse ponto, fui bastante estimulada pelo meu pai, que comprava para mim os Kits "Pequenos Cientistas" [...]." (Formadora B - grifo dela)

As narrativas autobiográficas trazem em sua elaboração pessoal o sentido idiossincrático das experiências de vida e fazem emergir os processos identitários da inserção dos sujeitos nos grupos sociais. As memórias-denúncias apontam a existência de tempos em que a escola se alinha aos preceitos de uma política ditatorial e reclamam por resistências.

"Houve, no entanto, um episódio que foi, talvez, o que mais contribuiu para uma viragem no modo como passei a encarar a minha relação com a vida, isto é, intervindo mais nos acontecimentos do que esperando que acontecessem para depois reagir. Estava no último ano do curso [secundário], conseguira ir a exame a todas as disciplinas com boas notas excepto a Físico-Química, porque as aulas eram de molde a que não conseguíssemos acompanhar a matéria. [...] No dia da oral, lá estava ela, presidente de júri, imponente e de cara fechada. Senti um vómito a acompanhar o medo e olhei para as caras pálidas das outras alunas e sabia que eram o espelho da minha. A oral correu bem [...] No fim todos os que assistiam me deram os parabéns, incluindo a minha professora de física do ano anterior. [...] Quando a pauta da oral saiu, à frente do meu nome havia uma palavra escrita a vermelho que eu não conseguia ler pela impossibilidade que o meu cérebro estabelecia [...] eu tinha reprovado no exame. Olhei para a cara triste dos meus pais e a rapariga tímida que corava quando os professores se lhe dirigiam acabou ali. Corri em direcção à sala dos professores, e com o magote de colegas e familiares atrás, abri a porta, enfrentei a professora e perguntei aos gritos "Por que é que reprovei?" "Quais as questões a que não respondi?" "Exijo uma resposta!" [...] Talvez de todo o episódio o que mais me marcou foi a solidariedade de todas as pessoas presentes, a maior parte eu desconhecia por serem familiares de alunas, oferecendo-se para testemunhas de um processo em tribunal. Estávamos em 1973, vivíamos tempos de grande repressão, o meu pai era militar e desaconselhou a queixa. O sentimento de injustiça foi tão forte que a certeza da minha razão fez-me crescer e não me incomodar com a reprovação. [...] É provável que este acontecimento tivesse mudado o meu futuro, se, por acaso, se pode falar assim. [...] Foi um ano em que comecei a dar explicações de todas as matérias aos vizinhos, a preços baratíssimos, mas que me permitiram perceber o valor de ganhar o meu próprio dinheiro e constatar que gostava de explicar os assuntos e de ver como aquelas crianças ultrapassavam as dificuldades." (Formadora A - grifo dela)

Esse trecho da narrativa, como diz Larrosa (1999:15), indica que muitas vezes a educação é o lugar de realização do projeto que o educador tem sobre o educando, mas também é o lugar em que o educando resiste a este projeto, afirmando sua alteridade, afirmando-se como alguém que não se deixa reduzir aos modos como ele o vê, como alguém que não aceita a medida do seu saber, do seu poder.

Outros momentos das narrativas apontam para as trajetórias paradigmáticas (Wenger, 1998), nas quais elementos constitutivos da identidade profissional vão ganhando força e significado no contato com os membros mais experientes da comunidade.

No caso da Formadora A, vemos que a sua interação com o pensamento de autores, pelo ato da leitura, é o mote para a construção da sua identidade com o campo intelectual: "descobrir que os livros continuavam o meu mundo com o qual me relacionava imediatamente foi outra conquista, abrindo-me novas perspectivas de viver, como se eu me desdobrasse noutras pessoas"; e a envolve profunda e empaticamente nessa esfera coletiva, dando-lhe o sentido de pertencimento a essa comunidade. Mais tarde, na entrada à Faculdade, a evolução dessa prática (trajetórias interiores) se dá com o advento de novos acontecimentos.

"A faculdade constituiu uma mudança total na minha vida. A autonomia, que já iniciara no serviço cívico, expandiu-se ao longo desses anos, [...]. A consciência social desenvolveu-se com as leituras de livros revolucionários, proibidos anteriormente (encontrei-me, por vezes, em círculos de amigos a discutir o materialismo dialéctico), com a participação em reuniões de alunos para se organizar a defesa de posições que se apresentariam nos órgãos de gestão da faculdade, com a identificação com movimentos, fosse de libertação de povos ou de defesa ambiental ou de animais em risco de extinção. Lutava-se muito, reivindicava-se ainda mais e aprendia-se a argumentar nas múltiplas reuniões, organizadas como assembleias de debates organizados." (Formadora A - grifo dela)

Concordamos com Chaves (2006: 166) que, como professoras:

"somos definitivamente marcadas pela instituição escola. Nela forjamos parte importante de nossa subjetividade e ali entramos em contato com modelos com base nos quais vamos instituir, criar, fundar nossa identidade profissional."

Numa pesquisa comparativa sobre narrativas autobiográficas de professores universitários, Sousa (2006) verifica que quando os docentes narram suas histórias de formação, tal como essas nossas narrativas, elas estão articuladas à família, à escola, aos grupos de convívios e suas sínteses apresentam seleções, omissões, preferências de determinados aspectos e que delas resultam uma série de questionamentos que vão fazendo ao longo de suas vidas.

Igualmente em nossas narrativas, para a fase de formação na Universidade foram deixadas poucas palavras, apenas para pontuar brevemente um período marcado por revoluções pessoais, novas aprendizagens, opções temporárias e instáveis e perguntas que ainda permanecem, já que para elas não bastam explicações do presente.

"Da época da Universidade a verdadeira revolução foi sair de casa, mudar de cidade e viver entre grupos bastante heterogêneos. Esse foi o maior desafio. Das disciplinas lembro que a cada semestre fazia escolhas temporárias em busca de novas descobertas: Botânica, pelas aulas de laboratório; Zoologia, pelos estudos de campo, especialmente as aulas de Biologia Marinha; Imunologia, pela perfeição metabólica; Ecologia, pelas interações e conexões complexas... Das disciplinas da licenciatura não me lembro de nenhuma." (Formadora B - grifo dela)

"As disciplinas consideradas pela maioria dos alunos como difíceis, como as matemáticas e as múltiplas Físicas e Químicas, constituíram desafios que ultrapassei com gosto e boas notas. Isso levanta-me uma questão a que não consigo dar resposta: seriam os conhecimentos base que já tinha adquirido antes, mesmo que não tivessem sido valorizados pelo sistema de avaliação do secundário, os responsáveis por esse sucesso? Ou seria antes o sentir que aquele era o curso com o qual me identificava, em que a natureza assumia um papel preponderante, trazida nas disciplinas de Zoologia, Botânica, Fisiologias, Ecologia ou Antropologia, por exemplo, e, por isso, tudo era estudado com determinação e vontade de saber?" (Formadora A - grifo dela)

No entanto, para uma de nós "um acontecimento trágico, que constituiu também um momento de viragem no (...) seu percurso, aparentemente, linear" colocou-a em contato com a sala de aula ainda durante sua formação.

"Em Março, estávamos em 1978, houve um enorme incêndio e a faculdade ardeu em parte. Foi um desnorte total para alunos e professores e foi urgente encontrar um espaço onde se pudesse terminar o ano lectivo. Fomos colocados em instalações do ministério da educação [...], edifício de escritórios, convertido à pressa para albergar estudantes e professores, habituados a anfiteatros amplos, laboratórios e espaço ao ar livre. Não me adaptei e a faculdade perdeu o encanto. Ao mesmo tempo, continuava a dar explicações à vizinhança e soube através de um aluno que a escola estava a pedir um substituto de uma professora em licença de parto. E se eu tentasse? Tentei, fiquei não como substituta, mas ocupando um horário legítimo, completo com 5 turmas de 8º ano e 4 turmas de 9º." (Formadora A - grifo dela)

A Formadora B começou sua carreira depois de licenciada, mas o fez dividindo espaço com um estágio científico no laboratório de Liminologia na universidade. Para ela, que durante a infância brincou de ser professora e que idealizou ser cientista quando adulta, os dois mundos seguiam, nesse momento inicial, sem se constituírem em trajetórias de fronteira, ou seja, sem ligações entre as comunidades de práticas. Assim, enquanto "o estágio não era muito atraente, pois tratava de taxonomia do zooplâncton. Era um trabalho cansativo e muito isolado [...] as aulas... estas sim eram emocionantes. Cada dia uma descoberta nova. Ao mesmo tempo em que descobria sobre os alunos, o funcionamento da escola, desvendava as minhas reações, minha maneira de ser... e também passei a ver o conteúdo de Ciências de um outro ângulo". No entanto, um episódio de aula constituiu-se num evento marcante que a colocou para dentro da profissão de forma definitiva.

"Com aquela turma da 7ª série sentia-me muito insegura e a cada dia testava diferentes manejos em sala de aula. Como é de praxe numa escola particular, as regras são criadas pela direção e a nós só resta cumpri-las. Estávamos numa época em que a "chamada" (controle de presença dos alunos) não deveria ser feita no início da aula. Um belo dia, quando entrei na sala da 7ª série, os alunos estavam extremamente agitados, então, resolvi começar pela chamada com o intuito de dar-lhes um tempo para se acomodarem. O coordenador, que costumava fazer a ronda pelo corredor olhando através das janelas, me viu desobedecendo a uma ordem sua. Entrou abrupta e furiosamente na sala e me repreendeu na frente de todos. Não esqueço o olhar dos meus alunos assistindo publicamente à minha derrota como professora. A situação naquele exato momento se constituiu como vida ou morte naquela profissão... Desafiei o coordenador: olhei para ele, olhei para os alunos, empinei o tronco e continuei a chamada em voz bem alta. Esta foi a virada! A partir desse dia, os alunos passaram a me ver de outra forma. Melhor: começaram a prestar atenção em mim. A partir desse momento, senti que tinha entrado efetivamente na profissão pela porta da escola." (Formadora B - grifo dela)

Muitos foram os momentos charneiras, descritos nas duas narrativas, mas os apontados acima se constituem em divisor de águas para quem faz uma formação híbrida. Ou seja, o percurso da formação de professores na área de Ciências Naturais, em geral, é marcado pela sedução inicial dos futuros professores com os discursos e as práticas profissionais das culturas científicas específicas em detrimento dos das ciências humanas.

Só muito mais tarde, quase ao final do curso, ou mesmo no início da carreira, se defrontam com a necessidade de se posicionarem em relação aos saberes da docência e optarem pelo seu exercício. A partir desse momento, suas narrativas são marcadas por acontecimentos que levam a trajetórias interiores, determinando suas escolhas ao longo do caminho para o desenvolvimento profissional.

"Este foi outro salto na minha autonomia, agora com plena independência financeira, diploma académico e estatuto profissional completo. A novidade foi integrar o conselho directivo da escola e passar a analisá-la do lado de quem manda, de quem se preocupa com as regras e que tem de, além de dar o exemplo, castigar quem as não cumpre. Missão pouco compatível com os meus 25 anos, de aparência de muito menos, para ter credibilidade. Mas foi um ano bem sucedido, cheio de peripécias e algumas incompatibilidades com interesses instalados, como o de ter de proibir antigos professores de continuarem a ir à escola tirar fotocópias sem pagar, ou de fechar material de limpeza à chave para que um antigo funcionário não os fizesse desaparecer para uso próprio. Estas decisões foram tomadas sempre em equipa de gestão, mas como o presidente era da terra, um dos elementos era provisório e eu era a efectiva e, portanto, com responsabilidade profissional e, ainda por cima, de Lisboa, era o alvo da inimizade. Mas, genericamente, fizemos uma boa gestão e eu aprendi imenso sobre esse outro lado da profissão de professor." (Formadora A - grifo dela)

Os primeiros estudos sobre o ciclo de vida ou desenvolvimento profissional dos professores juntamente com o interesse pelo estudo biográfico avançam a partir da década de oitenta, indicando que a vida profissional dos professores é marcada por fases e ciclos. Huberman (1995) delimitou uma série de "seqüências ou de maxiciclos" que atravessam as carreiras das pessoas dentro de uma mesma profissão. No início da carreira docente, por exemplo, tal como em nossas narrativas, verificamos a fase de "exploração", marcada por escolhas provisórias e pela experimentação de papéis, e a fase de "estabilização", assinalada pelo compromisso e pela aquisição de papéis e responsabilidades de maior importância ou prestígio. A evolução de uma fase a outra só foi possível pelo fato de a fase de exploração ter sido bem sucedida, tal como nos ocorreu.

"Foi um deslumbramento, foi o encontrar do meu palco, uma sala de aula funcionou como a oportunidade de gerir as matérias com as quais me identificava bem, de poder explicar os assuntos que tinha mesmo acabado de estudar, de partilhar ideias e experiências, de cativar, de seduzir! Não sei de que gostava mais, se dos alunos que mostravam que gostavam de mim, se de explicar os assuntos, se de preparar as aulas e estudar as matérias, se falar da escola em casa." (Formadora A - grifo dela)

"Essa forma de entrar na profissão aceitando o desafio e saboreando resultados conquistados foi extremamente importante para delinear minha forma de estar na profissão [...]. Pouco a pouco o retorno do aluno acarinhava a auto-estima, o autocontrole e autoconceito pessoal/profissional. [...] Os alunos, em sua maioria, me consideravam como uma professora competente, uma pessoa compreensiva e envolvente que os estimulava para o estudo..." (Formadora B - grifo dela)

Para Huberman (1995: 40) a fase de "estabilização" na profissão é marcada pelas escolhas subjetivas e pela admissão oficial ao sistema de ensino. "Num dado momento, as pessoas passam a ser professor, quer aos seus olhos, quer aos olhos dos outros (...)". E a opção por permanecer na profissão requer escolha por uma identidade profissional e, ao mesmo tempo, renúncia ao apelo constante de outras orientações. Os estudos indicam que essa fase é acompanhada por um "sentimento de competência pedagógica crescente", como também observamos em nossas narrativas.

Para esse autor, os percursos individuais do desenvolvimento profissional na sua fase subseqüente (fase de "diversificação") parecem divergir. No entanto, em nossas narrativas, a entrada na pós-graduação direciona para a consolidação pedagógica e inclusão da dimensão da pesquisa para ajudar nos questionamentos sobre seus saberes e suas práticas na docência.

"O meu melhor ganho com o mestrado foi ter tempo para estudar e pensar [...]. Os grandes pedagogos, as reflexões sobre o significado das estratégias de ensino, múltiplas experiências pedagógicas descritas e analisadas, em que a Psicologia e a Sociologia assumiam um carácter preponderante, estava tudo lá. As aulas, nem sempre interessantes, pontualmente desafiadoras, iam abrindo algumas perspectivas. Mas paralelamente com o tempo, outra dimensão que sobressai é a investigação sobre a escola." (Formadora A - grifo dela)

"O que eu buscava era o encontro de novidades para atuar no ensino [...]. O mestrado foi uma fase de identificação com o discurso na área de educação." (Formadora A - grifo dela)

Um patamar da consolidação profissional se deu nas primeiras experiências como formadoras de professores. Nas narrativas, evidencia-se que a partir desse momento em suas carreiras a identificação social com a profissão de professor assume sínteses pessoais. Parafraseando-as, tem-se para a Formadora A que entrar como professora para a faculdade a fez ver a escola e o seu próprio desenvolvimento profissional de uma nova maneira. Dos anos como docente universitária não encontrou um só ano que não tenha sido rico em termos de experiências profissionais. Desde os primeiros anos, a intensidade das trocas intelectuais e a azáfama que a relação professor-aprendizagem-aluno implica mantêm-se. Nesse percurso, ganhou a serenidade e os conhecimentos para tirar partido de todas as situações, mesmo as mais adversas. Do mesmo modo, o desempenho de tarefas variadas ligadas à vida acadêmica, como a participação em diversos órgãos de gestão, a tem ajudado a criar uma vinculação indissociável com a profissão. Ao longo do tempo, nas múltiplas entradas que foi fazendo, como aluna, como professora, como investigadora e como formadora de professores, foi criando laços com a escola. Sempre lá esteve. Aprendeu a olhá-la de diferentes maneiras e o que procurava sem perder nenhuma perspectiva de vista, pois acredita que só assim se cria a verdadeira empatia com os outros, com as situações e os problemas. E que, nos momentos de descrédito, é preciso encontrar a motivação e as razões para se continuar. E recomeçar sempre, mesmo que seja noutro lugar.

Para a Formadora B a experiência na disciplina de Prática de Ensino em Biologia e Prática de Ensino em Ciências revelou-se marcante para o seu desenvolvimento profissional. Acompanhar as aulas dos seus alunos no estágio lhe permitiu balizar suas competências e habilidades no ensino. A entrada no mundo da pesquisa por meio de ações de intervenção na própria prática docente ajudou-a a refletir sobre o próprio processo de aprendizagem e, ao mesmo tempo, a utilizar melhor as ferramentas teórico-metodológicas para analisar e compreender a nuances dos processos de ensino e de aprendizagem. Esses processos possibilitaram, ao longo do seu desenvolvimento profissional, tornar consciente sua ação de ensino, ajustando aos aspectos cognitivos do processo os elementos subjetivos considerados preciosos, como por exemplo, a dose de intuição que orienta a sua prática pedagógica.

Uma síntese

Contrariamente a Clarice Lispector, o processo de construção de nossas narrativas e sua posterior análise nos permitiu ressignificar e reinterpretar os olhares que temos de nós mesmas e de nossa identidade como professoras, pondo em evidência outras emoções e razões as quais antes não tínhamos percebido.

Neste percurso estivemos refazendo a nossa existência, pois como diz Paulo Freire (1987: 78): "Existir humanamente é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar". Nos diferentes patamares da interpretação narrativa, as vidas vão-se reconstruindo em círculos cada vez mais complexos, fechando tempos e abrindo novas perspectivas. Onde ficam as pessoas e as suas identidades, despidas e revestidas de novas camadas? Onde ficamos nós, narradoras e ouvintes? Nos olhares externos, públicos, ou no circuito interno, privado, que criamos para nós próprias, pronunciando-nos sucessivamente? Talvez este duplo olhar permita uma melhor compreensão do significado do que realizamos, constituindo-se a narrativa, a que aqui deixamos, como a mediação de um e de outro percurso, abrindo caminho para uma identidade profissional reconhecida e assumida.

 

Referências Bibliográficas

Bakhtin, M. (1981). The dialogical imagination. Austin: University of Texas Press.         [ Links ]

Bruner, J. (1991). Actual minds, possible worlds. Cambridge, MA: Harvard University Press.         [ Links ]

Cavaco, M.H. (1991). Ofício do professor: O tempo e as mudanças. Em: A. Nóvoa (Org.) Profissão professor. (pp. 155-191). Porto: Porto Editora.         [ Links ]

Charlot, B. (2005). Relação com o saber, formação de professores e globalização.Questões para educação hoje. Porto Alegre: Artmed. 159p.         [ Links ]

Chaves, S.N. (2006). Memória e auto-biografia: nos subterrâneos da formação docente. Em: Souza, E.C. (Org.) Autobiografias, histórias de vida e formação: pesquisa e ensino. (pp. 161 - 176). Porto Alegre: EDIPUCRS.         [ Links ]

Elbaz-Luwisch, F. (2002). O ensino e a identidade narrativa. Rev. Ed., XI (2), 21-33.         [ Links ]

Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.         [ Links ]

Heikinen, H. (1998). Becoming yourself through narrative: Autobiographical approach in teacher education. Em: Erkkila, R.; Willman, A. e Syrjala, L. (Eds.). Promoting teachers' personal and professional growth. Oulu: U.P.         [ Links ]

Huberman, A.M. (1973). Como se realizam as mudanças em educação: subsídios para o estudo da inovação, (Martins J. Trad.). São Paulo: Cultrix. 121p.

Huberman, M. (1995). O ciclo de vida profissional dos professores. Em: Nóvoa, A.. Vidas de Professores.( pp. 31-62) 2ª ed. Porto: Porto Editora.

Josso, M-C.(2004a) Experiência de vida e formação. São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Josso, M-C. (2004b). As histórias de vida abrem novas potencialidades às pessoas. Entrevista com Marie-Christine Josso. Aprender, (2), 16-23.         [ Links ]

Larrosa, J. (1999). Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica.         [ Links ]

Larrosa, J. (2002). Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Rev. Bras. Ed., 19, 20-28.         [ Links ]

Moita, M.C. (1995) Percursos de Formação e de Trans-formação. Em: Nóvoa, A. Vidas de Professores. (pp. 111-132) Porto: Porto Editora.         [ Links ]

Sousa, C.P de. (2005). Percursos de formação nas memórias de docente universitários: análise comparada. Educação & Linguagem, São Paulo, 8, (11), Jan- Jun,75-104.         [ Links ]

Sousa, C.P de. (2006). Narrativas autobiográficas em perspectiva comparada: histórias de formação de professores universitários. Em: Souza, E.C. e Abrahão, M.H.M.B. (Orgs.) Tempos, narrativas e ficções: A invenção de si. Porto Alegre: EDIPUCRS. 357p.         [ Links ]

Roth, W-M (2004). Conhecimento situado e aprendizagem durante as actividades laboratoriais: Modelos, métodos e exemplos. Em: Valente, M.O. e Ponte, J.P. (Org.) Questões actuais na Didáctica das Ciências e da Matemática. (pp.3-29). Lisboa: CIEFCUL.         [ Links ]

Villani, A. (1999). O professor de Ciências é como um analista? Rev. Ensaio. Pesquisa em Educação em Ciência, Belo Horizonte, 1, 5-28.         [ Links ]

Wenger, E. (1998), Communities of practice, learning, meaning and identity. Cambridge, New York: Cambridge University Press        [ Links ]

 

 

Agradecimento

Apoio parcial do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

 

 

Notas

D. Freitas
Endereço para correspondência: Departamento de Metodologia de Ensino (UFSCar). Rodovia Washington Luis, Km. 235, SP 13565-905.
Telefone: (16) 3351-8662.
E-mail para correspondência: dfreitas@power.ufscar.br.

C. Galvão
Endereço para correspondência: Departamento de Educação da Faculdade de Ciências (Universidade de Lisboa), Campo Grande, Edifício C6, Piso 1, 1749-016, Lisboa, Portugal.
Telefone: (351) 21 75 000 49;
E-mail para correspondência: cgalvao@fc.ul.pt.