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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. v.7 n.2 Rio de Janeiro dez. 2007
ARTIGOS
Modos de atenção na cidade além da conta: uma reflexão sobre lugares e não lugares
Forms of atention in the city: a reflection about places and non-places
Kleber Jean Matos Lopes*
Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe
RESUMO
Esse trabalho analisa os modos de atualização da experiência dos espaços nas cidades, através do entendimento de Marc Auge sobre a produção de não-lugares no mundo contemporâneo e a discussão proposta por Virgínia Kastrup sobre as possibilidades de aprendizagem de uma cognição inventiva. Com esses conceitos, discute a urgência em produzir na vida urbana, outras possibilidades existenciais distintas do egoísmo consumista, comum à proliferação de não-lugares. Entende que a distração formulada por Kastrup é um dispositivo importante para a reflexão dessa crise no espaço urbano e propõe experiências de transfiguração como alternativa que se volta para a produção de espaços de convivência entre as diferenças que emergem na vida urbana.
Palavras-chave: Cidade, Não-lugares, Cognição inventiva, Transfiguração.
ABSTRACT
This work analyzes the forms of contextualization of experiences of spaces in cities, using the understanding of Marc Augé about the production of non-places in the contemporaneous world and the discussion proposed by Virgínia Kastrup about the possibilities of learning of an inventive cognition. With these concepts, this paper discusses the urgency in producing, in the urban life, other existential possibilities distinct from the consumerism selfishness, common of the proliferation of non-places. The article understands that the distraction formulated by Kastrup is an important device for the reflection of this crisis in the urban space and proposes transfiguration experiences as an alternative to the production of places of interaction among the differences that emerge in the urban life.
Keywords: City, Non-places, Inventive cognition, Transfiguration.
Andarilho
Eu já disse quem sou Ele.
Meu nome é Andarleço.
Andando devagar eu atraso o final do dia.
Caminho por beiras de rios conchosos.
Para as crianças da estrada eu dou o Homem do Saco.
Carrego latas furadas, pregos, papeis usados.
(Ouço harpejos de mim nas latas tortas.)
Não tenho pretensões de conquistar a inglória perfeita.
Os loucos me interpretam.
A minha direção é a pessoa do vento.
Meus rumos não têm termômetro.
De tarde arborizo pássaros.
De noite os sapos me pulam.
Não tenho carne de água.
Eu pertenço de andar atoamente.
Não tive estudamento de tomos.
Só conheço as ciências que analfabetam.
Todas as coisas têm ser?
Sou um sujeito remoto.
Aromas de jacintos me infinitam.
E esses ermos me somam.
Manuel de Barros
Introdução
Há uma sensação nas pessoas que transitam pelas cidades de estarem a carregar um excesso de peso. Essa percepção se faz pelos rostos circunspectos de quem tem muito a ponderar pela vida que leva. Rostos muitas vezes distantes e dispersos, mas quase sempre rostos preocupados, que esboçam as linhas de alguma obrigação por fazer. Rostos presos àquilo que lhes demanda a situação presente, mas que atualizam também instâncias extraordinárias, as quais cada existência carrega. Não são rostos do aqui-agora. Não são somente rostos do presente. São rostos que já não disfarçam a força que alguma história lhes inscreve, apesar de que, para quem lhes observa, essas histórias possam ter apenas um sentido genérico. Não são algo que se possa ou deva inferir precisões. Suas marcas estão diluídas nas singularidades do vivido.
Rostos de qualquer cidade ou de alguma cidade? Rostos da cidade grande, rostos da cidade cheia, rostos da cidade que se permitiu transbordar. Não sei apontar bem o momento dessa transição entre a cidade pronta e a cidade além da conta. Essa discussão comportaria pensar se em algum momento da história moderna ou contemporânea a cidade pronta foi experimentada coletivamente e sobreviveu a essa experiência. Se essa cidade-projeto foi exeqüível com a vida circulando em suas ruas, suas moradas, sua aparelhagem de serviços públicos, comerciais e industriais. Por cidade pronta penso aquela que carrega a pretensão de caber em si. Uma cidade iluminista e iluminada em seus espaços.
Para não querer pensar aqui aquilo que não foi experiência em minha vida, detenho-me a discutir essa cidade além da conta, que habito e me habita. Cidades brasileiras como Fortaleza, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Vitória, Aracajú, Recife e outras tantas cidades por onde andei e que, puxando pela memória, consigo vislumbrar, em seus transeuntes, os traços que delineiam os tais rostos da preocupação.
Faço a ressalva de que tais cidades não são pensadas como uma representação da categoria lugar-comum, que permite estabelecer equivalências, padronizações e emissão de uma modalidade conceitual sobre elas que sobreviva a verificações. A citação das cidades busca apenas dizer por onde andei e daquilo que foi em alguma sensibilidade, que aqui se desdobra em uma exposição com argumentos e análises. Uma reflexão ou praticamente isso.
Reflexão que pondera, insinua, considera, nega coisas e afirma outras, mas que não se basta. Uma reflexão, por isso também, além da conta. Uma reflexão-ponte, que se percebe entre mundos e histórias e não consegue ser conclusiva sobre esses rostos nas cidades. Entretanto, não consegue calar e movimenta-se entre sensações e outros autores, para dizer coisas sobre os rostos da preocupação na cidade além da conta.
A cidade quase sem lugar
Como uma cidade pode repousar em um título apenas? Como pode movimentar-se em torno de um eixo fixo, simbólico ou imaginário? Cidade do sol, Cidade-Luz, Cidade Maravilhosa, Cidade da Garoa, etc. são determinações desconstituídas pelos movimentos daquilo que se faz no contemporâneo nesses espaços. Os adjetivos e as modalidades de encanto encarnam muito mais estratégias de mercado difundidas por dispositivos midiáticos e publicitários (LOPES, 2001) que uma sensação comum aos ditos rostos da preocupação. Aquilo que um dia pode ter sido uma experiência de um conjunto de outros rostos, hoje carece de alguma anatomia regular. Parece sem lugar, já que esse lugar aponta para algo absurdamente desconfortável, quando se busca verificar alguma possibilidade de acomodação nele.
Como morar num shopping-center, num supermercado, num posto de combustível, numa rodoviária, num jardim público, numa estação de metrô, numa avenida, numa calçada, num hotel hoje em dia? Talvez a única possibilidade de habitar esses espaços seja desconsiderá-los como lugares, como regiões que carregam uma densidade histórica. Parece não haver possibilidade de um lugar distinto nesses espaços. Eles se misturaram com outras cenas da cidade. Entregaram seus contornos a uma multiplicidade de organizações, as quais, hoje, são impeditivas para que se estabeleçam modalidades de regra ou norma para suas freqüências de funcionamento.
Há tempo, alguns autores apontam para esse processo de desmanchamento do que se configura historiográfico nas inscrições, datas e marcas que buscaram permanência no tempo. Bauman (2001) indica os processos de liquefação dos sólidos que a modernidade havia projetado para a vida. A diluição como categoria das análises dos modos de constituição do viver. Sevcenko (2001) enxerga o humano desses últimos anos como um ser que busca o entendimento de si, a partir de coisas que lhes parecem próprias. Políticas do receio alimentando a noção de individualidade.
A luta pela própria sobrevivência aliada aos usos dos recursos tecnológicos contemporâneos fragmentou os movimentos coletivos e colocou a experiência do humano, para Sevcenko (2001), numa estranha situação, onde os contornos de estabilidade se esvaem diante de um hegemônico sentimento de ansiedade que configura o tempo presente. Rostos ansiosos pelo futuro passam quase sem deixar rastros (DELEUZE, 1992) pelo presente, moldando uma experiência inaudita do espaço contemporâneo como aquele que tem muito a dizer, mas desconsidera as possibilidades de escuta.
Espaços do contar negligenciando sua força discursiva. Não que esses espaços tenham vergado quando uma estranha novidade lhes invadiu. Penso que eles assumiram a condição de não mais caber em si, não mais funcionar sob um domínio de alguma racionalidade social que havia lhes nomeado um lugar. Espaços que vão além dessa razão e inscrevem na cidade uma geografia estranha nas maneiras de habitar e conviver. Uma cidade onde proliferam mais os não-lugares que os lugares.
Faço aqui uma aproximação dessa cidade além da conta que percebo com a etnografia da supermodernidade de Marc Augé (2003), que lhe permitiu a construção do conceito de não-lugares. Para Augé (2003), esses não-lugares possibilitam uma experiência espaço-temporal diferenciada no contemporâneo, quando posta em relação com a experiência produzida nos ambientes da modernidade. Ele entende que experimentamos algo além da modernidade, e propõe o conceito de supermodernidade como um entendimento não mais relacionado aos lugares antropológicos onde cabiam discussões e análises sobre um funcionamento do social representado por uma concepção orgânica. Volta-se com esse conceito para um sentido que possa marcar uma espécie de “tensão solitária” para as existências, quando essas percorrem os não-lugares.
Augé diz que a supermodernidade é um estado que
[...] impõe às consciências individuais, novíssimas experiências e vivências de solidão, diretamente ligadas ao surgimento e à proliferação de não lugares (2003, p. 86).
O que ele busca configurar para que se permita essa experiência dos não-lugares é o estado de superabundância daquilo que se pode experimentar. Diz dos excessos que produzem situações que vão além da conta e dos rostos da ocupação que se adiantar aos próprios sentidos, o que produz uma sensação daquilo que ainda não é uma percepção de contornos delineados. São os movimentos da ansiedade nos rostos da preocupação.
Augé enxerga na lógica dos não-lugares uma superabundância de informações e de espaços que permitem visualizar o tempo onde o ego emerge como o motor fundamental dessa nova realidade. Um excesso de ego e de produções personalizadas, em que “o indivíduo quer um mundo [...] onde possa (sic) interpretar por e para si mesmo as informações que lhe são entregues” (AUGÉ, 2003, p. 38).
Cabe ressaltar que a primeira edição francesa de “Não-lugares” data de 1992, época em que se incrementava o conceito de globalização para a vida cotidiana, mas esse era um momento em que a comunicação à distância e sem fio ainda engatinhava no que tange ao uso comunitário. A internet ainda não dera seu estouro, nem mesmo nos países ditos de primeiro mundo.
Dez anos depois, no início deste terceiro milênio, a tecnologia cibernética já havia multiplicado em algumas vezes a sua potência em produzir revolucionários modos de conexão com o mundo e consigo mesmo (LOPES, 2006). Já permitia, por exemplo, a subtração espacial que marcasse a localização geográfica de quem faz uso desses cibernéticos dispositivos tecnológicos. Redes de conexão sem fio e a telefonia móvel passam a ser consumidos de maneira massiva e incorporam projetos publicitários com ênfase numa suposta liberdade e autonomia que podem oportunizar aos seus clientes um passo adiante na vida que se leva na cidade além da conta. O excesso representado materialmente no mundo onde não-lugares realizam primordialmente a função de reconhecimento de si. Há algo de muito estranho no ar e a lógica dessa estranheza é tão fluida quanto a experiência de estar num espaço que não se quer mais como um lugar.
Para Auge (2003), os não-lugares são a medida da época, mesmo considerando que esses não se tenham realizado totalmente e que o lugar moderno ainda não tenha sido extinto diante da proliferação desse fundamento da supermodernidade. O autor quer com isso qualificar o contemporâneo a partir de uma discussão sobre passagens e itinerários que não mais podem ser assentados a um sentido inscrito e simbolizado, que marcava a significância do lugar antropológico.
Remete assim a questão do reconhecimento a uma circunstância, ao invés de alguma perenidade. Busca mostrar que, nos usos dos meios de transporte, nas vias públicas, no funcionamento das instalações comerciais e de lazer, dentre outras, os indivíduos estariam a constituir uma vivência, que não mais permitiria dizer deles, na ausência dessas experiências. Um espaço de não-lugares em processo de ampliação, configurado em abundâncias de informação, de localizações provisórias e de edificação de egos que se volta para si, quase que exclusivamente. Espaço que torna a experiência da solidão comum aos seus freqüentadores, pois habitam um tempo em que são instados a alguma identificação para o mundo apenas nos procedimentos de entrada e de saída e não nos momentos em que circulam nesses não-lugares. Ou seja, a passagem por um não-lugar teria registro apenas quando nele se chega e quando dele se sai. Esse é o seu caráter ordinário.
Um supermercado na lógica disposta aqui pode ser tomado como um não-lugar e nele se configura com facilidade essa evidência. Busca-se saber como se chega a esse espaço, no que tange à posse de bolsas, mochilas e sacolas, que em geral encaminham suspeições de potenciais furtos. No momento da saída, após as compras, aquilo que foi resgatado das prateleiras é verificado e quantificado. Nesse momento, nova identificação do consumidor, enquanto freguês. Se o pagamento for através de cheque ou cartão de crédito ou débito, dupla identificação. Entretanto, essa se esvai após a sua saída do estabelecimento. Vigilância apertada nos momentos de entrada e saída, mas que em geral desconsidera os freqüentadores que flutuam pelo emergente espaço da supermodernidade.
Assim, entrada e saída marcam uma modalidade de atenção do sistema para aqueles que circulam pelos não lugares, onde os rostos são identificados. Entretanto esse procedimento de reconhecimento vai se repetir de outro modo no interior desses não lugares, quando os rostos da preocupação tendem a voltar sua atenção para um reconhecimento de si. Situações próximas articulam distintas lógicas de vigilância e de mecanismos de atenção. Estranheza que, para Augé (2003), vai se distribuir pela face do planeta em desenvolvimento, onde um estrangeiro, por exemplo, quando se vê diante de um espaço que se configura como um não lugar, imediatamente se reconhece nele, onde quer que ele esteja.
Esse estrangeiro se percebe “no anonimato das auto-estradas, dos postos de gasolina, das lojas de departamento ou das cadeias de hotéis” (AUGÉ, 2003, p. 98). É quando o indivíduo se reconhece como alguém que já experimentou ou está acostumado à experiência dos tais não-lugares. É quando o rosto da preocupação experimenta uma condição de alívio breve, num momento em que quase se pode estabelecer um tamanho para a sua experiência. Um momento em que quase objetiva um sentido, mas a lógica dos não-lugares é fugidia e lhe possibilita nova dispersão.
Creio que esses movimentos de dispersão na contemporaneidade, no que se relaciona com a dimensão social da vida, sejam parelhos à condição de excesso que se estabeleceu. Condição essa que acaba reproduzindo, de maneira automática, modalidades de lidar com as crises comuns ao que se quer humano. Daí os tais rostos da preocupação, daí a vida que se volta para o consumo das coisas e dos momentos, num espaço que não precisa permanecer além daquilo que nele se experimenta. A dimensão da existência de um outro parece sucumbir à feição do rosto preocupado. Esse se acostumou a estranhar de forma privilegiada a sua própria intimidade como uma alteridade possível. Uma maneira comum de sobreviver na cidade além da conta.
A vastidão nos processos de produção da informação, a excessiva codificação das linguagens, o incremento da individualidade e o insinuante e massivo apelo mercadológico são vetores da configuração desses rostos preocupados de olhares dispersos numa cidade além da conta. Uma cidade que facilita a subtração dos modos do viver, por não ter em seus dispositivos de passagem a positivação do inusitado. Como se a heterogênese que articula os modos de existência (GUATTARI, 1993) visse empobrecida a sua feição configurada nas formas do existir.
Nietzsche proclamava “o prazer dos meios sabedores” (2000, p. 278), acentuando que havia mais prazer naqueles que estavam em condição de aprendizado de uma língua, que naqueles que já a falavam fluentemente. A cidade além da conta parece esconder esses meios sabedores e a sua sede de aprendizes. Como se esse espaço circunstancial configurado por não-lugares prescindisse às possibilidades de descobertas e invenções naquilo que já foi visto.
Como pensar alternativas à consolidação dos rostos da preocupação de olhares dispersos em tráfego pela cidade além da conta? Como viabilizar uma condição de descompromisso com o reconhecimento modular e excessivamente individual que os não-lugares efetuam? Como atualizar Baudelaire (LEMOS, 2001) e fazer aparecer um flâneur contemporâneo, que ligue uma coisa a outra e faça fluir, entre os rostos e os lugares, histórias que se possa viver e contar aos outros?
Os não-lugares demandam uma disciplina de auto-reconhecimento. Já não é um processo de vigília de si preocupado com um outro ponto de observação que possa estar numa condição de virtualidade, como mostra Michel Foucault (2004) ao estabelecer a fisiologia dos dispositivos de vigilância da modernidade, que se configuravam essencialmente no diagrama panóptico. A conexão disciplinar desses espaços da supermodernidade é marcada por uma atenção concentrada apenas no ego e na limitada possibilidade de projeção dele naquilo que se pode consumir. Um pensamento de curta duração indica um ideal de pureza para a experiência dos não lugares, como aspirasse alguma assepsia para esse instante em que se vai contar de uma vida.
Mas e a vida, o que é? Essa vida que ruma para esses não-lugares, o que é? Seria um hiper-confinamento que se replica pelas cidades além da conta dos rostos da preocupação? Poderia ser uma outra coisa, talvez pouco vista, por não se repetir tanto pelos espaços contemporâneos? A cidade além da conta se coloca entre as possibilidades de caminho e descaminho. Não faço referência direta às vias públicas, mas aos modos de percorrê-las. Achar-se nos não-lugares é dar resolutibilidade a um problema que se repete e, por conseqüência, enquanto houver força para suportar essa condição, a resposta também se repetirá. O não-lugar como lugar comum pulsa ofegante na polis-supermoderna, ávida de algum outro possível (DELEUZE, 1992), para que não morra disso.
A urgência da invenção
A atenção nos rostos da preocupação vai ao limite que um foco permite, como se o mínimo pudesse ser sempre o máximo; o exclusivo ponto de vista. Ver praticamente da mesma forma, na mesma angulação. A engenharia dos não-lugares faz proliferar uma modalidade de ação onde a possibilidade de reação é empurrada para as margens do que é percebido. O que se faz causa desse modo de existência é tão somente um dos sintomas do mesmo, no caso a ansiedade. A ocupação antecipada instala no viver uma circularidade, em que a tensão vai ao limite do rompimento para, em seguida, ser substituída por uma nova tensão, que vai cumprir a mesma sentença. É preciso aprender lugares no contemporâneo. É preciso exercitar outros ângulos de percepção e aprender de maneira inventiva (KASTRUP, 2004) o desenho de rostos despreocupados para circular nessa cidade além da conta.
Ao discutir a possibilidade de uma cognição inventiva, Virgínia Kastrup (2004) afirma a necessidade de ultrapassar o funcionamento da atenção preocupada com um foco específico ou de limitação pré-existente.
A cognição precisa ser
[...] uma prática de invenção de regimes cognitivos diversos, co-engendrando, ao mesmo tempo, o si e o mundo, que passam à condição de produtos do processo de invenção. [...] Com Varela (1995) afirmamos que a cognição inclui a invenção de problemas. A aprendizagem inventiva inclui a experiência de problematização, que se revela através de breakdowns, que constituem rupturas no fluxo cognitivo habitual. Problema e solução são as duas faces do processo da aprendizagem inventiva (2004, p. 8).
Aqui uma relação interessante, pois esse procedimento de inventar requer a noção de um lugar ao qual possa se reportar para realizar o trabalho de criação. Kastrup recupera a etimologia latina da expressão inventar, que corresponde a “- invenire – que significa compor com restos arqueológicos” (2004, p.13), para demarcar um movimento no qual a experiência imediata não baste para aprendizagem que comporte problemas e soluções. Da valorização exacerbada da experiência imediata surgem os não-lugares.
A aprendizagem da atenção para Kastrup (2004) é algo que vai além da relação da percepção ou sensação voltada para um foco exclusivo, pois agrega a esse experiência modulações na atividade cognitiva e também aquilo que a consciência intenciona.
Do ponto de vista da invenção, verifica-se que uma parte importante do processo ocorre fora de foco, inclui experiências pré-egóicas, opacas e não recognitivas, e não tem no sujeito o centro ou fonte desse processo. Desse ponto de vista, a aprendizagem da atenção envolve a concentração necessária à consistência de tais experiências (KASTRUP, 2004, p. 8).
Defende então Kastrup a função da distração como um mecanismo capaz de positivar a experiência da aprendizagem inventiva. Distração que desconsideraria a valorização excessiva dos focos da consciência, arranjando espaço para que a questão seja incorporada ao sujeito carente de soluções. Entretanto, essa distração não pode se confundir com uma atitude dispersiva, desinvestida da vontade de ser o meio sabedor, tal qual anunciava Nietzsche (2000).
Uma atenção dispersa e ávida de novidade responde automaticamente às informações externas que se proliferam e que convocam uma atenção sempre focada e ao mesmo tempo fugaz. A informação é consumida rapidamente numa busca sem encontro, pois tudo é rapidamente descartado (KASTRUP, 2004, p. 14).
Uma atitude distraída indica possibilidades de bifurcação na experiência do aprendizado de uma cognição inventiva, bem como uma chance de modificação no modo de experimentar um espaço, de se relacionar consigo e com o outro. Como desdobramento da distração, a bifurcação nos possibilita permanecer num ambiente de figuração, onde as possibilidades de prazer advêm de uma condição de sinestesia reconhecida e estabilizada, sem quando nos não-lugares ou quando em trânsito para esses. Ou então arriscar um rumo possível, mas desconhecido, de uma experiência posta ao mundo, que aponta para um processo de transfiguração (FOUCAULT, 2004; LOPES, 2006), onde o sujeito não se reduz à alteridade de si mesmo, mas dar-se ao mundo e toma dele aquilo que lhe faz bem, sem ferir por intenção aquilo com o que se relaciona.
As cidades contemporâneas, configuradas por uma lógica que extrapola a racionalidade liberal e modernizante, ainda permitem
[...] relações consigo e com o mundo que dimensionem o sentido coletivo, mesmo numa experiência distinta das coisas da vida, [...] que faz no relevo da vitória, zonas de improviso, de distração. Que faz sem querer e de algum modo querendo, porque o gosto do quase-sem-querer é alvissareiro. A novidade só se permite paradoxos quando racionalizada. Antes disso é tão somente aquilo que foi possível (LOPES, 2006, p. 203).
O possível nas experiências de figuração e transfiguração nas cidades brinca com as mesmas peças do quebra-cabeça, onde rostos dizem dos seus corpos, seus prazeres, seus sonhos e ansiedades. Um modo é formar figuras, o outro não. Parece simples, mas esse não é um jogo de parece. Caso fosse, seria apenas figurativo. Um mundo autobiográfico dos rostos preocupados. A única freqüência possível. É necessário apontar para outros modos de estar nessa brincadeira.
O que diz uma esquina
Não há cidade sem esquina. Uma rua, nessa estranha invenção humana chamada cidade, torna-se ilimitada pela arte de vergar para um lado e não pelo alcance retilíneo que possa almejar para si. A arte de conceber uma bifurcação é própria da dinâmica que funda num espaço um lugar ou mesmo um não-lugar. As esquinas da cidade sussurram esse fundamento. A seu modo cada uma diz do quão foi larga ou estreita a força de cruzar um caminho noutro. De misturar latitudes e longitudes e pela circulação construir aproximações e distâncias.
Os rostos da preocupação desconsideram as esquinas como paisagens disponíveis ao tráfego. Concentrados, fazem parecer que a vida é um campo ilimitado de superfície homogênea, onde o horizonte do mesmo modo, entre céu e chão. Entretanto, há os distraídos entre uma coisa e a real possibilidade de tropeços. É aí que se faz a esquina.
Referências Bibliográficas
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Endereço para correspondência
Endereço eletrônico: klebermatos@uol.com.br
Recebido em: 02/04/2007
Aceito para publicação em: 22/06/2007
Notas
* Doutor em Psicologia Social (PPGPS-UERJ).