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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.9 n.1 Rio de Janeiro abr. 2009

 

COMUNICAÇÃO DE PESQUISA

 

Lembranças do país da cocanha entre os descendentes de imigrantes italianos no início do século XX: o Brasil imaginado

 

Memory of the cocanha country among descendants of italian immigrants in the beginning of century XX: the imagined Brasil

 

 

Silvana BagnoI, *; Ariane Patrícia EwaldII, **

I Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ – RJ, Brasil
II Professora Adjunta, Pesquisadora do Instituto de Psicologia e Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ – RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo aborda o tema da imigração italiana à luz do imaginário daqueles que se dirigiam em massa para o Brasil em busca de um mundo novo, paradisíaco, perseguindo o sonho de um Paraíso Terrestre, o país imaginário da Cocanha. Enquanto modalidade de pesquisa fenomenológica, procura desvelar as "lembranças" das memórias dos descendentes dos imigrantes italianos quanto ao que seus antepassados imaginavam encontrar no Brasil, quando aqui chegassem. O tema é ilustrado a partir de obras literárias, valendo-se do personagem Nanetto Pipetta, jovem imigrante clandestino vêneto, cujas aventuras eram publicadas semanalmente em capítulos no jornal gaúcho Stafetta Riograndense, nos anos 1924-1925. O imaginário sobre o Brasil como o país da Cocanha para o imigrante italiano, encontra neste personagem sua expressão fiel, mantendo acesa a chama da esperança de uma vida melhor para si e para as gerações futuras.

Palavras-chave: Imigrantes italianos, Literatura, Imaginário, Cocanha.


ABSTRACT

This study is about Italian immigration and it gives light to the imaginary of those who came in mass to Brazil in search of a new world, the paradisiacal one, pursuing the dream of a Terrestrial Paradise, the imaginary country of the Cocanha. This modality of phenomenological research intend to comprehend the “souvenirs” of the memories that belongs to descendants of Italian immigrants, specially related to what their ancestor had imagined they would find in Brazil, when arriving here. This subject is illustrated from literary compositions, by using the personage Nanetto Pipetta, clandestine young Veneto immigrant, whose adventures were published weekly in chapters in the gaucho periodical “Stafetta Riograndense”, in the years 1924-1925. The imaginary of Brazil as the country of the Cocanha for the Italian immigrant finds in this personage its faithful expression, keeping lighted the flame of the hope of a better life for themselves and the future generations.

Keywords: Italian immigrants, Literature, Imaginary, Cocanha.


 

 

A Imigraçãoé umfenômeno observado em todos os povos e épocas. De acordo com Bagno, Ewald e Cavalcante (2008), em geral, a migração é motivada por fatores sócio-econômicos, pela carência de recursos, de trabalho, de alimento e de condições de vida, os quais propiciam a motivação para se buscar, em outras terras, aquilo que a terra natal não supre. 

Os italianos e outros imigrantes vieram atraídos pelas inúmeras promessas feitas pelo Governo Imperial brasileiro, que lhes acenava com vantagens mirabolantes - terra fértil em abundância, trabalho nas ricas plantações de café, das quais os colonos poderiam tornar-se proprietários em poucos anos, e também pelo incentivo do seu próprio governo para que emigrassem em busca de maiores possibilidades de trabalho e condições de vida mais favoráveis, devido a transformações sociais, políticas e econômicas, que ocorreram no mundo ocidental em decorrência da expansão do Capitalismo e das novas formas de produção adotadas. A Revolução Industrial, com o advento das máquinas, substituiu o trabalho humano, diminuindo drasticamente as possibilidades de trabalho.

Uma de nossas primeiras questões nesta pesquisa se refere às expectativas nutridas pela pessoa, ou família imigrante. Que fatores contribuíram para esta decisão? Como idealizavam a vida em outras terras? Quanto lhes custou deixar suas raízes? E o que se passou quando da chegada na nova terra? Como foi recomeçar a vida noutro lugar? Em que medida a realidade encontrada atendeu aos seus sonhos e expectativas?

A literatura - pela sua capacidade de retratar a vida em sociedade em seus diversos aspectos e as transformações periódicas pelas quais ela passa, e por nos permitir entrar em contato com as diferentes culturas - foi a principal fonte em que buscamos compreender o imigrante italiano, através das aventuras do garoto veneziano Nanetto Pipetta, personagem criado por Frei Paulino de Caxias, cujas peripécias foram publicadas em capítulos, semanalmente, no jornal gaúcho Stafetta Riograndense (atual Correio Riograndense), nos anos 1924-1925, o qual, segundo Gardelin (1988), imigrou clandestinamente para o Brasil, em busca da “cucagna”.

O País da Cocanha, segundo Franco Junior (1998), concebido como um local ideal e descrito no poema francês registrado no século XIII, o fabliau de Cocanha, o qual reuniu elementos da tradição oral, fala de um lugar em que os alimentos são abundantes, não há pobreza, nem carência; as pessoas não envelhecem nem adoecem; são livres para fazerem o que desejarem, sem restrições, todo o tempo.

Assim, Nanetto Pipetta, personagem com quem os imigrantes italianos do Sul do Brasil identificaram-se plenamente, revela os motivos que os motivaram a imigrar, narra a experiência do embarque, da travessia, da chegada e os desafios da aculturação. Através do personagem, testemunha-se o desejo de Abundância como elemento propulsor da imigração, a fim de se buscar a sobrevivência em outras terras, onde se acredita encontrar alimentos em fartura e melhores condições de vida. A esperança – elemento fundamental da utopia - de se viver mais e melhor parece atuar como fator de impulsão para o movimento migratório.

A literatura, como mostra Ewald (2007, p. 175), é atravessada pelas questões sociais de cada época, pois há um tecido cultural “compartilhado pela sociedade e época da qual falamos”. Vemos no personagem veneziano o retrato do imigrante, auto-exilado de seu país devido às alterações geradas pelas novas formas de produção, as quais acentuaram as desigualdades sociais, a fome e o desemprego.

Facina (2004) afirma que as formas literárias são produtos históricos que buscam expressar realidades também históricas. Ela declara que a obra literária é fruto de seu tempo e, portanto, um produto histórico produzido numa sociedade específica, por um indivíduo inscrito nela por meio de múltiplos pertencimentos, sujeito aos condicionamentos impostos pelo pertencimento a uma classe, a uma origem étnica, um gênero e a um processo histórico de que faz parte, como podemos observar na trajetória de Nanetto Pipetta, criado por um descendente de imigrantes italianos, recém-chegados ao Sul do Brasil, com o intuito de conquistarem o direito de adquirir suas próprias terras, como resultado do suor de seu rosto.

A literatura, pois, expressa visões de mundo coletivas de determinados grupos sociais, que tanto são formadas pela experiência histórica concreta desses grupos, quanto atuam como construtoras dessa experiência, transformando assim, em literatura, o que foi construído coletivamente - razão do tremendo sucesso alcançado pelo personagem veneziano junto à comunidade italiana no Sul do Brasil.  

A obra literária, na opinião de Chalhoub e Pereira (1988), deve ser historicizada e inserida no movimento da sociedade; em sua opinião, “qualquer obra literária é evidência histórica objetivamente determinada, situada no processo histórico” (1988, p.7).

Para Frei Rovilio Costa, há uma ligação entre a História e a Literatura que permite que se tragam elementos da realidade à ficção, pois é na realidade, ou naquilo que possa ser imaginado como sendo real, que o autor busca os subsídios de que necessita para construir sua narrativa.

Segundo Held (1980), o conto moderno prolonga a narração oral e nela se enraiza, pois a narração exprime as necessidades primordiais da humanidade, ou seja, a aprendizagem da vida, a busca incessante, a grande aventura humana, representando um saber que está em contato direto com o mundo, testemunho dos sonhos e das aspirações humanas.

O fantástico seria o irreal no sentido estético daquilo que é apenas imaginável, o que não é visível aos olhos de todos, que não existe para todos, mas que é criado pela imaginação, pela fantasia, como podemos observar no país mítico e imaginário da Cocanha, sonhado, idealizado e procurado por Nanetto Pipetta. A narração fantástica traduz todo um mundo de desejos. O conto fantástico expressa a realização dos grandes sonhos humanos, ou seja, a possibilidade de transformar o universo, de acordo com a sua vontade. Assim, do ponto de vista daquele que cria, a obra fantástica, assim como qualquer outro gênero literário, encontra sua fonte numa experiência cotidiana, com personagens conhecidas e acontecimentos vividos. Para uma Europa faminta, no país da Cocanha,

Onde se pode beber e comer
Tudo o que se quiser sem problema;
Sem oposição e sem proibição
Cada um pega tudo o que seu coração deseja [...]
FRANCO JUNIOR, 1998. p. 29

Dutra (2002) apresenta a narrativa como uma modalidade de pesquisa fenomenológica, segundo as idéias de Walter Benjamin, e afirma que a experiência - dimensão existencial do viver - pode ser abordada e compreendida através da narrativa. A autora revela que, para Benjamin, na narrativa, o narrador retira da experiência o que ele conta, seja sua própria experiência ou a que é relatada pelos outros e, pela sua característica oral, a narrativa mantém as tradições e as conserva. Fundamentalmente, a narrativa se reconstrói na medida em que é narrada. Narrar alguma coisa, portanto, “consiste na ‘faculdade de intercambiar experiências’. Assim, a experiência nos remete ao que foi apreendido, experimentado, vivido pelo indivíduo, em algum momento”. (DUTRA, 2002, p. 372)

Tal como Gardelin (1988) analisa a imensa repercussão de Nanetto Pipetta entre os imigrantes italianos e seus descendentes na região sul, Dutra aponta que a narrativa contempla tanto a experiência contada pelo narrador, quanto a ouvida pelo ouvinte. Este, ao contar o que ouviu, transforma-se em narrador, “por já ter amalgamado à sua experiência a história ouvida” (DUTRA, 2002, p. 373)

Assim, relata Gardelin que as famílias italianas, ao comprarem o Stafetta Riograndense, reuniam-se para ler as façanhas do jovem herói e então, os imigrantes passavam a contar aos seus familiares suas próprias experiências relativas à imigração.

Através da narrativa, podemos nos aproximar da experiência, tal como ela é vivida pelo narrador, pois a narrativa mantém presentes na experiência narrada, os valores e percepções que estão contidos na história do sujeito e transmitida naquele momento para o pesquisador, ou, como já dissemos, do imigrante para seus descendentes. A narrativa suscita nos seus ouvintes os mais diversos conteúdos e estados emocionais - a experiência vivida, transmitida pelo narrador, nos sensibiliza, alcança-nos nos significados que atribuímos à experiência, assimilando-a de acordo com a nossa. Portanto, ao trabalharmos com as narrativas dos sujeitos das pesquisas, não só participamos da sua história, expressa na experiência vivida, como também participaremos da sua reconstrução, através da profusão de sentidos, em função do seu não-acabamento-essencial.

Em estudo a ser realizado, utilizarei a narrativa como veículo de diálogo com os descendentes dos imigrantes italianos residentes na região Sul do Brasil, com o intuito de lhes ouvir falar de suas lembranças das memórias de seus antepassados em relação à imigração, em busca de indícios da esperança e expectativa presentes no imaginário destes imigrantes de se encontrar no Brasil, o País da Cocanha. A eleição por Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, se deve ao fato de os imigrantes serem provenientes da região do vêneto, assim como o personagem Nanetto Pipetta.

 

Referências Bibliográficas

BAGNO, S.; EWALD, A. P.; CAVALCANTE, F. G. A Trajetória de Severino: A Migração e a Pobreza no Brasil. Literatura em Debate. Alto Uruguai e das  Missões, v.2 n. 2, 2008. p. 1-11        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Silvana Bagno
E-mail: silvanabagno@uol.com.br
Ariane Patrícia Ewald
E-mail: aewald@terra.com.br

Recebido em: 10/04/2009
Aceito para publicação em: 20/04/2009
Acompanhamento do processo editorial: Laura Cristina de Toledo Quadros

 

 

Notas

* Psicóloga.
** Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ – RJ, Brasil.

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