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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.22 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2022  Epub 03-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2022.68631 

PSICOLOGIA SOCIAL

Identidades, Identificações e Classificações Raciais no Brasil: O Pardo e as Ações Afirmativas

Identities, identifications and racial classifications: the ‘mixed race’ and affirmative actions

Identidades Raciales, Identificaciones y Clasificaciones: “Mestizos”* y Acciones Afirmativas

Eliane Silvia Costa1 

Psicóloga, graduada e doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia.


http://orcid.org/0000-0002-1487-3473

Lia Vainer Schucman2 

Professora adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.


http://orcid.org/0000-0001-7659-4632

1Universidade Federal da Bahia - UFBA, Salvador, BA, Brasil

2Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Florianópolis, SC, Brasil


RESUMO

Este artigo tem como propósito colaborar com a discussão sobre identidades raciais no campo da psicologia e das políticas de ações afirmativas. Para tal, fizemos uma breve discussão histórico-conceitual sobre classificações raciais brasileiras, formações de identidades raciais e identificações raciais, pois, por meio destes conceitos, pretendemos pensar o lugar do mestiço na constituição de sujeitos fenotipicamente negros e brancos. Escolhemos trazer à baila essa discussão por duas razões. A primeira refere-se ao fato de que, no Brasil, o mestiço representa uma identidade racial complexa, muitas vezes confusa, difusa, negada e afirmada. Essa temática relaciona-se a uma das dimensões mais emblemáticas do racismo à brasileira, especialmente porque dentro desse grupo há variações entre o mestiço com características nitidamente brancas e o mestiço fenotipicamente negro. A segunda e principal razão concerne ao fato de que esse tema é fundamental para que possamos compreender como essa posição intermediária se insere no debate das políticas de ações afirmativas no contexto social brasileiro contemporâneo.

Palavras-chave: racismo; identidade racial; identificações raciais; pardo; mestiçagem.

ABSTRACT

This essay aims to collaborate with the discussion of racial identities within the field of psychology and affirmative action policies. To this end, we made a brief historical-conceptual discussion on Brazilian racial classifications, racial identity formations, as well as racial identifications, because, through these concepts, we intend to think of the pardo’s standpoint in the constitution of phenotypically black and white ‘mestizo’ subjects. We have established this discussion for two main reasons. The first reason refers to the fact that, in Brazil, the pardo represents a complex racial identity, often perceived as confusing, diffuse, both denied and affirmed. This theme relates to one of the most iconic dimensions of Brazilian racism, especially since within this group there are variations between the pardo with notably white features and the pardo phenotypically read as black. The second and foremost reason concerns the fact that this theme is keystone in order to understand the manner in which this intermediate standpoint connects to the affirmative action policies debate in the contemporary Brazilian social context.

Keywords: racism; racial identity; racial identifications; pardo; ‘mestizaje’; miscegenation.

RESUMEN

Este ensayo tiene como objetivo contribuir a la discusión de las identidades raciales en el campo de la psicología y las políticas de acción afirmativa. Con este fin, hicimos una breve discusión histórico-conceptual sobre las clasificaciones raciales brasileñas, las formaciones de identidad racial y las identificaciones raciales, porque a través de estos conceptos pretendemos pensar en el lugar del “pardo” en la constitución de los sujetos mestizos fenotípicamente negros y blancos. Elegimos plantear esta discusión por dos razones. El primero se refiere al hecho de que, en Brasil, el marrón representa una identidad racial compleja, a menudo confundida, difusa, negada y afirmada. Este tema está relacionado con una de las dimensiones más emblemáticas del racismo al estilo brasileño, especialmente dado que dentro de este grupo hay variaciones entre el claramente blanco y el “pardo” fenotípicamente negro. La segunda y principal razón se refiere al hecho de que este tema es fundamental para que comprendamos cómo esta posición intermedia encaja en el debate de las políticas de acción afirmativa en el contexto social brasileño contemporáneo.

Palabras clave: racismo; identidad racial; identificaciones raciales; marrón; cruzamiento.

Este artigo tem como propósito colaborar com a discussão sobre identidades raciais no campo da psicologia. Tem como lastro metodológico a revisão bibliográfica do uso de categorias raciais, entre elas, a de pardo.

O desejo para a elaboração deste artigo nasceu do encontro de nossas reflexões sobre “Quem é racialmente quem no cenário brasileiro?”. Uma coisa é certa, sabemos que há no Brasil uma definição racial que é fenotípica (Nogueira, 1979), mas há também fenótipos raciais no Brasil que, ora podem ser considerados brancos, ora podem ser percebidos como negros, dependendo de quem olha, isso é, da forma como foi socializada a pessoa que se classifica ou que qualifica o outro, da cidade ou do bairro onde nasceu e até de quem são os membros da sua família.

Oracy Nogueira, dentre outros pesquisadores da temática racial no Brasil, já tinha notado essa peculiaridade da discussão racial neste país. O autor ressaltou (Nogueira, 2006, p. 294): “A concepção de branco e não branco varia, no Brasil, em função do grau de mestiçagem, de indivíduo para indivíduo, de classe para classe, de região para região”. Tratase, pois, de uma constatação que não é recente.

Essas situações não colocam em xeque as categorias propostas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no entanto, elas dão lastro para que tenhamos um panorama sobre o Brasil, sua população e suas desigualdades raciais em diferentes âmbitos da vida. Elas referem-se à tensão que não raramente há entre teorias, cotidianidade e políticas públicas.

A propósito, no tocante ao debate sobre o pardo no Brasil, é preciso destacar que ele tem se tornado alvo de querelas e reflexões principalmente pelas conquistas das políticas de ações afirmativas, e mais especificamente das cotas raciais nas universidades e concursos públicos. Têm sido frequentes perguntas como:

  • - O que faz com que alguém seja classificado como pardo?

  • - Como se define quem é pardo e quem é preto no Brasil?

  • - Qual a diferença entre pardos e pretos dentro do grupo de negros?

  • - A ascendência, o pertencimento cultural e as posições políticas relativas à raça e ao racismo devem ser levadas em conta na classificação racial dos sujeitos ou apenas as características fenotípicas?

  • - Quem define o que se considerar nas classificações raciais?

Enfim, geralmente, em uma sociedade racista, em processos de auto ou heteroidentificação racial várias indagações surgem, principalmente nos sujeitos de origens multirraciais. No Brasil, é notório que o pardo representa uma identidade racial complexa, muitas vezes confusa, difusa, negada e afirmada. Por assim dizer, refere-se a uma das dimensões mais emblemáticas do racismo à brasileira.

Segundo a definição dada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2000), o pardo “são as pessoas mulatas, caboclas, cafuzas, mamelucas, mestiças”. Portanto, são as descendentes de pessoas pretas e brancas; pretas e indígenas; brancas e indígenas etc., ou seja, são pessoas com diferentes origens raciais. Contudo, biologicamente, pessoas com diferentes origens raciais (por exemplo, filhos frutos da relação entre pessoas pretas e brancas) podem nascer com fenótipo lido socialmente como sendo preto, mas outras pessoas com a mesma origem multirracial podem nascer com fenótipo considerado pardo ou ainda podem ter fenótipo classificado com branco.

No entanto, apesar da leitura racial da sociedade brasileira classificar este sujeito dentro de uma destas três categorias (dependendo do fenótipo que este sujeito nascer), para o IBGE, este sujeito pode ser classificado dentro da categoria parda, já que a definição do referido Instituto remete à origem. Portanto, a forma pela qual o IBGE define pardo é diferente da forma como o Movimento Negro e a sociedade em geral o definem, pelo fenótipo. Logo, segundo os critérios do IBGE, o pardo fenotipicamente negro e o branco de origem multirracial podem se classificar como pardos. Contudo, socialmente um é lido por suas marcas corporais como negro e outro como branco.

Desta forma, queremos ressaltar que, além do pardo que pertence ao grupo racial negro (seja ele escuro ou claro), há também um branco de origem multirracial que, pela definição do IBGE, pode se definir como pardo. Ele é o branco “encardido” (Schucman, 2014, grifo nosso) 1, o branco descendente de negro (Souza, 2020), o branco miscigenado com indígena, o branco com características identificadas como “nortistas”, “nordestinas” ou mesmo “cearenses”. Ele tem pele branca/morena clara/creme 2 e tende a ter cabelo liso ou ondulado. Diferentemente do branco branquíssimo, ele é automaticamente visto como brasileiro, como não europeu.

Posto isso, discorrer sobre essa categoria intermediária parda demanda reflexões complexas que envolvem processos intersubjetivos, sócio-históricos, político-ideológicos. Não por acaso, o lugar do mestiço aparece como um nó conceitual das discussões e discursos sobre raça, racismo e antirracismo no Brasil.

Algumas Considerações sobre o Processo Racista de Miscigenação no Brasil e o Pardo Negro

No tocante especificamente ao indivíduo de origem multirracial com fenótipo negro, Eduardo de Oliveira e Oliveira, na década de 1970, redigiu um artigo sobre as classificações raciais brasileiras intitulados “Mulato: um obstáculo epistemológico”. 3 Segundo Grin (2002), o mulato foi compreendido por Oliveira como a barreira simbólico-epistemológica que impede a evidência de um mundo social cuja história de escravização e opressão dos não brancos deveria revelar-se determinada por critérios de pertencimento racial, isto é, “em chave política, para este sociólogo, o mulato é o traidor dos polos ‘branco’ e ‘negro’; é quem ameniza, desqualifica e dilui a consciência e o conflito raciais” (Grin, 2002, p. 204). Tal obstáculo se encontra no fato de a mestiçagem ter sido apontada como possível solução e estratégia racista para o embranquecimento da nação brasileira.

Aliás, após a abolição, a questão da identidade nacional brasileira e o futuro da nação foram amplamente discutidos por intelectuais brasileiros e esses temas podem ser sintetizados nas seguintes questões que emergiram naquele momento: “O que fazer com a massa de recém libertos na sociedade brasileira?” e “Como tornar a diversidade de populações aqui presentes um só povo e nação não negros?” Isso porque, nesse mesmo momento, ou melhor, desde principalmente o século XIX, a Europa difundia os ideais do racismo científico. Propagava (pseudo)teorias científicas sobre as raças, como o Darwinismo Social, que tinha na eugenia seu alicerce, e a Teoria do Evolucionismo Social, que estabelecia etapas fixas e predeterminadas do desenvolvimento humano, divididas da selvageria à civilização. De um jeito ou de outro, proclamava-se ideologicamente que a raça branca era a civilizada e associada ao progresso da humanidade.

Para alguns autores do racismo científico brasileiro, como Nina Rodrigues, a miscigenação desqualificava e degenerava a humanidade. Era evidente, portanto, que, no Brasil, esse olhar colocava um entrave para a possibilidade de desenvolvimento do país, já que a nação era formada por uma parcela grande de pretos e mestiços. Para solucionar este dilema, outros representantes do racismo científico (como Sílvio Romero, Oliveira Viana e Euclides da Cunha) trabalharam para ver a miscigenação como um valor positivo para o progresso.

Aliás, o modo como Sílvio Romero interpretou o Brasil impregnou de tal forma os estudos brasileiros que, segundo Leite (1954/2007), não é difícil perceber sua influência nesses autores que se tornaram alinhados ao seu pensamento, assim como nas produções de Gilberto Freyre. Romero propagou que o negro “não é só uma máquina econômica; ele é antes de tudo, e malgrado sua ignorância, um objeto da ciência” (Romero, 1933/2008). Para ele, os africanos eram selvagens, rebeldes aos progressos intelectuais, “estupidamente indolentes, estupidamente talhados para escravos” (Romero, citado em Leite, 1954/2007, p. 243). Por essa razão, difundiu a crença na purificação racial do país por meio da imigração de europeus e por um longo processo de mestiçagem física e cultural.

Foi a partir de discursos como esses que surgiu o ideal de branqueamento, uma teoria ideológica tipicamente brasileira aceita pela maioria da elite brasileira, principalmente (mas não exclusivamente) na Primeira República Brasileira (1989-1930) e definida por Thomas Skidmore como:

A tese do branqueamento baseava-se na presunção da superioridade branca, às vezes pelo uso dos eufemismos raças ‘mais adiantadas’ e ‘menos adiantadas’ e pelo fato de ficar em aberto a questão de ser a inferioridade inata. À suposição inicial, juntaram-se mais duas. Primeiro - a população negra diminuiria progressivamente em relação à branca por motivos que incluíam a suposta taxa de natalidade mais baixa, a maior incidência de doenças e a desorganização social. Segundo - a miscigenação produzia ‘naturalmente’ uma população mais clara, em parte porque o gene branco era mais forte e em parte porque as pessoas procuravam parceiros mais claros que elas. (A imigração branca reforçaria a resultante predominância branca). (Skidmore, 1976, pp. 81)

Nessa direção, ao fazer uma análise crítica da produção cultural e teórica da elite brasileira da época, Leite (1954/2007) considerou que as (pseudo)teorias de cunho racista teriam sido aceitas porque justificavam o domínio das classes mais ricas e eram uma forma de defesa do grupo branco contra a ascensão dos antigos escravizados. Ressaltou o que, anos depois, Hasenbalg (1979) e autores subsequentes sinalizaram como a principal função do racismo: a manutenção do privilégio branco. Por isso mesmo, o ideal de branqueamento teve grande aceitação na nação, inclusive (e sobretudo) na política de Estado.

Desta forma, pode-se concluir que o mestiço negro naquela ocasião não era uma categoria racial com um fim em si mesma, mas um meio para produzir o branco, ainda que fosse o branco encardido/ o branco “brasileiro”. Munanga (2006) traduziu bem o lugar dado ao mestiço negro no pensamento social brasileiro:

O mestiço brasileiro simboliza plenamente essa ambiguidade, cuja consequência na sua própria definição é fatal, num país onde ele é de início indefinido. Ele é ‘um e outro’, ‘o mesmo e o diferente’, ‘nem um nem outro’, ‘ser e não ser’, ‘pertencer e não pertence’. Essa indefinição social - evitada na ideologia racial norte-americana e no regime do apartheid -, conjugada com o ideário do branqueamento, dificulta tanto a sua identidade como mestiço, quanto a sua opção de identidade negra. A sua opção fica hipoteticamente adiada, pois espera, um dia, ser ‘branco’, pela ‘miscigenação’. (Munanga, 2006, p. 140, grifo do autor)

Fortemente enraizada no país, a ideologia do embranquecimento ecoa ainda hoje. De toda maneira, e tal como sugere Costa (2014), é possível considerarmos que outra força ideológica racista acerca da cor da pele e da mestiçagem também tem vigorado no Brasil, trata-se da ideologia do “morenamento”. Ela emergiu como desdobramento da propagada democracia racial que, de acordo Gilberto Freyre, haveria no Brasil. Ela refere-se a uma certa valorização do moreno, já que, para Freyre (1970), no Brasil, haveria uma mística da morenidade que se oporia à mística da exclusividade racial da pretura e da brancura, sem que isso significasse prejuízos à sua civilidade, ao contrário. O “moreno” - e com ele o hibridismo estético e cultural - representaria o atalho à brasileira para que já vivêssemos em um mundo civilizado.

Ainda que seja um rearranjo da ideologia do branqueamento, pois “morenar” requer clarear, mas, diferentemente dessa ideologia, por não visar o desaparecimento radical do corpo negro, na ideologia do morenamento a existência fenotípica do negro poderia estar em alguma medida assegurada desde que pela sua negação linguística (preto e pardo igual a “moreno”) e fenotípica (preto e pardo igual à descendência progressivamente “morena”) (Costa, 2014, pp. 135).

Sobre o moreno, ressaltou Freyre:

O brasileiro é uma gente crescentemente morena. Ao vaticínio, porém, de vir a ser o Brasil, dentro de algum tempo, uma ‘população de mulatos’, falta idoneidade antropológica. O que é provável e até certo é a maior generalização de morenos, nessa população, a ponto de tornar-se, pelo ano 2000, a morenidade, uma predominância. (...) ‘a cor morena é cor de ouro’, diz já a poesia popular brasileira”. (Freyre, 1970, pp. 48-49, grifos nossos)

Consideramos importante trazer esse apontamento sobre essa hipótese teórica acerca da existência da ideologia do morenamento porque - e ainda que essa ideologia seja alienante e mesmo que diga respeito à defesa de uma morenidade não escura - ela dá ensejo para que a pessoa negra, ao se reconhecer psíquica e defensivamente como morena, realize um processo de identificação que carrega marcas positivas, são elas que dariam certo alívio à pessoa quando assim se vê. Portanto, e ainda que essa ideia de morenidade seja um escape defensivo à afirmação da identidade negra e que, por vezes, se equivalha à noção equivocada de pardo não negro, o uso do termo moreno não se restringe tão somente ao mecanismo de negação de si e da negrura do corpo, do ponto de vista (inter)subjetivo, via de regra, ele é também a afirmação de algo que tem alguma aceitação social, o ser moreno. Talvez essa seja uma das razões para que haja um uso corriqueiro dessa acepção no Brasil.

Por assim dizer, os efeitos da ideologia do embranquecimento, o fato de os estereótipos negativos estarem diretamente associados à cor e à raça negra e os efeitos da ideologia do morenamento (dessa valorização da morenidade) fizeram com que parte da população com ascendência africana não se classificasse como negra, gerando um grande número de denominações para designar as cores dos não brancos: do moreno à pessoa de cor, do marrom ao escurinho etc. Portanto, essa forma de classificação não raramente eliminou a identificação de mestiços negros com a negritude, como também contribuiu para que permanecessem intactas estereotipias e representações negativas atribuídas aos negros.

Exatamente por esta constatação, o Movimento Negro nascido a partir da década de 1970 vem trabalhando para construir uma identidade negra positivada que inclua tanto pretos como pardos em uma mesma categoria. Sob influência do Movimento Negro estadunidense, há um esforço, então, para redefinir o negro e o conteúdo da negritude, incluindo os mestiços descendentes de negros que, até então, se caracterizavam como mulatos, morenos, marrons, entre tantos outros nomes. Ademais, se o mestiço negro aparece no pensamento social brasileiro como negação do negro, talvez por isto seja tão difícil encontrar trabalhos que discorram sobre o sentimento de pertença racial (ou não) e construção de identidade desses sujeitos. Ao analisarmos a literatura na área, foi possível perceber que são poucos os estudos que falam dos processos de racialização do mestiço brasileiro.

Como exemplos, podemos citar a pesquisa de mestrado realizada por Bicudo (1945/2010), intitulada: Atitudes raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo. Bicudo foi a primeira a dedicar parte de seus estudos para este tema. Quase sessenta anos depois, em 2002, também em São Paulo, Eneida de Almeida dos Reis publicou o livro Negro-não-Negro e/ou Branco-não-Branco, no qual trouxe à baila a identidade emblemática negada e afirmada de uma pessoa mulata.

Mais paradoxal ainda é pensar que, apesar de existir uma exaltação da ideologia da mestiçagem no Brasil, é raro encontrarmos trabalhos contemporâneos que falem sobre a identidade “mestiça” no que tange à própria construção e experiência cotidiana dos processos de racialização desses sujeitos.

Em 2012, Graziella Moraes Silva e Luciana T. de Souza Leão publicaram o artigo O paradoxo da mistura: identidades, desigualdades e percepção de discriminação entre brasileiros pardos, no qual buscam compreender como a perspectiva de pessoas pardas pode colaborar para o estudo das relações raciais no Brasil. Para tanto, as autoras dividem o grupo pardo em duas categorias: pardos-negros e pardos-pardos. No primeiro grupo, as pessoas se definem como pardas em função de dados objetivos, como o tom da pele ou a ascendência branca, e ao mesmo tempo se definem como negras por opção ou como resultado do processo de conscientização, pois reconhecem que passaram por discriminação racial. Diferentemente delas, as pessoas consideradas pardas-pardas pelas autoras não reconhecem que foram racialmente discriminadas, sendo essa a principal diferença entre um grupo e o outro.

Mais recentemente, em 2018, Luiza Abrahão da Silva escreveu sobre Colorismo e o reconhecimento: aspectos da construção identitária dos pardos e mestiços no contexto brasileiro, no qual ressalta o lugar limítrofe entre privilégios e barreiras experienciados pelas pessoas pardas.

Classificações Raciais, Identidades Raciais e Identificações Raciais no Brasil: A Linha Tênue entre essas Categorias

Discorrer sobre as formas de classificação racial brasileira e acerca de identidades e identificações raciais no cenário contemporâneo requer uma contextualização da história e da literatura sobre o tema e acerca do conceito de raça. Partimos do pressuposto de que raça é uma construção social que produz sentidos no cotidiano das pessoas e mantém profundas desigualdades materiais e simbólicas nas vidas dos brasileiros (Hasenbalg, 1979; Bento, 2002). Assim, o conceito de raça usado para nortear este artigo é o de raça social que, conforme Antônio Sérgio A. Guimarães (1999, p. 153), não se refere a um dado biológico, mas a “construtos sociais, formas de identidade baseadas numa ideia biológica errônea, a partir de diferenças físicas, mas eficaz socialmente para construir, manter e reproduzir diferenças e privilégios”.

Para esse autor, se a existência de raças humanas não encontra qualquer comprovação no bojo das ciências biológicas, elas são, contudo, “plenamente existentes no mundo social, produtos de formas de classificar e de identificar que orientam as ações dos seres humanos”. (Guimarães, 1999, p. 153). Neste sentido, as diferenças físicas percebidas como “raciais” também são construções sociais, pois é evidente que entre os seres humanos há uma ampla variedade de diferenças entre os corpos e marcas físicas, mas somente algumas são marcadas como raciais (cor, cabelo, nariz e boca).

Nesta mesma perspectiva, Omi e Winant (1994, p. 55) propõem o conceito de formação racial, e a raça é entendida como “um conceito que significa e simboliza conflitos e interesses sociais pela referência a tipos distintos de corpos humanos”. Para esses autores, a escolha de características físicas / marcas corporais específicas que significam “raças” é uma construção histórica e social e elas variam conforme as relações de poder do contexto geográfico e histórico. Ainda, é preciso pensar que as diferenças físicas que percebemos como importantes para a produção de classificações raciais são aquelas que diferenciam os europeus e seus descendentes dos povos por eles colonizados. Desta forma a racialização e o racismo do mundo ocidental são produções históricas e sociais advindas do colonialismo: suas raízes são longínquas, desde o escravismo. Elas ganharam novos contornos a partir principalmente dos séculos XIX, quando foram cientificamente teorizadas.

Posto isso, traçaremos um breve olhar sobre os diferentes estudos no campo das ciências sociais e humanas que se dedicaram a compreender o fenômeno das classificações raciais e formação de identidades étnico-raciais no Brasil para a compreensão da análise que faremos mais adiante sobre as identificações raciais.

Classificações Raciais

Via de regra, os estudos que se debruçam sobre classificação racial afirmam que o tipo de classificação racial brasileiro se dá por aparência (Guimarães, 1999; Petruccelli, 2007; Petruccelli & Saboia, 2013; Piza & Rosemberg, 2003; Telles, 2003) e não por ascendência/origem/ancestralidade. Assim, a caracterização de Nogueira (1979) sobre o tipo de preconceito racial brasileiro (por fenótipo) e quem são as suas vítimas (pessoas visivelmente negras) ainda é válida e atual.

Ao realizar uma análise comparativa entre o Brasil e os Estados Unidos da América, o autor utilizou as denominações “preconceito de marca” e “preconceito de origem”, sendo o fenômeno brasileiro exercido essencialmente sobre a aparência, sobre os traços físicos do indivíduo, e o fenômeno estadunidense definido sobre a ancestralidade. Entretanto, a despeito das diferentes pesquisas atuais apontarem que a aparência é a forma classificatória no Brasil, há uma diversidade de formas relacionadas às categorias de cor e raça que os brasileiros usam para interpretar a aparência dos sujeitos.

D’Adesky (2001, p. 135) indica o uso de cinco modos de classificação racial: (1) o uso das cinco categorias oficiais do IBGE - Branco, Pardo, Preto, Indígena e Amarelo; (2) o sistema branco, negro e indígena, referente ao mito fundador da civilização brasileira; (3) o sistema classificatório popular de 135 cores, segundo apurado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), em 1976; (4) o modo binário branco e não branco usado por inúmeros pesquisadores nas ciências humanas; e (5) o modelo binário branco e negro, proposto pelas organizações e o Movimento Negro.

Guimarães (1999), D’Adesky (2001), Piza e Rosemberg (2003), Munanga (2006) e Schwarcz (2012) apontam que as diferentes classificações raciais do sistema popular são marcadas por duas características principais. A primeira é a classificação a partir da marca física, ou seja, os diferentes nomes remetem às cores dos corpos. A segunda - e principal característica - é que este continuum de nomes dados às diferentes matizes de cores dos brasileiros está sempre permeado pela ideologia do embranquecimento, segundo a qual “a classificação popular reflete antes de tudo uma hierarquização, uma relação assimétrica, um continuum vertical em que a categoria branca se situa no topo e a categoria negra embaixo” (D’Adesky, 2001, p. 37).

Contudo, é preciso pensar que a categoria cor, no Brasil, tem sido usada como metáfora de raça e que, segundo Guimarães (1999), a noção de cor e a aparência física, no imaginário da população brasileira, substituíram oficialmente as raças. Ou seja, a cor da pele no Brasil é colada e atrelada à imagem de raça produzida pela ciência moderna.

Identidades Raciais e Identificações

Como qualquer identidade singular, as identidades raciais se constituem por processos de identificações e diferenciações, ou seja, por processos explícitos ou tácitos de identificações afetivas feitas pelo sujeito a algo que, consciente ou inconscientemente, quer para si como modelo, por exemplo, ele pode se identificar com uma pessoa, uma dada imagem, um discurso específico, um certo som, gesto etc., e, por extensão, ele se diferencia de outras imagens, discursos, modelos etc.

Nessa concepção, identidades raciais são “fixas”, processuais e institucionais/estruturais ao mesmo tempo. São em certa medida fixas porque são identidades atribuídas e há um modelo corporal que se espera que a pessoa tenha para que seja lida como pertencente a tal ou tal raça. São processualidades porque essas identidades são assumidas a partir da relação que o sujeito estabelece com o outro e com o contexto, o que é fixo pode se tornar em algum grau processo, por exemplo, uma pessoa pode ser lida como preta em Santa Catarina e como parda no Rio de Janeiro, mas, de um jeito ou de outro, como negra. Assim, há margem de manobra, mas há limites também. São os pardos (os sujeitos de origem multirracial, segundo definição do IBGE) que, de maneira geral, entram nesse campo de negociação, nesse limite estabelecido entre os pontos corporais que dizem que o sujeito é negro ou branco. São institucionais porque são modeladas por discursos hegemônicos ou contra hegemônicos. Nessa perspectiva, e de acordo com Bleger (1988, p. 313, grifos nossos), "a identidade é sempre - total ou parcialmente - grupal ou institucional, isto é: pelo menos uma parte da identidade é sempre configurada pela pertinência a um grupo, uma instituição, uma ideologia etc.”.

Ainda sobre a dimensão institucional/estrutural da identidade racial, ela inclui as diferentes variações da ideologia racista, isso é, a branquitude (a ideia de superioridade da identidade racial branca), a ideologia do embranquecimento e do “morenamento” (são elas que fazem com que pessoas negras titubeiem e, às vezes, não se reconheçam fortemente como negras) e, na contramão, o discurso contra hegemônico que afirma a negritude e confronta a branquitude.

Evidentemente, os processos identificatórios, que, segundo Freud (1996), são constitutivos de todo e qualquer sujeito psíquico, no tocante à identidade racial, não são aleatórios, eles se dão no contexto histórico específico do qual o sujeito faz parte, que, por sua vez, diz respeito às desigualdades raciais.

Comumente, o processo de identificação e de apropriação do discurso ideológico ou do contra hegemônico não é feito de forma compacta, sem alterações. Há transformações entre o que se vê e se escuta e a forma como o discurso é internalizado. Em muitos casos, há convergência e conformidade entre a atribuição e a assumpção identitária. Mas, como já sinalizado, pode haver descompassos, pode haver pessoas negras ou brancas que não se reconhecem como tal.

Por assim dizer, identificações são processos de pareamento afetivo com algo ou alguém. Identidades raciais são fruto desses processos e envolvem a noção equivocada de superioridade ou inferioridade, mas também de bem-estar, quando a pessoa se reconhece como branca ou negra sem se sentir superior ou inferior.

Identificações Raciais

As identificações raciais são sociais e subjetivas ao mesmo tempo. Elas referem-se ao processo específico de o sujeito consciente ou inconscientemente se identificar não apenas com características corporais, mas também com aspectos culturais, históricos, religiosos, antropológicos, ancestrais... relacionados a um determinado grupo racial, dizem respeito, assim, ao seu pertencimento sócio-cultural-racial. É ele que, a partir da estrutura sociocultural da qual o sujeito faz parte, dá a possibilidade e certa liberdade para que os sujeitos brancos, negros, orientais e indígenas psiquicamente se reconheçam como membros ou participantes de uma dada cultura, história, ancestralidade e acontecimento.

As alterações contemporâneas impressas pelos movimentos sociais, políticos e culturais a partir da noção de raça refletem nas práticas dos sujeitos, que hoje encontram diferentes opções culturais, políticas, corporais para as próprias narrativas de vida e de suas subjetividades. Assim, as identificações raciais seriam sínteses resultantes da apropriação de diversos significados culturais e simbólicos feitas por cada sujeito ao longo do seu percurso singular, no qual procuraria conciliar vivências, muitas vezes contraditórias, de diferentes contextos sociais em que circula. Como o processo de constituição do sujeito a partir da raça, isso é, a sua identidade racial, não começa do zero, este movimento de apropriação de significados e produção de sentidos baseia-se sempre em um conjunto de determinantes materiais e simbólicas construídas sócio-historicamente dentro da cultura em que está inserido.

Mestiços Brancos e Políticas de Ações Afirmativas para Pessoas Negras

Como apontado, há sujeitos brancos, lidos socialmente como brancos, mas que têm origem/ascendência negra e, conforme os critérios estabelecidos pelo IBGE, estas pessoas podem vir a se definirem com pardas. Para fins didáticos, nomeamos estes sujeitos de mestiços-brancos. Sobre o mestiço-branco, destacamos:

  1. sua identidade racial atribuída (a heteroidentificação), ou seja, a forma que ele é lido socialmente, é branca, ainda que seja branca “encardida” (Schucman, 2014);

  2. pela classificação racial do IBGE, ele pode escolher enquadrar-se como branco ou na categoria pardo;

  3. ele pode construir identificações psíquicas com o universo cultural considerado branco e/ou com a cultura considerada negra;

  4. ele pode ter sentimento de pertença ao grupo racial branco e/ou ao grupo racial negro.

Posto isso, podemos dizer que há dois tipos de mestiços fenotipicamente brancos. O primeiro é aquele que apresenta convergência entre a sua identidade racial, suas identificações raciais e a sua classificação racial, pois vê-se, é visto como branco e se identifica como pertencente ao “universo branco”, independentemente de valorizar ou não expressividades culturais vinculadas a outros grupais raciais.

O segundo caso refere-se ao mestiço fenotipicamente branco que se considera pertencente ao grupo racial negro pelo fato de que pode ser considerado pelo IBGE como pardo, e pardo está incluído na categoria negra. Nesse segundo caso, portanto, a classificação racial, a identidade racial e as identificações raciais não são coincidentes. A despeito de ter marcas corporais percebidas socialmente como brancas, por participar daquilo que é nomeado como cultura negra ou espaços geográficos negros e por ser descendente de negros, ele se identifica com seus ancestrais e com a cultura negra e, no tocante à classificação racial feita pelo IBGE, em função de sua ancestralidade e de suas identificações, se classifica como pardo e não como branco.

Esse sujeito pode gostar de dreads, samba, maculelê e capoeira 4, ter em seus documentos oficiais que é pardo, ou simplesmente ter admiração pelo “sangue” de um de seus pais, seus avós ou bisavós e se identificar com o sofrimento que eles viveram e sofrer o sofrimento com eles, inclusive, em sua família, pode ser o menos branco de todos. Se identificar com seus antepassados e respeitar a cultura negra como modelo de resistência e de vida dos povos negros pode ser escolha política e afetivamente reparadora, talvez, uma tentativa de cerzir o horror que o racismo fez com sua família originária e com tantos negros. Contudo, independentemente de sua ancestralidade, trata-se de uma pessoa fenotipicamente branca.

Por vezes, esses dois tipos de mestiços com fenótipos brancos concorrem a vagas de concurso destinadas exclusivamente para pessoas negras. Segundo Souza (2020), há registros de concursos em que bancas de aferição de autodeclaração racial indeferiram de 4% a 10% de candidatos, porque eles não foram considerados negros, mas há casos de concursos de status social elevado em que este número ultrapassou 40%.

Para a autora, as fraudes nas cotas raciais ocorrem quase sempre quando pessoas brancas se inscrevem como pardas. Ao analisar o perfil das fraudadoras, a pesquisadora elenca quatro categorias: (a) por convicção, são pessoas nitidamente caucasoides, que buscam alegar que há indefinição na categoria pardo do IBGE; (b) aventureiras, são pessoas com traços caucasoides menos acentuados, que, ao ressaltarem sua ascendência negra, supõem que teriam alguma chance de serem consideradas pardas; (c) cínicas, pessoas com poucos ou muitos traços fenotípicos caucasoides que tentam alterar suas marcas corporais para enganar os membros das bancas de heteroidentificação; (d) ingênuas, são aquelas que, em função da identidade negra afirmada, imaginam que são negras. Elas “se apegam, em primeiro lugar, na forma racional do significado da categoria do IBGE, para identificar ‘pardo’ e, em segundo lugar, na afirmação de uma possível identidade negra (parda), considerando suas vivências ao longo da vida como ‘pessoas pardas’” (IBGE, 2020, p. 89).

Consideramos que as ingênuas correspondem ao segundo tipo de mestiço branco aqui apresentado, pois não agem por má-fé. As pessoas branca-branquíssimas e aquelas que descrevemos como o primeiro tipo de mestiço-branco se enquadrariam nas outras categorias apresentadas por Souza (2020), pois elas sabem que não são negras. Neste caso, é crível considerar que agem por ganância, egoísmo, narcisismo, indiferença ou perversidade em relação às pessoas negras: pela branquitude.

Apenas as pessoas negras, isso é, as pretas e as pardas fenotipicamente negras têm direto às cotas raciais para negros, têm direito a ter acesso às políticas de ações afirmativas que foram criadas única e especificamente para elas.

Como se sabe, além de denunciar que o Brasil é um país racista contra a população negra, essas políticas têm como objetivo buscar eliminar desigualdades historicamente acumuladas; buscar garantir a igualdade de oportunidade e tratamento; e compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização por motivos raciais (Ministério da Justiça, 1996).

Assim sendo, uma pessoa negra que não se identifique com as expressividades culturais negras, não deixará de ser negra por isso, ela é afetada pelo racismo pelo simples fato de ser negra, independentemente de seus gostos e de seus pertencimentos afetivos e culturais. Assim, basta ter marcas negroides em seu corpo para ser pública, constante e automaticamente rebaixada.

Ressaltar que mestiços fenotipicamente brancos (de boa-fé) não têm direito às ações afirmativas voltadas para as pessoas negras não significa desconsiderar que: (a) eles possam sofrer com as histórias de suas famílias; (b) talvez, por não serem branquíssimos, passem por desconfortos, inclusive no interior de suas famílias; (c) possam valorizar as expressividades culturas negras. Significa tão somente reconhecer que elas não são sujeitas de direito da política, pois não são afetadas pelo racismo antinegro (Souza, 2020).

Na escola, na rua, no trabalho, na danceteria, no shopping... o mestiço fenotipicamente branco não é perseguido, humilhado, rebaixado, desdenhado, odiado, menosprezado, assassinado. A humilhação vivida pelo negro em cenários públicos como os citados torna-se dor interna, angústia. Ele sofre pública e internamente, constantemente, o golpe da humilhação vem a qualquer momento e em qualquer lugar: passado, presente e futuro amalgamam-se em um nó trágico de dor, e essa experiência de racismo vivida por pessoas negras é instransponível e irredutível para uma pessoa branca. Não há pertencimento familiar/cultural que legitime o acesso de pessoas brancas às cotas raciais.

Considerações Finais

Em função do racismo, no Brasil, ouvimos por muitos anos muitas histórias de pessoas negras que, por caminhos diferentes, buscaram se embranquecer. Eram pessoas negras que se diziam pardas, mulatas, morenas ou pardas escuras e que queriam ser vistas como se mais claras fossem, quem sabe, poderiam ser identificadas como não negras ou quase brancas. Essas são histórias antigas, que, ao que tudo indica não deixaram de ser atuais. Elas ainda existem entre nós, mas, supostamente, com menos presença, pois aquela força ideológica apelativa que as empurravam para o embranquecimento se deparou e tem se confrontado com outra, contra-hegemônica, propagada vivamente pelo Movimento Negro, é a força do enegrecimento, da negritude. Além da positivação da identidade racial negra, ela possibilitou a criação das políticas de ações afirmativas para negros. Assim, se antes um sujeito apresentar-se como pardo poderia ser sinônimo de negação da negritude e de humilhação, hoje em dia, reconhecer-se como pardo pode ser sinal de que o sujeito tem consciência de que identitariamente pertence ao grupo racial negro. Hoje em dia, em casos como esses, quando uma pessoa negra se reconhece publicamente como sendo uma pessoa parda negra é sinal que compreende os arranjos perversos e diversos que há no racismo e que ser parda não é uma negação, mas uma afirmação identitária.

Sobre o mestiço fenotipicamente branco que não age de má-fé e que se enquadraria na categoria pardo do IBGE se reconhecer como negro é exatamente o oposto, pois significa não reconhecer o status racial contido na brancura em uma sociedade estruturada pelo racismo fenotípico. Acreditamos, portanto, que esses sujeitos que estão identificados subjetivamente com a negrura, mas que, no entanto, em seus contextos sociais são classificados como brancos, podem expressar estas identificações engajando-se em diferentes frentes da luta antirracista e, assim, é importante que saibam diferenciar para quais sujeitos classificados como pardos foram formuladas as ações afirmativas de cunho racial.

Mesmo que nas bancas de aferição racial o candidato tenha de se declarar preto ou pardo, as políticas de ações afirmativas não foram fundamentadas em critérios do IBGE. Elas foram delineadas pelo Movimento Negro e por parcela da academia que, desde o final dos anos de 1970, tem produzido debate teórico sobre o racismo no Brasil. Desta maneira, se para o IBGE o pardo pode ser branco de origem miscigenada, para a política pública de ações afirmativas ele é branco, simplesmente branco.

1 Este termo se refere à linguagem cotidiana, não acadêmica. Foi encontrado em entrevistados da pesquisa: "Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: Branquitude, Hierarquia e Poder na cidade de São Paulo”. (Schucman, 2014)

2 Slenes (1992) coloca o branco entre parênteses, em vez de (branco), o autor usa o termo creme.

3 No Brasil, mulato é um dos termos utilizados no cotidiano para se nomear pessoas mestiças/pardas negras. No entanto, paulatinamente tem entrado em desuso, por ser considerado preconceituoso pela associação com o animal mula.

4 Uma variação desta temática é a da apropriação cultural e do quanto, do ponto de vista econômico, pessoas brancas conquistam status e dinheiro a partir de expressividades culturais negras que, ao serem apropriadas, paulatinamente passam a ser consideradas nacionais/brasileiras, perdendo o nexo com a história e as resistências negras.

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Recebido: 23 de Novembro de 2021; Revisado: 23 de Fevereiro de 2022; Aceito: 23 de Fevereiro de 2022

Eliane Silvia Costa Universidade Federal da Bahia, Instituto de Psicologia, Rua Professor Aristides Novis, 197, Estrada de São Lázaro, Federação, Salvador - BA, Brasil. CEP 40210-630, Endereço eletrônico: eliane.silvia@ufba.br

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