Nas últimas décadas, temos assistido à multiplicação dos estudos acerca do teletrabalho, um crescimento que corresponde à expansão da modalidade ao redor do globo. Com ênfase em suas vantagens e desvantagens, estudos empíricos acerca de diferentes aspectos para os atores envolvidos apontam caminhos para a melhor adaptação e provisionamento de recursos para a adesão ao teletrabalho (Nohara, Acevedo, Ribeiro, & da Silva, 2010; Rocha & Amador, 2018; Sakuda & Vasconcelos, 2005). Implicitamente, se configura uma proposta de prescrição de ações para a melhor gestão do teletrabalho e uma certa inevitabilidade de implantação da modalidade. Com a crise sanitária decretada em função da pandemia da COVID-19, o crescimento já acelerado do teletrabalho é catalisado em escala global, como alternativa de manutenção das atividades laborais diante das medidas de isolamento social, necessárias para a contenção do contágio do vírus. Durante o período da pandemia, cerca de 23 milhões de trabalhadores ingressaram no teletrabalho na América Latina, o que representa de 20 a 30% dos assalariados (OIT, 2021). Nesse contexto, há, dentre os que experimentaram o modelo, aqueles que desejam permanecer nele, sobretudo as organizações que atestaram a redução de custos de suas operações. Alguns estudos apontam, inclusive, para a adesão à modalidade como estratégia a ser incentivada pelos governos de forma permanente, por meio de políticas de implementação a longo prazo (Góes, Martins & Alves, 2022). No Brasil, estima-se que 20,4 milhões de pessoas se encontram em ocupações com potencial de serem realizadas de forma remota, o que representa 24,1% do total de ocupados do período, segundo dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) (Góes, Martins & Alves, 2022).
Dentre as vantagens mais frequentemente citadas na literatura, estão a flexibilidade de horários, a redução de tempo e dinheiro no deslocamento ao trabalho, e a possibilidade de conciliar o trabalho com outras demandas pessoais. Para as organizações, a economia com custos de manutenção de escritórios, aumento da produtividade dos trabalhadores e possibilidade de contratação de pessoas em qualquer lugar, figuram como principais vantagens. Desvantagens também são identificadas, dentre elas: o isolamento social, a dificuldade de conciliação entre os diferentes papeis dos trabalhadores, a extensão da jornada e sobrecarga de trabalho. Para organizações, os desafios de controle e manutenção da identificação com a organização são os principais desafios (Allen, Golden & Shockley, 2015; Figueiredo, Ribeiro, Pereira & Passos, 2021; Rocha & Amador, 2018).
Polissêmico, multimodal e poliforme, o teletrabalho representa mudanças significativas não apenas nos modos em como o trabalho é realizado, mas na própria relação que se estabelece com ele. Essas mudanças configuram uma transformação paradigmática no lugar que o trabalho ocupa na vida das pessoas na contemporaneidade. Alteram, inclusive, a maneira como os trabalhadores constroem sua identidade em torno do trabalho, sem os anteriores marcadores de elaboração da identidade: o ritual de sair de casa, o controle do tempo pela organização, o trabalho separado da esfera privada, como ocupante do espaço público. O trabalho deixa de ser um lugar para ir e passa a ser um conjunto de atividades a serem desempenhadas a qualquer hora e lugar, minimizando-se com isso as barreiras temporais e espaciais que antes o caracterizavam.
Dentre as diversas mudanças, elas também são exigidas quanto às formas de gerenciamento do trabalho, quando a própria noção de organização é questionada a partir desse modelo. Ao analisarmos a trajetória de desenvolvimento do trabalho, sobretudo em sua história mais recente, após as Revoluções Industriais, observamos que determinados processos de organização do trabalho exigiram as transformações das sociedades, em seus modos de vida, organização e consumo. Diferentes autores, a partir de perspectivas teóricas distintas, apontam para os momentos históricos em que essas relações se estabeleceram, elaborando a tese de que as mudanças do mundo do trabalho provocam e dependem da transformação cultural da sociedade, de adaptações no campo subjetivo para que essas mudanças se mantenham e se efetivem.
Os exemplos desses esforços de teorização do tensionamento subjetivo provocado pelo trabalho são diversos e partem de perspectivas epistemológicas distintas. O que apresentam em comum, no entanto, é a conclusão de que a organização do trabalho produz também uma organização no campo social. Gramsci (2011), por exemplo, apontou a emergência do que nomeou como “americanismo” necessário para a consolidação do modelo fordista. Heloani (2003) e outros autores identificaram os efeitos da gestão da qualidade total no toyotismo. A expansão neoliberal e ascendência da Indústria 4.0 também têm demandado mudanças subjetivas peculiares, que se fazem perceber nas práticas discursivas que marcam a contemporaneidade (Dardot & Laval, 2017).
Nesse sentido, para uma compreensão mais aprofundada das mudanças provocadas pelo teletrabalho, se faz necessário alterar o foco para além das consequências imediatas da atividade, ampliando o escopo de análise para as correspondentes mudanças subjetivas a partir das quais o advento do teletrabalho constrói e dialeticamente mantém. Por isso, o objetivo deste ensaio foi o de discutir as evidências das práticas e discursos neoliberais nos estudos acerca do teletrabalho, a fim de compreender a emergência de um sujeito teletrabalhador.
A fim de abordar essa discussão, o presente artigo se estrutura em três momentos. Primeiramente, buscaremos discutir algumas perspectivas sobre a subjetividade a partir de sua relação com os modos de organização do trabalho. Na segunda seção, traremos uma caracterização das subjetividades que se manifestam atualmente, com a emergência dos discursos do empreendedorismo de si e do sujeito neoliberal. Por fim, buscaremos relacionar os achados dos estudos empíricos acerca do teletrabalho e as evidências que apontam para essa subjetividade neoliberal. Na última seção abordaremos a síntese do que consideramos mais importante dessa discussão, com sugestões para uma agenda de pesquisa que avance nessas discussões.
Perspectivas de se pensar a subjetividade a partir de sua relação com os modos de organização do trabalho
Recuperar a trajetória do tensionamento entre os mecanismos de poder e controle e resistência da força de trabalho (Heloani, 2003) não é uma tarefa meramente historiográfica. Diferentes abordagens de análise das intricadas relações entre organização do trabalho e subjetividade foram desenvolvidas ao longo do tempo, um esforço que mobilizou autores de diversos campos do conhecimento, com compreensões distintas e, por vezes, contrárias, de sujeito e de trabalho. Agrupá-los nessa sessão não pressupõe posições unívocas ou mesmo uma base teórica em comum, mas o entendimento de que, a partir de suas contribuições, esses autores refletiram sobre os impactos dos modos de organização do trabalho na captura/composição de uma estrutura subjetiva e social específica.
O modelo fordista
Gramsci (2011) é um dos pioneiros nesse esforço e o faz na discussão do fordismo e naquilo que nomeou como “americanismo”. Tal como proposto por ele, o fordismo só encontrou possibilidade de expansão pela existência do americanismo, que seria o conjunto ideológico e cultural de fatores necessários para a produção de um modo de vida e de um tipo específico de trabalhador. Para o autor, o fordismo encontrou muito mais dificuldade de estabelecimento no continente europeu, cuja constituição social se formou por delimitações de classe definidas, incluindo uma nobreza com privilégios hereditários de ociosidade. Enquanto o sistema de valores norte-americano, pautado na trajetória histórica e formação demográfica particular dessa nação, deu condições para o desenvolvimento da produção nos moldes fordistas e vice-versa.
A ideia do americanismo se baseia na promoção do American way of life, uma ideologia que produz hábitos de consumo e vida adequados aos interesses do capital e pacifica articulações trabalhistas potencialmente confrontadoras, por meio de altos salários. Essa estratégia de dominação é eficaz e usa de artifícios diversos, que se articulam não apenas no trabalho, mas na sociedade, por meio do uso de estratégias de repressão, cooptação, cooperação e familiarização. Na concepção de Gramsci (2011), a coerção sozinha não é suficiente para a “domesticação” daqueles que vivem do trabalho, faz-se necessários mecanismos que os persuadam para a obtenção de seu consentimento às novas formas de trabalho e vida.
Harvey (1996), comentando o impacto das ideias de Gramsci, faz coro à compreensão de que um dos principais feitos de Ford foi o de apostar na promoção de certa ordem social e uma subjetividade compatível com as necessidades do sistema. Destacou que a excepcionalidade de Ford consistiu em reconhecer que a produção em massa exigia também o consumo de massa, cujas implicações demandariam uma nova política de controle e gerência, e, em última análise, uma nova sociedade. Conforme afirma Braverman (1987), os esforços de ajustamento dos trabalhadores aos modos de produção vão estar presentes de forma permanente no capitalismo, e que para superar as resistências dos trabalhadores a essa conformação, vai se utilizar de estratégias específicas.
Por meio dos treinamentos, da educação, da mobilização de sentimentos sociais e psicológicos, se construíram ideologias dominantes e presentes em diversas instituições religiosas, educacionais, midiáticas e estatais. Para isso, as iniciativas públicas e privadas se voltaram para a manutenção, formação, assistência e coerção sobre os trabalhadores, que estimulavam uma nova forma de reprodução da força de trabalho, na qual, ao invés da consanguinidade e da solidariedade dos membros do mesmo ofício, a empresa se “erigia como o espaço de concreção da grande família industrial” (Pinto, 2005, p. 4).
Embora bem-sucedido e estabelecido nos EUA, o taylorismo-fordismo não consegue manter sua hegemonia, haja vista que o crescimento necessário para a manutenção do modelo não seria sustentável a longo prazo. Desafios importantes são apresentados para os modos de produção capitalista no pós-guerra, tais como a entrada das economias internacionais na divisão da produção, a redução das demandas de reconstrução das nações afetadas pela II Guerra, o ingresso de outras nações na divisão internacional do trabalho. Novas soluções são requeridas para os problemas cíclicos do capitalismo, que passa a se dirigir a uma perspectiva de flexibilização do capital dos modos de produção. É quando assistimos à emergência dos modelos de gestão japoneses, expressos, sobretudo, pela iniciativa encabeçada pela fábrica da Toyota.
O modelo toyotista e da Qualidade Total
Com o agravamento da crise estrutural do capitalismo de 1970 e consequente derrocada da hegemonia do fordismo, surgem outros modelos produtivos, como as iniciativas japonesas do toyotismo, sistema just-in-time e os círculos de controle de qualidade. Esses sistemas podem ser pensados como atualizações dos controles tayloristas que intensificam cada vez mais a relação individual com o trabalhador, obstaculizando formas coletivas que promovam um desenvolvimento equilibrado no trabalho. Heloani (2003) recupera a “história da manipulação psicológica no mundo do trabalho” em sua obra, e realiza uma retrospectiva histórico-analítica dos processos de organização da produção e como esses processos buscam empreender a apropriação da subjetividade do trabalhador, seja individual ou coletivamente.
A proposta de produção do toyotismo se caracteriza pela implementação de novas técnicas de organização e racionalização da produção industrial, de forma a demandar um trabalhador com capacidades de utilização de tecnologias e processos de trabalho mais flexíveis. A flexibilização - da acumulação, dos mercados, dos processos, dos padrões de consumo - é a característica central do momento pós-fordista e está no bojo do desenvolvimento neoliberal (Harvey, 1996).
Dentre os elementos do toyotismo, os círculos de controle da qualidade (CQC), o Kanban e o sistema just in time são os que mais distintamente o caracterizam. Esses diversos protocolos organizacionais exercem um papel importante na internalização dos controles de produção fabril. O esforço dessas estratégias é o de reincorporar as dimensões subjetivas ao trabalho concreto, tornando mais consensual, envolvente e participativo. A lógica do capital busca capturar não apenas o fazer o trabalhador, mas seus afetos e cognições. Diferentemente da proposição fordista-taylorista de dissociação das competências intelectivas para o exercício laboral, o toyotismo encoraja os operários a pensarem soluções e agirem de forma proativa.
A operacionalização desses elementos exige modificações não apenas nos processos de trabalho, mas no comportamento dos trabalhadores. Assim como foi importante o domínio da capacidade física do trabalhador no modelo taylorista-fordista, nesse novo modelo há a expropriação da capacidade intelectual do trabalhador. O que é demandado agora, ao invés do controle rígido dos gestos e da destituição dos saberes do trabalhador, é um trabalhador multifuncional e qualificado, apto a operar em uma gama diversa de atividades (Heloani, 2003). O que o toyotismo avança em relação aos modelos que o precederam é justamente perceber que esse saber intelectual do trabalho é superior ao que supunham o taylorismo-fordismo e que seria necessário permitir que este florescesse e o fosse também apropriado pelo capital.
De forma gradativa, a individualização do trabalhador se torna uma estratégia de manipulação de subjetividades, por meio da intensificação do trabalho, pela perda de proteção trabalhista, com contratos temporários e, sobretudo, pelo desemprego observado a partir da década de 1980. Um dos aspectos mais relevantes de se destacar quanto às mudanças de organização do trabalho no toyotismo é a promoção da incorporação das estratégias de controle - antes a cargo dos diversos níveis hierárquicos gerenciais - pelos próprios trabalhadores. A investida toyotista tenta tornar os trabalhadores autogerentes das próprias atividades, subjetivamente implicados na busca pela melhoria contínua e pela qualidade total. Conforme aponta Pinto (2005), a organização flexível, ao promover o trabalhador polivalente, tornou irrestrito o controle patronal, graças à desverticalização da hierarquia de cargos, com a criação das células de produção e à introdução do “trabalho em equipe”, que possibilitou condicionar o treinamento, a adequação, a dedicação e produtividade ao controle dos próprios colegas de trabalho. Tenciona-se produzir um trabalhador, que por medo de perder o emprego, defende a produtividade do capital e vigia seus companheiros.
Pós-crise e virada neoliberal. A emergência nova razão do mundo.
Dardot e Laval (2017) ao analisarem o cenário contemporâneo do mundo do trabalho, remontam o momento característico de uma virada neoliberal. No esteio da crise capitalista dos anos 80, um conjunto de diferentes fatores se articulam de forma a dar condições para o surgimento de uma nova racionalidade. As críticas sistemáticas contra o Estado de bem-estar configuram a dimensão ideológica, ao passo que diversos governos passam a implementar políticas de redução da proteção estatal e estímulo ao livre mercado. Nesse contexto, mecanismos disciplinares - econômicos e sociais - estimulam os indivíduos a governarem sobre si mesmos segundo a lógica de valorização do capital. Tem-se então um conjunto de forças que atuam dinamicamente de forma a conformarem uma racionalidade pautada, sobretudo, na concorrência.
O Estado, no contexto de crise, contribui com as estratégias de exploração à medida que deixa de proteger os direitos trabalhistas, abrindo espaço para a flexibilização desenfreada do trabalho. Expande-se a terceirização, contrato de zero horas (no qual o trabalhador fica disponível, mas só é remunerado pelo trabalho efetivamente realizado), a uberização (trabalho terceirizado com vínculos digitais com a empresa), a pejotização (contratos com trabalhadores como pessoas jurídicas PJ), o home office e o teletrabalho. As novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) são utilizadas de maneira a controlar a força de trabalho, determinando prazos, ofertas, escalas, como, em quanto tempo e qual o valor recebido pelo trabalho que deve ser feito (Antunes, 2018). O efeito dessa gestão informatizada do trabalho é uma pressão coercitiva para que os trabalhadores estejam continuamente disponíveis, não recusem tarefas e sejam assíduos, sob a ameaça de descontinuidade dos serviços, sem qualquer aviso prévio. Há o agravamento da precarização do trabalho, que incorre também no uso de práticas discursivas. Para isso,
as grandes empresas e plataformas digitais se utilizam de um discurso no qual propõem-se intermediar atividades entre consumidor final e trabalhadores que oferecem serviços de forma autônoma, convertendo assim a força de trabalho em clientes, eliminando a subordinação destes, e alegando que estes desfrutam de liberdade para trabalhar quando, onde e como quiserem (Secco & Kovaleski, 2022, p. 1912).
Esse é o cenário de emergência de um novo tipo de sujeito, que pode receber nomenclaturas diversas e que Dardot e Laval (2017) nomeiam como sujeito neoliberal. Esse sujeito, conformado por essa racionalidade peculiar, é assinalado nos discursos institucionais que promovem no final do século XX a figura do “homem empresa” por meio de sanções, estímulos e comprometimentos que distinguem essa racionalidade, notadamente marcada pelo neoliberalismo. Nesta, não apenas os mercados e o Estado se adequam aos princípios competitivos, mas toda a sociedade passa a ser pensada na lógica do mercado, na qual cada sujeito é uma empresa que está constantemente concorrendo com outros sujeitos. Os autores apresentam que o sujeito neoliberal tem sua subjetividade alcançada pela lógica competitiva e a própria vida é pensada em termos de uma empresa, cujo capital - conquistas e realizações - precisa ser constantemente valorizado, no qual o indivíduo é empreendedor de si mesmo. Conforme sintetizam Dardot e Laval (2017, p. 330):
Injunge-se o sujeito a conformar-se intimamente, por um trabalho interior constante, à seguinte imagem: ele deve cuidar constantemente para ser o mais eficaz possível, mostrar-se inteiramente envolvido no trabalho, aperfeiçoar-se por uma aprendizagem contínua, aceitar a grande flexibilidade exigida pelas mudanças incessantes impostas pelo mercado. Especialista em si mesmo, empregador de si mesmo, inventor de si mesmo, empreendedor de si mesmo: a racionalidade neoliberal impele o eu a agir sobre si mesmo para fortalecer-se e, assim, sobreviver na competição.
No contexto altamente flexibilizado do neoliberalismo, com a retirada de proteções aos trabalhadores e índices crescentes de desemprego, os discursos do empreendedorismo de si depositam sobre os indivíduos a responsabilidade última sobre o seu sucesso ou fracasso. O sujeito neoliberal deve se manter em contínuo esforço de adaptação às regras do jogo, nas quais os direitos básicos se tornam produtos que os cidadãos têm a liberdade de escolher e adquirir. É ele - o indivíduo empresa - quem deve arcar com os riscos e continuamente se superar, com flexibilidade para as novas mudanças impostas pelo mercado (Dardot & Laval, 2017). A subjetividade nesse contexto é um ponto crítico nas estratégias de controle.
Essa racionalidade faz a mediação das relações sociais, que se tornam fragilizadas pela competitividade. O resultado disso é um comprometimento da esfera coletiva e do bem comum pelo estímulo ao consumo autocentrado, num ethos empresarial no qual os indivíduos buscam otimizar ao máximo seu capital humano. O princípio dessa nova ética é de que os objetivos da empresa são atingidos com os projetos pessoais de quem a integra. A concepção de uma empresa composta de pequenas empresas de si mesmo substitui anteriores laços de cooperação e integração entre trabalhadores. Recai sobre os indivíduos a responsabilização pela gestão de sua própria sobrevivência, ao invés de uma proteção social que minimamente a assegure. “Esse duplo aspecto do empreendedorismo é incorporado em políticas públicas, permeia as formas contemporâneas de gestão, embasa a produção discursiva de empresas e até mesmo decisões judiciais sobre a definição e o reconhecimento da subordinação do trabalho” (Abílio, 2021, p. 585).
A cultura do empreendedorismo de si compõe esse fenômeno, reforçando os meios de espalhamento da lógica mercantil sobre todas as áreas da vida social e cultural, na qual a empresa se torna o modelo de governo para toda a sociedade e um código de comportamento para o indivíduo. Reforça-se com isso a noção de que o sucesso é o sentido último da vida e só pode ser alcançado por meio do empreendedorismo. Valoriza-se assim uma atitude empresarial diante da vida, em que não apenas as empresas, mas todos os projetos de sociedade e ações individuais devem ser norteados por valores empreendedores, como: compromisso com metas, ousadia, abertura ao risco, autoconfiança e vigor.
O sujeito empreendedor de si é conformado por um discurso otimista, no qual a resolução dos problemas causados pela crise depende apenas de um esforço individual “no sentido de se adequar à racionalidade neoliberal que demanda subjetividades autônomas, predispostas ao risco e à competição, flexíveis e em constante movimento” (Secco & Kovaleski. 2022, p. 605). Nessa, os esforços individuais seriam os responsáveis pela ascensão social, numa noção de mérito ao indivíduo, agente sobre o qual o discurso neoliberal opera primordialmente. O consumo e a ascensão social se tornam pré-requisitos de humanidade.
Simultaneamente ao contexto de emergência desses discursos e práticas, o teletrabalho ganha espaço como modalidade de trabalho ao redor do mundo. Na próxima seção, buscaremos discutir as reverberações dessa racionalidade do sujeito neoliberal nos achados que as pesquisas sobre o teletrabalho têm encontrado. O esforço, nesse sentido, será o de ultrapassar a descrição das consequências imediatas da modalidade para problematizar o pertencimento do teletrabalho nos processos de transformações do trabalho que viemos discutindo até aqui e como o empreendedorismo de si determina essa nova modalidade de trabalho.
Discussão
Se ampliarmos nosso escopo de compreensão para incorporar o entendimento de que o teletrabalho é produto do processo neoliberal de flexibilização do trabalho, da acumulação flexível e do avanço tecnológico que caracteriza o toyotismo e a Indústria 4.0, entendemos que a perspectiva individualizante do neoliberalismo se operacionaliza na modalidade. Assim como os tensionamentos produzidos pelos modelos de organização no fordismo e, posteriormente, no toyotismo exigiram mudanças culturais e subjetivas - um novo tipo de trabalhador, segundo Gramsci -, assistimos aos esforços do neoliberalismo em imprimir uma certa subjetividade que acomode seus interesses.
Nesse sentido, passamos a ilustrar, com achados de estudos empíricos acerca do teletrabalho, aspectos que se relacionam com essa racionalidade neoliberal. Foram selecionados artigos que evidenciam três dimensões específicas que caracterizam esse sujeito neoliberal: os apelos para o pleno desempenho, a excessiva individualidade e solidão pautadas na lógica concorrencial e a busca de substituição das fontes de referenciamento da identidade pelo léxico empresarial, especificamente a família.
Um primeiro aspecto que podemos destacar na literatura da área são as prescrições quanto a um perfil apropriado de teletrabalhador. Em um dos primeiros estudos sobre o tema, Troppe (1999, p. 78) assinala que o teletrabalhador precisa assumir determinadas características:
capacidade de suportar a solidão, ótima capacidade de autonomia, bom senso de responsabilidade diante das missões que possuem prazo definido, boa organização pessoal, um bom ambiente familiar e disciplina pessoal para utilizar de forma correta seu horário flexível de trabalho, visto que sua família e amigos estão mais perto.
Da Costa (2013) encontrou que os teletrabalhadores se identificam com a atividade e a fonte dessa identificação são os discursos que alimentam suas autonarrativas como empreendedores de si. Encontra que os indivíduos adequados ao teletrabalho são aqueles seguros, independentes, confiáveis, automotivados, capazes de gerir seu tempo e determinar prioridades de maneira adequada. Em outras palavras, aqueles que internalizam os discursos da empresa e do empreendedorismo de si, cuja formatação de sujeito requer autonomia, responsabilidade, capacidade de responder a desafios e por si mesmo. Em revisão da literatura, Santos (2021) compila diversos estudos que corroboram com a ideia de um determinado padrão de teletrabalhador, que precisa: “saber administrar o tempo, ter a capacidade de diferenciar a vida profissional e particular, a capacidade de se auto motivar, de concentração, são habilidades chaves para que um trabalhador seja bem-sucedido como teletrabalhador.” (Santos, 2021, p. 26).
Podemos observar, nesse conjunto de características, alguns aspectos interessantes à nossa discussão. Em primeiro lugar, as tendências de internalização dos controles do ritmo e processos de trabalho que tem início da mudança paradigmática do modelo de produção toyotista e se amplifica, com auxílio das ferramentas tecnológicas, na Indústria 4.0. O que os estudos nomeiam como autonomia, automotivação e autodisciplina podem ser compreendidos como a internalização de ferramentas de controle subjetivo, que passam a operar não apenas na esfera do trabalho, mas a normatizar inclusive as demais esferas de vida. Observamos a compatibilidade do discurso de um sujeito empreendedor de si, pleno de suas capacidades de autodomínio, capaz de controlar seus ritmos, produção e tempo com a família com a lógica concorrencial do sujeito neoliberal.
O aumento da produtividade, é, inclusive, outro aspecto que se enfatiza nos estudos da área (Allen, Golden & Shockley, 2015; Filardi, Castro & Zanini, 2020). Mesmo em normativas que estabelecem o teletrabalho em instituições públicas está previsto o incremento de produtividade e aumento das metas e entregas para aqueles que se inserem na modalidade, com a busca de evidências empíricas desse aumento (Nogueira Filho, Oliveira, Sämy & Nunes, 2020). A carga horária das pessoas em home-office tende a ser superior às que se encontram em regime tradicional (Rocha & Amador, 2018). Novamente, esse dado corrobora com o ideal de um sujeito neoliberal com desempenho ótimo, superior aos demais, valorizado pela sua capacidade superior de produtividade. As práticas de gestão desse sujeito neoliberal intencionam fazer com que o indivíduo trabalhe para a empresa como se trabalhasse para si mesmo. Ele deve trabalhar para desenvolver sua própria eficácia, intensificando o seu esforço, e ser automotivado. O sujeito neoliberal é o indivíduo competente e competitivo, que procura maximizar seu capital humano em todos os campos, num processo de aprimoramento que realiza em si mesmo, levando-o a melhorar incessantemente seus resultados e desempenhos (Dardot & Laval, 2017).
Esse aumento da produtividade não é alcançado sem custos. Outro aspecto que diversas pesquisas têm evidenciado é o isolamento como consequência do teletrabalho (Bailey & Kurland, 2002; Rocha & Amador, 2018; Sakuda & Vasconcelos, 2005). Como pontua Rocha e Amador (2018), ao revisarem a literatura sobre o teletrabalho, a produção típica do trabalhador adequado ao teletrabalho indica uma tendência à superindividualização, que pode repercutir tanto no próprio trabalhador, por meio do isolamento social e profissional, quanto de forma ampliada na própria sociedade, promovendo transformações culturais que vulnerabilizam as relações de trabalho, com perdas da dimensão coletiva e promoção dos processos de individualização no campo social. Uma das características desse novo proletariado de serviços, ou o infoproletariado, é o incentivo a um trabalho isolado, de sociabilidade limitada e sem articulação social (Antunes, 2018).
No perfil prescrito ao teletrabalho supracitado vimos a tolerância à solidão como aspecto valorizado e como uma característica individual que tornaria o trabalhador mais apto à modalidade. No entanto, encontramos no bojo das teorizações sobre saúde do trabalhador os efeitos deletérios do isolamento e da solidão sobre a saúde mental dos trabalhadores. Bailey e Kurland (2002), ao identificarem usuários do teletrabalho mais deprimidos, teorizam sobre a possibilidade de isso refletir o isolamento social apontado na literatura. O problema, no entanto, não encontra solução imediata, pois envolve fatores objetivos e subjetivos. Algumas estratégias que têm sido indicadas para lidar com o isolamento é o uso da modalidade híbrida (Allen, Golden & Shockley, 2015) ou enfatizar o papel da liderança em ofertar suporte social (Figueiredo, Ribeiro, Pereira & Passos, 2021).
Ainda que se tente minimizar os efeitos do isolamento do trabalho, é importante compreendê-lo não como um efeito colateral desse modelo, mas como sendo um de seus objetivos. Ele é mais uma das características do processo de criação do sujeito neoliberal. A lógica concorrencial que marca essa racionalidade contribui para a concepção do outro como um concorrente e não como aliado. O comportamento individualista passa a ser a melhor forma de se adaptar ao contexto de incertezas que as transformações do trabalho impõem. A fragilidade dos vínculos nos relacionamentos de trabalho reflete o incentivo ao estado constante de prontidão para as mudanças que os novos modelos de gestão implementam. Essa racionalidade não apenas contribui para o enfraquecimento dos coletivos de trabalho, mas colabora inclusive para a sofisticação das situações de assédio.
O relacionamento com a família é outro espaço de tensionamento em que se evidenciam os desdobramentos do discurso neoliberal sobre os teletrabalhadores. As fronteiras historicamente erguidas em torno da esfera pública e da esfera privada da vida dos trabalhadores são removidas nessa modalidade e constituem desafios específicos em função disso. Por um lado, temos evidências que apontam para o aumento da interação com os familiares quando os trabalhadores passam a trabalhar no espaço de casa (Hau & Todescat, 2018). Em outros estudos, temos dados que apontam para o aumento de conflito família-trabalho, nos quais essa presencialidade no ambiente doméstico representou uma invasão do trabalho no tempo destinado à família (Hazan & Morato, 2019). Em ambas as perspectivas, assistimos a uma mudança importante no que diz respeito à relação entre trabalho e vida familiar, demarcada, sobretudo, por questões relativas ao gênero.
Smaha (2009), investigando especificamente a relação de trabalho e família para teletrabalhadores, encontra que proporciona simultaneamente a oportunidade de integração com a família e a dificuldade de conciliar esferas tão diversas: o mundo da casa e o mundo da rua. Para Kossek, Lautsch e Eaton (2006) o conflito não depende da preparação da família, mas da estratégia que o teletrabalhador realiza no estabelecimento de fronteiras entre o trabalho e a família. Aqueles cuja estratégia tem sido focada na integração dessas dimensões experimentam maior conflito entre família e trabalho. Esta constatação é explicada pelos autores como podendo ser decorrente do aumento das transições de papéis e perdas de processo por ter que mudar continuamente de um lado para o outro e reorientar-se entre o trabalho e os papéis familiares. Isto sugere que os indivíduos podem precisar ter a oportunidade de manter o trabalho longe da família, particularmente quando podem trazer trabalho para dentro de casa, como por exemplo, por teletrabalho (Kossek, Lautsch & Eaton, 2006). No campo das prescrições ao teletrabalho, identifica-se ainda aqueles que nomeiam a conscientização da família e a criação de mecanismo de balanceamento entre vida pessoal e atribuições laborais como estratégias necessárias ao teletrabalhador na implementação do teletrabalho, já que interferem nas condições de trabalho (Filardi, Castro, & Zanini, 2020).
O que se evidencia, então, é a recomendação da subordinação da dinâmica do espaço de vida familiar às demandas impostas pela adaptação à modalidade. Não é o teletrabalho que deve se adaptar ao ambiente doméstico, mas a família que deve ser conscientizada acerca das necessidades de novos arranjos de tempo e espaço que a modalidade impõe. Essa compreensão retoma a lógica neoliberal do trabalho como produtor de identidades e pertencimento, no que diz respeito ao ideal de sucesso produzido por ele. Em nome do sucesso, sacrifícios são realizados, o que inclui aqueles destinados à família. No entanto, estudos sobre a centralidade do trabalho historicamente identificam que na hierarquia de esferas da vida, a família vem em primeiro lugar (Balsan, Bastos, Beuron & Costa, 2019). Conforme afirma Da Costa (2013, p. 471), “O discurso do empreendedorismo de si só não se mostra capaz de acomodar conflitos advindos de duas frentes: o isolamento social e a família.”
Esses conflitos, no entanto, são vivenciados de forma diferente entre homens e mulheres. O que pode sugerir expectativas distintas do que seja o perfil de teletrabalhador ideal em função do gênero, já que outros discursos concorrem com o do empreendedorismo de si no que diz respeito à inserção das mulheres no mercado de trabalho. Ser bem-sucedido não apenas no trabalho, mas na manutenção do papel reprodutivo também correspondente ao ideal de pleno sucesso da subjetividade neoliberal. Embora o custo desse sucesso seja diferente para homens e mulheres.
Mulheres que também são mães trabalhadoras relatam maior satisfação com o teletrabalho, embora apresentem uma distribuição de tarefas muito distintas daquelas desenvolvidas pelos homens, com jornadas de trabalho doméstico muito mais extensas e manifestação da dupla jornada (Wheatley, 2012). No geral, mulheres enxergam vantagem no teletrabalho por conseguirem conciliar necessidade domésticas e familiares com as demandas laborais (Sullivan & Lewis, 2001). O controle sobre o tempo, no entanto, é realizado em função dos horários e rotinas dos demais membros da família, assim como suas próprias expectativas quanto aos seus papeis como mães e trabalhadoras. O tempo economizado no deslocamento é realocado em atividades de cuidado com os filhos e a casa, o que é percebido como vantagem, sem ter a divisão sexual do trabalho questionada (Hilbrecht, Shaw, Johnson & Andrey, 2008).
Conclusão
Esse ensaio buscou situar o teletrabalho como um fenômeno que corresponde às mudanças empreendidas no mundo do trabalho, notadamente, nas tendências neoliberais de organização do trabalho. Argumentou sobre a construção de um sujeito neoliberal nos discursos e práticas que incentivam o teletrabalho e discutiu as evidências da emergência dessa racionalidade neoliberal em alguns dos estudos empíricos sobre a modalidade. Três aspectos específicos dessa racionalidade buscaram ser evidenciados e discutidos nessa literatura: um perfil específico de teletrabalhador com os incrementos à produtividade, o isolamento social e os conflitos entre trabalho e família decorrentes do teletrabalho.
Embora constatemos os discursos e práticas que conduzem a um determinado modo de ser e agir, ressaltamos que a construção dessa racionalidade não se dá de forma direta e inevitável. Os sujeitos elaboram, resistem e dão sentido às vivências do teletrabalho. Apontamos a necessidade de ampliação do estudo do teletrabalho, para além de suas consequências imediatas, e consideramos que a investigação sobre o teletrabalho pode ser beneficiada por abordagens que busquem a articulação dialética da atividade concreta e suas repercussões subjetivas. Além disso, que foque nas estratégias de resistência e luta que esses trabalhadores têm adotado diante desse processo.
Outros resultados de estudos empíricos podem ser interpretados à luz do que viemos discutindo. É o retorno à contextualização concreta do teletrabalho que nos dá condições de compreender os impactos subjetivos que a atividade promove. Nessa direção, a Psicologia, em seu compromisso social e ético, precisa buscar, continuamente, a ampliação de suas possibilidades de análise teórico-técnicas para compreender os fenômenos que investiga de forma aprofundada e crítica. Compreender o teletrabalho como ferramenta de consolidação de um sujeito neoliberal, por exemplo, demanda esforços específicos no posicionamento da Psicologia diante da expansão da modalidade. Longe de recair num reducionismo de aprovação da modalidade, a discussão que viemos desenvolvendo até aqui reitera a complexidade das transformações do mundo do trabalho e tensiona os desdobramentos que derivam delas. Resgata, inclusive, a pergunta que nos é direcionada desde os primórdios do desenvolvimento da Psicologia no campo do trabalho: nossos esforços serão na direção da promoção do trabalho digno ou na mera colaboração com a adaptação das pessoas às exigências do mercado?