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Revista Brasileira de Terapias Cognitivas
versão impressa ISSN 1808-5687versão On-line ISSN 1982-3746
Rev. bras.ter. cogn. vol.11 no.1 Rio de Janeiro jun. 2015
https://doi.org/10.5935/1808-5687.20150004
ARTIGOS DE REVISÃO REVIEW ARTICLES
Terapia de aceitação e compromisso (ACT) e estigma: revisão narrativa
Acceptance and commitment therapy (ACT) and stigma: a narrative review
Érika Pizziolo MonteiroI; Gabriela Correia Lubambo FerreiraII; Pollyanna Santos da SilveiraIII; Telmo Mota RonzaniIV
IMestrado - (Estudante) - Juiz de Fora, MG, Brasil
IIMestrado - (Professora)
IIIDoutorado - (Professora)
IVPós-doutorado - (Professor)
RESUMO
A terapia de aceitação e compromisso (ACT) integra o grupo das terapias cognitivo-comportamentais (TCCs) e apresenta como conceito principal a flexibilidade psicológica, descrita como a capacidade de entrar em contato com o momento presente e as experiências internas e, de acordo com o contexto, persistir ou alterar a busca de objetivos e valores pessoais. O objetivo deste estudo é descrever os pressupostos filosóficos e teóricos da ACT, bem como sua aplicabilidade como possível estratégia de enfrentamento ao estigma internalizado. Sabe-se que o processo de estigmatização acarreta diversos prejuízos não só para a saúde, mas também em nível psicológico e social. Espera-se, com este estudo, basear futuras propostas empíricas de redução do estigma internalizado fundamentadas nos princípios da ACT, uma vez que a tentativa de eliminar diretamente estereótipos particulares pode ser menos frutífera do que a alternativa de modificar a ligação funcional entre pensamentos, sentimentos e comportamentos manifestos, sendo, portanto, viável considerar a ACT como abordagem para enfrentamento.
Palavras-chave: Estigma; Terapia cognitivo-comportamental; Terapia de aceitação e compromisso
ABSTRACT
The acceptance and commitment therapy (ACT) is included in the group of the cognitive behavioral therapies (CBT's) and has as its main concept the psychological flexibility, described as the ability to contact the present moment and internal experiences and, according to the context, persist or change the quest for personal goals and values. This paper aims to describe the philosophical and theoretical assumptions of this psychotherapeutic approach, also presenting it according to its main constructs. The process of stigmatization results in several losses, not only health-wise, but also at the psychological and social levels. It is expected with this study to base future empirical proposals to reduce internalized stigma based on the principles of the ACT, since attempting to directly eliminate particular stereotypes may be less fruitful than the alternative of modifying the functional connection between thoughts, feelings, and manifest behaviors, therefore being feasible to consider the ACT as an approach for coping.
Keywords: Stigma; Cognitive behavioral therapy; Acceptance and commitment therapy
INTRODUÇÃO
A maioria das pesquisas encontradas na literatura sobre estigma diz respeito a investigações sobre a magnitude do problema, buscando entender quais são os efeitos relacionados ao processo de estigmatização (Livingston & Boyd, 2010). Recentemente, entretanto, pesquisadores têm se voltado para discussões sobre alternativas eficazes para a redução do estigma (Livingston, Milne, Fang, & Amari, 2011).
O estigma internalizado, definido como possível consequência da percepção de um indivíduo desvalorizado socialmente sobre os estereótipos associados a sua condição de saúde ou seu status social, aplicando tais estereótipos a si mesmo (Corrigan & Watson, 2002), está associado a diversos fatores psicossociais, como diminuição da autoestima e autoeficácia e menor disposição para a busca por tratamento (Livingston et al., 2011). Sendo assim, considera-se relevante que discussões sobre abordagens potencialmente eficazes para o enfrentamento do estigma e dos efeitos negativos a ele associado sejam conduzidas por meio de perspectivas teóricas e empíricas.
A terapia de aceitação e compromisso (ACT), integrante do grupo das chamadas terapias cognitivo-comportamentais (TCCs), tem sido considerada uma proposta terapêutica promissora (Barbosa & Murta, 2014). A abordagem clínica da ACT, resultante de termos básicos de princípios do comportamento, apresenta como conceito principal a flexibilidade psicológica, conceituada como a capacidade de entrar em contato com o momento presente e as experiências internas e, de acordo com o contexto, persistir ou alterar a busca de objetivos e valores pessoais (Twohig, 2012).
Sendo assim, este trabalho descreverá os pressupostos teóricos e filosóficos de uma abordagem terapêutica denominada terapia de aceitação e compromisso (ACT), apontada na literatura como eficaz para o tratamento de diversas condições de saúde mental, entre elas sintomas depressivos, ansiosos e o próprio estigma internalizado (Hayes, Luoma, Bond, Masuda, & Lillis, 2006; Luoma, Kohlenberg, Hayes, Bunting, & Rye, 2008). Ainda, descreverá o processo de estigmatização e suas possíveis consequências, de forma a discutir a possibilidade de aplicação das técnicas psicoterápicas apresentadas ao fenômeno do estigma.
PROCESSO DE ESTIGMATIZAÇÃO
Em seu livro Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, Goffman (1963) define estigma como um atributo de grande descrédito, uma marca ou sinal que designa ao seu portador um status deteriorado, tornando-o incapacitado para aceitação social plena. Link e Phelan (2001), ao conceituarem estigma, assumem uma postura psicossociológica, estabelecendo uma relação entre os conceitos convergentes rotulação, estereótipos negativos, categorização, perda de status e discriminação.
A maioria das diferenças humanas é ignorada e, portanto, socialmente irrelevante, porém existem aquelas que são percebidas e rotuladas. O termo rótulo é utilizado para demarcar que o fato de determinada condição ser identificada e eleita como relevante é produto de um processo social. Uma vez rotuladas, as diferenças são ligadas a estereótipos e, sendo assim, pessoas negativamente rotuladas são consideradas diferentes daquelas que não partilham seu rótulo, implicando a separação entre "eles" e "nós" e a decorrente perda de status da categoria "eles". Como consequência inerente ao processo, ao serem rotuladas, categorizadas e ligadas a características indesejáveis, uma lógica de desvalorização, rejeição e exclusão é construída, o que caracteriza a discriminação dos considerados socialmente diferentes (Link & Phelan, 2001).
A atribuição de características indesejáveis a alguém pode conduzir à evitação e à rejeição da pessoa rotulada, ocasionando distanciamento social (Corrigan, Markowitz, Watson, Rowan, & Kubiak, 2003). Quanto aos dependentes de substâncias, pesquisas indicam que o estigma contribui para uma série de resultados adversos, incluindo empobrecimento das saúdes mental e física (Ahern, Stuber, & Galea, 2007), não conclusão do tratamento do uso de substâncias (Brener, von Hippel, von Hippel, Resnick, & Treloar, 2010), prejuízos na recuperação e reinserção social (Brewer, 2006) e maior envolvimento em comportamentos de risco (Simmonds & Coomber, 2009).
O processo de internalização do estigma, apontado na literatura como provável seguimento ao reconhecimento do estigma público, ocorre quando membros de um subgrupo imerso em atitudes preconceituosas de uma cultura dominante concordam com esses preconceitos, aplicando as atitudes negativas a si mesmos (Corrigan & Watson, 2002). Sendo assim, o estigma internalizado inclui os componentes do estigma público: primeiro, o indivíduo concorda com o preconceito em relação ao estereótipo criado para sua condição, e a consequente aplicação desses estereótipos negativos a si mesmo pode levar a respostas inadaptativas, como diminuição de autoestima e autoeficácia, acarretando, por exemplo, a não procura por um emprego ou a falta de oportunidades para levar uma vida independente (Corrigan, 1998).
Segundo Link e Phelan (2001), o estigma internalizado começa quando as pessoas desenvolvem teorias a respeito de determinada condição. Tais conhecimentos estereotipados internalizados afetam os indivíduos, uma vez que o preconceito e a desvalorização são antecipados, processo denominado consciência do estereótipo. Corrigan, Watson e Barr (2006) apontam que a consciência do estereótipo não necessariamente é uma medida de estigma internalizado, porque só inicia quando existe concordância com o estereótipo.
Segundo Corrigan e colaboradores (2006), em um estudo que buscou investigar as relações entre estigma internalizado, autoestima e autoeficácia, foi esperada uma correlação entre aceitação do estereótipo e autoestima. Ao descreverem seus resultados, evidenciaram que, embora a concordância com estereótipo não tenha apresentado uma relação estatística significativa com autoestima e autoeficácia, a depressão foi associada com autoaceitação e decréscimo na autoestima. As análises de regressão múltipla apontaram que autoestima e autoeficácia estavam associadas independentemente com depressão e estigma internalizado.
Felicíssimo, Ferreira, Soares, Silveira e Ronzani (2013), em sua revisão de literatura sobre a relação entre estigma internalizado e autoestima, ressaltam que o processo apresenta-se de forma circular, sendo assim, a internalização do estigma conduz à diminuição da autoestima, prejudicando as relações sociais e consequentemente reforçando o isolamento social do indivíduo e sua hesitação para a busca de ajuda profissional e tratamento adequado para sua condição. Os autores ressaltam a associação entre estigma internalizado, autoestima e adesão ao tratamento, destacando que os estudos encontrados em suas buscas (Fung, Tsang, & Corrigan, 2008; Tsang, Fung, & Corrigan, 2006) apontam que maiores níveis de estigma internalizado estão associados a menor adesão ao tratamento, ao passo que a maior participação nos tratamentos está associada a maiores níveis de autoestima.
Considerando que pensamentos disfuncionais se relacionam com o estigma e que podem interferir no bem-estar psicossocial dos indivíduos, acredita-se que a TCC pode ser útil na funcionalização dos pensamentos, sentimentos e comportamentos que o indivíduo apresente sobre si mesmo (Fung, Tsang, & Corrigan, 2008).
Em estudo realizado por Link, Struening, Rahav, Phelan e Nuttbrock (1997) com 84 homens com diagnósticos de transtorno mental e abuso de álcool e outras drogas, em que a variável estigma foi avaliada, concluiu-se que os efeitos do estigma podem ser duradouros e não transitórios, já que, um ano após o tratamento, mesmo que melhoras significativas tenham ocorrido, a percepção de desvalorização e a expectativa de discriminação continuaram a afetar os sujeitos do estudo.
Estratégias cognitivas podem auxiliar no trabalho dos indivíduos sobre as visões estigmatizantes sobre si mesmos e sobre expectativas negativas com relação ao futuro, assim como existem estratégias que buscam a promoção do empoderamento dos estigmatizados, o que tem efeitos positivos na autoestima e na autoeficácia. Nesse sentido, a proposta é ensinar aos indivíduos estigmatizados maneiras de lidar com o estigma, usando uma combinação de estratégias cognitivas e comportamentais (Corrigan, 1998).
DESCRIÇÃO DA TERAPIA DE ACEITAÇÃO E COMPROMISSO (ACT)
Pressupostos teóricos e filosóficos da abordagem
A ACT relaciona-se ao grupo das TCCs e, portanto, engloba pressupostos e técnicas nas quais há combinação de uma abordagem cognitiva e de um conjunto de procedimentos comportamentais (Knapp & Beck, 2008). No entanto, existem similaridades e discrepâncias entre a ACT e as TCCs, que serão descritas a seguir (Wilson, Bordieri, Flynn, Lucas, & Slater, 2010).
O princípio fundamental da terapia cognitiva é que a forma como os indivíduos percebem e processam a realidade influenciará a maneira como se sentem e se comportam. Considerando tal proposição, Aaron Beck desenvolveu, durante a década de 1960, uma abordagem psicoterápica estruturada, direcionada para a solução de problemas atuais e a alteração de pensamentos e comportamentos disfuncionais, postulando, portanto, sobre a existência de uma interação recíproca entre pensamentos, sentimentos, comportamentos e ambiente (Beck, 2013). As distorções cognitivas são vieses sistemáticos na maneira como os indivíduos interpretam suas experiências e, sendo assim, o objetivo da terapia cognitiva é reestruturar e corrigir esses pensamentos distorcidos, colaborando para desenvolver soluções práticas com o objetivo de produzir mudança e auxiliar na melhora de transtornos emocionais (Knapp, 2004; Knapp & Beck, 2008).
A terapia comportamental foi uma inovação da abordagem comportamental radical para os problemas humanos (Bandura, 1986), fixada nos princípios de condicionamento clássico e operante do behaviorismo, desenvolvendo um conjunto de intervenções voltadas para a mudança de comportamento. Embora a perspectiva comportamental tenha sido uma força dominante durante algum tempo, foi se tornando aparente, até o final da década de 1960, que uma abordagem não mediacional não era ampla o suficiente para explicar todo o comportamento humano (Mahoney, 1974).
Um segundo fator que facilitou o desenvolvimento das TCCs foi que a própria natureza de alguns problemas, como o pensamento obsessivo, tornou intervenções não cognitivas pouco funcionais. Sendo assim, o foco no comportamento proporcionou um aumento significativo no potencial terapêutico, mas não foi totalmente satisfatório para os terapeutas que reconheciam que os principais componentes dos problemas estavam sem tratamento. O desenvolvimento de intervenções de tratamento cognitivo-comportamentais ajudou a preencher uma lacuna em técnicas de tratamento dos clínicos (Dobson & Dozois, 2010).
Uma tendência recente no campo das TCCs tem sido a "terceira onda". Por "onda", entende-se um conjunto de suposições, métodos e objetivos organizadores de pesquisa, teoria e prática (Hayes, 2004). Fundada em uma abordagem empírica e focada em princípios, a terceira onda das TCCs é particularmente sensível ao contexto e a funções do fenômeno psicológico e não apenas as suas formas. Essa abordagem tende a enfatizar estratégias de mudanças contextuais e experimentais em adição às mais diretas e didáticas. Os tratamentos baseados nesses aspectos tendem a buscar a construção de repertórios amplos, flexíveis e efetivos sobre uma abordagem eliminatória para problemas bem definidos (Hayes et al., 2006). Dentre as abordagens classificadas como pertencentes à "terceira onda", pode-se citar a terapia comportamental dialética, a psicoterapia analítico-funcional e a terapia cognitiva baseada em mindfulness. Essas novas abordagens enfatizam questões como aceitação, atenção plena, valores, espiritualidade e relacionamentos, sendo seus métodos mais vivenciais e as correntes filosóficas que os embasam, contextualistas (Hayes, 2004).
Esse grupo de terapias tem sido associado com frequência à ACT (Hayes, 2004; Hayes & Strosahl, 2004). A ACT e os modelos relacionados a ela não se concentram tanto na precisão da percepção como sobre a utilidade funcional de diferentes maneiras de pensar e se comportar. Como nas psicoterapias estruturais, a ênfase é sobre o processo de interagir com o mundo em vez de sobre o conteúdo do que está sendo pensado ou feito (Dobson & Dozois, 2010).
O modelo filosófico sob o qual a ACT se baseia é denominado contextualismo funcional, abordagem filosófica que compartilha semelhanças com o behaviorismo radical. Twohig (2012) afirma que tal abordagem vê as questões psicológicos como ação em curso de um organismo como um todo interagindo em e com contextos histórica e situacionalmente definidos. Em outras palavras, a análise de um evento é feita de tal forma que seus elementos não sejam estudados isoladamente, sendo assim, características contextuais devem ser consideradas para qualquer ação.
O conhecimento da função de determinada ação é importante para que a intervenção sobre o comportamento apresente sucesso. O mesmo padrão se aplica às experiências internas. Essas são vistas, pela perspectiva da ACT, como respostas às situações ambientais, assumindo, portanto, um posicionamento comportamental (Hayes, Strosahl & Wilson, 1999; Twohig, 2012)
A ACT apresenta como raiz teórica a Relational Frame Theory (RFT) (Hayes, Barnes-Holmes, & Roche, 2001). A RFT se tornou uma das teorias analíticas básicas do comportamento humano. De acordo com a RFT, o núcleo da linguagem e cognição humanas é a habilidade aprendida e contextualmente controlada de, arbitrariamente, relacionar eventos em combinação e alterar funções de eventos específicos com base em suas relações com outros.
Três aspectos da RFT relacionam-se ao fato de a cognição humana ser considerada um tipo específico de comportamento aprendido, ao fato de a cognição alterar os efeitos de outros processos comportamentais e ao fato de relações e funções cognitivas serem reguladas por diferentes aspectos de uma situação (Hayes et al., 2006). As implicações primárias da RFT em psicopatologia e psicoterapia se estendem das três características citadas e são (Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001):
1) A resolução de problemas e o raciocínio verbal são baseados em alguns dos mesmos processos cognitivos que podem levar à psicopatologia e, portanto, não são viáveis para eliminar esses processos.
2) A extinção inibe, mas não elimina, respostas aprendidas. O senso comum de que redes cognitivas podem ser logicamente restringidas ou eliminadas não é psicologicamente adequado, uma vez que essas redes são reflexo dos processos de aprendizagem históricos.
3) Tentativas diretas de mudanças focadas em nós-chave das redes cognitivas criam contextos que tendem a elaborar aquela área e aumentar a importância funcional desses nós.
4) Já que o conteúdo de impacto de redes cognitivas é controlado por distintas características contextuais, é possível reduzir o impacto de cognições negativas, elas continuando ou não a ocorrer em uma forma particular.
Principais conceitos que compõem a ACT
A abordagem clínica resultante de termos básicos de princípios do comportamento denominada ACT apresenta como conceito principal a flexibilidade psicológica, conceituada como a capacidade de entrar em contato com o momento presente e as experiências internas e, de acordo com o contexto, persistir ou alterar a busca de objetivos e valores pessoais. O objetivo principal da ACT é aumentar a flexibilidade psicológica e, para atingi-lo, faz uso de seis processos psicológicos de mudança: aceitação, desfusão cognitiva, estar presente, eu como contexto, valores e ações comprometidas (Twohig, 2012). Cada um desses processos psicológicos de mudança é definido a seguir (Hayes et al., 2006; Twohig, 2012; Wilson et al., 2010; Silveira, Monteiro, Nery, Ferreira, Noto & Ronzani, 2014).
A "aceitação" é definida como ação de abraçar efetivamente as experiências internas enquanto elas estão ocorrendo. É vista como escolha e envolve uma postura acolhedora para com a experiência que está sendo vivenciada, diminuindo o esforço feito para controlá-la.
A "desfusão cognitiva" é pensada como a redução do significado literal de experiências internas de modo que os pensamentos são experimentados apenas como pensamentos, os sentimentos apenas como sentimentos, e as sensações corporais como sensações corporais. Trata-se do oposto de fusão cognitiva, quando as experiências internas são tomadas literalmente e têm amplo poder sobre as ações do indivíduo. Ambas, a desfusão e a fusão cognitivas, são úteis, apenas precisam ser aplicadas de forma flexível a situações diferentes.
"Estar presente" em geral é definido como atenção flexível, fluida e voluntária para questões internas e externas como eles ocorrem sem apego à avaliação ou julgamento. Estar presente no ambiente interno e externo ajuda a experimentar o mundo como ele realmente está ocorrendo e diminui o impacto de um mundo cognitivamente construído. Estar presente implica habilidades como capacidade de regular a atenção para o agora, experimentar aberta e totalmente o que está ocorrendo e rotular e descrever tais questões de forma imparcial. O oposto de tal processo é estar ligado a uma representação cognitiva do passado ou do futuro. O foco, em ACT, é ser capaz de perceber quando não se está presente e de forma flexível, deslocar a atenção para o presente se for esse o melhor interesse do cliente.
"Eu como contexto", de forma geral, é o que acreditamos. Sendo assim, o "eu" é o lugar de perspectiva que permite que eventos internos e externos sejam experimentados a partir do processo "eu/aqui/agora", sem se autodefinir por estas questões psicológicas.
Os "valores" são elementos da vida sobre os quais nos preocupamos e que nos motivam ao engajamento em certas atividades. Embora existam alguns valores comuns que a maioria das pessoas compartilha, os valores são escolhidos individualmente. Ajudar a esclarecer quais são os valores de um cliente tem o propósito de tornar mais provável que ele se aproxime de estímulos que originalmente seriam seguidos por evitação.
"Ação comprometida" é o redirecionamento contínuo do comportamento, de modo a construir padrões cada vez maiores de comportamentos flexíveis e eficazes ligados a valores. Envolve a definição de objetivos pessoais e a ação sobre essas metas, enquanto se praticam as outras estratégias de ACT, construindo padrões de ações orientados por valores.
ACT como estratégia de enfrentamento ao estigma internalizado
Uma vez que modelos e suposições básicas são questionados, uma temática entra em um período em que novas formulações emergem e competem com as anteriores sem que haja consenso sobre o valor das novas abordagens (Hayes, 2004). A ACT é uma abordagem relativamente recente e, sendo assim, destaca-se a importância de descrevê-la em termos de seus antecessores teóricos, considerando as mais diversas influências a partir das quais essa nova perspectiva se desenvolveu.
É necessário que evidências empíricas sobre as intervenções derivadas de novas abordagens teóricas sejam pesquisadas, uma vez que o apoio empírico é base essencial para que novos planos de tratamento para diversos aspectos relacionados à saúde mental sejam desenvolvidos. Dessa forma, é necessário investigar se o plano de tratamento desenvolvido se mostra benéfico em pesquisas controladas, se tem aplicabilidade clínica e, em caso afirmativo, com quais pacientes e em que circunstâncias (Corrigan, 2004).
Na revisão publicada por Hayes e colaboradores (2006), os autores apresentaram um compilado das evidências empíricas sobre os componentes da ACT, incluindo ensaios clínicos randomizados que apontaram os resultados dos grupos submetidos a procedimentos baseados em ACT como superiores às condições-controle. Para medir aspectos relacionados aos componentes da ACT, um instrumento denominado Acceptance and Action Questionnaire (AAQ) (Hayes et al., 2004) foi utilizado. O objetivo desse instrumento é medir o nível em que um indivíduo se conecta aos seus pensamentos, evita sentimentos e é incapaz de agir na presença de situações pessoais dificultadoras.
Hayes e colaboradores (2006) descrevem os resultados encontrados entre os escores da AAQ e sintomas psicológicos, relatando correlações entre a evitação experiencial e eventos traumáticos, tricotilomania, saúde física percebida, bem-estar no trabalho, depressão, fobia social, agorafobia, ansiedade, estresse parental, qualidade de vida e dependência de álcool. Ruiz (2010), em outra revisão realizada com propósitos semelhantes, aponta que, dentre os estudos empíricos por ele buscados, correlações positivas foram encontradas entre os escores obtidos pelo AAQ e sintomas depressivos ou ansiosos. Além desses, estudos investigando o papel da evitação experiencial com relação a sintomas psicológicos foram desenvolvidos com populações portadoras de doenças crônicas e outros objetivaram investigar a relação entre evitação, saúde mental e performance no trabalho.
A maioria das intervenções direcionadas à redução do estigma visa atingir o estigma social, por meio de abordagens como protesto ao estigma, informação e promoção de contato positivo (Corrigan & Penn, 1999; Link, Struening, Neese-Todd, Asmussen, & Phelan, 2002). Entretanto, ressalta-se a necessidade de desenvolvimento de propostas de intervenção cujo alvo seja o estigma internalizado e as possíveis consequências psicossociais a ele associadas.
Em um estudo realizado por Lucksted e colaboradores (2011), os autores enfatizam a necessidade de desenvolvimento de ações visando a redução do estigma e suas várias consequências negativas, denominando a intervenção "Ending Self-Stigma" - sessões de 90 minutos combinando leitura, discussão, compartilhamento de experiências pessoais, suporte grupal e resolução de problemas.
Um estudo realizado com 88 adultos diagnosticados com transtorno por abuso de substância participando em um programa de tratamento aplicou os princípios clínicos da ACT para a redução de estigma entre os dependentes de substâncias. Os grupos de intervenção baseados em ACT duraram seis horas e foram realizados como atividade alternativa aos procedimentos tradicionais de tratamento da unidade em que os participantes se encontravam. Segundo os autores, as atividades focaram no uso do processo de aceitação, desfusão cognitiva e contato com valores importantes, a fim de ajudar os participantes a aprender a responder aos seus pensamentos estigmatizantes e aos comportamentos que poderiam influenciar o processo de recuperação. Exercícios de mindfulness e metáforas foram utilizados para auxiliar os participantes a continuar focados nos acontecimentos presentes (Luoma et al., 2008).
Os autores do estudo citado pontuam que a tentativa de eliminar diretamente estereótipos particulares pode ser menos frutífera do que a alternativa de modificar a ligação funcional entre pensamentos, sentimentos e comportamentos manifestos. Sendo assim, técnicas de aceitação ensinam aos pacientes uma maneira de experienciar seus sentimentos de forma plena, reduzindo a ligação automática entre esses sentimentos e comportamentos manifestos, e técnicas de desfusão cognitiva auxiliam na concentração sobre o processo de pensamento e em sua viabilidade (Luoma et al., 2008).
Considerando que os aspectos teóricos que embasam os componentes clínicos da ACT enfatizam a relação entre pensamentos, sentimentos e comportamentos manifestos como alternativa à tentativa de modificação de seus conteúdos, justifica-se a utilização de uma proposta de intervenção baseada em ACT como possível abordagem a ser empiricamente investigada com relação a sua eficácia para a redução do estigma internalizado entre populações como usuários de álcool e outras drogas.
CONCLUSÃO
Destaca-se a necessidade de conhecer os pressupostos filosóficos e teóricos de qualquer abordagem clínica, no sentido de preparar atendimentos o mais fidedignos possível. O conhecimento teórico prévio permite que pesquisas sejam desenvolvidas para avaliar a eficácia e a adequabilidade das propostas de intervenção.
Uma vez que estigma internalizado e ACT se relacionam teoricamente, pretende-se, no futuro, desenvolver uma proposta de ação para redução do estigma internalizado por meio de aplicação de práticas baseadas nos princípios da ACT.
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Correspondência:
Erika Pizziolo Monteiro
Rua José Lourenço Kelmer, s/n - Campus Universitário, Novo-ICH, sala B-III-21, Bairro São Pedro
Juiz de Fora - MG. CEP: 36036-900
E-mail: erikapizziolo@gmail.com
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBTC em 24 de setembro de 2014. cod. 303.
Artigo aceito em 24 de março de 2016.