INTRODUÇÃO
Os problemas emocionais e de comportamento (PECs) em crianças são uma constante fonte de preocupação entre pesquisadores e educadores devido ao impacto que podem exercer ao longo do desenvolvimento infantil (Cid et al., 2019). Os PECs podem ser classificados em problemas internalizantes e externalizantes, e a infância é indicada como um período crítico para sua manifestação, pois a ontogênese nessa fase desenvolvimental configura uma parcela importante da estruturação da personalidade e das habilidades socioemocionais do indivíduo (Waller et al., 2015).
Os problemas externalizantes, que incluem sintomas como agressividade, comportamentos opositores, busca pelo risco, déficit de empatia e de comportamento pró-sociais (American Psychiatric Association [APA], 2022), quando não tratados, podem evoluir e desencadear outros problemas de saúde mental, incluindo uso ou abuso de substâncias, dificuldades acadêmicas, ocupacionais e financeiras (APA, 2022; Vilhena & Paula, 2017). Além disso, em casos extremos e que não recebem qualquer intervenção, os indivíduos podem estar sujeitos a transgredirem regras e normas sociais e ter dificuldades em se ajustar novamente a sociedade (Silva et al., 2020; Wendt & Koller, 2019).
Já os problemas internalizantes, que incluem sintomas como respostas de ansiedade, medo, humor deprimido, busca por isolamento e esquiva, podem acarretar, além do acentuado sofrimento, desenvolvimento de comorbidades psiquiátricas e déficits em diferentes áreas da vida, a exemplo da reprovação escolar, que também é outro fator de risco para os PECs (APA, 2022). Assim como os problemas de conduta, os indicadores de ansiedade e depressão geram um custo para a sociedade em função da necessidade de políticas públicas para atendimento em saúde mental e física no Sistema Único de Saúde (Murray et al., 2015).
Na infância, sabe-se que os PECs têm etiologia multifatorial, dependendo tanto de aspectos biológicos e temperamentais quanto de aspectos ambientais (Waller et al., 2015). Entre eles, destacam-se as práticas parentais, incluindo estimulação da disciplina (Pereira et al., 2020), aspectos individuais dos pais, como saúde mental (Phua, 2020) e escolarização (Alvarenga et al., 2020), assim como conjugais (Roseiro et al., 2020) e familiares, tal como nível socioeconômico (Maria-Mengel & Linhares, 2007).
As pesquisas que envolvem temas sobre a prevenção de PECs na infância focam-se na avaliação de fatores de risco e de proteção. Fatores de risco são caracterizados por eventos que podem aumentar a chance de um resultado indesejável (Sá et al., 2010). Os fatores de risco, por sua vez, podem ser estáticos e dinâmicos. Os estáticos são aqueles que não se modificam ao longo da vida, como sexo, etnia ou histórico de violência na família; já os fatores de risco dinâmicos se caracterizam por serem mutáveis, como os estilos e as práticas parentais ou os conflitos na família, sendo, portanto, modificáveis por um processo de intervenção (Heffernan & Ward, 2017). Em razão disso, sua identificação é fundamental.
O objetivo deste estudo foi caracterizar uma amostra de responsáveis legais de crianças de 1º ao 3º ano do ensino fundamental residentes na segunda cidade mais populosa do Rio Grande do Sul (RS) e com maior número de escolas municipais do estado, com relação a características sociodemográficas, laborais e de saúde mental, bem como avaliar a percepção sobre a educação de seus filhos e examinar a associação entre tais variáveis com indicadores de PECs na infância. A investigação sobre fatores associados e preditores dos PECs pode ajudar autoridades e entidades educacionais e da saúde a desenvolver mecanismos que visem a proteção ao desenvolvimento de crianças desde a tenra infância, possibilitando um futuro mais promissor e seguro quanto aos seus impactos ao longo da vida.
MÉTODO
Participantes
Foram convidados a participar deste estudo todos os responsáveis das crianças matriculadas do 1º ao 3° ano do ensino fundamental da rede municipal de Caxias do Sul (RS), totalizando 10.800 pessoas. Contudo, preencheram aos instrumentos 4.514 participantes, sendo 86,5% do sexo feminino. Conforme cálculo amostral, considerando um nível de confiança de 99% e uma margem de erro de 5%, o mínimo de participantes a ser considerado seria 627.
Delineamento
Trata-se de um estudo com delineamento explicativo, com corte transversal, de abordagem quantitativa (Marin et al., 2021).
Procedimentos éticos e de coleta de dados
Para a realização do estudo, a Secretaria Municipal de Educação (SMED) de Caxias do Sul (RS) foi contatada. O município tem o maior número de escolas municipais no estado e a pesquisadora já tinha sido convidada para trabalhar com os professores na região em outras oportunidades. Por essa aproximação, o projeto foi apresentado à Coordenação Pedagógica da SMED, a qual concordou com a realização da pesquisa.
Após anuência da SMED, o estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (CAAE: 09173319.2.0000.5344). Portanto, todos os cuidados implicados em estudos com seres humanos foram tomados. Os responsáveis pelas crianças receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), no qual constava a não obrigatoriedade de sua participação. Ainda, receberam o contato das pesquisadoras responsáveis caso sentissem necessidade de esclarecer alguma dúvida ou para solicitar algum apoio a qualquer desconforto que experimentassem.
Foram enviados à SMED os instrumentos de pesquisa junto ao TCLE, que foram entregues aos diretores/coordenadores de todas as escolas da rede e distribuídos para os professores do 1º ao 3º ano do ensino fundamental. Por sua vez, estes entregaram os documentos aos pais de seus alunos no início do ano letivo de 2019. Após preenchidos, eram devolvidos às escolas pelos alunos, sendo entregues para os professores, que os reuniam e confiavam aos coordenadores. Eles remetiam os instrumentos à SMED, local onde a pesquisadora responsável os retirava para análise.
Instrumentos
Questionários de Dados Sociodemográficos para Pais: desenvolvido para este estudo pelas pesquisadoras visando à obtenção de informações sobre características acadêmicas, econômicas e laborais dos pais, bem como aspectos da saúde mental, como experimentar sentimentos de irritabilidade, tristeza e estresse nos últimos seis meses, além de questionar acerca da percepção sobre a educação de seus filhos.
Questionário de Capacidades e Dificuldades (SDQ) - versão para pais (Goodman, 1997): instrumento validado para o Brasil por Fleitlich et al. (2000), que rastreia problemas de saúde mental infantil em cinco áreas: problemas no comportamento prossocial, hiperatividade, problemas emocionais, de conduta e de relacionamento. A soma de cada escala e a soma total (α = 0,80) permitem a classificação em três categorias: desenvolvimento normal, limítrofe ou anormal. Para fins de análise, considerou-se “ausência de PECs” quando classificado como normal e “presença de PECs” quando classificado como limítrofe ou anormal. Neste estudo, os índices de confiabilidade variaram de 0,61 a 0,78, estimados como satisfatórios (Streiner, 2003).
Procedimentos de análises dos dados
A análise dos dados foi realizada por meio de estatística descritiva (frequências absolutas e relativas para variáveis categóricas; medidas de tendência central e variabilidade para variáveis quantitativas), com estudo de simetria pelo teste de Shappiro Wilk. Para análises bivariadas entre as variáveis categóricas, foi utilizado o teste qui-quadrado de Pearson (χ2), sendo que nas tabelas de contingência 2 x 2 foi empregada a correção de continuidade de Yates. Por fim, utilizou-se a análise de regressão logística binária, pelo método de seleção backward condicional, com análise de associação pelo teste da razão de máxima verossimilhança (likelihood-ratio test - 2LL ou -2log), e, na avaliação da qualidade do ajuste do modelo final da regressão logística, consideram-se os estimadores de R2 de Nagelkerk, Hosmer-Lemeshow e matriz de confusão.
A ausência de informações em algumas variáveis foi tratada como descarte, tanto nas análises descritivas como nas inferenciais. Nesse cenário, os casos com dados ausentes foram eliminados das análises (Little & Rubin, 1987).
Resultados e discussão
Os resultados são exibidos de forma descritiva, mas também comparativa entre os grupos que apresentaram e não apresentaram crianças com PECs. A amostra de responsáveis que responderam aos instrumentos foi composta por 86,5% de mulheres, sendo que 76,5% eram casadas ou moravam com o companheiro. Com relação à formação acadêmica, 17,7% tinham ensino fundamental incompleto, 30%, completo, e 29%, ensino médio completo. Declararam-se desempregados 20,2%, e a faixa de renda distribuiu-se da seguinte forma: 20,2% dos participantes recebendo até 1 mil reais por mês, 42,3%, de 1 a 2 mil reais, 26,8%, de 2 a 4 mil reais, e apenas 10,6%, mais de 5 mil reais. Constatou-se, ainda, que a maioria das famílias vivia com renda abaixo de 2 mil reais, sendo que 70,1% delas tinham de três a quatro pessoas dependendo desse valor.
Em relação à percepção sobre a educação de seus filhos, apenas 3% dos respondentes consideraram que eles se comportavam mal ou muito mal, ainda que na avaliação dos PECs 29,9% atingiram o nível limítrofe ou anormal de dificuldades. Além disso, 18% relataram ter dificuldades em disciplinar seus filhos e 14,5% referiram cansaço ao brincar com eles. Como estratégia, 27% indicaram que têm lido sobre comportamento infantil e 10,7%, que têm algum profissional ajudando-os a lidarem com os comportamentos do filho.
Ainda, constatou-se que menor nível de formação acadêmica dos responsáveis foi associado à presença de PECs (p < 0,001). Os casos de crianças sem problemas de comportamento estiveram associados a níveis de escolaridade mais elevados dos pais, especificamente à ensino superior em andamento ou concluído e pós-graduação. A mesma associação foi identificada com a renda familiar (p < 0,001), em que o grupo de crianças com PECs relacionou-se às faixas de rendimento de até 2 mil reais, enquanto nos casos sem dificuldades, a associação foi identificada com as faixas de rendimento de 4 mil reais ou mais. Esses dados são apresentados na Tabela 1.
Variáveis | PECs | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
Ausente | Presente | Significância | ||||
N | % | n | % | |||
Formação acadêmica | (n = 3.031) | (n = 1.285) | p < 0,001 | |||
Ensino fundamental incompleto | 450 | 14,8 | 299 | 23,3 | ||
Ensino fundamental completo | 905 | 29,9 | 390 | 30,4 | ||
Ensino médio | 886 | 29,2 | 368 | 28,6 | ||
Ensino superior incompleto | 222 | 7,3 | 73 | 5,7 | ||
Ensino superior em andamento | 320 | 10,6 | 82 | 6,4 | ||
Ensino superior completo | 209 | 6,9 | 65 | 5,1 | ||
Pós-graduação | 39 | 1,3 | 8 | 0,6 | ||
Renda mensal familiar | (n = 2.841) | (n = 1.180) | p < 0,001 | |||
Até 1 mil reais | 499 | 17,6 | 305 | 25,8 | ||
Até 2 mil reais | 1.174 | 41,3 | 532 | 45,1 | ||
Até 4 mil reais | 813 | 28,6 | 268 | 22,7 | ||
Até 5 mil reais | 215 | 7,6 | 52 | 4,4 | ||
Mais de 5 mil reais | 125 | 4,4 | 21 | 1,8 | ||
Mais de 10 mil reais | 15 | 0,5 | 2 | 0,2 |
Nota. Dados ausentes - Formação [102(2,3%)]; Renda mensal [405(90%)]. Fonte: Elaboração das autoras.
A baixa escolaridade dos pais tem sido associada com dificuldades no desenvolvimento infantil dos filhos (Andrade et al., 2005). Em um estudo recente (Azevedo e Silva et al., 2020), os achados indicam a proporcionalidade direta entre renda e/ou escolaridade dos pais e quociente de inteligência (QI) da criança. Tais dados corroboram evidências do impacto do ambiente no desenvolvimento das crianças, ressaltando a seriedade de promover programas preventivos para auxiliar na melhora das condições familiares, como renda, escolaridade dos pais e crises familiares.
A baixa renda familiar parece ser um problema crônico para os brasileiros, uma vez que muitos estão abaixo da linha da pobreza. O Brasil recentemente registrou que o rendimento domiciliar per capita é de R$ 1.438,67 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2020). As famílias com baixa renda costumam ter acesso prejudicado a informação, educação e saúde, acarretando a origem e a manutenção de problemas em saúde mental. Além disso, considerando que as dificuldades financeiras podem elevar os conflitos familiares, destaca-se a associação entre tais conflitos e a maior incidência de PECs em crianças (Assis et al., 2009). A Tabela 2 apresenta dados sobre a situação conjugal e estressores vivenciados nos últimos seis meses pelos responsáveis.
Variáveis | PECs | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
Ausente | Presente | |||||
n | % | n | % | |||
Responsável passou por divórcio | (n = 2.909) | (n = 1.228) | < 0,001 | |||
Não | 2.534 | 87,1 | 976 | 79,5 | ||
Sim | 375 | 12,9 | 252 | 20,5 | ||
Tristeza | (n = 2.905) | (n = 1.254) | < 0,001 | |||
Raramente | 1.729 | 59,5 | 464 | 37,0 | ||
Às vezes | 1.128 | 38,8 | 721 | 57,5 | ||
Todo dia | 48 | 1,7 | 69 | 5,5 | ||
Estresse | (n = 2.940) | (n = 1.277) | < 0,001 | |||
Raramente | 838 | 28,5 | 181 | 14,2 | ||
Às vezes | 1.925 | 65,5 | 867 | 67,9 | ||
Todo dia | 177 | 6,0 | 229 | 17,9 | ||
Preocupação | (n = 2.950) | (n = 1.280) | < 0,001 | |||
Raramente | 612 | 20,7 | 362 | 28,3 | ||
Às vezes | 1.753 | 59,4 | 652 | 50,9 | ||
Todo dia | 585 | 19,8 | 266 | 20,8 | ||
Irritabilidade | (n = 2.909) | (n = 1.274) | < 0001 | |||
Raramente | 1.412 | 48,5 | 381 | 29,9 | ||
Às vezes | 1.408 | 48,4 | 768 | 60,3 | ||
Todo dia | 89 | 3,1 | 125 | 9,8 | ||
Dificuldade em disciplinar o filho | (n = 3.043) | (n = 1.295) | < 0,001 | |||
Nenhuma | 1.654 | 54,4 | 287 | 22,2 | ||
Pouca | 1.335 | 43,9 | 824 | 63,6 | ||
Bastante | 54 | 1,8 | 184 | 14,2 | ||
Sensação de cansaço ao brincar com o filho | (n = 2.994) | (n = 1.260) | < 0,001 | |||
Não | 2.663 | 88,9 | 969 | 76,9 | ||
Sim | 331 | 11,1 | 291 | 23,1 | ||
Ter profissional ajudando com comportamento do filho | (n = 3.049) | (n = 1.305) | < 0,001 | |||
Não | 2.815 | 92,3 | 1.064 | 81,5 | ||
Sim | 234 | 7,7 | 241 | 18,5 | ||
Nível de satisfação com a escola | (n = 3.072) | (n = 1.311) | < 0,001 | |||
Insatisfeito | 39 | 1,3 | 44 | 3,4 | ||
Satisfeito | 1.691 | 55,0 | 806 | 61,5 | ||
Muito satisfeito | 1.342 | 43,7 | 461 | 35,2 |
Nota. Dados ausentes - Passou por divórcio [291(6,4%)]; Tristeza [271(6,0%)]; Estresse [214(4,7%)]; Preocupação [198(4,4%)]; Irritabilidade [248(5,5%)]; Dificuldade em disciplinar o filho [81(1,8%)]; Sensação de cansaço ao brincar com o filho [163(3,6%)]; Ter profissional ajudando com o comportamento do filho [66(1,5%)]; Nível de satisfação com a escola [29(0,6%)].
Fonte: Elaboração das autoras.
O divórcio parental recente foi associado positivamente com a presença de PECs nas crianças. Outros pesquisadores sustentam esses achados quando encontram relações significativas entre estressores de vida com emoções de medo e raiva e uso de estratégias de enfrentamento mal-adaptativas (Roseiro et al., 2020), como a oposição e a fuga. Essas respostas são, em grande parte, fatores de risco para o desenvolvimento de PECs, assim como para transtornos psiquiátricos (APA, 2022). A interrupção ou distanciamento do genitor que não reside mais com o filho, assim como os conflitos inter-parentais, têm sido descritos na literatura como um fator desfavorável ao bem-estar emocional e comportamental de crianças pós-divórcio dos pais (Campeol et al., 2021). Nesse sentido, o divórcio pode desencadear sintomas físicos e mentais na infância, incluindo o surgimento de problemas comportamentais internalizantes e externalizantes (APA, 2022; Nunes-Costa et al., 2009). Ele ainda está associado a desfechos negativos dos filhos ao longo de seu desenvolvimento, como depressão, estresse, abuso de álcool e outras substâncias (Auersperg et al., 2019).
Os PECs na infância também se relacionam com a percepção dos estados emocionais parentais. No que se refere a tristeza, estresse, preocupação e irritação, as associações com a presença de PECs se mostraram significativas (p < 0,001). Os resultados apontaram que as crianças com indicadores de PECs tinham responsáveis com maiores níveis de tristeza, percebendo-a “às vezes” e “todo dia” nos últimos seis meses, enquanto entre os responsáveis das crianças sem PECs, a associação ocorreu “raramente”. Resultados semelhantes foram observados em relação as percepções de estresse, preocupação e irritabilidade. Já está consolidado que problemas emocionais maternos, em especial a depressão, afetam negativamente o comportamento dos filhos (Phua, 2020), uma vez que os estados emocionais podem impactar a forma como o indivíduo atua no ambiente, refletindo no uso de práticas não assertivas de disciplina para com os filhos (Fava et al., 2018).
Considerando-se o fator dificuldade de disciplinar os filhos, evidenciou-se que ele foi significativamente mais presente entre as crianças com PECs (p < 0,001), enquanto naquelas sem tais problemas a associação ocorreu com a ausência dessas dificuldades por parte dos responsáveis. A dificuldade de disciplinar os filhos é um tema atual e se tem destacado que a disponibilidade afetiva, os ensinamentos morais, o atendimento das necessidades básicas e o gerenciamento assertivo do controle e da disciplina são facilitadores do desenvolvimento e do ajustamento comportamental infantil (Bhide et al., 2019; Fava et al., 2018). Em contrapartida, a falta de demonstração de afeto e o uso de práticas punitivas de disciplina estão associados com pior rendimento acadêmico dos filhos, bem como com baixa competência social e índices elevados de problemas comportamentais (Bhide et al., 2019).
Ainda que os comportamentos dos pais afetem o comportamento infantil, a relação é bidirecional. Por exemplo, birras e agressões dos filhos causam maior ativação emocional de raiva nos pais, que, por consequência, agem de forma punitiva nessas situações. Portanto, a regulação emocional dos pais contribui para a expressão emocional dos filhos (Hajal & Paley, 2020). De forma semelhante, identificou-se que os PECs se relacionaram ao fato de o responsável se sentir cansado ao brincar com o filho (p < 0,001). A dificuldade em disciplinar a criança e os comportamentos problemáticos podem levar os pais a exaustão, prejudicando a capacidade de usufruir de momentos lúdicos ou de diversão, como o brincar.
Muitos pais precisam recorrer a profissionais para auxiliar na modificação dos problemas de ordem emocional e comportamental e, apesar de a maioria da amostra ser de baixa renda, o fato de ter um profissional para ajudar com o comportamento do filho (p < 0,001) associou-se com a presença de PECs nas crianças, sugerindo que as famílias com filhos com esses problemas têm tido acesso a psicólogos, fonoaudiólogos, pedagogos e/ou outros profissionais. Esse dado é importante, pois reflete que os responsáveis estão conseguindo recorrer à assistência na saúde mental, indicando que a rede pública da região pode estar atendendo às necessidades dos participantes desta pesquisa ou que eles buscam esses serviços na modalidade particular. Ao mesmo tempo, dos mais de 10 mil responsáveis convidados, menos da metade preencheu os instrumentos. Entre outras explicações, como falta de tempo, dificuldade de compreensão dos instrumentos, cansaço ou não se identificar com a proposta do estudo, esse fenômeno pode representar alguns pais que, apesar de terem filhos com indicadores de PECs, não se envolvem em medidas que busquem compreender ou aliviar tais problemas, voluntariando-se para pesquisas ou buscando auxílio profissional.
Quanto à percepção sobre como o responsável se sente em relação à escola, os resultados apontaram que as crianças com PECs foram associadas com “insatisfação” e “satisfação”, enquanto para aquelas sem PECs, a relação ocorreu com a percepção “muito satisfeito”. Os pais que têm uma relação positiva com os professores ajudam os filhos a terem um comportamento ajustado na escola; inclusive, quando as escolas desenvolvem programas de parceria com os pais dos alunos, os estudantes tornam-se mais positivos em relação à escola e ao processo de aprendizagem, verificando-se maiores níveis de atenção e ajustamento comportamental (Epstein et al., 2018).
A fim de identificar o efeito que as variáveis independentes investigadas apresentavam para explicar a presença ou a ausência de PECs, foi empregado o modelo de regressão logística multivariada cujos resultados podem ser observados na Tabela 3. Para a seleção das variáveis com potencial de predição para o total de dificuldades, foi utilizado o método Backward Condicional, no qual, a cada etapa, uma variável com menor poder de explicação pode ser excluída do modelo (Charnet et al., 2000). O modelo ideal foi estabelecido em três etapas, ou seja, do total de variáveis inicialmente inseridas, duas (divórcio parental e ter experimentado preocupação nos últimos seis meses) foram excluídas por não contribuírem de forma representativa em relação às demais variáveis. Sobre o modelo estimado como representativo, o maior efeito foi identificado na dificuldade em disciplinar o filho - os responsáveis que relataram ter bastante dificuldade apresentaram 14,2 vezes mais chances de identificação de PECs nas crianças quando comparados àqueles que relataram não ter dificuldades em estimular a disciplina. Ainda, os participantes que responderam ter pouca dificuldade em disciplinar tiveram 3,21 vezes mais chances de reconhecer a presença de PECs quando comparados aos casos que informaram não ter a mesma dificuldade.
Variáveis independentes | B | S.E. | Sig. | Exp(B) | 95% C.l. Inferior |
para EXP(B) Superior |
---|---|---|---|---|---|---|
Formação acadêmica | ||||||
Ensino fundamental incompleto | 1,41 | 0,46 | 0,00** | 4,11 | 1,64 | 10,29 |
Ensino fundamental completo | 1,01 | 0,46 | 0,02** | 2,74 | 1,11 | 6,80 |
Ensino médio | 0,98 | 0,46 | 0,03** | 2,66 | 1,08 | 6,57 |
Ensino superior | 0,84 | 0,47 | 0,07 | 2,31 | 0,90 | 5,91 |
Ensino superior em andamento | 0,40 | 0,47 | 0,39 | 1,50 | 0,59 | 3,79 |
Ensino superior completo | 0,78 | 0,48 | 0,10 | 2,18 | 0,85 | 5,59 |
Pós-graduação | 1,00 | |||||
Renda mensal familiar1 | ||||||
Até 1 mil reais | 2,06 | 1,13 | 0,07 | 7,86 | 0,84 | 73,24 |
Até 2 mil reais | 1,93 | 1,13 | 0,08 | 6,90 | 0,74 | 63,82 |
Até 4 mil reais | 1,68 | 1,13 | 0,13 | 5,38 | 0,58 | 49,74 |
Até 5 mil reais | 1,34 | 1,14 | 0,24 | 3,84 | 0,40 | 36,21 |
Mais de 5 mil reais | 0,80 | 1,16 | 0,49 | 2,23 | 0,22 | 21,85 |
Tristeza | ||||||
Raramente | 1,00 | |||||
Às vezes | 0,37 | 0,09 | < 0,00** | 1,45 | 1,20 | 1,74 |
Todo dia | 0,47 | 0,27 | 0,08 | 1,61 | 0,94 | 2,77 |
Estresse | ||||||
Raramente | 1,00 | |||||
Às vezes | 0,33 | 0,12 | 0,00** | 1,39 | 1,09 | 1,78 |
Todo dia | 0,95 | 0,19 | < 0,00** | 2,60 | 1,76 | 3,85 |
Irritabilidade | ||||||
Raramente | 1,00 | |||||
Às vezes | 0,23 | 0,10 | 0,01** | 1,26 | 1,03 | 1,53 |
Todo dia | 0,37 | 0,22 | 0,09 | 1,45 | 0,93 | 2,25 |
Dificuldade em disciplinar o filho | ||||||
Nenhuma | 1,00 | |||||
Pouca | 1,16 | 0,09 | < 0,00** | 3,21 | 2,66 | 3,87 |
Bastante | 2,65 | 0,20 | < 0,00** | 14,20 | 9,45 | 21,33 |
Sensação de cansaço ao brincar com o filho | ||||||
Sim | 0,37 | 0,11 | 0,00** | 1,45 | 1,16 | 1,82 |
Ter profissional ajudando com comportamento do filho | ||||||
Sim | 0,86 | 0,12 | < 0,00** | 2,38 | 1,86 | 3,04 |
Nota. Parâmetros do modelo de regressão: R2 de Nalgelkerke = 0,267; Cox & Nel = 0,187; 2LL = 3358,872; Prova de Hosmer-Lemeshow (qui-quadradro (8) = 15,239; p > 0,053); Matriz de confusão: total = 76,3%;
1A baixa renda mensal familiar, apesar de ter sido associada com presença de PECs na análise do teste qui-quadrado de Pearson, quando examinada no modelo preditivo, perdeu sua importância.
**Significante a p < 0,05. Fonte: elaboração das autoras.
Em um estudo longitudinal, constatou-se, pela análise de regressão linear múltipla, que as práticas educativas foram fatores significativos para explicar a variância nos problemas de externalização de crianças (Alvarenga & Piccinini, 2001), excluindo, inclusive, o poder de explicação do temperamento do filho. Aspectos biológicos, como o temperamento, incluem maior reatividade e desregulação emocional, agitação e baixo limiar de tolerância à frustração (APA, 2022), podendo, em parte, explicar a dificuldade dos cuidadores em educar a criança. No entanto, outras pesquisas corroboram que a prática dos pais para com as crianças seria preditora de PECs (Bolsoni-Silva et al., 2009; de Souza & Crepaldi, 2019). O presente estudo igualmente evidenciou que a dificuldade de disciplinar os filhos e a sensação de cansaço em brincar, que podem ser consideradas reflexos de práticas educativas pouco assertivas, predizem PECs.
A formação educacional mostrou-se importante no modelo, com riscos significativos para responder pela presença de PECs sobre os níveis de escolaridade do ensino fundamental incompleto (OR = 4,11), ensino fundamental completo (OR = 2,75) e ensino médio (OR = 2,67). Para a escolaridade acima do ensino médio, não foram detectados riscos significativos. A amostra foi composta por mais de 80% de mulheres cuidadoras das crianças e a baixa escolaridade materna já vem sendo referida na literatura como uma característica inversamente correlacionada com o conhecimento sobre desenvolvimento infantil e positivamente associada à ocorrência de problemas de comportamento (Alvarenga et al., 2020). Por outro lado, o maior nível de escolaridade materna tem se relacionado à maior competência em compreender o desenvolvimento infantil e colocar em prática as informações sobre o assunto, incluindo estimulação e interação adequadas (Baumrind, 1996; Bornstein et al., 2003). Cabe ressaltar que, dos respondentes, quase 30% eram cuidadores do sexo masculino, configurando uma parcela importante. No entanto, os aspectos emocionais, acadêmicos ou de saúde mental de cuidadores homens são pouco explorados na literatura, configurando-se um campo fundamental a ser estudado (Visentin & Lhullier, 2019).
Para a experiência de percepção de estresse nos últimos seis meses, os resultados apontaram que os participantes que relataram que o sentiam “todo dia” (OR = 2,61) e “às vezes” (OR = 1,39) apresentaram maiores chances de identificarem seus filhos com PECs quando comparados aos que relataram que “raramente” se percebiam estressados. No que se refere às percepções de tristeza (OR = 1,45) e irritabilidade (OR = 1,26), as estimativas de risco se mostraram representativas exclusivamente para aqueles que as sentiam “às vezes”, em comparação aos que responderam que “raramente” percebiam esses estados emocionais. Esse dado reafirma o que já foi indicado na análise de associação, sinalizando a importância de atentar para o impacto da saúde mental dos pais nos PECs dos filhos.
Considerando as informações referentes à qualidade de ajuste do modelo, observou-se que o poder de explicação, avaliado pelo pseudo R2 de Nalgelkerke, foi de 0,267, ou seja, ele foi capaz de predizer 26,7% das variações da presença de PECs. A partir da acurácia do modelo, medida pelo teste de Hosmer e Lemeshow (2000), pode-se verificar se existem diferenças significativas entre as classificações realizadas pelo modelo e os dados reais da amostra. O resultado do teste foi não significativo (p = 0,053), indicando que as diferenças detectadas nas classificações preditas e observadas não foram representativas para a amostra. Sobre confronto direto entre as classificações preditas e observadas, verificado por meio da matriz de confusão, tem-se que o modelo foi capaz de classificar corretamente 76,3% das classificações com presença de PECs. Dessa forma, há evidências de que o modelo logístico para predizer as classificações para o total de dificuldades foi válido para a amostra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sabendo que os PECs na infância são fatores de risco para transtornos mentais comuns, há um estado de alerta para com o aumento de tais problemas e a possível negligência de investigações acerca de sua alta prevalência na clínica (Wendt & Koller, 2019). Por isso, intervir precocemente pode ser a chave para diminuir os prejuízos na saúde mental de crianças, adolescentes e suas famílias (de Souza & Crepaldi, 2019).
Nesse sentido, estudos como este contribuem para o desenvolvimento de programas comunitários abrangentes que possam, além de melhor preparar os pais para a parentalidade e cuidado de sua saúde mental, aproximar a família da escola, tendo em vista a multifatorialidade dos PECs. Professores são, em parte, responsáveis pela manutenção dos PECs, necessitando de formações continuadas e auxílio visando ao mesmo objetivo (Fava et al., 2020).
Apesar da robusta amostra deste estudo, muitos respondentes não completaram alguns instrumentos, ocasionando a presença de diversos dados ausentes. Ainda que as análises estatísticas não tenham sido comprometidas por essa questão, os resultados poderiam ter sido ainda mais relevantes caso os instrumentos tivessem sido corretamente preenchidos. Uma das hipóteses é, justamente, a situação econômica da maioria das famílias, sendo que 56,8% delas tinha renda familiar de até 2 mil reais, e a formação acadêmica, pois 30% tinha apenas o ensino fundamental completo e 17,7%, incompleto, fatores que podem ter dificultado a compreensão dos instrumentos. Como limitação deste estudo, ressalta-se que os instrumentos de autorrelato podem ter enviesado os resultados. No entanto, o número expressivo de participantes tende a amenizar tal efeito.
Diante desses resultados, evidencia-se a necessidade de explorar possibilidades sociopolíticas e intervenções que atendam populações de baixa renda no que tange à educação dos pais e seu acesso à informação e à orientação sobre saúde mental e práticas educativas. Além disso, cabe investigar a família e a escola de forma conjunta e propor ações que objetivem o desenvolvimento global das crianças (Epstein, 2019).