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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. v.56 n.1 Rio de Janeiro jun. 2004
ARTIGOS
Modos de interferir no contemporâneo: um olhar micropolítico
Means of interference in the contemporary: a micropolitical perspective
Claudia E. Abbês Baeta Neves
Universidade Federal Fluminense (UFF). Departamento de Psicologia
RESUMO
Este texto discute as interferências no contemporâneo do ponto de vista da produção social da existência. A realidade na qual estamos todos imersos é produzida em uma multiplicidade de interferências extensivas (molares) e intensivas (moleculares) que coexistem em um mesmo movimento. Deste modo, não podem ser pensadas como opostas, como melhores ou piores "em si", fora das relações que as constituem, pois elas se atravessam e sofrem impregnações distintas de um tipo pelo outro. O que importa, em cada caso, é distinguir qual é o regime (se intensivo ou extensivo) que envolve nossa participação nelas e que cintila nas alianças que se tecem por meio delas. É somente nas relações e nos processos que as constituem que podemos avaliar os movimentos que elas promovem ou estancam. As interferências que nos interessam se dão em uma multiplicidade de ações de teoria e prática que transbordam os insuficientes limites do eixo sujeito-objeto. Não se trata de um interferir de um objeto dado sobre outro objeto dado, de uma unidade predeterminada sobre um sujeito preexistente, mas de produzir interferências que façam vazar as multiplicidades que constituem a nós e as coisas. A modulação da interferência neste sentido implica e requer mutação subjetiva. É nos encontros que experimentamos os movimentos que nos forçam a problematizar, mais do que a responder; alterando a nossa subjetividade e abrindo-a para o intensivo, já ali, onde os conceitos viram fluxo de intensão e nos conectam no circuito ziguezagueante da coexistência macro/micropolítica.
Palavras-chave: Produção de subjetividade; Micropolítica; Intervenção.
ABSTRACT
This text discusses the interferences in the contemporary from the point of view of the social production of existence. The reality in which we are all immersed is produced in a multiplicity of extensive (molar) and intensive (molecular) interferences that coexist in the same movement, that is the reason why they cannot be thought as opposites, as better or worse "in itself", out of the relations that constitutes them, because they cross and they suffer distinct impregnations from one kind to another. What matters, in each case, is distinguishing which one is the regimen (if intensive or extensive) that involves our participation in it and that scintillates in the alliances that weave through it. It is only in the relations and in the processes that constitute them that we can evaluate the movements that they promote or stanch. The interferences that matter to us happen in a multiplicity of actions of theory and practices that overflow the insufficient limits of the axle subject-object. It is not about interfering from a given object over another given object, from a predetermined unity over a preexisting person but to produce interferences that make the multiplicities that constitute us and the things leak. The modulation of the interference in this way implies and requires subjective mutation. It is in the meetings that we experience the movements that force us to analyse and evaluate, more than to answer, modifying our subjectivity and opening it to the intensive, where the concepts turn into flow of intensity and connect us in the circuit of macro/micropolitics coexistence.
Keywords: Production of subjectivities; Micropolitics; Intervention.
INTRODUÇÃO
O debate proposto neste ensaio visa a problematizar as interferências no contemporâneo do ponto de vista da produção social da existência, indagando, a partir das contribuições da micropolítica proposta pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, como construir interferências que se aliem a outros modos de se estar nos verbos da vida? Como interferir na produção de uma vida digna de ser vivida? Posso dizer que a escolha desta temática tem sua proveniência nas diferentes interferências que tenho realizado como psicóloga e professora universitária, envolvida com a formação de psicólogos, e em intervenções institucionais em estabelecimentos ligados às áreas de saúde e educação. Neste trabalho, tais interferências e as interferências do cotidiano, em seus funcionamentos extensivos e intensivos, foram os "habitantes invisíveis" que traçaram conosco e em nós os percursos e "intensões"1 desta pesquisa pelos conceitos da micropolítica. Estes percursos e intenções construíram um plano de consistência provisório apresentado na pesquisa da tese de doutorado intitulada "Interferir entre desejo e capital" (NEVES, 2002).
Deleuze e Guattari chamam atenção em toda a obra O Anti-Édipo (1976) e, mais tarde, em Mil Platôs (1995) para a coextensividade da produção desejante e da produção social, mostrando que o socius não é um todo autônomo, mas um campo de variações entre uma instância de agregação (máquinas molares - técnicas e sociais) e uma superfície de errância (máquinas desejantes) como regimes diferentes de uma mesma produção imanente. Esta noção de máquinas2 (técnicas, sociais, desejantes), presente desde as primeiras páginas de O Anti-Édipo e posteriormente reunida em Mil Platôs sob o nome de máquina abstrata, aponta para a construção de um plano de maquinação e conexão permanentes, no qual só há linhas, processos, intensidades, objetos incorporais e variações. Este plano é o plano de imanência cujo processo é de co-produção e acoplamento: nele, não há sujeito ou unidades pré-formadas, mas multiplicidades. O funcionamento das máquinas, em seus arranjos e aparelhos, produz o mundo juntamente com os sujeitos e os objetos que o constituem. As máquinas são, assim, fluxo3 e corte de fluxo. Elas não querem dizer nada, apenas funcionam por desarranjo, fragmentação, acoplamento e, quando agenciadas, produzem territórios, outras máquinas, fluxos e universos existenciais. Com essa idéia de imanência, não ganhamos apenas a possibilidade de nos livrarmos de velhas dicotomias como vida/pensamento, homem/mundo. Com efeito, além de vermos que esses pólos são construídos em um plano de engendramento, de modo que eles próprios não se resumem às suas atualizações e tampouco existem fora delas, somos levados a pensar tais engendramentos como meio de tensões onde proliferam processos de diferenciação constante, transmutabilidades, vibrações intensivas. É graças a essa diferenciação complexa que podemos entender por que o plano de imanência, ele próprio, é desdobramento constante de um labirinto de questões, de campos problemáticos e de campos de resolução, entre os quais "fulguram acontecimentos", como diria Jean-Clet Martin (1993: 22-23). É esse mesmo meio de tensões que nos permite pensar a produção social da existência para além e aquém de suas encarnações em estados de coisas e enunciados.
Contrariando a tradição que ligava o desejo4 à falta de objeto e a economia política que reduz as relações entre forças à dimensão capital e trabalho5, Deleuze e Guattari afirmam que a economia do desejo e a economia política são uma só: economia de fluxos. Homem e natureza estão imersos em uma "universal produção primária", produtividade de fluxos e cortes de fluxos da produção desejante, que se caracteriza por produzir sempre o produzir, por injetar produzir no produto, pela produção de produção. Tal afirmação implica, por um lado, a desnaturalização das análises que inscrevem o campo social em uma dicotomia totalizante e excludente entre molar (macropolítica) e molecular (micropolítica)6, seja em uma perspectiva de escala (maior/menor) ou em umaperspectiva de sobredeterminação (do macro sobre o micro). Por outro lado, convoca à uma mudança de lógica, fazendo-nos transitar em um plano de processualidades em que a variação é contínua e as relações são produzidas por conexões de fluxos intensivos e heterogêneos: "tudo é político mas toda política é ao mesmo tempo macro e micropolítica" (DELEUZE & GUATTARI, 1996: 90).
O que aqui procuramos esboçar, e que mantemos como proposta teórica e prática a ser desdobrada, é que o real comporta a possibilidade concreta de acolhermos e construirmos um regime de interferências, um interferir que, dando "sinal de vida", funcione para que a disparidade dos problemas se evidencie. Esse regime contrasta, obviamente, com aquele de proposições fechadas voltadas para um programa de interferências disciplinadas e convergentes. Trata-se, primordialmente, de interferir na produção de políticas de subjetivação que, fazendo-se crer como hegemônicas, acabam decretando ou revigorando a "claustrofobia política dominante" (PÉLBART, 2000: 41) e comprometendo de antemão nossa mobilidade. O veio despotencializador de tais processos compromete os combates afirmativos e criativos de metamorfoses nos modos de viver, sentir, coexistir e pensar. As interferências que nos interessam se dão em uma multiplicidade de ações de teoria e prática que transbordam os insuficientes limites do eixo sujeito-objeto. Não se trata de um interferir de um objeto dado sobre outro objeto dado, de uma unidade predeterminada sobre um sujeito preexistente, mas de produzir interferências que façam vazar as multiplicidades que constituem a nós e as coisas.
O que entendemos por interferências?
"Nossos trilhos podem nos conduzir absolutamente por toda parte. E se encontramos, às vezes, uma velha ramificação do tempo de nossa avó, muito bem, a tomamos para ver onde ela nos levará. E, palavra de honra, entra ano sai ano nós acabaremos descendo o Mississipi de barco, há muito que tenho vontade. Já estamos cansados das estradas à nossa frente, para preencher o tempo de uma vida, e é justamente o tempo de uma vida que quero aproveitar para terminar minha viagem" (BRADBURY apud DELEUZE & PARNET, 1998: 119).
Deleuze defende, pouco antes do texto que anotamos acima, a idéia de que toda e qualquer entrada é boa, desde que as saídas sejam múltiplas. Assim, a idéia de interferência obriga-nos a pensar em inúmeras ocorrências: desde uma ação humana até um vento, um esbarrão, um som, a luz do sol em nossos olhos, as gotas de água salgada advindas do estouro de uma onda na praia, a visão do amarelo nas obras de Van Gogh7. Enfim, poderíamos afirmar que algo qualquer pode interferir em outro, sendo ele o que for, seja para transformar, seja para ratificar um funcionamento ou simplesmente para perturbar uma recepção de sinais, caso em que interferência e ruído chegam a virar sinônimos. Assim, é comum limitar a idéia de interferência a uma espécie de ação de um termo sobre outro. Entretanto, já neste nível geral de atribuição de um significado à palavra interferência, gostaríamos de partir do seguinte ponto de vista: interferência é uma relação ou um conjunto de relações de forças que incidem, de maneira casual ou intencional, sobre outra relação ou outro conjunto de relações de forças. Isto quer dizer, nos termos de certas filosofias contemporâneas da diferença, que interferir é estar presente em um jogo de forças e, portanto, em um complexo jogo de poderes, entendendo que poder implica sempre correlações plurais de forças.
Como não estamos retomando um estudo teórico da noção de poder, precisamos saber de quais interferências queremos falar. Sendo assim, o nosso desafio é pensar interferências do ponto de vista da produção social da existência, questão que se repõe em todos os liames pelos quais a própria vida insiste em si mesma.
A definição de interferência (em física), dada por Houaiss (2001: 775), dá-nos algumas pistas preciosas para pensar as interferências do ponto de vista da produção social da existência. Interferência, diz ele, é um "fenômeno que consiste na interação de movimentos ondulatórios com as mesmas freqüência e amplitude e que mantêm entre si uma determinada diferença de fase, de tal modo que as oscilações de cada um deles se adicionam, formando uma onda resultante".
Consultamos um professor de física para entendermos melhor esta definição. Disse ele:
"Temos vários tipos de ondas, mas, para simplificar, vamos visualizar as ondas geradas em um lago calmo, quando jogo uma pedra nele. Observando estas ondas, podemos notar, entre outras particularidades, aquelas mencionadas na definição de Houaiss: amplitude, que é a altura máxima que um ponto na superfície da água atinge, quando a onda passa por ele, em relação à superfície calma do lago (a crista da onda); freqüência, que é a taxa com que a perturbação se repete (por exemplo, quantas vezes por segundo um determinado ponto do lago atingiu a amplitude). Agora, resolvemos jogar juntos uma pedra cada um, gerando ondas com mesma freqüência e amplitude (que coincidência feliz!). Aí, notamos que, em determinados pontos, na região em que sua onda se encontra com a minha, as amplitudes delas se somam, e em outros se subtraem. Isto é a interferência. Ela ocorreu porque nossas ondas tinham a mesma freqüência e amplitude, mas foram geradas em locais diferentes. O mesmo efeito poderia ocorrer se nossas ondas fossem geradas no mesmo local, mas em tempos diferentes. Esta diferença (espacial e/ou temporal) nas ondas é o que chamamos de diferença de fase".
Nesta breve definição, o que nos interessa é chamar atenção para uma perspectiva de análise da interferência em que os movimentos se dão não apenas por sobreposição de uma "onda" sobre outra, mas por interação de movimentos ondulatórios em ressonâncias e contágios. No encontro de uma onda com a outra, podemos ter interferências que tanto podem somar a amplitude dos movimentos ondulatórios, como subtraí-los. É importante notar que a idéia de diferença está presente desde a quantificação da amplitude e da freqüência, e prossegue marcando quantitativamente a própria interferência, seja pela soma ou pela subtração da amplitude de nossas ondas, até a idéia de diferenças espaço-temporais que recebem o nome de "diferença de fase".
Sabendo das diferenças que este conceito traz em seus usos no campo da física, fizemos com ele uma "bricolagem"8 para pensarmos o caráter intensivo das interferências no socius. Dentre as muitas enunciações produzidas pelo modo de funcionamento do capitalismo no mundo contemporâneo, as que mais nos têm chamado atenção são as que comprometem nossa mobilidade de antemão, "decretando" o fim das lutas e o "tá dominado, tá tudo dominado"9. Tal comprometimento, em suas formas híbridas de dominação política e subjetiva, tem-nos confrontado com uma paradoxal dramaticidade contemporânea, qual seja: o cadenciar da vida e dos modos de operá-la em meio a processos produtores de constrangimento e indiferença, mas também a afirmação de modos singulares de inventar a vida em meio à própria vida.
Esta sucinta definição física da interferência serve para pensarmos as interferências não só em seus aspectos quantitativos e visíveis, que chamamos de extensivos (por exemplo, um ato do presidente que atinge um grande número de pessoas, ou mesmo o aspecto extensivo de uma ação dos sem-terra no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso), mas também em seus aspectos qualitativos ou invisíveis, que chamamos de intensivos (por exemplo, as mudanças na qualidade de vida ou mesmo o efeito de contágio da marcha dos sem-terra a Brasília, em 1999, que fez com que pessoas não-afeitas a este movimento ficassem à beira das estradas, distribuindo comida, batendo palmas e até mesmo acompanhando os manifestantes por um tempo, tomadas pela força agregadora daquele movimento).
Os aspectos extensivos (molares) e intensivos (moleculares) da interferência coexistem em um mesmo movimento, sabemos que os "movimentos ondulatórios" que nos produzem e produzimos não se dão "em um lago calmo", mas em meio às "ondas do mar" que nos jogam em "funcionamentos de telescópio invertido do Sr. Palomar"10 e que também nos retiram deles, lançando-nos em meio a outros movimentos que, perturbando nossos "portos seguros", forçam-nos a inventar inseguranças nômades, temporárias e fugazes, para o viver e o existir.
O mar, a experimentação sobre nós mesmos, marca nossa subjetivação e nos permite construir até mesmo um colar de identidades, pois ele é nossa única chance para todas as combinações que nos atravessam.
Interferências extensivas e intensivas
Espinosa mostra-nos que a lei da vida é a lei dos encontros. Todo corpo vivo faz necessariamente, ao longo de sua existência, uma série de encontros com outros corpos, e é neles que o ser vivo efetua a sua potência de afetar e ser afetado, ou, poderíamos dizer, de interferir e sofrer interferências. O ser espinosano é essencialmente produzido. Cada indivíduo é um grau de potência que corresponde a um poder de afetar e ser afetado, de ter paixões e ações. Desse modo, esta diferença ética é já coletiva, traça-se em meio à multiplicidade dos encontros como avaliação dos modos de existência em sua imanência. Esta avaliação se faz nos atravessamentos, dobras e traçados das diferentes linhas (sedentárias, flexíveis e de fuga) que compõem, nos encontros, a vida e o viver como acontecimento singular que não se reduz a um sentido prévio. Assim é que Deleuze e Guattari vão afirmar que a experimentação é a estratégia principal da micropolítica ou da esquizoanálise, pois implica a problematização e o mapeamento destas linhas em suas composições no socius. O pensar só se dá como condição nestas experimentações; tal condição não é maior que o condicionado, mas coincide com ele e o desloca sempre na direção de um pensamento por vir.
A vida, em seu processo imanente de variação contínua, mostra que as regularidades não são "primeiras", mas sim o "corpo errante"11, como potência em constante engendramento e produção. Ao dizer, paradoxalmente, que o corpo como potência é "primeiro", já que neste plano se conjuram às origens e hierarquias, queremos afirmar que este corpo de "pura" intensidade é produzido e se produz como diferenciação constante nas relações de forças. Ele não está em oposição a suas configurações em formas, funções ou organizações de poder. Diferente disto, estas configurações são uma de suas nervuras e não redundam necessariamente na dissolução da singularidade deste corpo. Nelas, a expressão de suas potências é limitada pelas formas para tornar a vida vivível.
A realidade na qual estamos todos imersos é produzida em uma multiplicidade de interferências extensivas e intensivas que, em suas afirmações diferenciais, produzem ressonâncias tanto inibitórias quanto favorecedoras de proliferações de sentidos e modos de vida como imantações do desejo em uma linha de fuga12. Com isto, queremos dizer que as interferências sempre acontecem, queiramos ou não; são potências intervalares que marcam, no estado de coisas, intenções ou rastros de intensões, daí podendo advir os mais belos e os mais monstruosos arranjos - sejam, por exemplo, a marcha dos sem-terra em 1999 e seus efeitos de contágio pelo caminho, ou mesmo a produção, por cientistas israelenses, de um frango sem penas, geneticamente modificado, obtido pelo cruzamento de um pássaro sem penas com um frango13, como forma de poupar tempo e dinheiro aos produtores de galinha.
Uma interferência goza de dimensão extensiva quando atualiza um acontecimento intensivo14 em formas (homem, mulher, animal, partido político, família), em segmentos (trabalho, casa, escola, rua) ou séries causais (filho ou filha de, nascido em, morador de). Estas atualizações são reportáveis a uma "intenção de" que implica a produção de territórios que sirvam para neutralizar/estabilizar as desterritorializações15 intensivas ou para servir de suporte para disciplinadas e convergentes pausas programáticas, ou até mesmo para "dar um tempo" nas desestabilizações como pausa tensa. Dentre as diversas possibilidades de configuração destes territórios, destacamos as formas que nos parecem mais recorrentes em nossas interferências extensivas.
Quando as desterritorializações intensivas, que não nos permitem grudar nos enquadres de segmentos e formas, são neutralizadas ou estabilizadas em um território, tecem-se práticas que podem estancar-se em oposições abstratas e burocratizadas tanto no nível de organizações (políticas, sindicais, religiosas, educacionais etc.) que se pautam em um "dever de militância", quanto no nível comunicativo de enunciados genéricos (palavras de ordem).
A construção de territórios funciona como suporte para pausas programáticas, estejam elas diretamente relacionadas a questões de políticas da existência (uma cirurgia para extração de um tecido canceroso, uma escolha ético-política nas lutas ou até mesmo a decisão de fazer do velho um novo amor) e/ou a certas formas de engajamento nas políticas instituídas (participação em um determinado evento sindical, de trabalho, de família, ou mesmo a militância em um certo tipo de movimento social). Estas pausas, que construímos ao longo de nossa existência, podem ser capturadas em armadilhas que, afastando-nos dos movimentos de variação contínua da vida e do socius, levam-nos a lidar com eles com base em uma mega programação disciplinada e convergente de interferências a serem aplicadas "sobre"; por outro lado, essas pausas também podem funcionar para reunirmos forças para novas proposições e outros modos de existência, caso em que podemos pensá-las como pausas tensas. A diferença entre as pausas disciplinadora e tensa é que a primeira prende o movimento em uma configuração ou programa arborescente, fazendo saltar um transcendente (programa partidário, manuais de auto-ajuda, bíblias etc.), enquanto a segunda está aberta e porosa às potências de virtualização que estes movimentos portam.
Uma interferência goza de dimensão intensiva quando é capaz de acolher um acontecimento imanente, no qual se constituiu, em sua mobilidade intensiva, fora das coordenadas espaço-temporais, não o confundindo nem com o vivido, nem com o estado de coisas e enunciados no qual ele se atualizou e foi enunciado. Possui ainda dimensão intensiva quando é capaz de fazer o acontecimento ressoar sua potência disruptora, cintilando um conjunto indeterminado de perspectivas que não o esgotam, mas se dispersam e nos lançam em uma miríade de problemas, de sentidos, de transrelações desestabilizadoras que agitam partes do estado de coisas, arrastando-o para novos acontecimentos e composições.
As interferências intensivas fazem-se em uma intensão de vibratilidades de uma matéria intensiva heterogenética, com o que se tem a criação de corpos sem órgãos16 capazes de funcionar em prol de uma produtividade desejosa que, reafirmando as diferenças propulsoras de uma estratégia de produção favorável à vida digna de ser vivida, iniba as exorbitâncias da serpente financeira17 tanto no socius quanto nos processos de subjetivação.
Uma interferência intensiva funciona como obra aberta e por relações de vizinhança entre devires. Constrói consistências provisórias sensíveis ao campo problemático que as dobra, desdobra, redobra, em ressonância com os gritos de dor e de alegria que pulsam na intensidade vital.
O que ganha relevo e insiste em nosso contemporâneo é a urgência de interferências desse tipo. Ao dizermos isso, porém, não queremos cair na armadilha de opor um tipo de interferência micro a um outro tipo que seria o das macro-interferências. A rigor, há sempre pressuposição recíproca entre interferências extensivas e intensivas, sejam elas pequenas ou grandes, capazes de maior ou menor alcance. O que importa, em cada caso, é distinguir qual é o regime (se intensivo ou extensivo) que envolve nossa participação nelas e que cintila nas alianças que se tecem por meio delas. A imposição de uma lei pelo Estado pode ter um alcance maior do que meu voto de protesto em uma eleição; nem por isso uma tal imposição deixou de contar com uma multiplicidade de interferências intensivas para vingar. Portanto, não nos atrai a oposição abstrata.
As interferências extensivas e intensivas não podem ser pensadas como opostas, como melhores ou piores "em si", fora das relações que as constituem. Na realidade, elas se atravessam e sofrem impregnações distintas de um tipo pelo outro. Ambas são tecidas pelos agenciamentos18 desejosos em suas linhas duras ou de fuga que, fazendo os acontecimentos dobrarem-se singularmente em nós, traçam interferências em meio a pendulações segregativas e nomádicas. É somente nas relações e nos processos que as constituem que podemos avaliar os movimentos que elas promovem ou estancam.
No apêndice sobre Foucault, Paul Veyne (1978) diz algo que nos ajuda nessa direção: não se trata de "explicar as práticas a partir de uma causa única, mas a partir de todas as práticas vizinhas nas quais se ancoram. Esse método pictórico produz quadros estranhos, onde as relações substituem os objetos" (p. 86).
Trata-se de apreciar as interferências pelos problemas que elas agitam na imanência e, portanto, como potências virtualizantes, já que virtualizar é agitar o campo problemático pela exasperação de problemas, sejam grandes ou pequenos. O que propomos vislumbrar são multiplicidades de interferências como signos de movimento, pois, como sinalizam Deleuze e Parnet (1998), "todas as nossas verdadeiras mudanças passam em outra parte, uma outra política, outro tempo, outra individuação" (p. 146).
Ondas de contágio respingam por aqui e por ali...
Lembremos que é nos encontros que os entes são transmutados em ocorrências, retidos em uma percepção ou lançados no intensivo. O intensivo, estranho jogo permanente entre atuais e virtuais, está em toda parte e em parte alguma, não é um território, mas está em todos. Ele pipoca e espraia. Ocorre entre os corpos, nos encontros que dão certo como encontros intensivos. Nesse mundo dos encontros, os corpos ganham a potência de produzir novos enunciados, sempre coletivos, inventam outros corpos, maquinam alegria e dor, engendrando outras subjetividades e seus próprios objetos.
Em uma interferência extensiva, podem pipocar instantes de intensidade, lances de ondas intensivas, apoiando ou protestando, e produzindo entusiasmos repentinos que nos contagiam e nos levam à construção de corpos sem órgãos que fazem, de nossas interferências, "domicílio para velozes correrias".19
O último processo eleitoral para presidente no Brasil em outubro de 2002 e os movimentos de protesto em Gênova são aqui utilizados para pensar interferências extensivas em seus lances de contágio intensivo.
É importante salientar que, apesar dos caminhos trilhados hoje pelo governo Lula, em sua política de continuidade das práticas de seu antecessor Fernando Henrique Cardoso, insistimos em marcar o processo eleitoral de Lula para presidente como um acontecimento que naquele momento operou desvios no processo instituído e mobilizou intensivamente produzindo lances de interferências intensivas. Entretanto não podemos deixar de marcar os efeitos devastadores nos modos de subjetivação produzidos pelas práticas deste governo em seus agenciamentos com as linhas duras de segmentação, aliadas, até este momento, a práticas neoliberais e assistencialistas, servis ao capital internacional e às práticas de corrupção. A análise deste processo e seus efeitos devastadores na crença em outros modos de se fazer eticamente política são matéria para um trabalho próximo.
O processo eleitoral para presidente em 2002 e Gênova 2001
Vivemos recentemente o processo de eleições para presidente da República no Brasil, com a vitória de Luís Inácio Lula da Silva, que acabou recebendo um expressivo número de votos, após três tentativas anteriores fracassadas. O que nos interessa marcar neste acontecimento, mais do que a eleição em si, é o que ele mobilizou de intensidade diferencial nos mais diversos setores da população brasileira. Eleitores das mais diferentes faixas etárias e posições políticas juntaram-se no voto e nas ruas, em uma tentativa de pôr um freio e marcar a recusa aos ditames e interesses do capital financeiro internacional e de seus aliados nacionais. Á medida que o pleito se aproximava, algo se espalhava pelos rostos, na mobilização das pessoas, nas ruas, e produzia uma espécie de onda que nos envolvia, provocando arrepios, não apenas em quem militou muitos anos por este dia, mas também naqueles que votaram em Lula apesar de, anteriormente, verem-no como o "sapo barbudo"20 que trazia pavor.
A tentativa da propaganda "serrista"21 de reativação do medo, laminado nos 500 anos de nossa história, foi midiaticamente sofisticada na voz "terna" e "contundente" da antiga "Namoradinha do Brasil"22; aparecia como fantasma, lembrando-nos "estórias" de medo do passado ("anos de chumbo", enfrentamento nas ruas, comunismo, descontrole inflacionário etc.), aconselhando-nos a fugir desta onda no lugar. Ao contrário, houve fugas para a onda, fugas nela. Apesar dos "conselhos da vovó", esta onda não foi estancada e, formando outras, "arrombou as portas da cidade", varreu por um momento o medo do "desconhecido", reativando gritos de alegria e aumentando a potência de alguns corpos em ressonâncias com a pulsação vital.
Muitos eleitores, ao dizerem "agora é Lula", faziam-no não por se aliarem necessariamente à proposta petista, mas por apostarem em uma reversão do estado de coisas (queda do índice de desemprego, combate à fome, diminuição das tarifas de serviço público, dignificação dos setores da saúde e da educação, reforma agrária, entre outros) e de seus enunciados (importância das lutas e movimentos sociais, não-subordinação cega às imposições da política internacional, governo em prol do capital produtivo etc.), tentando dar um basta à naturalização da miséria, do desemprego e da vergonhosa distribuição de renda - essa que, no Brasil, deixa ver que 1% de abastados detém 50% da renda de toda a população.
O discurso de Lula e os recursos midiáticos que utilizou não foram muito diferentes do discurso dos outros candidatos, incluindo o candidato do governo, se o analisarmos do ponto de vista do que anunciavam: combate à fome, à violência, ao desemprego, saúde e educação dignas para toda a população etc.
Entretanto, o discurso do novo presidente produzia uma nota dissonante com relação aos outros candidatos, mesmo que alguns a atribuíssem aos arranjos midiáticos de "magos da publicidade", esses publicitários que transformaram o "sapo barbudo", que causava medo e desestabilização, em "Lulinha paz e amor". O que produzia interferências dissonantes entre a fala de Lula e a fala dos outros candidatos era, em um plano extensivo, o fato de a primeira estar atravessada por uma história de lutas e de mobilização do trabalhador brasileiro23 e de trazer propostas de um partido, o Partido dos Trabalhadores, que emergiu do seio dos movimentos sociais do ABC paulista. Os meios de comunicação, em vez de se oporem a esta onda vermelha que não puderam estancar, como nas eleições anteriores, surfaram nela, embrulhando o intolerável "sapo barbudo" e o que ele trazia de anúncio da imprevisibilidade da luta em uma embalagem meritocrática palatável da mobilidade social. Isto ficou claro, por exemplo, quando o Fantástico, programa da Rede Globo, após o resultado da eleição, mostrou os protestos e as greves do ABC paulista como início da trajetória de Lula, mas sonegou na edição o momento em que, nestes mesmos protestos, dizia-se "fora Globo, a gente não é bobo não".
No plano das interferências intensivas, o que trazia dissonância eram os momentos em que uma máquina abstrata de enunciação se produzia, agenciando uma língua menor na língua oficial e produzindo uma disjunção nos enunciados, o que nos abria a outras percepções e sentidos de se fazer política, acionando a memória intensiva das lutas dos trabalhadores por dignificação da vida.
O "dispositivo Lula" mobilizou, em alguns momentos, o intensivo que nos percorre e fez dessa eleição um acontecimento que se dobrou singularmente em nós, ressoando como um convite para interferir de outro jeito. Isto se enunciava muito mais na alegria e na disposição em participar desse processo eleitoral do que no processo instituído e na figura do candidato. Estava presente no entusiasmo que contagiava, fazendo as pessoas, que não se conheciam, cumprimentarem-se pelas ruas ao perceberem que partilhavam de uma aposta comum. Um comum que não designava um homogêneo, mas singularidades diferenciais, produtoras de diferenciação constante, no acontecimento que o varreu.
Sabíamos que não tínhamos garantias porque não acreditamos em "salvador da pátria" ou mesmo em Robin Hood. Porém, sentimos que um vento de devir revolucionário soprou por aqui, tirando-nos dos lugares tradicionalmente configurados em que um operário só tem como destino a apendicularidade da máquina, os balcões de emprego, o sindicato ou a rua dos sobrantes. É claro que Lula já não é operário há muito tempo. Contudo, apostávamos que, enquanto ele se aliasse a esse passado - não, é claro, nos termos do ideal norte-americano do orgulho individual de ascensão social -, poderia dele tirar a dimensão coletiva de uma lição que o presente torna urgente: a dilaceração do socius não se redime enquanto somente um trabalhador for alijado dos processos de dignificação da vida.
Tudo isto já fez dessas eleições uma combinação de singularidades, mesmo provisórias e locais. Poderíamos dizer que não saímos do estado de coisas, mas uma linha flexível o fez variar e outras combinações tiveram que se dar por aqui.
Por sua vez, a cidade de Gênova, em julho de 2001, foi palco de manifestações, sobrecodificadas pelos aparatos midiáticos como protestos antiglobalização, que reuniram mais de 150 mil pessoas protestando ao longo de três dias contra as políticas globais vigentes empreendidas pelo G-8.24
Jovens estudantes, sindicalistas, drag queens, malabaristas, ambientalistas, agricultores, anarquistas, religiosos, punks, pessoas comuns, "sonhadores anônimos"25, entre outros, formam a multidão que sai mundo afora destoando do status quo, ou pelo menos perturbando as políticas de intervenção global26 empreendidas pelos países mais industrializados do mundo por meio de suas instituições financeiras. Não há nesta multidão um líder, nem mesmo uma sigla representativa que abarque este movimento. Funciona em um sistema de rede e conexões que se montam e se desmontam nos mais diferentes sentidos, e que têm, como principal meio de comunicação global, a internet.
São muitos os antagonismos e as divergências que compõem este movimento, mas eles se unem em torno de um paradigma ético, estético-político, que visa a combater/denunciar, nas linhas políticas de intervenção global, o processo vigente de sucateamento da existência, em suas múltiplas expressões (trabalho, lazer, sobrevivência, cultura, meio ambiente etc.). Tal paradigma se enuncia em diferentes "vozes" que gritam, entre outras coisas, pela afirmação de modos de existência singulares (desertores e nômades nas órbitas do capital), pelo cancelamento das dívidas dos países pobres (melhor dizendo, pauperizados/extorquidos), pela proteção ao meio ambiente, pela modificação das regras de comércio internacional (com seus embargos e taxações que levantam ou derrubam países ao sabor dos interesses do mercado "global"), pela denúncia contra o poder das multinacionais (que impõem condições referentes a isenções de impostos, controle do mercado local, barateamento de custos via questão salarial, principalmente nos países mais pobres) e contra a violência, seja no que se refere às políticas de incentivo a guerras locais (novos racismos - conflitos na faixa de Gaza, Bósnia, Sérvia, países da África etc.), seja no que se refere à violência policial e cultural.
O que nos interessa nestes movimentos é o que eles põem em funcionamento, os ruídos e as maquinações de suas máquinas desejantes e a força dos agenciamentos que produzem em suas configurações visíveis e invisíveis o que eles indicam de maquinações em tempos de globalização.
"Somos todos clandestinos, gritam os rebeldes de Gênova. Gritam para a polícia que protege a zona vermelha. (...) mas a ordem armada até os dentes diz não(...) e a vida segue, com muitas grades sendo criadas, muitos muros construídos. Uns caem outros permanecem. A história continua. E onde há muros, para desgosto da ordem oficial, aparecem ventos tentando derrubá-los. Um dia o vento é calmo, no outro é rebelde. Num, diz sim, no outro, sem que se espere, quebra normas e rompe cercas. Um dia está na Europa, outro no Brasil... um dia cala, no outro grita, E o vento está sempre lá. (...) nas escolas, nos exemplos de coragem e dignidade do Movimento dos Sem-terra (...) na luta do povo tibetano, na Palestina, na selva colombiana" (EVANGELISTA, 2001: 15).
Por mais que os meios de comunicação e a polícia tentem esquadrinhá-lo/localizá-lo em lideranças específicas e siglas totalizadoras, o acontecimento Gênova afirma uma dimensão de coletivo que porta algo que foge, escapando às definições. Suas atualizações são percorridas tanto por linhas de criação, pulsantes na intensidade vital, que, em seus contágios, "abrem janelas", como por linhas suicidas e fascistas que conectam a pulsação da potência vital e a atualizam em atos de violência e destruição. No acontecimento, não há previsão; dele, só podemos falar a partir dos agenciamentos e das conexões que produz com forças que dele se apoderam.
"A Passeata dos Imigrantes, que reuniu mais de 50.000 pessoas, foi um banho de água fria para quem esperava sangue, brigas (...). Mas, na Avenida Carlo Bargino, no Edifício número 13, as coisas começaram a mudar. Quando ninguém mais gritava, cantava, ninguém mais soltava palavrões ou piadas para os chefes do mundo, depois de muitas ruas e esquinas sob prédios vazios e janelas fechadas, uma senhora bem velhinha foi à sacada e expôs, com orgulho e um sorriso largo, um retrato de Che Guevara. A multidão calada parece ter despertado de uma só vez. A marcha parou e as 50.000 pessoas ovacionaram aquela senhora solitária, com o retrato do Che nas mãos. De repente, sem que se entendesse, as janelas foram se abrindo. Os edifícios foram acordando. E as pessoas iam às janelas, mostravam roupas, jogavam água para os manifestantes (...). Tudo isso em resposta ao pedido de Berlusconi para que não se pendurassem roupas nas janelas durante o G-8, 'porque não era estético'. No dia seguinte, na Passeata da Desobediência Civil, quando os chefes de Estado chegaram, a cidade foi tomada pela violência. O grupo Black Bloc acordou cedo e fez tudo que sabe" (EVANGELISTA, 2001:13-14).
Um dos agenciamentos que o acontecimento Gênova coloca em funcionamento se expressa na tentativa de subversão do modo de funcionamento da globalização em seu veio de sujeição. Por meio de estratégias criativas e rizomáticas, este movimento propõe, entre outras coisas, a construção de alianças transnacionais em favor de uma vida digna de ser vivida, a globalização do conhecimento, da arte, da cultura, da informação, buscando romper com os efeitos anestesiantes e despotencializadores dos processos de globalização vigentes, típicos da cultura do "éter". Este movimento funciona como uma bomba surpresa que explode nos mais diferentes lugares, produzindo a visualização dos mecanismos de poder que, em seus movimentos de captura e liga axiomática27, transformam estes gritos em casos de polícia, mortes e repressão policial, opondo, aqui, uma máquina de guerra28 ao aparelho de Estado.
A polícia invade a sede do Gênova Social Fórum de madrugada, bate nos manifestantes, rouba fitas de vídeo, material fotográfico, as anotações e registros que possam expor as forças em luta vazando neste espaço de tensão, "mas a lembrança não se apaga". Rapidamente, os registros são disponibilizados, via internet, fazendo escorrer os "fluxos" de informação.
O espaço, em seu funcionamento maquínico, afirma a coexistência de uma máquina abstrata de mutação e de sobrecodificação29, compondo mapas que combinam o liso e o estriado, passando um no outro e produzindo suas transformações e reviravoltas. A paisagem da cidade, considerada o "maior centro histórico da Europa", metamorfoseia-se "em prisão de luxo", com o fechamento de fronteiras30, controle de passaportes e bagagens, aumento do contingente de policiais nas ruas31 e fronteiras italianas, instauração de barricadas e arames farpados próximos ao local de encontro do G-8.
A cidade de Gênova tem seu estriamento intensificado no funcionamento do aparelho de Estado, que se faz presente na captura e conversão do espaço contra tudo que ameaça transbordá-lo: "quebra-molas" e filtros para a fluidez das massas e sua potência de metamorfose, de máquina de guerra. As ruas e esquinas são tomadas por grupos e bandos, com suas identidades e individualizações, mas abrigam, também, fluxos informes, potências nômades que se conectam nos mais diferentes movimentos e direções.
O mar, como superfície de alisamento e fruição do intempestivo, é apropriado como única garantia de fruição das políticas do G-8, e serve de abrigo para o navio European Vision, um dos mais caros do mundo, construído para abrigar os líderes do G-8 em nome da segurança nacional. Entretanto, a cidade de Gênova combina estriamentos e alisamentos, indicando que o mar, em sua potência intempestiva, está às suas portas e respingou por ali.
Políticas da interferência
Deleuze (1992), ao declarar sua afinidade com o marxismo no que se refere à "análise do capitalismo e de seu desenvolvimento", relança o "bastão" da análise adiante e, junto com Guattari, em Mil Platôs (1995), aponta que uma das principais direções seguidas se afirma no entendimento de que "uma sociedade (...) parece definir-se menos por suas contradições que por suas linhas de fuga, ela foge por todos os lados, e é muito interessante tentar acompanhar em tal ou qual momento as linhas de fuga que se delineiam" (DELEUZE & GUATTARI, 1995: 212).
Pretendemos modular nossa discussão acerca da temática das interferências dando acento às linhas de fuga produtoras de singularização - linhas que afirmam, mesmo que na "fugacidade de um momento", outros modos singulares de sentir, pensar e existir. Pensamos, portanto, nas interferências que, como propõe Foucault (1994; 1999), aliam-se à expansão dos índices de liberdade, aos sinalizadores de vetores da diferença que podem indicar a produção de uma outra estética da existência: de uma vida como obra de arte.
"O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida; que a arte seja algo especializado ou feito por especialistas que são artistas. Entretanto, não poderia a vida de todos se transformar em uma obra de arte? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida?" (FOUCAULT apud DREYFUS & RABINOW, 1995: 261).
Foucault, ao fazer esta pergunta, desnaturaliza a idéia de vida como pressuposto de uma essência humana, como latência à espera de resgate por uma ação sobre o que a constrange, seja esta ação individual ou coletiva. Ele afirma a vida em sua plasticidade imanente e nos incita à ativação de um devir ativo que se compõe como movimento de exploração de vizinhanças, segundo conexões não previamente estabelecidas.
Mas como fazer da nossa vida, da produção da nossa existência, uma obra de arte que não se transforme em mercadoria ou "reality show" para exposição nos museus e vitrines do capital?
Esta questão, ao mesmo tempo insistente e persistente, quando pensamos interferências na produção do viver e do existir, atravessa-nos como uma flecha, abrindo-nos um labirinto de questões, com múltiplas entradas e saídas, sempre provisórias e fugazes. Imersos neste labirinto, só temos como possibilidade experimentá-lo, mapeando e acompanhando as combinações que nos habitam. A única bússola que temos nesta imersão é o pulsar constante dessa questão em suas ressonâncias e exasperações de outras questões. A ela se chega, se sai e se retorna na multiplicidade constitutiva de cada acontecimento que, mesmo se atualizando em uma certa forma de objetivação e subjetivação, produz agitações moleculares, envolve-se com linhas de fuga que constantemente nos lançam a novos combates que podem desobstruir devires revolucionários.
Guattari & Negri (1987), quando falam da revolução, propõem que saiamos da posição apenas programática, da busca da verdadeira revolução, e entendamos que a revolução é um revolucionar permanente, uma ativação de vizinhanças entre devires revolucionários.
A vida, pensada como potência de combate, compõe-se em meio a processos plurais de racionalização. É nesta perspectiva que Foucault vai afirmar a liberdade como um exercício, como práticas de liberdade que acontecem naquilo que fazemos para nos transformarmos. Este exercício opera uma crítica no limite de nós-mesmos e se afirma como processo permanente de problematização e de ultrapassagem dos limites históricos que nos constituem em seu estado de coisas e de enunciados.
A plasticidade imanente da vida requer um combate que privilegie o acontecimento singular, pois o combate se esteriliza quando vai a reboque de uma doutrina ideológica ou de um dever de militância ancorado em pressupostos de mediação entre totalidades constituídas. No prefácio da edição brasileira do livro de Deleuze dedicado à filosofia de François Châtelet, Orlandi (1999) chama atenção para as implicações deste combate, mostrando que:
"Combater na imanência é potencializar guerrilhas que não fazem o jogo cômodo das máquinas produtoras de universais (como os de contemplação, de reflexão e de comunicação), máquinas que, impondo seus próprios problemas, submetem outros ao domínio de estratégias ou focos transcendentes, sejam estes a Razão, a racionalidade de presidentes da república, líderes de grupelhos, interesses poderosos ou deuses quaisquer" (p. 13).
A modulação da interferência neste combate implica e requer mutação subjetiva. É nos encontros que experimentamos os movimentos que nos forçam a problematizar, mais do que a responder; alterando a nossa subjetividade e abrindo-a para o intensivo, já ali, onde os conceitos viram fluxo de intensão e nos conectam no circuito ziguezagueante da coexistência macro/micropolítica.
Poderíamos pensar esta modulação como "atos de subjetividade" diagramáticos31, que se constroem na experimentação, e não como regra exterior ou ativismo programático, previamente traçado, entre um sujeito que interfere e o estado de coisas no qual se quer interferir. Com isto, não queremos dizer que não fazemos programas em nossas interferências; mas traçar programas não é entregar-se a movimentos teleológicos que fixam os acontecimentos em uma causa única, não é burocratizar-se em uma temporalidade fora dos movimentos que produzem o real, não é disciplinar a rebeldia dos questionamentos, a heterogeneidade e a heterogênese dos problemas, assim como a disjuntividade das interferências. Ao optar pela emergência dos diferenciais promotores da vida, as interferências na produção social da existência são tecidas em um plano, ao mesmo tempo, ético, estético e político. Ético, no que se refere ao desejo de diferir e acolher a diferenciação constante; estético, no que se refere a tomar a existência e as práticas nas quais as interferências se produzem como matéria de criação e outramento; político, porque requer a problematização e a desnaturalização constante dos intoleráveis que atravessam a nossa existência e nos servem como indicadores de nossas ações em relação a nós mesmos e aos outros.
Quando perguntamos pelo nosso sentimento do intolerável, concordamos com Rodrigues (1998), quando ela assinala que o intolerável é "aquela intensidade que pode servir de indicador para nossa ação" (p. 43). Por quê? Porque o intolerável não estaria "dominantemente no que não nos deixam ser, mas nos procedimentos que fazem de nós o que somos" (RODRIGUES, 1998: 43). Desse modo, tecer práticas de liberdade como possibilidade de uma determinada forma de experiência se dar diferentemente implica uma luta constante que faz da paciência um valor ético-político que "dá forma à impaciência da liberdade" (FOUCAULT, 1994: 578).
Propomos, então, não manuais ou receitas para a interferência, mas a ativação de uma 'vontade de interferir' que se constrói em um plano ético-estético-político de experimentação no "limite de nós mesmos", nas linhas de fuga que vazam nos acontecimentos. Interferências como potências virtualizantes que reagitam o campo problemático pela exasperação de problemas. Com isto, não queremos afirmar a vontade de interferir em um campo de utopias abstratas, fora do real, pois sabemos da constante possibilidade de ocorrerem sedentarizações de interferências as mais intensivas, e morar no abstrato é uma das mais horrendas propensões do intelecto sedentário.
Esta vontade de interferir não se esgota em manifestações pequeno-burguesas de "boa vontade" - tão em voga, hoje em dia, nos projetos midiáticos que convocam a população a "doar seu tempo", engajando-se nos programas "amigos da escola", "adote um excluído" (velho, criança de rua, ex-presidiário), "natal sem fome". A insuficiência dessa boa vontade não está no próprio sentimento de solidariedade, mas no que este pode comportar de ativismo tão vazio quanto aquele, ideológico, que se compraz em emitir palavras de ordem radicais. É que a filantropia, erigida em regra, acaba compactuando com o conservadorismo do estado de coisas. O que a mera boa vontade pode acabar perdendo é o agudo senso de problematização daquilo mesmo que a convoca para simplesmente quebrar o galho do intolerável junto aos que precisariam exacerbar a criação de saídas. Ela empurra cada vez mais para a frente uma agonia que ela própria não consegue extirpar. Entretanto, é importante assinalar, nada impede que daí possam se produzir proposições e convocações que levem este ativismo vazio a se bifurcar em outras práticas que o façam correr para outro lugar, dispersando-o em microacontecimentos singulares gestadores de novas saídas.
Trata-se de uma vontade de interferir que, em vez de julgar uma interferência pela sua eficácia no campo das conexões que estejam entre ela e o todo, entre ela e a ocupação da produção social da existência pelo modo capitalista de produção, aprecie as interferências pelos problemas que elas fazem vibrar, pelos problemas que elas intensificam e agitam na imanência, onde pulsa a própria vida em sua errância.
Deleuze, ao aproximar imanência e "uma vida", entendida esta em sua "imantação intensiva", abre para a política a possibilidade de ir além do enquadramento das interferências em arranjos atuais - tais como o terrorismo, a corrupção, a militarização do cotidiano etc. -, pois torna aguda a urgência ético-estética de criar condições para a emergência de entretempos de uma vida.
Uma vida que, apesar de estar atravessada por transcendentes e "apesar do seu suceder-se em meio a referenciais empíricos, é também uma potência capaz de imanência" (ORLANDI, 2000: 52).
Vemos, então, que a experimentação de uma vontade de interferir se faz em meio aos combates que a própria vida, como campo de imanência variável do desejo, traça. É neles e em meio a eles, em seus gritos de dor e de alegria, que nos produzimos e construímos nossas interferências.
As interferências que nos interessam são aquelas ativadas por potências virtualizantesque, como vimos, reagitam o campo problemático pela exasperação de problemas, sejam grandes ou pequenos. Afirmá-las em seu vetor ativo, como nervura desejante das linhas de fuga, implica acolher a singularidade do acontecimento nas dobras e mais dobras que operam em nós, em suas varreduras e contágios. É nesta contaminação que a potência vital se expande, carregando as baterias do desejo e produzindo alegria no corpo como prova da pulsação de uma vitalidade, vitalidade esta que funciona como princípio ético de seleção de escolhas que orientam para onde direcionar as setas de nossas linhas de fuga.
Esta experimentação de uma "vontade de interferir" requer "fiapos de consciência" que nos possibilitem criar planos de consistência nas interferências, para que elas possam fazer vazar seus contínuos de intensidade, porém atentas à cegueira das duas serpentes que atravessam nossa existência: capital e desejo.
Produzir interferências que possam fazer da existência uma obra de arte solicita criação, paciência e "prudência", embora saibamos que tudo isso ocorre sempre "em gargalos de estrangulamentos" (DELEUZE, 1992: 167).
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Endereço para correspondência
Claudia E. Abbês Baeta Neves
E-mail: abbes@luma.ind.br
Recebido em: 10/09/05
Revisado em: 15/11/05
Aprovado em: 25/01/06
1Esta expressão é utilizada por Deleuze (1992: 56) quando define conceito como criação, como traço intensivo, e não como aplicação ou explicação de uma realidade.
2O conceito de máquina é um conceito central nas obras de Deleuze e Guattari. Ele é utilizado por Guattari, já em 1969, para fazer uma diferenciação da idéia de estrutura, visando, a partir desta diferenciação, explicar o funcionamento dos grupos que vinha desenvolvendo em La Borde. Mas é especialmente em O Anti-Édipo (1976) que as diferenças entre máquina e mecanismo se fortalecem na construção do conceito de máquina como sistema de cortes-fluxos que incidem sobre um "fluxo material contínuo". É deste sistema que brota o desejo, estando aí a sua produtividade. O conceito de máquina para Deleuze e Guattari opõe-se a mecanismo, porque um mecanismo, relativamente fechado sobre si mesmo, designa organização de uma organização, como também o procedimento de certas máquinas. Já a idéia de máquina para eles supera a de organização. Ela é, necessariamente, um sistema de corte de fluxos feitos no acoplamento com outras máquinas. Não há explicação que não seja dada pelo encontro dela com outras máquinas: elas estão sempre no devir. São máquinas abstratas que consistem em "matérias não formadas e funções não formais", trabalhando umas nas outras e no entrelaçamento das linhas diversas que compõem o "mapa" de um agenciamento (linhas molares, moleculares, linhas de fuga).
3Fluxos são processos de mutação maquínica não qualificados.
4Para operar a crítica da noção de desejo aquisitivo e pensar a noção de desejo como produção, tal como acaba de ser exposto, é fundamental apreender os agenciamentos que Deleuze e Guattari fizeram não só com a história da filosofia ocidental, mas também com o saber ocidental. Pois o sentido desta noção só se expressa na desnaturalização de um processo tecido por múltiplas séries de saberes e de forças que ora convergem, ora divergem, ora caminham paralelas. São muitas as questões que inquietam Deleuze e Guattari, mas, colocando em linhas genéricas, temos as críticas destinadas a Platão e a todos os pensadores que, de alguma maneira, contribuíram para atribuir ao desejo uma carência e que tentaram produzir na subjetividade a idéia de culpa. Tendo Nietzsche e Espinosa como intercessores primordiais, eles afirmam que ao desejo nada falta, ele é plenitude e imanência. É o próprio Deleuze que afirma que sua noção de desejo é muito próxima da noção de vontade de potência em Nietzsche. Nietzsche, ao afirmar que toda quantidade de realidade existente pode ser traduzida como quantidade de força - ou seja, que todo corpo existente, seja ele físico, biológico, histórico, psíquico ou político, é uma multiplicidade de forças em relação -, estava envolvido em um combate muito semelhante ao que Deleuze vai se envolver quando escreve junto com Guattari O Anti-Édipo (1976). É um combate contra a transcendência, contra a moral, a lei, a religião, que segundo Deleuze e Guattari, tem seus representantes modernos, chegando a colocar a figura do psicanalista como o representante moderno do antigo sacerdócio. Deleuze e Guattari (1976) produzem uma crítica incisiva à ligação do desejo com a "Lei" e com a "falta", como herança platônica que a psicanálise dissemina no saber ocidental, e mostram que a idéia geradora desse tipo de ligação está em fixar o desejo como "ponte entre um sujeito e um objeto", redundando, assim, no "sujeito clivado" e "objeto perdido". Colocar na idéia de desejo a idéia de falta é supor que, para além do ato de desejar, há alguma coisa. Associa-se, ainda que de maneira implícita, a transcendência a essa idéia de desejar alguma coisa do mesmo modo quando supomos um sujeito desejante. Quando se coloca o desejo em uma referência imanente, estas são as primeiras idéias a abolir. Para aprofundamento desta discussão, ver Fuganti (1990) e Deleuze (1974).
5A este respeito, ver Lazzarato (2001). Este autor, partindo da proposta de "refundação social" anunciada pelo Medef (Mouvement des Entreprises de France/Movimento das Empresas da França), mostra que esta proposição expressa a determinação patronal de "gerir a vida" do ponto de vista da lógica do lucro. Chama também a atenção para o fato de que esta prerrogativa biopolítica, de incitação, de controle, de vigilância e de individualização, antes atribuída às funções do Estado como forma de controle no governo da sociedade é reivindicada pelo patronato como forma de atrelamento das forças sociais às forças do capital e do trabalho. Em suas análises, o autor mostra uma reincidência da análise da economia política (realizada tanto por sindicatos, quanto pelos intelectuais orgânicos), que Foucault já criticava, inclusive em certas análises marxistas, a economia política reduz a relação entre forças, que marcam a heterogeneidade do campo social, às forças do capital e do trabalho. Diz Lazzarato (2001): "Aqui o marxismo e, em geral, a cultura do trabalho tocam seus limites 'não ultrapassáveis', porque eles assumem apenas uma função das empresas, a exploração econômica, sem integrar os outros: o governo pela individualização e as relações de biopoder" (p. 161, tradução nossa).
6Molar e molecular são dois modos de recortar a realidade, são planos indissociáveis que, apesar de terem seus modos próprios de funcionamento, atravessam-se o tempo todo. Eles correspondem ao que Rolnik (1989: 59) chama de "duas formas de individuação, duas espécies de multiplicidades, (...) duas políticas". O plano molar seria o plano da segmentaridade dura, do visível, dos processos constituídos, onde encontramos a predominância das linhas duras (família, profissão, trabalho etc.). Estas estão subordinadas a um ponto de referência que lhes dá sentido e implicam dispositivos de poder diversos que sobrecodificam os agenciamentos em grandes conjuntos, identidades, individualidades, sujeitos e objetos. Este plano comporia o que Deleuze e Guattari (1995: 90) chamam de um sistema arborescente, que se caracteriza por desdobramentos e derivações a partir de uma referência primeira e funciona por reprodução. O plano molecular, por sua vez, refere-se ao plano da formalização do desejo, do invisível, onde não se tem unidades, mas intensidades. Nele, temos a predominância das linhas flexíveis (fluxos, devir etc.) que buscam se desviar da sobrecodificação totalizadora das linhas duras e das linhas de fuga (abstratas) que, compondo um plano submolecular, conectam-nos com o desconhecido, operando aberturas para um campo de multiplicidades. Estas linhas formariam um sistema de rizomas.
7A explosão do traço de Van Gogh faz com que o corpo se distorça sobre a contorção das cores. A mão torna-se vidente, nada é como antes, algo sempre se passa como imagem sonora que não quer ser vista (MARTIN, 1993: 50).
8Bricolagem é a atividade de aproveitar coisas usadas, quebradas, ou apropriadas para outros usos, em um novo arranjo, uma nova função. Utilizamos esta palavra aqui para marcar o sentido de um novo arranjo, um outro uso. Trata-se ainda de expressão utilizada por Deleuze e Guattari (1976) nas primeiras páginas de O Anti-Édipo ao construírem a idéia de funcionamento maquínico dos modos de subjetivação a partir da indissociabilidade homem/natureza, produto/produtor, "somos todos bricoleurs".
9slogan de uma balada funk que anuncia o domínio, seja de uma nova forma de fazer música de protesto retratando a vida dos marginalizados, seja para anunciar que o tráfico, como poder paralelo, tem o domínio sobre a população. Aqui nos interessa chamar atenção para os muitos sentidos que este slogan ganha com referência "ao fim da história", ao "adeus ao trabalho". O debate sobre o funcionamento do capital mundializado tem se pautado em argumentos que apontam que o capital nunca foi tão forte e que o colapso do socialismo real marcou a irreversibilidade do capitalismo, alçando as relações capitalistas à condição de eternas. A tese de Fukuyama (1992) sobre "o fim da história" se assenta nesta análise; da mesma forma, as forças anticapitalistas clássicas, focadas na classe trabalhadora industrial e tendo o socialismo como horizonte, diluíram-se e estilhaçaram-se diante das mudanças na base material das relações de produção.
10Personagem que dá nome ao livro de Ítalo Calvino (1994), Palomar tem o mesmo nome de um famoso observatório astronômico que, durante muito tempo, ostentou o maior telescópio do mundo. Este personagem funciona como um telescópio invertido, pois, ao invés de captar a amplitude das coisas, atém-se ao que está mais próximo, buscando limitá-lo e regulá-lo.
11Agamben (2000) chama atenção para o conceito de vida, presente nos últimos trabalhos de Foucault e Deleuze, apontando tal conceito como o legado destes filósofos à filosofia por vir. Este legado se expressaria na reviravolta que empreendem ao evitar que a vida seja atribuída e atrelada a um sujeito. Estes dois filósofos, cada um a sua maneira, incitam-nos a uma motivação ético-política para, entendendo a vida como fluxo intensivo em permanente engendramento de si, problematizar o mundo em que vivemos e, nele, a produção social de nossa existência. Foucault sinaliza para uma reformulação das relações entre verdade e sujeito. Conforme esta reformulação, o sujeito é retirado do terreno da consciência e do cogito e é arraigado no terreno da vida. Trata-se, contudo, de uma vida da qual o erro não se afasta e que "vai além das vivências e da intencionalidade da fenomenologia". O erro, pensado por Foucault, como processo constitutivo da vida na afirmação de sua potência opera uma desmontagem da imagem retilínea do pensar e de sua necessidade de correção e justificação ante uma lei geral ou ao "verdadeiro". Ao contrário disso, o erro afirma-se como "acontecimento de direito do pensamento", que, em sua errância e derivas constitutivas, marca o modo peculiar de distribuição do ser e se mostra como "solo" dos processos de diferenciação imanente. Esta reformulação, operada por Foucault, abre as portas para seus trabalhos sobre a biopolítica e os processos de subjetivação, quando produz um deslocamento no terreno da teoria do conhecimento, afirmando o conhecimento não mais como "a abertura ao mundo e à verdade", mas entendendo-o como abertura à vida e a seu "errar", à vida como obra de arte e produção de si. Pois bem, quando Deleuze, em sua leitura de Bergson, desloca o tradicional problema da verdade para a idéia de embate entre problemas falsos e problemas verdadeiros, já está pensando uma vida como campo problemático desdobrando-se em processos de complexa diferenciação. Podemos dizer que, em seu último texto, publicado antes de sua morte, Deleuze tanto vitaliza a idéia de imanência quanto radicaliza a idéia de vida, afirmando-a, paradoxalmente, como "uma vida", numericamente uma, mas multiplicidade substantiva. A multiplicidade substantiva não tem relação com o uno como sujeito ou como objeto, como imagem e mundo. As multiplicidades são rizomáticas, só tem determinações e grandezas. A radicalidade desta idéia se deve a leitura deleuzeana dos princípios espinosanos que afirmam uma só natureza seja para os corpos, seja para os indivíduos. A este respeito, ver Orlandi (2000).
12A criação do termo "linhas", por Deleuze e Guattari, visa desmontar a idéia de um ponto de partida, de uma origem, de um ponto de chegada,. As linhas são os elementos constitutivos das coisas, dos acontecimentos. As linhas de fuga compõem o plano do desejo em sua fruição radical, desarticulam os traçados e operam aberturas para as singularidades diferenciais (afirmativas e criadoras), para as forças do fora que nos fazem "sair de si".
13Reportagem do Jornal do Brasil em maio de 2002.
14O acontecimento é um efeito sem corpo, um traçado de linhas e percursos que cruzam estruturas diversas e conjuntos específicos. É um dos elementos que povoam as multiplicidades, e estas são experimentações ancoradas no real, "não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito" (DELEUZE & GUATTARI, 1995: 8). As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que ocorrem nas multiplicidades, coexistindo com um campo intensivo em que não há unidades, sujeitos ou objetos pré-existentes, mas devires, acontecimentos, hecceidades (individuações sem sujeito) e linhas de fuga. O acontecimento produz ruptura, decompõe o que se apresenta como totalidade excludente, é datado, localizado, e funciona por conexão e contágio. Nele, não há sujeito. As quebras que produz podem irradiar-se, encontrar ressonância em uma multiplicidade de outros acontecimentos, ainda invisíveis, e suas potenciais invenções em uma forma de atualização. Esta atualização é percorrida por linhas de criação, afirmadoras da vida em suas múltiplas expressões, e, ao mesmo tempo, por linhas suicidase fascistas. No acontecimento, não há previsão. Dele, só podemos falar a partir dos agenciamentos e conexões que produz como forças que dele se apoderam. O acontecimento é sobretudo o que rompe as apaziguadoras relações de causa e efeito, é o que determina as condições da própria relação da qual emergem as categorias de sujeito e objeto, "mantendo-se como virtualidade ao lado do objeto atualizado" (ONETO, 1997). O acontecimento não é o que aconteceu, mas o acontecer, com seus "nós" portadores de singularidades que exprimem suas condições nas "vizinhanças", no entre, onde se dá a "imantação mútua de uma singularidade pela outra" (ONETO, 1997). O acontecimento traz a vibração da multiplicidade caótica que é a vida bifurcando-se, em um mesmo acontecimento: de um lado, as fixações das formas estratificadas nos estados de coisas e, de outro, a imersão no labirinto do devir, do inesperado e do imprevisível. Ele não se dá a partir de uma intenção primeira ou como resultado de algo. Diferente disto, ele põe, em cena, "o jogo de forças que emerge no acaso da luta" (FOUCAULT, 1979). Dele, só podemos falar a partir dos agenciamentos e das conexões que produz como forças que dele se apoderam. O seu constante acontecer, irredutível às faculdades e à significação, é a sua intensão como manifestação de forças do devir que o empurram a novas composições e decomposições.
15Desterritorialização é a operação por meio da qual um território, composto de linhas e objetos incorporais, desmancha-se como passagem de um estado intensivo para outro.
16Com Artaud, esse "artesão do corpo sem órgãos" (LINS, 1999), chegamos à nossa mais contemporânea linha filosófica de indagação a respeito do corpo. Não precisamente a respeito do corpo, mas daquilo que se processa no encontro dos corpos, mesmo que esse encontro se faça em regime de solidão, pois toda solidão é imensamente povoada. Do combate levado a cabo por Artaud contra o juízo de Deus e contra os órgãos, Deleuze e Guattari extraem mil e uma partículas diabólicas, conectando-as a uma complexa pragmática do desejo". A este respeito, ver Deleuze & Guattari (1996: 9-29).
17Deleuze (1992: 222-223) usa a imagem da serpente para caracterizar as atuais modulações do capitalismo no contemporâneo.
18O agenciamento é a liga do desejo na produção de mundos. Ele põe em cena os funcionamentos e os movimentos arborescentes e rizomáticos do desejo nesta produção. Como multiplicidade substantiva que comporta termos heterogêneos, o agenciamento estabelece entre os termos relações diferenciais imanentes, de modo que um termo da relação não se torna outro, se o outro já não se tornou outra coisa. Por isso, sua única unidade é a de co-funcionamento, ligando estado de coisas, estado de corpos e enunciados em relações de vizinhança com limites móveis e sempre deslocados. Em um agenciamento, não se encontram sujeito e objeto constituído, mas agenciamentos coletivos de enunciação e agenciamentos maquínicos trabalhando, ao mesmo tempo, sobre fluxos semióticos, materiais e sociais que arrastam as pessoas e as coisas em suas engrenagens. As enunciações, dizem Deleuze e Guattari, são os conectores em um agenciamento e os enunciados são suas peças e engrenagens, "um fluxo monetário comporta em si mesmo tantos enunciados quanto um fluxo de palavras pode comportar dinheiro" (DELEUZE & PARNET,1998: 85). Na enunciação, não há um sujeito que a precede funcionando como sujeito de enunciação, ou mesmo que se objetiva como produto ou efeito do enunciado, mas há sempre uma coletividade sem sujeitos, singularidades, como vibração de multiplicidades em devir. Neste entendimento, as pessoas e as coisas são índices de agenciamentos maquínicos. As máquinas operam em meio a "nuvens" de virtual, proliferando diferença diferenciante e atraindo partículas dispersas de modos de subjetivação e objetivação que se constroem nos agenciamentos, em cada relação de forças. Estas partículas buscam componentes de passagem em um real, já presente, mas ainda não atualizado. Suas atualizações podem variar de acordo com as linhas que compõem nos estratos históricos seus regimes de dizibilidade e visibilidade. Apontando a dimensão histórica do agenciamento, Deleuze, leitor de Foucault, sinaliza que em cada formação histórica se destacam modos de sentir, pensar, dizer e perceber que, conformando regiões de dizibilidade e visibilidade, buscam concentrar esta dispersão em um certo modo de subjetivação e de objetivação. Os modos de objetivação e subjetivação criam-se, ao mesmo tempo, imanentes aos movimentos do desejo nas linhas que seguram suas produções em territorialidades e reterritorializações que fixam um código aos enunciados, centralizando a produção lingüística em um sujeito individualizado. Dão termo ao devir e determinam um acontecimento pela sua efetuação em estado de coisas e enunciados inscritos em uma determinação indicativa do tempo (passado, presente e futuro). Neste funcionamento, os modos de vida são laminados em modos identitários e individualizados que fazem ressoar os sentidos, rebatendo-os em uma "língua maior", em uma axiomática dos dispositivos de poder e saber, que opera por segmentarização, referindo o desejo a uma interioridade, inscrevendo-o como desejo de objeto e separando desejo e política como planos que se opõem (desejo-micro x política-macro), sobrepõem (política-infra-superestrutura x desejo-superestrutura) ou se encontram justapostos (política capitalista = desejo consumo). Simultaneamente, estes modos podem se compor em linhas de desterritorialização que, liberando uma pura matéria intensiva (fluxos do inconsciente no campo social), afirmam o desejo como signos a-significantes, abertos à criação de sentidos e de percepções em um processo de diferença diferenciante, que desfaz os códigos e carrega as expressões e os conteúdos, os estados de coisas e os enunciados sobre uma linha de fuga serpenteante. Esta conecta o desejo nas multiplicidades substantivas e pode levar o tempo ao infinitivo, extraindo um devir que já não tem termo. Neste funcionamento, os modos de objetivação e subjetivação podem fluir em modos criativos que, afirmando uma língua menor, fora do sujeito do enunciado e da enunciação, abre estes modos a outras maneiras de invenção da vida e do viver ou, também, como vimos anteriormente, pode levar o desejo em sua errância a produzir a própria morte. Isto acontece quando o desejo, em sua conectividade cega, agencia-se à sua própria destruição. O que, aí, está em jogo é a vida e a produção da existência em seus processos de intensificação e de destruição.
19Expressão utilizada por Orlandi (2005: 37).
20Expressão utilizada por candidatos oponentes nos outros pleitos, quando afirmavam que seria "difícil engolir o sapo barbudo".
21De José Serra, candidato oponente.
22Regina Duarte, atriz brasileira que, desde muito nova, fez sua carreira na televisão.
23É necessário ressalvar que a eleição de um ex-operário, militante de esquerda, não nos traz nem trouxe, como estamos vendo, nenhuma garantia de um governo que se alie às questões da reversão da miséria neste país, vide o governo do intelectual de "esquerda" Fernando Henrique Cardoso e os caminhos que o governo atual tem trilhado.
24Grupo de países mais industrializados do mundo, formado pelos EUA, Inglaterra, Japão, Alemanha, Itália, Rússia, França e Canadá.
25Expressão utilizada pelo jornalista Fernando Evangelista na revista Caros Amigos, n° 53.
26Estes protestos ganharam maior visibilidade, por meio da imprensa, em Seattle em 1999 durante a 3ª Conferência da Organização Mundial de Comércio, mas vêm ocorrendo com mais força desde 1984, no l° Fórum Alternativo durante a reunião do G-7, em Londres. Desde esta época, seguiram-se outros protestos em 1988, em Berlim, na reunião do FMI; em 1998, na Inglaterra, na reunião do G-8; em 2000, na Suíça (Davos), na realização do Fórum Econômico Mundial, com constituição paralela, no Brasil (RS), no Fórum Social Mundial.
27A axiomática é um processo de operação da finitude que trabalha sobre uma matéria infinita, ou seja, é uma rede finita que vem aplicar-se sobre uma matéria infinita porque esta matéria infinita escapa aos códigos. A axiomática capitalista é um processo que compensa os limites por uma combinatória dos códigos; retoma por um lado o que ela perde por outro. Está sempre pronta a juntar um axioma a mais à máquina; as relações diferenciais instauram relações formais entre quantidades flutuantes e formam a axiomática capitalista que conjura, controla e compensa a multiplicidade crescente das combinatórias advinda dos processos de desterritorialização e decodificação. Por um lado, ela converte os limites exteriores em limites interiores, definidos pelo funcionamento do próprio capital, que ela reproduz em uma escala sempre maior. Substitui os limites anteriores, recriando-os em novas combinatórias e reproduzindo-os na mesma escala, não cessando de produzir reterritorializações (subjetivas, propriedade privada).
28A máquina de guerra é o contrário de um exército, ela é um funcionamento que, permanentemente, evita que o aparelho de Estado ou a organização capturem ou se agenciem do desejo; o Estado como o grande organizador, como o Uno, aquele que acaba com a multiplicidade e dissocia poder de sociedade.
29As máquinas de sobrecodificação disciplinam as fluências do desejo em sua produção de diferença intensiva, esquadrinham e enquadram estabelecendo padrões de normalidade e desvios-padrão de acordo com uma "central" transcendente que funciona por derivação; no sistema capitalista, este funcionamento se dá nos processos de troca/equivalência.
30Por 25 dias, o governo italiano, chefiado por Silvio Berlusconi, rompeu com o Tratado de Schengen, assinado em 1990 (convenção sobre fronteiras comuns nos países pertencentes à União Européia), com o consentimento da Comissão Européia. Invocou o artigo 2° deste Tratado, que prevê, em caso de exigência da ordem pública ou em questões de segurança nacional, a possibilidade de um país decidir pelo fechamento temporário de suas fronteiras.
31Segundo o Jornal do Brasil de18/7/2001, no artigo "Fronteiras fechadas para a contestação", houve o desembarque de aproximadamente 2.700 homens das três Armas, especialistas em guerra química e bacteriológica, além de agentes secretos dos oito países envolvidos.
32"O diagrama, enquanto expõe um conjunto de relações de forças, não é um lugar, mas um não-lugar: é lugar apenas para as mutações. (...) Certamente o diagrama se comunica com a formação estratificada que o estabiliza ou fixa, mas conforme um outro eixo; ele se comunica também com o outro diagrama, os outros estados instáveis do diagrama, através dos quais as forças perseguem seu devir mutante. É por isso que o diagrama é sempre o lado de fora dos extratos. Ele não é exibição das relações de forças sem ser, igualmente, emissão de singularidades, de pontos singulares" (DELEUZE, 1987: 117).
Nota:
Este artigo, resultado de apresentação realizada no VI Encontro Clio-Psyché, foi gentilmente cedido pelo Programa de estudos e pesquisas em História da Psicologia - Clio-Psyché, da UERJ, para publica¸ão nos Arquivos Brasileiros de Psicologia.