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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. v.58 n.1 Rio de Janeiro jun. 2006
ARTIGO
Fantasias sexuais e edípicas em pré-adolescentes atendidos em grupo de psicoterapia lúdica
Sexual and oedipal fantasies in preadolescents assisted in play group therapy
Karen BodsteinI,II; Sérgio Luiz Saboya ArrudaII
IPrefeitura de São Paulo
IIUniversidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
RESUMO
A partir de conceitos advindos da teoria psicanalítica, objetiva-se identificar, descrever, discutir e analisar expressões de fantasias inconscientes edípicas e sexuais, ocorridas em um grupo de ludoterapia de pré-adolescentes. Este grupo funcionou segundo o referencial psicodinâmico, por dois anos, em um ambulatório de um serviço público; era aberto e constituído por crianças de ambos os sexos, de 10 e 11 anos de idade. Na pesquisa, utilizou-se o método clínico-qualitativo. As fantasias de conteúdos sexuais estiveram presentes em grande número de sessões. Já as fantasias edípicas eram menos freqüentes e menos evidentes, pois eram recalcadas ou apareciam de forma velada, quase sempre na transferência com as terapeutas e com outras crianças. Observaram-se expressões de fantasias inconscientes de união com o progenitor do sexo oposto, rivalidade entre irmãos e ansiedade de castração, psicodinâmica relacionada com a sexualidade e com o complexo de Édipo.
Palavras-chave: Complexo de Édipo; Fantasia sexual; Psicoterapia lúdica de grupo; Pré-adolescentes; Crianças.
ABSTRACT
Starting from concepts originated from the psychoanalytic theory, the objective is to identify, to describe, to discuss and to analyze expressions of unconscious oedipal and sexual fantasies that took place in a play therapy group of preadolescents. This out-patient group worked according to the psychodynamic reference for two years, it was open and constituted by male and female children, with ages of ten and eleven years old. The clinical-qualitative method was utilized in the research. Sexual fantasies were present in a significant number of sessions. On the other hand, oedipal fantasies were less frequent and less evident, since they usually were repressed or unclear, almost always in the transference of therapists and of the children. Unconscious fantasy expressions of union with the progenitor of the opposite sex were observed, as well as competition among siblings and anxiety of castration.
Keywords: Oedipal complex; Sexual fantasy; Group psychotherapy; Play therapy; Preadolescents; Children.
INTRODUÇÃO
O método, a teoria e a prática psicanalítica deram origem a outras correntes e modalidades terapêuticas, entre as quais se encontram as psicoterapias de orientação psicanalítica, conhecidas como psicodinâmicas.
A psicoterapia de grupo de orientação psicodinâmica, utilizada neste estudo, é uma modalidade de atendimento que se apóia em conceitos freudianos e psicanalíticos. Pode ser usada em ambulatórios e serviços públicos de saúde, por aceitar a realização de apenas uma sessão por semana.
No grupo de pré-adolescentes estudado, foram observadas expressões de fantasias sexuais e edípicas quer nas brincadeiras e nos jogos, quer nas falas das crianças. O vínculo com as terapeutas e com as outras crianças do grupo serviu de palco para projeções do vínculo com outras pessoas com as quais os pré-adolescentes convivem, principalmente pais e irmãos.
A compreensão das fantasias sexuais e edípicas e dos psicodinamismos associados é essencial tanto para o processo terapêutico, como para o entendimento das relações de crianças na pré-adolescência com seus objetos internos. Assim, espera-se que este estudo possa contribuir para a prática de psicólogos clínicos que atendem crianças e pré-adolescentes e que trabalham com grupos de psicoterapia lúdica psicodinâmica.
Segue-se uma introdução teórica que inclui a noção de complexo de Édipo criada por Freud e princípios da psicoterapia lúdica em grupo, a partir dos quais serão feitas a análise e a discussão do material clínico apresentado pelo grupo estudado.
Freud e a noção de complexo de Édipo
Freud (1910/1970a, p. 21) escreve que, em um mesmo indivíduo, são possíveis agrupamentos mentais que podem ser independentes entre si, agrupamentos estes que denomina de consciente e inconsciente. Revoluciona sua época ao afirmar que o comportamento pode ser determinado pela atividade inconsciente do indivíduo.
Este autor postula ainda que as perturbações psíquicas surgem a partir de experiências emocionais traumáticas que deixaram resíduos, isto é, os sintomas. O caráter particular de cada sintoma se explica pela relação com a cena traumática que o causou (Freud, 1910/1970a, p. 17-20). O recalque é a operação pela qual estas experiências e as representações ligadas a uma pulsão (pensamentos, imagens, recordações) são mantidas inconscientes (Laplanche e Pontalis, 1979, p. 552-558). A operação de recalcamento é, portanto, mobilizada pelo aparecimento de fantasias e representações psíquicas incompatíveis com as aspirações morais do indivíduo.
Essa incompatibilidade gera um conflito que traz intenso desprazer emocional (Freud, 1910/1970a, p. 25). O desejo torna-se então inconsciente, produzindo sintomas (Freud, 1910/1970a, p. 27) e sonhos, que são substituições do que fora recalcado. O tratamento de orientação psicanalítica visa, a partir da análise dos sonhos, memórias e desejos inconscientes, trazê-los à consciência, permitindo que os sintomas sejam removidos (Freud, 1910/1970a, p. 32-37).
Os desejos são de natureza erótica (sexual), ou seja, as perturbações no erotismo do indivíduo são as que mais influenciam no aparecimento dos sintomas psicogênicos (Freud, 1910/1970a, p. 38). Dito de outra forma, a neurose provém de uma perturbação do desenvolvimento sexual (Freud, 1910/1970a, p. 43).
A sexualidade está presente desde a tenra infância: “[...] foram os desejos duradouros e reprimidos da infância que emprestaram à formação dos sintomas a força sem a qual teria decorrido normalmente a reação contra traumatismos posteriores. Estes potentes desejos da infância hão de ser reconhecidos, porém, em sua absoluta generalidade, como sexuais” (Freud, 1910/1970a, p. 39).
O criador da psicanálise elabora uma teoria sobre as fases do desenvolvimento psicossexual: fases oral, anal e fálica, período de latência e fase genital. Em cada uma dessas etapas, há uma zona erógena predominante, isto é, lugares do corpo que funcionam como uma fonte de excitação e proporcionam o prazer sexual (boca, ânus, uretra, pele e órgãos genitais). Há ainda a pulsão que se dirige a um objeto, a qual visa receber a sua gratificação (Freud, 1910/1970a, p. 41). Nessas fases, há também conflitos subjacentes. No paciente adulto, a patologia constitui-se quando o indivíduo apresenta fixação ou regressão de sua energia sexual em relação às condições de fases infantis (Freud, 1940/1975, p. 177-181).
Na fase oral, a atividade psíquica concentra-se em fornecer satisfação às necessidades da boca. Na fase anal-sádica, predomina a satisfação na função excretória (Freud, 1940/1975, p. 177-181).
A fase fálica, que predomina entre os 3 e 5 anos de idade, é uma precursora da forma final assumida pela vida sexual. Freud (1940/1975) escreve: “[...] não são os órgãos genitais de ambos os sexos que desempenham papel nessa fase, mas apenas o masculino (o falo)” (p. 179).
Com a fase fálica, a sexualidade infantil atinge seu ápice e depois caminha para a dissolução, surgindo o período de latência. Com a puberdade, então, a vida sexual avança mais uma vez (Freud, 1940/1975, p. 178-181). Entre os conflitos presentes na fase fálica, encontram-se os edípicos.
Freud usou, pela primeira vez, o termo complexo de Édipo no texto “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens” (Freud, 1910/1970b, p. 154), caracterizando-o como um conjunto de desejos amorosos e hostis que a criança experimenta em relação aos pais.
Na forma simples do complexo de Édipo, o indivíduo toma o progenitor do sexo oposto como objeto de seus desejos eróticos e apresenta hostilidade e rivalidade em relação ao progenitor do mesmo sexo (Freud, 1931/1974, p. 259).
Esses desejos trazem, no menino, o temor de perder o "falo" (temor da castração) e, na menina, o ressentimento com a mãe por não possuí-lo (complexo de castração), desejando obtê-lo. A rivalidade em relação aos irmãos também é característica desse momento (Freud, 1931/1974, p. 264-268).
Em sua forma completa, o complexo de Édipo admite tanto a forma simples como a dinâmica contrária, em que há uma inversão em relação aos progenitores, para os quais são dirigidos, respectivamente, os sentimentos amorosos e hostis da forma simples. O complexo de Édipo é recalcado, mas continua a agir no inconsciente. O criador da psicanálise acredita ser este o complexo nuclear de cada uma das neuroses de defesa (Freud, 1910/1970a).
No complexo de Édipo nos meninos, a criança retém o mesmo objeto que previamente catexizou sua libido (a mãe). Nas meninas e nos meninos, a mãe é o objeto original. Todavia, enquanto os meninos mantêm esse objeto, as meninas devem abandoná-lo para tomar o pai como objeto (Freud, 1931/1974).
Freud propõe que existem teorias sexuais infantis e que o conhecimento das mesmas é indispensável para a compreensão das neuroses. A primeira destas teorias é atribuir a toda pessoa, inclusive às do sexo feminino, a posse de um pênis. Nos meninos, o pênis é a principal zona erógena e o principal objeto sexual auto-erótico. Nas meninas, o clitóris é o órgão homólogo ao pênis e comporta-se, durante a infância, como um verdadeiro pênis, tornando-se a sede das excitações (Freud, 1908/1976, p. 215-220).
A investigação sexual da criança a leva a comprovar a falta do pênis na mulher (Freud, 1916-1917, p. 252-254). Diante desta percepção, os meninos ou negam a sua falta, ou fantasiam que o órgão é ainda pequeno e que crescerá quando a menina for maior. Depois, passam a interpretar a ausência do pênis como resultado de uma castração (Freud, 1923, p. 182).
Com a visão dos órgãos genitais femininos, para o menino, a perda de seu próprio pênis fica imaginável. É a ameaça da castração que causa a destruição da organização genital fálica. Se a satisfação do amor no campo do complexo de Édipo deve custar à criança o pênis, a criança desiste do complexo de Édipo (Freud, 1924/1976a, p. 219-221). A destruição da atitude edipiana é ocasionada pelo temor da castração, ou seja, pelo interesse narcísico nos órgãos genitais (Freud, 1925/1976, p. 310-311).
Nos meninos, o complexo de Édipo é destruído pelo complexo de castração. As catexias libidinais são dessexualizadas e os objetos são incorporados ao ego, formando o núcleo do superego, fornecendo a essa estrutura suas qualidades características. O superego torna-se o herdeiro do complexo de Édipo (Freud, 1925/1976, p. 318-320).
O homem possui uma zona sexual e a mulher duas (a vagina e o clitóris, que é análogo ao pênis). A mulher tem sua vida sexual dividida em duas fases: a primeira possui um caráter mais masculino (em que as principais ocorrências genitais da infância acontecem em relação ao clitóris) e a outra, um caráter feminino (Freud, 1931/1974, p. 262).
Nas meninas, com a descoberta do pênis, origina-se a inveja do mesmo e um desejo de possuí-lo (Freud, 1916-1917, p. 245-252). Ao final da primeira fase de ligação com a mãe, a menina encontra um motivo para afastar-se da mesma: a hostilidade sentida pela mãe por não lhe ter dado um pênis (Freud, 1931/1974, p. 268). A menina culpa a mãe pela sua falta. E abandona o desejo de ter um pênis, substituindo-o pelo desejo de ter um filho, tomando para isso o pai como objeto de amor e a mãe como objeto de ciúmes (Freud, 1925/1976, p. 316-320).
Esse processo se dá de maneira complexa. A menina precisa abandonar sua principal zona genital infantil & o clitóris & e substituí-la pela vagina (Freud, 1931/1974, p. 259). A eliminação da sexualidade clitoridiana constitui pré-condição necessária para o desenvolvimento da feminilidade (Freud, 1925/1976, p. 317).
A menina deverá, então, ter uma mudança em relação ao seu próprio sexo e ao sexo de seu objeto (Freud, 1931/1974, p. 263). Deve ocorrer um abaixamento das pulsões sexuais ativas e uma ascensão das passivas, já que a transição para o objeto paterno é realizada com a ajuda das tendências passivas (Freud, 1931/1974, p. 274-275).
O complexo de castração prepara e introduz o complexo de Édipo nas meninas e inibe e limita a masculinidade, incentivando a feminilidade. Nas meninas, falta o motivo para a destruição do complexo de Édipo. A castração já teve seu efeito, forçou a criança ao complexo de Édipo, que pode então ou ser abandonado ou recalcado, mas seus efeitos podem persistir com bastante ênfase na vida mental normal das mulheres. O superego das mulheres nunca é tão independente de suas origens emocionais como o dos homens (Freud, 1925/1976, p. 318-320). O complexo de Édipo é destruído pelos efeitos de sua impossibilidade interna (Freud, 1924/1976a, p. 217).
O afastamento de tal complexo se realiza da seguinte maneira:
“As catexias de objeto são abandonadas e substituídas por identificações. A autoridade do pai ou dos pais é introjetada no ego e aí forma o núcleo do superego, que assume a severidade do pai e perpetua a proibição deste contra o incesto, defendendo assim o ego do retorno da catexia libidinal. As tendências libidinais pertencentes ao complexo de Édipo são em parte dessexualizadas e sublimadas (coisa que provavelmente acontece com toda transformação em uma identificação) e em parte são inibidas em seu objetivo e transformadas em impulsos de afeição. Todo o processo, por um lado, preservou o órgão genital & afastou o perigo de sua perda & e, por outro, paralizou-o & removeu sua função. Esse processo introduz o período de latência, que agora interrompe o desenvolvimento sexual da criança” (Freud, 1924/1976b, p. 211).
O superego é o herdeiro e o substituto do complexo de Édipo, que é, portanto, a fonte de nossa moralidade (Freud, 1924/1976b, p. 209).
Freud (1910/1970a) afirma ser normal que a criança faça dos pais o objeto da primeira escolha amorosa. Posteriormente, a criança se desprenderá dos genitores, tendo-os apenas como modelos para futuras escolhas dos parceiros. Essa é uma tarefa imprescindível para assegurar o bom funcionamento social do indivíduo, embora o desprendimento dos pais possa provocar ansiedades de separação. Desse modo, a fase fálica é a que dá origem à escolha de um objeto. Na puberdade, então, essa escolha de objeto poderá ser concretizada (Freud, 1905/1972, p. 241).
Na adolescência, cessa o período de latência, entra-se na fase genital, e a súbita emergência da pulsão sexual reativa a dinâmica edípica. Com isso, são reativados o temor da ameaça da castração e o sentimento de culpa (Marcelli e Braconnier, 1989, p. 146).
Acerca da psicoterapia lúdica em grupo
Embora não trabalhasse com grupos e não fosse adepta desse tipo de atendimento, a psicanalista Melanie Klein (1955/1980) contribuiu indiretamente para que o tratamento em grupo pudesse ser realizado com crianças. Ao desenvolver a "técnica psicanalítica através do brinquedo", deu o impulso pioneiro para a psicanálise individual da criança.
Essa técnica consistia em colocar brinquedos em uma sala de consultório na qual a criança pudesse brincar livremente, tal como os adultos verbalizam livremente em sua análise. Isso porque a criança expressa fantasias e ansiedades ao brincar, demonstrando seu material inconsciente. Tomando o princípio fundamental da psicanálise & a associação livre &, Klein não se deteve só em interpretar as palavras da criança, mas também suas atividades com os brinquedos e todo o seu comportamento, pois acreditava que estes eram os meios de a criança expressar o que o adulto expressava principalmente com palavras. A análise da transferência é o meio para se chegar ao material inconsciente (Klein, 1955/1980, p. 27).
“Um dos pontos importantes na técnica através do brinquedo sempre foi a análise da transferência. Como sabemos, o paciente, na transferência com o analista, repete emoções e conflitos anteriores. Minha experiência demonstra que logramos ajudar fundamentalmente o paciente reduzindo suas fantasias e ansiedades, em nossas interpretações de transferência, para o lugar onde se originaram & particularmente, na infância e na relação com seus primeiros objetos. Portanto, ao reexperimentar emoções e fantasias primitivas e ao compreendê-las em relação a seus objetos primários, ele pode, por assim dizer, revisar essas relações em sua origem e assim diminuir efetivamente suas ansiedades” (Klein, 1955/1980, p. 38).
No princípio, a psicoterapia analítica de grupo de crianças passou a utilizar a técnica de jogo tal como se fazia no tratamento psicanalítico individual da criança (Grinberg, Langer e Rodrigué, 1957/1976, p. 83).
Influenciado pelo trabalho de 1968 de Nicole Coupère, Gérard Decherf (1986) contribuiu para o desenvolvimento da técnica de psicoterapia psicanalítica de grupo com crianças, ao utilizar a técnica do brinquedo em grupos e ao trabalhar com um par de terapeutas.
A técnica consistia em reunir, em uma sala, cinco a oito crianças com idades aproximadas, durante quarenta e cinco minutos, na presença de um casal de terapeutas. As crianças poderiam transferir, para o casal de terapeutas, dinamismos inconscientes relacionados aos pais. “A presença de um casal facilita a transferência e favorece a emergência de sentimentos ambivalentes ou contraditórios, que podem ser projetados num ou noutro terapeuta, ou, eventualmente, lateralmente nos co-participantes” (Decherf, 1986, p. 20). Com isso, as diversas vivências da vida familiar seriam revividas no grupo.
Deveria ser dito às crianças que poderiam se expressar livremente, quer verbalmente, quer por meio de gestos ou brincadeiras, pois é a partir dessas atividades que expressam os desejos e fantasias inconscientes. Tudo o que as crianças fazem ou dizem no grupo tem um sentido, podendo o analista perceber conflitos individuais e conflitos comuns ao grupo. “Interpretar é sobretudo permitir que a criança estabeleça elos entre sua vida inconsciente e sua vida consciente, para que possa se conhecer melhor e tirar maior proveito de suas capacidades diversas” (Decherf, 1986, p. 119).
Na interpretação no grupo:
“[...] o analista deve levar em conta a presença dos outros e, em princípio, não poderá utilizar a história pessoal do paciente, a fim de evitar qualquer indiscrição ou ferimento narcísico. Estes inconvenientes são, em parte, compensados. Com efeito, num grupo, como em qualquer situação analítica, todos os elementos presentes estão relacionados. Assim, a interpretação beneficiará a todos, mesmo que se dirija a um único membro” (Decherf, 1986, p. 119).
Quanto ao planejamento dos grupos, Ginott (1974, p. 45) acredita que se deva considerar o impacto dos membros uns sobre os outros. Assim, postula que deve haver crianças com síndromes diferentes para que cada uma possa se associar e se identificar com personalidades diferentes da sua. O grupo deve ainda ser aberto em relação à entrada de novos participantes.
As idéias de alguns psicanalistas argentinos tiveram boa divulgação no Brasil, com repercussão na prática institucional e grupal. Dentre estes autores, citam-se: Arminda Aberastury (1969), seguidora do pensamento kleiniano, que utiliza a técnica de psicanálise individual de crianças, além de efetuar grupos de orientação de mães; e Enrique Pichon-Rivière (1986a; 1986b) e José Bleger (1984; 1985), que, preocupados em levar o conhecimento e técnicas de orientação psicanalítica para além das sociedades psicanalíticas e dos consultórios particulares, realizam importante trabalho de psicologia institucional de alcance social e educativo.
Por exemplo, Pichon-Rivière e Bleger desenvolvem os grupos operativos, em que um conjunto de pessoas se reúne com o objetivo comum de realizar uma tarefa, sendo que os objetivos, problemas, recursos e conflitos que vão aparecendo devem ser considerados e discutidos pelo próprio grupo (Bleger, 1985, p. 55). Pichon-Rivière (1986a, p. x-xi) formula uma noção de vínculo que amplia o conceito de relação de objeto, incluindo o sujeito, o objeto e sua mútua inter-relação com processos de comunicação e de aprendizado. O autor propõe o conceito de estrutura vincular (com alcance na esfera social) em continuação à noção de pulsão (de alcance mais individual) e, a partir da noção de vínculo, formula idéias genuínas sobre o processo grupal (Pichon-Rivière, 1986a; 1986b).
Sobre a psicoterapia em grupo que utiliza o brinquedo, a seguir, são relacionados alguns estudos recentes: Homeyer (1999) e Jones (2002) trabalham com crianças molestadas sexualmente, enquanto Bocks, Schettini e Shebroc (2001) atendem pré-escolares expostos à violência doméstica. Hansen, Meissler e Ovens (2000) estudam este tratamento em crianças com hiperatividade e deficit de atenção.
Abramovitch e Marins (1988) descrevem uma experiência psicoterápica grupal com crianças internadas em uma enfermaria de pediatria. Le Vieux (1999) estuda o tratamento de grupo com crianças deprimidas e Lingnell e Dunn (1999) usam essa forma de atendimento em crianças hospitalizadas.
Ao discutir um grupo de psicoterapia lúdica psicodinâmica, realizado em um serviço público, Calil (2001) relata como as crianças lidam com suas angústias por meio do brincar espontâneo. O autor considera o grupo de psicoterapia lúdica o lugar ideal para as projeções das fantasias inconscientes individuais. No grupo, podem estar presentes as fantasias relacionadas com a vida intra-uterina, com a cena primária, com o temor da castração e com a vivência edípica.
Embora não tenha trabalhado com grupos terapêuticos, Freud trouxe importantes contribuições para o entendimento da dinâmica grupal.
Nos grupos, o indivíduo abandona seu ideal do ego e o substitui pelo ideal do grupo (Freud, 1921/1976, p. 163). Os impulsos emocionais particulares e os atos intelectuais de um indivíduo são fracos demais para chegar a algo por si próprio; para isso, dependem inteiramente de serem reforçados por sua igual repetição nos outros membros do grupo (Freud, 1921/1976, p. 149).
Intensos vínculos emocionais, que se observam nos grupos, explicam suas características: a falta de independência e de iniciativa de seus membros, a semelhança nas reações de todos eles, sua redução, por assim dizer, ao nível de indivíduos grupais (Freud, 1921/1976, p. 149).
De acordo com Cabernite e Corrêa (1976, p. 63), como já mencionado anteriormente em Freud (1931/1974), na situação edípica, há o desejo de tomar o poder do pai (do terapeuta), mas isso traz o risco de o indivíduo ser, simbolicamente, castrado e morto. A tarefa dos homens é, então, a de conciliar seus impulsos incestuosos e os sentimentos de culpa.
Não se deve, porém, confundir Édipo solucionado com a ausência dele. O Édipo solucionado é o conflito edípico já inibido nos seus impulsos e exigências emocionais (Cabernite e Corrêa, 1976, p. 133).
Segundo Miller de Paiva (1991): “O indivíduo entra no grupo pela porta do complexo de Édipo. Uma vez dentro do grupo, ele quer ficar sozinho com o líder e expulsar os outros pela mesma porta por onde entrou. O Édipo é, pois, a entrada e também a saída do indivíduo no grupo" (p. 26, ênfase no original).
Quanto à participação de crianças em atividades grupais, Freud (1921/1976) afirma:
“[...] no grupo de crianças desenvolve-se um sentimento comunal ou de grupo, que é ainda mais desenvolvido na escola. A primeira exigência feita por essa formação reativa é de justiça, de tratamento igual para todos. Se nós mesmos não podemos ser os favoritos, pelo menos ninguém mais o será. Essa transformação, ou seja, a substituição do ciúme por um sentimento grupal no quarto das crianças e na sala de aula, poderia ser considerada improvável, se mais tarde o mesmo processo não pudesse ser de novo observado em outras circunstâncias. [...] Essa exigência de igualdade é a raiz da consciência social e do senso de dever” (p. 152-153).
No grupo terapêutico, a experiência edípica humana se repete, e o ciúme, que pertence à categoria dos conflitos edípicos, é mais intenso do que na análise individual, pela presença de mais pessoas (Cabernite e Corrêa, 1976, p. 133).
Ao comparar a análise individual à de grupo, Cabernite e Corrêa (1976) afirmam: “[...] a principal diferença, entretanto, é que a análise individual admite como fator integrante do seu campo o Édipo não solucionado; e a análise de grupo não tem condições de o fazer sem arriscar a unidade do grupo” (p. 133). Entende-se por isso que o complexo de Édipo não solucionado é um aspecto a ser trabalhado ao longo do processo terapêutico, e sua presença representa menos riscos à continuidade do trabalho do profissional. No grupo, os psicodinamismos associados às fantasias edípicas mobilizam todos os integrantes, colocando em risco a unidade do grupo, caso não sejam reconhecidos e analisados.
Cabernite e Corrêa (1976) acrescentam ainda: “[...] os mecanismos regressivos de defesa do ego podem, em circunstâncias emocionais especiais, reativar o conflito edípico, atualizando-o no todo ou em parte. O conflito de Édipo mantém-se, pois, sempre latente depois de sua finalização” (p. 133).
Quanto ao impacto de uma elucidação de material edípico, comentam:
“O grupo terapêutico aceita o material edípico para exame, mas como um corpo estranho, explosivo e desintegrador, que é imediatamente desativado pelo líder e membros do grupo. Este fato é significativo, principalmente pela pouca verbalização do material latente do grupo. Mas, o material edípico é sempre descoberto no grupo. Este fato comprova que o grupo não suporta o conflito de Édipo não finalizado” (Cabernite e Corrêa, 1976, p. 134).
Ainda segundo os autores, os membros “oscilam entre desintegrar o grupo com o seu próprio complexo de Édipo e ambivalentemente integrá-lo com a desistência dos impulsos incestuosos inconscientes e suas conseqüências” (Cabernite e Corrêa, 1976, p. 71). Assim: “O terapeuta que limitar as suas interpretações aos supostos básicos da dinâmica grupal será incapaz de integrar o grupo e “curar” os seus componentes” (p. 70). No setting terapêutico, deve-se levantar a questão edípica, para que possa ser elaborada por meio de sua integração no grupo, já que: “O tratamento vago do material edípico no grupo é geralmente uma decorrência da imaturidade do terapeuta” (p. 71).
Em estudo sobre a interpretação das configurações edipianas na análise individual de crianças, Guignard (2000) aponta que o material edípico obtido nas sessões varia em função da patologia do paciente, do sexo biológico deste e do analista e da identidade psíquica de base dos mesmos. Esse material mobiliza as questões edípicas do terapeuta, que deve estar atento para a observação de seus "pontos cegos".
Ao descrever a transferência, Freud assinala a sua importância como poderoso recurso na análise: “Em vez de recordar, [o paciente] repete atitudes e impulsos emocionais do início de sua vida, que podem ser utilizados como resistência contra o médico e o tratamento, através do que se conhece como ‘transferência’” (Freud, 1916-1917/1976, p. 78).
Estas resistências incluem um material importante do passado do paciente, material este que, caso tenha um manejo psicanalítico apropriado, pode ser trazido à consciência e mostrado ao paciente. A função essencial da análise é superação destas resistências (Freud, 1916-1917/1976, p. 78-79).
A este respeito, Freud afirma que uma das dificuldades do tratamento analítico é a individualidade do analista. Ou seja, os próprios defeitos do analista interferem na avaliação correta de seu paciente e em uma reação útil a esta avaliação (Freud, 1937/1975, p. 281-282).
Há analistas que usam mecanismos defensivos para desviar de si próprios a exigência de análise, afastando-se de sua influência corretiva. Freud (1937/1975, p. 281-282) ressalta a importância de o analista, por amor à verdade e ao reconhecimento da realidade, submeter-se ele próprio à análise.
Winnicott (1956/1988, p. 484-485) afirma que o analista deve se guiar pelo princípio básico da psicanálise de seguir a direção apontada pelo inconsciente do paciente. Porém, acrescenta que há uma diferença de postura necessária quando se trata de pacientes neuróticos e outros tipos como, por exemplo, os fronteiriços.
O autor postula que a adaptação inicial suficientemente boa às necessidades é que faz com que o ego do indivíduo seja capacitado a existir. Quando esta adaptação é deficiente, o ego não se estabelece e, no seu lugar, aparece um pseudo-self que não é capaz de experimentar a vida, o real (Winnicott, 1956/1988, p. 483-485).
Quando o ego está intacto, como em pacientes neuróticos, o trabalho interpretativo é mais importante do que o setting da análise. Em outros casos, como os fronteiriços, o setting e o comportamento do analista tornam-se mais importantes do que a interpretação. A adaptação suficientemente boa do analista às necessidades do paciente faz nascer a esperança no paciente para assumir o self verdadeiro, desenvolver o ego e conseqüentemente assumir os riscos da experiência de viver (Winnicott, 1956/1988, p. 486-487).
Com esse trabalho, o paciente começa a poder recordar fracassos originais registrados, liberar a raiva associada e, assim, dar início ao teste de realidade. Para entrar em contato com esta raiva de fracassos originais, o analista tem um papel fundamental. É a partir dos fracassos do analista que este processo é possível e ele deve usá-los em termos de seu significado para o paciente, responsabilizando-se por tais fracassos. Se o analista se defende, não dá a oportunidade de o paciente se zangar com um fracasso passado, podendo ocorrer uma análise malsucedida, em virtude da falha do analista e não do paciente (Winnicott, 1956/1988, p. 487-488)
O analista deve buscar seus próprios erros sempre que aparecer resistência. Porém, é com os erros que surge a parte mais importante do tratamento, que é dar ao paciente a oportunidade de ficar, pela primeira vez, zangado com relação ao fracasso de adaptação que produziu uma ruptura. Nesses casos, a transferência negativa da análise dos neuróticos é substituída pela raiva objetiva com relação aos fracassos do analista (Winnicott, 1956/1988, p. 488).
Levisky (1997) comenta que as crianças, quando recebem a continência do terapeuta e do grupo e se sentem compreendidas, desenvolvem uma atenção para suas vivências emocionais, podendo pensar sobre as mesmas. Isso não depende necessariamente de uma interpretação, mas de um bom acolhimento. Diz ainda que o processo elaborativo nas crianças aparece indiretamente, podendo-se perceber insights em mudanças de posturas nos jogos, maior tolerância às frustrações e maior capacidade para suportar inveja e ciúmes no grupo.
Em “Holding e interpretação”, Winnicott (1986/2001) discute sobre a compreensão e sobre o manejo dos estados regredidos. O autor comenta uma análise em que a relação paciente/terapeuta foi artificial durante um ano, já que o analista era visto como sendo um objeto do mundo interno do paciente.
Aos poucos, o analisado pôde relacionar o analista a fenômenos externos e eliminar a dissociação de sua personalidade. O diálogo entre o paciente e o terapeuta, em que as resistências são quebradas, permitiu o aparecimento de novos conteúdos, tais como a dinâmica edípica (Winnicott, 1986/2001, p. 10-12). Desse modo, Winnicott fornece demonstrações da importância do suporte ao paciente a partir de suas necessidades.
Funcionamento do grupo de psicoterapia lúdica
O grupo estudado encontra-se em um ambulatório público, semanalmente, durante dois anos, em sessões que duram quarenta e cinco minutos. É heterogêneo quanto às queixas e sintomas, e aberto ao ingresso de novas crianças, desde que não seja ultrapassado o limite máximo de oito pré-adolescentes. Os integrantes têm 10 ou 11 anos de idade, quando ingressam no grupo.
A equipe profissional é formada por três psicólogas, das quais duas atuam como terapeutas (com a mesma importância e função) e uma terceira psicóloga, a observadora, que somente observa e anota, sem falar.
Apesar do papel mudo, a observadora influencia a dinâmica do grupo, já que os pré-adolescentes, em vários momentos, “expiam” o seu caderno de registros, perguntam sobre o que está escrevendo, elaborando várias fantasias sobre a observadora, sua presença e as anotações que faz no caderno.
Nas sessões, fica à disposição das crianças uma caixa de madeira com cadeado, que contém materiais gráficos e lúdicos. Nos grupos de pré-adolescentes, costuma-se dar preferência a material gráfico, diminuindo-se a quantidade de brinquedos próprios a faixas etárias de menos idade.
No início do processo, o grupo é esclarecido sobre o contrato terapêutico: os objetivos, a forma de funcionamento, a duração da terapia e dos encontros, e sobre as férias e faltas. Também se conversa sobre o que é permitido ou não, sobre a reposição de materiais e sobre o sigilo profissional, de acordo com os princípios técnicos descritos por Calil (2001).
O que acontece no grupo de pré-adolescentes não é transmitido aos pais ou responsáveis, nem é transcrito no prontuário ambulatorial das crianças.
Sobre esta pesquisa
Trata-se de uma pesquisa descritiva, não experimental, que utiliza o método clínico-qualitativo descrito por Turato (2003), que estuda as significações de natureza psicológica, a partir do processo de psicoterapia.
A análise é qualitativa, relacionando-se os materiais clínicos (provenientes das sessões e das supervisões) com os conhecimentos teóricos existentes na literatura especializada (Calil e Arruda, 2004a; 2004b).
Procura-se compreender os aspectos psicodinâmicos relacionados com os temas estudados. Não há o objetivo de avaliar os resultados da psicoterapia de grupo sobre os participantes do grupo.
Acrescentem-se as seguintes afirmações de Herrmann (2004) sobre o método psicanalítico, igualmente esclarecedoras e apropriadas para o método clínico-qualitativo utilizado neste artigo:
“Uma pesquisa clínica é mais que um relato clínico, com efeito. [...] Um dos historiais clínicos de Freud não se consideraria, em si mesmo, uma pesquisa? Com certeza, pois, além de apresentar a história de um tratamento, faz avançar decisivamente o conhecimento da psique humana. Um ensaio teórico, apoiado em material clínico ou na análise de certo recorte da sociedade ou da cultura, constitui também uma pesquisa. Explorações técnicas, idem. Em suma, pesquisa é algo que os analistas estão sempre a fazer; bastaria saber como transformar o trabalho diário em pesquisa comunicável. [...] Nosso objetivo é mostrar como, valendo-se do método psicanalítico na maior parte dos casos, analistas conseguem perfazer o caminho da clínica à pesquisa, da teoria, liquefeita em procedimento metodológico, a novas sugestões teóricas” (p. 80).
A fim de descrever e analisar material clínico com conteúdos edípicos e sexuais, são sintetizadas e estudadas duas sessões de psicoterapia lúdica de grupo, em que as questões sexuais e edípicas predominam e apresentam uma linha de continuidade. Três aspectos contribuíram para que se optasse por descrever duas sessões, em vez de utilizar a totalidade das sessões:
a) o material clínico (sessões e supervisões) reunido ao longo dos dois anos do funcionamento do grupo é muito extenso e heterogêneo, extrapolando as dimensões para um artigo científico;
b) a análise e a discussão de material clínico tão complexo nem sempre são facilmente compreendidas, pois envolvem simultaneamente o atendimento a crianças, a compreensão de psicodinamismos de grupo e a análise de material lúdico;
c) durante os dois anos de funcionamento do grupo estudado, os conteúdos sexuais estão presentes em grande número de sessões. Já os conteúdos edípicos são bem menos freqüentes e evidentes, pois ou são recalcados ou aparecem de forma velada, quase sempre na transferência com as terapeutas e na transferência lateral entre as crianças.
O projeto deste estudo foi aprovado em um Comitê de Ética em Pesquisa, e atende à Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Os nomes dos participantes são fictícios.
Fantasias edípicas e sexuais no grupo de psicoterapia lúdica
Para a análise das fantasias edípicas e sexuais, são extraídos fragmentos de duas sessões ocorridas no oitavo mês de terapia. A primeira sessão ilustra as fantasias sexuais e a segunda mostra um momento em que as expressões de questões edípicas aparecem na transferência com as terapeutas e na transferência entre as crianças.
Sessão A: fantasias sexuais
Comparecem as seguintes crianças: Débora, Humberto (segundo dia de presença na terapia), Janaína e Vinícius. Faltam: Daniel e Mateus.
Vinícius e Humberto começam a jogar bolinhas de plástico um contra o outro. Depois apertam tubos cheios de água e, com o jato que sai, tentam derrubar os “homenzinhos” de brinquedo que colocaram em pé na borda da pia. Competem para ver quem consegue espirrar o jato de água mais longe.
Em certo sentido, o pré-adolescente ainda é uma criança, não entrou na puberdade. A criança costuma expressar-se por meio de brinquedos e jogos. Os integrantes desse grupo ainda utilizam esta maneira de expressão. Nas brincadeiras acima, disputam para mostrar quem é o melhor, o “mais poderoso” para as mulheres (Débora, Janaína e terapeutas), como se as estivessem “cortejando”.
Ao longo da sessão, também conversam, verbalizam e questionam.
Vinícius diz o seguinte: “Vi um homem e uma mulher pelados na revista. Prefiro mulher pelada. O cara da revista estava com o saco para fora. Não só o saco estava para fora, mas o negócio todo. A mulher também estava com os peitinhos de fora. Ela tem umas pombinhas que querem voar”.
Pergunta para as terapeutas: “Aqui pode namorar? Pode trazer a namorada? Vocês precisam colocar um banheiro e uma cama aqui na sala, para se fazer xixi, e se quiser namorar”.
Os integrantes do grupo localizam-se na pré-adolescência, que se caracteriza pela coexistência de aspectos psicológicos da infância e da adolescência, ocorrendo a transição do período de latência para a fase genital. Como foi comentado anteriormente, ainda são crianças que utilizam jogos infantis, porém passam também a se interessar mais por temas da adolescência.
Estes conteúdos podem ser observados em assuntos tais como o corpo desnudo, diferenças corporais entre homens e mulheres, namoro e ato sexual. Mostram aspectos da vivência e das fantasias sobre a sexualidade neste período.
Vinícius, porta-voz do grupo, mostra abertamente seu interesse pelas questões de conteúdo sexual. Na seqüência, pergunta às meninas: “Vocês gostam de brincar de bonecas?”.
Débora: “Não!” (começa a rir)
Janaína: “Não!” (começa a rir)
Vinícius: “Mas toda menina gosta de brincar com bonecas. Se tivesse boneca aqui, eu seria o pai. Não, seria o tio”. Todos integrantes do grupo riem.
As meninas dizem que não brincam mais com bonecas. Nessa etapa de desenvolvimento, em que está por desabrochar a genitalidade, os pré-adolescentes já costumam questionar brincadeiras típicas da infância, como a de meninas que ainda utilizam bonecas. Com a possibilidade de namorarem e de se introduzirem em atos preparatórios da vida sexual (e mesmo de haver relacionamento sexual em alguns pré-adolescentes), aceitar um(a) namorado(a) pode trazer angústia.
A experiência de um namoro pode ser vivenciada, inconscientemente, como um “namorar os pais”, já que a figura do pai para a menina e da mãe para o menino ainda estão muito próximas às da infância. Neste sentido, essa ligação ocorreria, inconscientemente, como incestuosa.
Diante desses eventos, os participantes pedem auxílio às terapeutas para lidar com suas ansiedades e conflitos. Por meio da pergunta “Pode trazer namorada?” e dos pedidos da cama e do banheiro, os pré-adolescentes parecem querer saber se podem trazer para a sessão temas relacionados com a sexualidade, se ali tem espaço para isso e, conseqüentemente, se as terapeutas poderão cuidar desses conteúdos.
Vinícius deixa cair um pouco de cola no sapato da terapeuta. Fica muito preocupado, pega o papel e limpa o calçado da psicóloga. Humberto diz que Vinícius está fazendo muita bagunça, perturbando. É ainda interessante notar que os meninos assumem um papel ativo e as meninas um papel mais passivo de espectadoras: ficam quietas, primeiro observam os meninos e depois, sentadas, brincam com o jogo de memória.
Ao longo dessa sessão, as terapeutas pontuam que ver os corpos pelados na revista é algo que chamou a atenção do grupo e que eles estão prestando atenção no corpo, em suas partes, que estão interessados em conhecer e que ficam pensando em como é namorar. Dizem ainda que aquele espaço é também para conversar sobre esses assuntos. Pontuam o quanto parece que eles ficam preocupados com a bagunça, perguntando sobre o que será que as terapeutas vão pensar sobre o que eles trazem, se vão agüentar.
Essa sessão foi considerada como preparatória da próxima, na qual os conteúdos de conotação sexual continuam a aparecer, porém o material edípico aparece de forma mais clara.
Antes de se entrar na análise da sessão B, é importante esclarecer alguns aspectos relacionados à participação dos meninos e das meninas ao longo do grupo estudado. Nesse grupo, Janaína e Débora, assim como outras meninas que o integram, expressam-se mais por brinquedos e desenhos, ou seja, quase não falam.
Nessa época das duas sessões relatadas, Janaína e Débora passam praticamente a sessão inteira com o jogo da memória (no qual se procura formar pares com as figuras). Enquanto jogam entre si, ficam em silêncio, mas acompanham boa parte do que os meninos fazem. Da mesma forma, é comum que os meninos expiem as atividades delas, fazendo alguns comentários e movimentos, quer no sentido de participarem dessas atividades, quer no sentido de as atacarem, como de alterarem propositadamente a posição das cartelas do jogo da memória.
Ao longo do processo grupal, as terapeutas assinalam que os meninos excluem as meninas de suas brincadeiras e as meninas também excluem os meninos de suas atividades, procurando se aproximar das terapeutas. Como conseqüência dessa interpretação, é comum que apareçam atividades feitas conjuntamente por meninos e meninas. Assim, ora eles participam das atividades delas (por exemplo, do jogo de memória), ora são elas que entram nas brincadeiras deles.
Por estas atividades, pode-se observar que ocorre, na transferência com as terapeutas e entre as crianças, um aspecto próprio do desenvolvimento psicossexual. As crianças tentam aproximar-se primeiro das figuras adultas (pais, terapeutas). Com a interdição desse movimento, buscam se aproximar de pessoas de sua idade: as outras crianças do grupo.
Assinala-se também que o grupo ora estudado sempre teve mais crianças do sexo masculino do que do sexo feminino. Diferentemente de outros grupos de crianças que funcionam no ambulatório, nos períodos de ingresso de novas crianças, há mais meninos do que meninas.
Sessão B: fantasias edípicas
Comparecem: Daniel, Débora, Humberto, Mateus e Vinícius. A falta de Janaína foi justificada pela sua mãe. Esta liga informando que tem uma consulta médica no mesmo horário e não conseguiu alguém para trazer a paciente.
1) “Quem tem mais?”: representação do “falo”
Mateus retira do bolso cartas “Yu-gi-ho”, cartões com desenhos de criaturas com poderes de ataque e defesa, com os quais as crianças brincam de competir, confrontando as criaturas que cada uma tem nas mãos.
Mateus e Vinícius competem entre si para ver quem tem mais cartões. Vinícius diz que tem mais, que é muito mais rico e que sua mãe ganha o dobro do que a genitora de Mateus. Este afirma que sua mãe é quem ganha mais.
Nesta sessão, também continua evidente a divisão entre meninos e meninas, observada na semana anterior. Débora só assiste, já que não pode brincar de jogo de memória com Janaína, ausente. Os meninos brincam com suas cartas, passando a fazer um jogo em que competem sobre quem tem mais cartas, mais dinheiro, ou seja, quem tem mais poder simbólico.
Essa brincadeira pode estar revelando a representação mental do “falo”. Os pré-adolescentes do sexo masculino querem mostrar quem tem mais às mulheres (Débora e psicólogas), em uma tentativa de “seduzir” ou chamar a atenção do sexo oposto.
2) Montagem do quebra-cabeça: fantasias de união e de rivalidade
Nesse momento da sessão, por intermédio da transferência com as psicólogas, as questões edípicas irão ficar mais evidentes.
Vinícius aparta-se das outras crianças e pede a uma terapeuta que brinque de quebra-cabeça com ele. Quando acabam de montá-lo, os outros três meninos imediatamente tentam destruir o quebra-cabeça. Vinícius tenta proteger o jogo, falando para não o destruírem. Os meninos insistem nos ataques. Vinícius irrita-se; cansado de tentar proteger, ele próprio destrói o quebra-cabeça montado.
Humberto começa a imitar Vinícius, a fim de irritá-lo. Os três meninos juntam-se e começam a rir de Vinícius, dizendo que ele é o “Todo-poderoso”. Este, acuado, dirige-se ao canto da sala. Os três pré-adolescentes começam a jogar nele peças do quebra-cabeça. Vinícius chama Humberto de “bicha”. Este o imita. Vinícius vai para cima de Humberto. Então Mateus segura Vinícius por trás, como se o fosse enforcar.
Os meninos começam então a brincar de “montinho”, jogo em que as crianças se deitam uma em cima das outras, até formar um “montinho”. Vinícius fica embaixo e os outros vão se deitando em cima dele. Vinícius diz que está difícil de agüentar o “gorducho” do Humberto em cima dele.
3) Discussão de aspectos edípicos
Nos jogos acima descritos, do ponto de vista do inconsciente e da transferência, podem ser observados alguns elementos relacionados com as questões edípicas.
Quando Vinícius monta o quebra-cabeça com uma terapeuta, percebe-se uma fantasia de “união” com a mesma, em que a ligação afetiva com a figura materna é dirigida (transferida) para uma psicóloga.
Os ataques entre pessoas do mesmo sexo podem estar representando a rivalidade em relação ao pai e aos irmãos. Isto pode ser observado quando os meninos jogam as bolinhas tentando acertar um no outro, ao disputarem a quantidade de cartas e de dinheiro, e ao quererem destruir o quebra-cabeça. Essa rivalidade também revelaria a disputa pela atenção dos pais, projetada na figura das terapeutas.
Ao brincar de quebra-cabeça com a psicóloga, Vinícius mostra que é ele quem fica com a terapeuta. Ou seja, na competição para ver quem é mais “poderoso”, é ele que ganha. Assim, ao montar o quebra-cabeça com a terapeuta, simbolicamente estaria ocorrendo a “união” entre ambos, e o “fruto da fantasia de união” corresponderia ao quebra-cabeça.
Há, portanto, a fantasia de que cada integrante do grupo tem o desejo de excluir os outros e de ficar sozinho com a terapeuta, “tomando o lugar do pai”, tal como faz Vinícius. Isso provoca inveja nos pré-adolescentes que não ocupam esse lugar, contribuindo para que os meninos tentem destruir o quebra-cabeça montado. Ao atacarem quem ocupa o lugar do pai, pode-se simbólica e inconscientemente estar atacando a figura paterna.
No que diz respeito a Débora, apesar de seu papel haver sido passivo nesta sessão, ela fica em uma posição estratégica perto da observadora. Acompanha atentamente e com interesse todos os passos e brincadeiras dos meninos. Também assume a função de observar, o que lhe permite ficar livre de eventuais ataques dos meninos. Não obstante, em outras ocasiões, ela e outras meninas têm papel bem mais ativo e participativo.
Portanto, é importante assinalar que, em outras sessões deste grupo, também ocorre de uma das meninas procurar ficar sozinha com a terapeuta (por exemplo, pedindo para que a mesma participe do jogo da memória, ou para fazer um desenho conjunto). Assim, a pré-adolescente forma um par com a profissional (mãe-filha), com os meninos brincando entre si afastados. Nessas ocasiões, é comum que os meninos se intrometam na atividade desenvolvida pelo par terapeuta-menina, às vezes, com ataques contra elas ou contra aquilo que fazem em conjunto.
Na sessão B acima descrita, as psicólogas e Débora não sofrem ataques diretos contra as suas pessoas, mostrando uma dinâmica mais próxima da forma simples do complexo de Édipo. No entanto, quando se quer destruir o quebra-cabeça, há um ataque contra algo em que há a participação de uma psicóloga. Deve-se mencionar que, em outras sessões em que essa dinâmica acontece no grupo, os ataques também são dirigidos diretamente contra as terapeutas ou contras as meninas, de maneira condizente com a forma completa do complexo.
Os ataques, quer contra Vinícius, quer contra o quebra-cabeça, podem promover a culpa (em quem ataca) e a ansiedade de castração (em quem é agredido). O sentimento de terem feito algo “errado” pode provocar em todos o receio de perderem a atenção e o amor das terapeutas, o que pode corresponder a uma forma simbólica de castração.
Assim, pôde-se observar um movimento de aproximação de uma criança (Vinícius) em relação à terapeuta, para formar um par (casal mãe-filho). Isto poderia & se não houvesse a interdição e a interpretação dos conteúdos associados & representar um ataque ao grupo, a partir de psicodinamismos associados ao complexo de Édipo. Em seguida, ocorre uma integração do grupo com a desistência das pulsões incestuosas: desistência de brincar só com a terapeuta, aceitando a participação de outras crianças, aceitando as interpretações.
Ao longo da sessão acima descrita, as terapeutas procuram pontuar o quanto cada um dos pré-adolescentes quer mostrar o que tem às terapeutas e ao restante do grupo (tanto para os outros meninos, como para Débora), querendo se sentir valorizado. Também dizem que é difícil agüentar o outro naquele espaço em que, muitas vezes, ficam bravos, com raiva e “ciúmes” uns dos outros. Ainda falam sobre a necessidade de os pré-adolescentes saberem se as terapeutas vão poder agüentar as coisas que cada um deles está trazendo.
Por fim, deve-se comentar que, diferentemente da organização proposta por Decherf (1986), o par de terapeutas do grupo estudado é formado só por mulheres, já que não há, naquela ocasião, psicólogo do sexo masculino para compor a equipe.
Não obstante, ora uma terapeuta assume uma postura mais próxima da função paterna (enquadramento/limite), ora a outra tem uma postura mais próxima da função materna (continência). Dependendo da dinâmica do grupo, há uma alternância entre a terapeuta que assume a função materna e aquela que se aproxima da função paterna.
Considerações finais
Por se tratar de um estudo de caso, as discussões e análises feitas referem-se ao grupo relatado, e não devem ser generalizadas. Os conflitos psíquicos estão intimamente ligados com vivências na área vincular; e a dinâmica edípica ocorre em um momento em que as fantasias sexuais assumem grande importância no desenvolvimento psicológico do ser humano.
No grupo estudado, composto por crianças na pré-adolescência, um pouco antes do início da puberdade, brincadeiras e conversas de temas relacionados com a sexualidade são bastante freqüentes. Por outro lado, já pode ser observada uma reativação da dinâmica edípica. Os integrantes desse grupo mostram o quanto é difícil trazer o material edípico na sessão, tema que aparece de forma camuflada, deslocado para a dinâmica transferencial. Quando isto acontece, a sessão é marcada por ansiedade e por uma carga emocional intensa, mobilizando inclusive diversos aspectos contratransferenciais nas terapeutas.
Percebe-se como, para os pré-adolescentes, é difícil mostrar e sustentar na sessão os psicodinamismos associados ao conflito edípico. Assinala-se que compreender e trabalhar com os conteúdos edípicos no grupo é importante, já que esses conteúdos podem provocar ansiedade e destruir a unidade do grupo.
Considera-se relevante o fato de os pré-adolescentes terem conseguido transferir para as terapeutas seus dinamismos inconscientes relacionados com pais e irmãos. No processo terapêutico, observa-se a importância de se pontuar a raiva e o ciúme em vivências como a de não ser gostado, ou de ser preterido, e de precisar de cuidado.
Para os pré-adolescentes, o grupo de psicoterapia pode ser importante no processo de afirmação da identidade e de busca de valores. O grupo terapêutico, nesse sentido, tem a função de acolher as expressões emocionais desse momento, permitindo a interpretação de material inconsciente e conflituoso.
Há situações em que, em vez de se interpretarem os conteúdos, é preferível que seja feita uma formulação verbal do afeto ligado aos mesmos. Faz-se necessário, portanto, refletir sobre o momento adequado de se fazer uma interpretação, respeitando-se o conteúdo e as fantasias inconscientes, o contexto da psicoterapia (neste caso, psicoterapia psicodinâmica com apenas uma sessão por semana) e o momento do grupo dentro do processo psicoterapêutico.
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Endereço para correspondência
Karen Bodstein
E-mail: karenbodstein@bol.com.br
Sérgio Luiz Saboya Arruda
E-mail: saboya@unicamp.br
Recebido em: 09/01/2006
Revisado em: 11/09/2006
Aprovado em: 08/11/2006