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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.59 n.2 Rio de Janeiro dez. 2007

 

ARTIGOS

 

A experiência de familiares no cuidado em saúde mental

 

The experience of family members in mental health care

 

 

Ana Kalliny de Souza Severo; Magda Dimenstein; Monique Brito; Clariana Cabral; Alex Reinecke Alverga

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa investigou a vivência de familiares em relação ao portador de transtorno psíquico, enfocando as dificuldades experimentadas e as estratégias desenvolvidas para enfrentá-las, nas áreas de cobertura do Programa de Saúde da Família (PSF) em Bom Pastor, Natal /RN. Entrevistamos 121 familiares de usuários de psicotrópicos e/ou egressos de hospitais psiquiátricos com um questionário semi-estruturado. A maioria dos entrevistados eram pais. As dificuldades encontradas em lidar com a situação estão associadas à falta de recursos financeiros, à exigência constante de cuidados e ao medo em relação à doença mental. O tratamento foi avaliado como trazendo benefício, mas não oferecendo resolutividade. O suporte emocional foi destacado na participação no cuidado. O recurso terapêutico predominante é o psicotrópico. Percebemos a discrepância entre as ações terapêuticas utilizadas e as necessidades reais desses grupos, apontando para a urgente adoção de estratégias que abranjam os familiares como co-responsáveis no processo terapêutico.

Palavras-chave: Família; Loucura; Reforma psiquiátrica; Programa de Saúde da Família (PSF).


ABSTRACT

The study investigated the experience of family members with the mentally ill person. It focuses on the difficulties they experienced and the strategies used to confront them. We interviewed 121 family members of psychotropic users and/or individuals released from psychiatric hospitals that lived in the area of the Family Health Program in the Bom Pastor community, Natal, RN. The majority were parents, with the mother being the main caretaker. The difficulties identified by the families were lack of financial resources, the individual’s constant dependency for care, diffuse worries, and the fear of mental illness. Treatment was evaluated as beneficial, but not offering resolution. Emotional support was denoted as their participation in the care, and the psychotropic therapeutic resource predominated. We observed a discrepancy between the therapeutic action used and the actual needs of these groups, thereby suggesting the urgent adoption of strategies that include family members as co responsible agents in the therapeutic process.

Keywords: Family; Psychiatric madness; Psychiatric reform; Family Health Program.


 

 

INTRODUÇÃO

Este trabalho é resultado de uma pesquisa que consistiu em mapear as estratégias de cuidado utilizadas por familiares de usuários de medicação psicotrópica e/ou com histórico de internação psiquiátrica em áreas de abrangência de quatro equipes do Programa de Saúde da Família que trabalham no bairro de Bom Pastor, localizado no Distrito Sanitário Oeste de Natal. Buscamos conhecer as estratégias de cuidado desenvolvidas pela família perante o familiar portador de transtorno mental e como ela vivencia as dificuldades nessas relações. Para tanto, delimitamos como foco de investigação os familiares identificados como cuidadores dentro da família. A realização deste trabalho se justifica em razão das modificações assistenciais advindas com a Reforma Psiquiátrica exigirem reestruturações nas relações de cuidado com os familiares. A criação de dispositivos extra-hospitalares para o tratamento de portadores de transtorno mental implicam a reinserção desses indivíduos nos espaços familiares exigindo dispositivos terapêuticos de cuidado que incluam as experiências desses familiares.

 

AS TRANSFORMAÇÕES ASSISTENCIAIS EM SAÚDE E A FAMÍLIA

No Brasil, a assistência à saúde mental é marcada tradicionalmente pelo paradigma hegemônico centralizado no saber médico, em ações individuais, curativas e medicamentosas, não favorecendo o desenvolvimento de ações voltadas para grupos, como a comunidade e a própria família. Esse modelo passou a ser intensamente questionado com os movimentos políticos situados a partir da década de 1980 centrados no Movimento Sanitário. As propostas advindas desse período resultaram na promulgação da Constituição Federal de 1988, quando foi aprovada a lei da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), apontando para mudanças como a descentralização, hierarquização dos serviços e universalização do direito à saúde, fundamentadas em princípios como universalidade, eqüidade, integralidade, regionalização e controle social. Uma das questões fundamentais é a construção de um novo padrão de práticas e de organização dos serviços de saúde que viabilize intervenções ambientais mais eficazes, focalizadas na família, fundamentadas em ações adequadas às necessidades locais da comunidade, que possam produzir qualidade de vida e de saúde para as pessoas. Isso implica a organização da rede básica de forma contextualizada, de acordo com os problemas existentes em âmbito local.

Em paralelo a essas novas propostas do Movimento da Reforma Sanitária, os movimentos sociopolíticos em Saúde Mental foram se ampliando no cenário político e social principalmente na década de 1980. Esses dois movimentos se entrecruzam ao proporem ações em saúde que focalizem o ambiente em que os sujeitos se inserem. A redução das internações hospitalares se faz a partir do redirecionamento da assistência hospitalar para serviços de atenção diária. Nesse sentido, a Reforma Psiquiátrica, ao pautar-se no fechamento do manicômio, torna necessária que o portador de transtorno mental utilize a unidade básica como espaço de cuidado para com a sua saúde. Essa assistência deveria incluir ações que visem atender os familiares, já que com a desospitalização, o louco volta a circular nos espaços da cidade. Nesse sentido, Romagnoli (2005, p. 252) afirma: “a reinserção do portador de transtorno mental na sociedade dá-se prioritariamente nos espaços familiares, em famílias carentes e sem preparo para prover cuidado familiar e subjetivo”.

As mudanças no modelo assistencial em saúde se efetivam por intermédio da implantação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e do Programa de Saúde da Família (PSF), em 1991 e em 1994, respectivamente. No campo da Saúde Mental mais especificamente, a proposta se efetiva por meio da implantação dos serviços substitutivos. Esses equipamentos se pautam em intervenções que devem se inserir no ambiente dos sujeitos, tendo como foco principal o ambiente familiar.

A família sempre foi alvo de intervenção e de produção de discursos por parte do saber médico. Essas intervenções refletem ideais que fundamentaram a constituição da sociedade moderna ao se pautarem no alcance do progresso social pela manutenção de uma ordem estabelecida, ordem esta prescrita pela racionalidade científica. As relações entre a família e o portador de transtorno mental foram se modificando a partir das produções científicas e culturais em torno da loucura. Melman (2001) analisa que historicamente o aprisionamento do louco em hospitais psiquiátricos foi justificado por teorias médicas que afirmavam a necessidade do seu isolamento da família, ora explicando que a família precisava ser protegida da loucura, prevenindo-a das influências negativas como indisciplina e desordem moral, ora porque a família foi tomada como propiciadora de doença mental.

Costa (1979), ao retomar Foucault, vai afirmar que o Estado moderno, a partir do século XIX, foi utilizando dispositivos principalmente normativos para constituir indivíduos adaptados à ordem, por intermédio da abolição de condutas inaceitáveis e pela produção de novas características comportamentais, utilizando práticas discursivas e não discursivas com a finalidade de reforçar as técnicas de dominação e controle. Esses dispositivos de normalização incluíram o uso da medicina doméstica e de campanhas de moralização. As campanhas de moralização e de higiene da coletividade foram usadas principalmente entre as populações pobres. Por intermédio destes dispositivos se vão constituindo intervenções sobre as práticas familiares, normatizando o comportamento dos indivíduos, para a manutenção de um desenvolvimento individual sadio. Sobre isso, Costa (1979, p. 52) destaca ainda que “A filantropia, a assistência social e a medicina familiar concertaram-se para manobrar os laços de solidariedade familiar e usá-los, quando preciso, na represália aos indivíduos insubordinados e insatisfeitos”. As intervenções na família são utilizadas para a manutenção de um ordenamento e controle social.

No campo da Saúde Mental, a família também é marcada tradicionalmente por discurso e práticas médicas. Os saberes psi, incluindo a psiquiatria, as teorias psicológicas e psicanalíticas vão tradicionalmente fornecer inúmeras explicações que atribuem à família as origens de patologias individuais, responsabilizando-a pelos conflitos sociais existentes e pelas doenças ou desordens sociais que os indivíduos apresentam. Donzelot (1977-1980), ao estudar o início da psiquiatria infantil, vai mostrar que ela nasce com a afirmação de que por meio da família poderá haver modos de educar e de vigiar a criança para prevenir o desenvolvimento de comportamentos anormais ou patológicos na idade adulta. Investigam-se, desse modo, padrões de conduta dos pais para justificar algumas insuficiências da criança. Segundo Donzelot, (1977-1980, p. 122) “A família, mais do que o doente, mais do que a criança-problema torna-se, portanto, o verdadeiro lugar da doença, e o médico psiquiatra é o único a poder discriminar, nessa patologia, o que compete à disciplina ou ao tratamento orgânico”.

Essas experiências anteriores demonstram que essas intervenções em saúde na família são marcadas por dispositivos de normalização que tomam uma forma idealizada de família como modelo a ser alcançado. Na saúde mental, esse modelo será sustentado pelas teorias psicológicas que responsabilizam a família pelo transtorno mental, ou mesmo, isolam a loucura do convívio familiar para a proteção da sociedade e dos outros membros da família.

Esse modelo ideal de família e sua funcionalidade social foram produzidos pela sociedade moderna. Àries (1975-1981) enfatiza que a família se hipertrofiou, em detrimento do desinvestimento da sociabilidade na cidade. A família passa a ter uma função não somente econômica, mas principalmente uma função afetiva, em que as relações entre pais e filhos são fundamentais para a preparação para a vida, para a sociabilidade com a comunidade. Esses hábitos foram sendo assimilados por todos como sendo uma forma idealizada de vida e de organização familiar (Àries, 1975-1981). Entretanto, a transformação da família medieval para a burguesa limitou-se por muito tempo aos nobres e burgueses, persistindo ainda no séc. XIX entre a população pobre e mais numerosa experiências familiares como as da sociedade medieval, com a ausência do sentimento de casa e de menor contato entre pais e filhos.

Zanolli e Merhy (2001, p. 979) trazem a seguinte contribuição sobre o tema:

«Para abrigar a família nuclear moderna, as habitações compartimentaram-se e fecharam-se para a rua, que passou a ser "o local para a produção e, quando esta o permitisse, para o lazer" (Rivorêdo, 1995, p.74). Essas novas constituições dos espaços e componentes da família e da sociedade iniciaram-se no século XVIII, solidificaram-se no XIX e mantêm-se (pelo menos nos conceitos) até hoje.»

Foi a partir da família nuclear burguesa que os discursos psi foram desenvolvidos, legitimando esse ideal de vida para o alcance de uma saúde psíquica e emocional. Desse modo, as produções científicas em torno do cotidiano dessas famílias das camadas mais baixas da população as classificam, geralmente, como desestruturadas e responsáveis por malefícios sociais como, por exemplo, a violência, a doença mental, comportamentos de risco etc. (ROMAGNOLI, 2005).

Desse modo, há um investimento das famílias das classes populares em conseguir atender a esse ideal de família. Peres (2001, p. 228), em estudo sobre concepções de família em populações de baixa renda, evidenciou a frustração dessas famílias por não conseguir atender ao ideal de vida familiar nuclear burguesa. Ele afirma que: “Nas famílias concretas, nas vividas no dia-a-dia, as experiências são difíceis, não raras vezes com sentimentos de fracasso para os pais ou de tristeza para as crianças”.

Sabemos que as atuais políticas em saúde colocam a família como foco de intervenção. Porém, tal perspectiva vem desde o século XIX quando o Estado começou a preocupar-se com as questões sanitárias e com a saúde da população, ou seja, quando os serviços de saúde passaram a ter o papel de garantir a reprodução da capacidade de trabalho. “A medicina passou a ser a mais importante aliada do Estado moderno para que essas modificações ocorressem: primeiro através da higiene, depois por meio da Puericultura e, contemporaneamente, pela saúde materno-infantil” (Zanolli; Merhy, 2001, p. 979). A medicina se apropriou do conhecimento de como cuidar das famílias e das crianças e esses saberes se tornaram dogmas, adquiriram valor científico, passando a nortear as políticas sanitárias subseqüentes.

A Estratégia de Saúde da Família e o PACS são conseqüências disso. Ambos têm como princípio básico o enfoque da família como unidade de ação programática e intervenção, realizando ações preventivas voltadas para a mesma e para a comunidade. Enquanto políticas públicas, ambos são ferramentas do Estado que operam cotidianamente em nossas vidas no sentido de produzir ordenamento social. Dessa forma, o Estado opera na micropolítica do cotidiano, atuando fortemente nos corpos, nas vidas, nas práticas do dia-a-dia da população. A isso Foucault chamou de biopoder, que se ocupará da gestão da vida e da força de trabalho, da saúde, da higiene, da alimentação, da sexualidade, da natalidade etc. Refere-se a um controle sobre os corpos, uma economia do poder, voltada para “instalar um sistema de individualização que se destina a modelar cada indivíduo e gerir sua existência” (Revel, 2005, p. 30).

As políticas públicas são, portanto, como softwares/programas computacionais uniformizadores, e por isso precisam ser constantemente debatidas, problematizadas, questionadas, avaliadas. Elas são impregnadas de uma visão de mundo, de homem, e nossa função é lutar para que adotem perspectivas mais complexas, ampliadas, menos normativas. Por exemplo, que concepção de saúde, bem-estar, felicidade, família, está presente nas políticas que articulam o SUS? Estratégia de Saúde da Família, PACS, Política Nacional de Humanização etc, o que tais políticas almejam produzir? Que modos de vida estão sendo gestados?

A questão é que o que vem sendo gestado na contemporaneidade consiste na fabricação de modelos identitários fixos, na reprodução em série de modos de existência, que certamente despotencializa agenciamentos de singularidades, pois ao estabelecer um modelo de família, de saúde, de bem-estar etc., uniforme, ideal, universal, pressupõe a homogeneização das diferenças, desarticula ou perverte os espaços políticos de articulação. Esse processo é ainda mais poderoso porque o que até então era produzido no interior das instituições, agora se estende para todo o campo social, controlando as condições de vida em uma forma de atuação em rede. As políticas públicas são, pois, dispositivos de gerência da vida! Precisamos nos preocupar para que direção elas apontam. 

A esse respeito, Ângelo e Beusso (2005) evidenciam que a família ao ser reconhecida em seu caráter responsivo pela saúde de seus membros deve ser considerada pelos profissionais em suas especificidades, opiniões e ações. Nessa perspectiva, a assistência à família como unidade de cuidado implica conhecer as singularidades, ou seja, como cada grupo familiar funciona.

Entretanto, o que se verifica é que muitas intervenções em saúde se fundamentam em uma visão etnocêntrica da família e em um sistema diagnóstico, curativo e individualizante, traduzindo-se em responsabilizar a família pelo processo de adoecimento psíquico dos sujeitos, sustentando discursos que vêem as famílias de camadas populares como sendo patológicas. Concordamos com Tesser (2006, p. 349) que:

«[...] a importância desse tema fica ressaltada ao se levar em conta o momento atual do SUS, que investe na ampliação e reorientação da rede básica por meio da estratégia do PSF. Entrando facilmente nos domicílios brasileiros, o PSF é uma "faca de dois gumes": uma chance para a reconstrução da autonomia e/ou, simultaneamente, uma nova e poderosa força medicalizadora.»

Com o movimento da reforma psiquiátrica, o tema da família passa a ser ainda mais importante, pois os “loucos” voltam a circular pela sociedade e pelo âmbito familiar. Na verdade, espera-se da família uma retomada na responsabilização pelos seus familiares portadores de transtornos mentais. A perspectiva que responsabiliza a família por comportamentos patológicos repercute de forma negativa nesses espaços, gerando sentimentos de incapacidade entre seus membros. Isso poder ser evidenciado por Romagnoli (2005, p. 2) logo a seguir:

«Percebemos (...) que essa alteração na convivência familiar tem gerado uma atmosfera de tensão e de reprodução no grupo familiar, em que circulam não só conflitos cristalizados, mas também fortes sensações de impotência e incapacidade, tornando, na maioria das vezes, inviável a construção de alternativas no cotidiano da família. Observamos ainda que a ausência de saídas e o bloqueio das possibilidades de convivência geralmente são reforçados pelos profissionais que atendem o portador de transtorno mental e, indiretamente, as famílias. Tradicionalmente, em seu cotidiano de trabalho, os agentes de saúde culpabilizam a família pelo surgimento da doença mental.»

Esta autora, ao refletir sobre sua experiência no atendimento às famílias, demonstra os sentimentos de incapacidade gerados a partir da perspectiva de um ideal de família, que patologiza os arranjos familiares que fogem a esse padrão. Os programas criados para atender as famílias sustentam ainda essa lógica de idealização e culpabilização da família, o que repercute sobre as formas de atendimento produzidas.

Consideramos que, apesar de todos os problemas acima apontados, as Unidades Básicas de Saúde/Unidades de Saúde da Família tornaram-se lugares primordiais de acolhimento dos casos de transtorno mental. O fato do PSF e do PACS serem programas que abordam os problemas por intermédio dos recursos da própria comunidade no âmbito familiar, é um aspecto que tem seu lado positivo. Estando mais próximos do cotidiano é possível atuar de forma culturalmente sensível, produzir formas de atenção e cuidado que escapam aos padrões estabelecidos. Em função disso, questiona-se como gerar modos de acolhimento que modifiquem essa relação, invertendo assim a lógica de culpabilização para que se possa produzir um cuidado que tenha a família como coadjuvante. 

Isso, porém, é um desafio enorme. A inversão do modelo assistencial sobre a família exige novas posturas que perpassam por modos de cuidado que impliquem a participação dos diversos atores envolvidos, não apenas como alvos de intervenções, mas como sujeitos ativos na produção de saúde. Nessa perspectiva, faz-se necessário que os familiares saiam da condição de objetos de intervenção e de construções teóricas para assumirem uma condição de atores, construindo e experimentando novos sentidos no lidar com a loucura. Melman (2001, p. 145), discutindo sobre o cuidado em relação aos familiares, afirma que isso “pode ajudá-los a sair da rigidez que o congelamento da identidade de familiar produz para que possam explorar formas inusitadas de estar no mundo”.

A partir do conhecimento sobre as especificidades das famílias dos portadores de transtornos mentais, as equipes de PSF poderiam atender melhor a essa demanda. Isso permitiria produzir um cuidado que estimule a participação do familiar enquanto coadjuvante no processo terapêutico, utilizando a sua experiência singular com o portador de transtorno mental e as possibilidades que poderiam ser desenvolvidas para a promoção do bem-estar destes sujeitos. Além disso, poderia também contribuir na desinstitucionalização da loucura e de posturas de exclusão da família e da própria comunidade. Considera-se que é preciso conhecer as práticas de saúde produzidas cotidianamente pelas famílias dos portadores de transtorno mental para que essa demanda encontre resolutividade na própria unidade básica e não seja necessário recorrer ao hospital psiquiátrico.

As ações de saúde mental nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) exigem novas formas de cuidado, que “garantam a escuta, o vínculo, que potencializem as singularidades, as biografias, as raízes culturais, as redes de pertencimento e estejam atentas e recusem as formas de medicalização, psiquiatrização e psicologização” (Scóz; Fenili, 2003, p. 73). Ou seja, para cuidar dessas famílias se faz necessário conhecer as especificidades, as dificuldades circunscritas ao contexto em que elas vivem, as crenças em relação à loucura e as potencialidades para lidar com os problemas de saúde, para, a partir daí, produzir junto a elas ações que possam gerar bem-estar.

Quanto às famílias que possuem portadores de transtornos mentais, Campos e Soares (2005) apontam ainda que existe a necessidade de se cuidar da própria família, pois há uma sobrecarga emocional e financeira que atravessa essas realidades. Esses autores evidenciam também que o cuidado junto a essas famílias, e mais especificamente junto aos cuidadores dos portadores de transtornos mentais, deve, além de instrumentalizá-los nas dificuldades cotidianas, também fornecer aos próprios cuidadores acolhimento e cuidado com relação a sua própria saúde. Esses mesmos autores destacam que muitos cuidadores se tornam usuários diretos de serviços de saúde mental diante da sobrecarga emocional vivenciada.

Entendemos que o cuidado familiar em relação ao portador de transtorno mental passa pela experimentação cotidiana, não se definindo como um a priori. Tendo em vista que a Reforma Psiquiátrica brasileira privilegia a cidadania, a reabilitação psicossocial e os serviços substitutivos, e que tais dispositivos só se tornam viáveis na realidade concreta dos sujeitos, a participação da família é primordial nesse processo., Faz-se necessário, portanto, conhecer como está se processando cotidianamente a produção desse cuidado para que os técnicos em saúde mental possam auxiliar tais famílias. O cuidado necessita sair da esfera institucional para abranger a realidade concreta dos familiares.

No intuito de contribuir com essa discussão, realizamos uma pesquisa voltada para a experiência de cuidadores vivenciada no âmbito doméstico em relação ao portador de transtorno psíquico, enfocando as dificuldades enfrentadas nessas situações e as estratégias terapêuticas desenvolvidas para enfrentá-las.

 

METODOLOGIA

O bairro no qual se realizou a pesquisa dispõe de uma unidade de saúde composta por quatro equipes de saúde da família para oferecer cobertura a essa localidade. O percurso metodológico adotado para realizar esta pesquisa foi o seguinte:

1. Inicialmente foram realizados contatos, durante o primeiro semestre de 2005, com a unidade de saúde, objetivando obter permissão para realizar o trabalho de campo. Foi feita uma reunião com o administrador, alguns profissionais das quatro equipes e os agentes comunitários de saúde, explicitando os objetivos do trabalho.

2. Obtida a colaboração dos profissionais e aprovação do comitê de ética da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), consultaram-se os agentes para o fornecimento de dados dos prontuários presentes na unidade de saúde, buscando identificar os usuários de psicotrópicos e/ou egressos de hospitais psiquiátricos existentes na comunidade. Identificados esses participantes, iniciamos as visitas domiciliares, sempre acompanhadas pelos agentes. Tais visitas eram agendadas previamente por estes. Durante as visitas e as entrevistas com os usuários, os cuidadores desses usuários eram identificados para a efetivação da entrevista com o familiar.

3. A coleta foi realizada no domicílio dos participantes e iniciou-se ainda no primeiro semestre de 2005, contando com a colaboração de alunos dos cursos de Psicologia da Universidade Potiguar (UNP) e da UFRN. Foi realizada entre os meses de maio e novembro de 2005.

4. O instrumento de coleta, aplicado a 121 familiares, estava inserido em um questionário semi-estruturado de pesquisa mais amplo, que visava investigar dados sobre a demanda em saúde mental do referido bairro. Esse instrumento específico aplicado aos familiares abrangia questões acerca do cuidado do familiar em relação ao usuário de psicotrópico: como efetua o cuidado, dificuldades enfrentadas, avaliação do tratamento e mudanças sugeridas em relação ao tratamento.

5. Os entrevistados nesta pesquisa foram 121 familiares-cuidadores. O critério de seleção para a amostra entrevistada era quem se apresentava como o cuidador responsável pelo usuário de psicotrópico. A partir disso, foram identificados, em sua maioria, as mães dos portadores de transtornos mentais (29,8%). Os outros familiares entrevistados, segundo o grau de parentesco com os usuários, representam, ainda, pais (5,0%), filhos (24,0%), cônjuge, irmãos (13,2%), entre outros (5,6%).

(22,3%)6. Para a análise dos dados, categorizaram-se as respostas apreendidas para cada questão formulada e analisou-se a freqüência dessas respostas com o auxílio do Microsoft Excel versão 2000. A partir disso, as categorias analisadas foram composição das famílias, identificação do cuidador, dificuldades enfrentadas no cuidado cotidiano, avaliação do tratamento recebido e contribuição no cuidado.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Composição das Famílias

Os domicílios visitados possuem famílias que variam segundo o número de pessoas que residem nessas residências. De acordo com o número de pessoas residentes, a distribuição ocorre em: 42,8% com 5 a 6 pessoas; 39% com 3 a 4 pessoas; 11,7% com 7 a 8 pessoas; e 6,5% com 9 a 10 pessoas. O grau de parentesco das pessoas que dividem a moradia se configura da seguinte forma: 34,4% são famílias constituídas por pais e filhos; 5% são um dos pais com os filhos; e 58,8% configuram-se em outros tipos de formação familiar (genros, noras, sogros(as), netos(as), sobrinhos(as) e etc.).

A renda familiar dos entrevistados se distribui em: 8,0% com menos de 1 salário mínino (SM); 32,0% com renda de 1 SM; 50,0% com 2 a 3 SMs; 4,0% de 4 a 5 SMs; 3,0% vivem com mais de 5 SMs; e 2,0% não souberam informar.

Os dados demonstram que as famílias entrevistadas são compostas de vários membros que possuem baixos índices de rendimento econômico, expressando o contexto de dificuldades socioeconômicas vivenciadas por essa população. As configurações familiares nos domicílios visitados se distanciam do modelo nuclear, composto por pais e filhos, privilegiado nas classes médias. As famílias são compostas por pessoas de diferentes graus de parentesco.

Resultados similares foram demonstrados em pesquisas desenvolvidas sobre famílias de camadas baixas. Amazonas et al (2003) perceberam diferenças nos arranjos familiares desses grupos, observando a existência de famílias longas ou muitas vezes chefiadas por mulheres, arranjos esses que se fazem a partir das contingências reais de vida dessa população. Estudos apontam ainda que cotidianamente nessas famílias há uma diluição da separação entre rua e casa, superando-se assim o ideal de intimismo doméstico. Diante das contingências vivenciadas, torna-se freqüente a busca por vizinhos e outros parentes para o auxílio na resolução dos problemas cotidianos, o que demonstra que o envolvimento comunitário se torna um recurso em potencial para essas pessoas.

 

Identificação do Cuidador

O cuidador, na maioria dos casos, é identificado como sendo do sexo feminino (70,2%), mais especificamente a mãe do portador de transtorno mental (29,8%). Os outros familiares entrevistados, segundo o grau de parentesco com os usuários, representam ainda pais (5,0%), filhos (24,0 %), cônjuge (22,3%), irmãos (13,2%), e outros (5,6%).

Isso configura um quadro em que as questões de gênero estão implicadas nas relações de cuidado cotidianas. Essas questões demonstram a relação que a produção histórica do cuidado mantém com a divisão social do trabalho presente na sociedade moderna a partir do século XVIII. Nesse contexto, a função da mulher na esfera do trabalho foi associada ao âmbito privado doméstico. Rosa (2003) identifica também que a mulher-mãe aparece como principal cuidadora nos casos de transtorno mental. O cuidado aparece como atividade associada ao sexo feminino no âmbito privado.

 

Dificuldades enfrentadas no cuidado cotidiano

As dificuldades associadas ao cuidado foram expressas pelas preocupações, incômodos, impaciência ou sentimentos de medo diante do comportamento do “doente” (31,0%). A situação se agrava nos casos em que aparece a dependência do usuário em relação ao familiar cuidador (10,0%). A sobrecarga sobre o esse familiar cuidador repercute diretamente sobre as relações que ele desenvolverá com o portador de transtorno mental. Essas dificuldades acabam demandando maior envolvimento e investimento emocional por parte do familiar entrevistado. O medo e a insegurança sentidos pelos familiares podem gerar condutas de vigilância, de isolamento no espaço doméstico, e até mesmo a chegar a casos de internação psiquiátrica, o que compromete a autonomia dos portadores de transtorno mental, como afirma Rosa (2003). Desse modo, nos dados gerais da pesquisa, os familiares aparecem como os principais encaminhadores para internações psiquiátricas (54,0%).

O não-suporte a essas famílias na saúde mental, não as auxiliando no cuidado, sobrecarrega esses parentes que recorrem aos hospitais psiquiátricos diante de problemas enfrentados com os usuários de psicotrópicos.  O que verificamos é a manutenção de um modelo biomédico, que encontra na medicalização e na hospitalização seus recursos terapêuticos predominantes. A ausência de uma rede em saúde prejudica ainda mais esses familiares, pois não há uma assistência que possibilite uma potencialização por meio da reflexão sobre o cotidiano com o portador de transtorno mental, o que dificulta qualquer vislumbre de melhoras e de autonomia, sobrecarregando ainda mais esses familiares. A estratégia do PSF acaba por intervir pontualmente nas famílias, medicalizando o sujeito em caso de crise.

O provimento de cuidado como atividade de sobrecarga afeta subjetivamente ambos, o cuidador e o portador de transtorno mental. Desse modo, são descritas também dificuldades relacionadas a transtornos na saúde do cuidador (3,0%). Essas dificuldades podem estar associadas também à presença de muitos familiares que apresentam sofrimentos psíquicos intensos, à famílias em que mais de um familiar recebeu algum tipo de diagnóstico de transtorno mental. Os dados encontrados apontam que a maior parte das famílias (66,0%) possui mais de um caso de transtorno na mesma família. O parentesco desses familiares que possuem transtorno, em relação ao usuário, varia de cônjuge (10,0%), pais (22,0%), filhos (11,0%), irmãos (34,0%), até os parentescos mais distantes, que foram categorizados como outros &– primos(as), tios(as) e etc &–, com 77,0%. Rosa (2003) aponta que mesmo essas situações são, na maioria das vezes, respondidas pelos profissionais de saúde de forma individualizada e medicalizante, agravando ainda mais os sentimentos de impotência e de danos à saúde do cuidador.

A falta de recursos financeiros também aparece como fator de dificuldades no cotidiano com os usuários (18,0%). As famílias visitadas, como expresso anteriormente, são compostas por muitos membros e possuem uma renda familiar pequena. Nesse sentido, a lógica predominante de biologização do sofrimento psíquico é paradoxal diante do que a realidade apresenta; a precarização das condições de vida deveria ser considerada enquanto fator essencial no sofrimento psíquico e para a construção de outras intervenções em saúde.

 

Avaliação do tratamento recebido

Os cuidadores identificaram como benefícios advindos do tratamento a tranqüilidade &– 30,0% &– e o auxílio na melhora dos sintomas com o controle das crises (18,1%). As ações terapêuticas não aparecem como um recurso cotidiano de produção de vida, mas acabam por estagnar os sujeitos diante da situação vivenciada, cristalizando práticas e conflitos em torno da loucura. Esses resultados estão em consonância com outras pesquisas, em que diante da inexistência de uma perspectiva de cura, o convívio em casa passa pela expectativa de controle dos comportamentos, como corrobora Rosa (2003). Nesses casos, o tratamento medicamentoso aparece como tendo essa funcionalidade. Os aspectos negativos relatados estão associados a malefícios decorrentes do uso do medicamento (37,0%) e,ainda,  ausência de soluções no tratamento medicamentoso (24,4%). Por meio disso, compreendemos que os familiares se sentem insatisfeitos com o tratamento que o portador de transtorno mental vem recebendo. Entretanto, apesar de se sentirem insatisfeitos, os familiares não conseguem vislumbrar outras formas de cuidado (79,3%). As indicações de como poderia ser melhorado o tratamento foram escassas (20,7%) e giram em torno de outras especialidades médicas (32,0%) ou outros medicamentos (16,0%). Observamos que os familiares não identificam recursos comunitários locais que possam proporcionar bem-estar aos sujeitos.

Romagnoli (2004) destaca que as relações terapêuticas entre familiares e profissionais de saúde em saúde mental se efetivam por intermédio de uma dupla responsabilização. De um lado, a família atribui aos profissionais o saber sobre o processo e a responsabilização por mudanças, e, por outro, os profissionais apontam a família como responsável pelo adoecer. As experiências desses familiares entrevistados estão atravessadas por essa lógica, na medida em que pela afirmação de um não saber sobre como poderia haver melhoras nas experiências terapêuticas, eles se desautorizam da possibilidade de auxílio nas mudanças no tratamento.

Além disso, esses sentimentos de insatisfação podem estar relacionados à discrepância entre as ações terapêuticas utilizadas pela Unidade Básica de Saúde e as necessárias diante das dificuldades apresentadas por esse grupo social. Por intermédio do PSF, propõe-se um atendimento eqüitativo em saúde, visando promover intervenções de acordo com as reais necessidades populacionais. Entretanto, isso se distancia das práticas cotidianas em saúde mental no referido local, o que repercute diretamente sobre o cotidiano dessas pessoas.

 

Contribuição no cuidado

Verificamos que a percepção dos familiares sobre o papel do cuidado familiar no bem-estar dos indivíduos está vinculada predominantemente a dois aspectos: compreensão e suporte emocional (26,0%) e medicação/renovação de receita (19,0%). A compreensão está relacionada à aceitação da situação do transtorno mental apresentado. Sobre isso, Rosa (2003) afirma que os cuidadores que melhor obtiveram resultados no consentimento do tratamento/cuidado foram aqueles que construíram uma relação de paciência, amor, respeito com os portadores de transtorno mental. A medicação/renovação de receita associa-se principalmente à necessidade de controle das crises psiquiátricas. A medicação é o recurso eminentemente utilizado para essa função.

Grande parte dos familiares entrevistados não conseguiu perceber seu papel no cuidado (22,0%). Poucos relacionaram a importância do auxílio no convívio social (7,0%), como, por exemplo, no lazer ou na sua circulação pela cidade, como importante aspecto do cuidado terapêutico. Esse fato demonstra mais uma vez a sobrecarga sobre o familiar cuidador, que passa a ter responsabilidades na circulação por outros espaços sociais.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As intervenções em saúde vêm sendo tradicionalmente marcadas pelo modelo idealizado de família nuclear burguesa. Esse modelo familiar moderno foi construído sobre as bases do individualismo, do intimismo e funciona como o lugar, por excelência, da vivência de conflitos e experiências afetivas íntimas e privadas. As políticas públicas centradas em ações individualizantes dentro da família são orientadas por um saber médico e psicológico que concebe que comportamentos indesejáveis socialmente foram e continuam sendo produzidos nesse núcleo familiar restrito, por meio das relações entre pais e filhos. Consideramos, pois, que é preciso problematizar o tema família no contexto dos PSF/PACS, pois tal modelo norteador das intervenções continua culpabilizando e sobrecarregando os familiares.

Esses discursos e esse ideal de família nuclear precisam ser desconstruídos para que se possa ser superada a sobrecarga que é colocada sobre a família, principalmente em relação aos familiares dos portadores de transtorno mental. Essa organização social e os discursos que a sustentam fomentam sentimentos de incapacidade diante da situação vivenciada, já que estas famílias não se reconhecem enquanto capazes de auxiliar nos recursos terapêuticos. Desse modo, os familiares aparecem como os principais agentes de encaminhamento para internações psiquiátricas, sendo esses encaminhamentos, em sua maioria, involuntários. O não-suporte a essas famílias na saúde mental, auxiliando-as no cuidado, sobrecarrega esses parentes que recorrem aos hospitais psiquiátricos diante dos problemas enfrentados com os usuários de psicotrópicos. O que verificamos é a manutenção de um modelo biomédico, que encontra na medicalização e na hospitalização seus recursos terapêuticos predominantes.

O tratamento medicamentoso, segundo os familiares, atua, na maioria das vezes, acalmando os indivíduos, o que traz para essas pessoas uma sensação de ineficácia diante do transtorno mental apresentado e de todas as situações advindas. Nesse sentido, a maioria dos familiares avalia negativamente o tratamento recebido, afirmando que há sintomas ou malefícios advindos do tratamento medicamentoso, ou que ele é apenas um paliativo que nada resolve, controlando uma crise momentânea. As ações terapêuticas não aparecem como um recurso cotidiano de produção de vida, mas acabam por estagnar os sujeitos diante da situação vivenciada, cristalizando práticas e conflitos em torno da loucura. As estratégias de tratamento usadas não modificam as práticas em torno da doença mental.

Compreendemos, por meio disso, que os familiares se sentem insatisfeitos com o tratamento que o portador de transtorno mental vem recebendo, mas não conseguem vislumbrar outras formas de cuidado disponíveis em seu entorno. As indicativas de como poderia ser melhorado o tratamento foram escassas e as poucas indicações giram em torno de outras especialidades médicas ou outros medicamentos. Observamos que os familiares não identificam recursos comunitários locais que possam proporcionar bem-estar aos sujeitos.

Esses sentimentos de insatisfação podem estar relacionados à discrepância entre as ações terapêuticas utilizadas pela UBS e as necessárias diante das dificuldades apresentadas por esse grupo social. Por intermédio do PSF, propõe-se um atendimento eqüitativo em saúde, visando promover ações em saúde de acordo com as reais necessidades populacionais. Entretanto, isso se distancia das práticas cotidianas em saúde no referido local, o que repercute diretamente sobre o cotidiano dessas pessoas.

Por intermédio dos dados também verificamos a existência de inúmeros problemas relacionados ao lidar com o sofrimento psíquico do familiar, chegando alguns casos ao próprio adoecimento do cuidador. Nos dados descritos, percebemos a presença do sofrimento dos familiares diante das situações. Ressaltamos a existência de muitos familiares que apresentam sofrimentos psíquicos intensos, famílias em que mais de uma pessoa recebeu algum tipo de diagnóstico de transtorno mental.

Outro ponto importante é o contexto de extrema pobreza em que vivem tais pessoas. Isso evidencia que a lógica predominante de biologização do sofrimento psíquico é paradoxal diante do que a realidade apresenta, pois a precarização das condições de vida deveria ser considerada enquanto fator essencial para a construção de intervenções em saúde.

Entretanto, muitos familiares não conseguem perceber seu papel no cuidado e poucos relacionaram o auxílio no convívio social do paciente, como, por exemplo, no lazer ou na sua circulação pela cidade, como importante aspecto do cuidado terapêutico.

A intervenção integralmente e eqüitativamente dos sujeitos nos espaços sociais, como propõe o Sistema Único de Saúde (SUS), por meio do uso de uma rede composta por dispositivos de saúde e de recursos comunitários, poderia ser uma alternativa para minimizar os impactos da precariedade ambiental.

O investimento na atenção familiar é uma estratégia que precisa ser reinventada a cada encontro, tendo em vista a singularidade de cada dinâmica familiar, desenvolvendo assim a possibilidade de pôr em prática o acolhimento e a escuta que possam retirar as famílias do isolamento e da sobrecarga no cuidados aos portadores de transtorno mental. Segundo Trad e Bastos (1998), essa escuta deveria estar em constante avaliação a respeito de que concepções de família estão permeando cada ação desenvolvida.

Por intermédio da criação de alternativas que facilitem a circulação das trocas com os familiares, a equipe entraria em contato mais intenso com a dinâmica familiar, conhecendo as dificuldades enfrentadas para o acolhimento do portador de transtorno mental e refletindo junto a essas famílias sobre o potencial terapêutico presente nas relações familiares. Nesse contexto, a priorização do cuidado em detrimento do tratamento, investindo nas premissas de liberdade (investimento na capacidade de escolha do próprio sujeito) e de integralidade (necessidades inerentes aos diversos campos da vida), é fundamental para o contexto da Reforma Psiquiátrica, para a transposição do modelo biomédico vigente, como analisam Alves e Guljor (2004). As trocas sociais são tomadas como essencialmente terapêuticas, pois nelas não há um poder relacionado ao saber, mas uma negociação entre o portador de transtorno mental, sua família e os profissionais/técnicos, podendo gerar um aumento da potência de escolha e de participação familiar.

A observação das diversas necessidades sociais dos portadores de transtornos mentais, relativas às suas condições de vida, seria algo importante a ser estimulado, pois os familiares poderiam atuar como co-responsáveis e não como únicos responsáveis no processo terapêutico para o aumento da capacidade de escolha e de independência desses usuários. Algumas experiências incluindo os familiares como coadjuvantes no cuidado no campo da saúde mental estão sendo desenvolvidas. Romagnoli (2005, p. 260) desenvolve trabalhos com as famílias em um serviço substitutivo e em uma unidade básica em Minas Gerais e destaca “que o trabalho com as famílias deve valorizar a dimensão dos encontros e dos afetos como recursos potencias para a invenção de novos modos de relacionar-se com a loucura. O trabalho com as famílias deve intervir no território existencial endurecido, rompendo com as marcas de humilhação e da culpa”.

Outras experiências com familiares são relatadas por Melman (2001). Este autor ressalta que o cuidado em relação aos familiares pode auxiliá-los a sair da rigidez que um papel definido como sendo de um familiar produz para a experimentação de novas formas de estar no mundo. Além disso, há experiências de grupos de familiares nas quais as trocas de experiência foram se efetivando. A constituição do Clube Basaglia, em São Paulo, por familiares, usuários e técnicos, propunha-se ampliar o espaço de trocas, com a participação de diversos membros da sociedade e de diversas instituições, tendo uma potencialidade na produção de impactos diferentes no imaginário social em torno da loucura.

O PSF precisa rever todo seu aparato associado ao saber tradicional no modo de lidar com a loucura, enfrentando os preconceitos a ele associados, a lógica manicomial que perpassa as relações cotidianas das pessoas, a permanência dos dispositivos de controle e tutela sobre o louco e os modelos de família que estão norteando o trabalho desenvolvido. Essa reflexão pode gerar a abertura de outros espaços de acolhimento às famílias de usuários de psicotrópicos.

A Psicologia deve pensar também nesse desafio de sair da esfera individualizante de tratamento dos transtornos mentais, apresentando e (re)criando outras formas de lidar com essas famílias. Esses discursos psi e esse ideal de família nuclear precisam ser desconstruídos para que a sobrecarga que é colocada sobre as famílias dos portadores de transtorno mental possa ser superada.

Faz-se necessário pensar novas possibilidades para a inserção da saúde mental na atenção básica e para o seu comprometimento com o movimento de mudança do modelo de assistência psiquiátrica no Brasil, procurando agenciar outros equipamentos sociais disponíveis em um determinado território que permitam ter a família como coadjuvante no cuidado, potencializando assim construções de projetos de vida.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência

Ana Kalliny Souza Severo
E-mail:Kallinysevero@yahoo.com.br

Magda Dimenstein
E-mail:magda@ufrnet.br

Monique Brito
E-mail:monique_brito@yahoo.com.br

Clariana Cabral
E-mail:clariana.morais@gmail.com

Alex Reinecke Alverga
E-mail:alexreinecke@terra.com.br

 

 

Recebido em: 03/04/ 2007
Aprovado em: 10/10/2007
Revisado em: 11/09/2007

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