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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. v.60 n.2 Rio de Janeiro jun. 2008
ARTIGO
Literatura e psicologia: a constituição subjetiva por meio da leitura como experiência1
Literature and psychology: the subjective constitution through the reading as experience
José Célio Freire
Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, CE, Brasil.
Endereço para correspondência
RESUMO
Este trabalho trata da constituição subjetiva por meio da leitura do texto literário, a partir de uma perspectiva que toma a leitura como experiência formadora, deformadora e transformadora. Em um primeiro momento, contrapõe posições que tomam a leitura em seu papel pedagógico e em sua inutilidade como arte. Em seguida, aborda a leitura como experiência que desafia e transforma o leitor. Por último, explora a alteridade do texto literário clássico naquilo que tem de estranho, desalojador e traumático. O texto conclui com a defesa do uso da leitura do texto literário clássico como parte da formação acadêmica dos psicólogos enquanto profissionais do humano e do cuidado com o humano.
Palavras-chave: Leitura; Formação; Experiência; Alteridade; Psicologia.
ABSTRACT
This paper deals with the subjective constitution through the reading of the literary text, from a perspective that takes the reading as formation, deformation and transformation experience. At a first moment, it opposes positions that take a reading in its pedagogical role and in its uselessness as art. After that, it approaches the reading as experience that defies and transforms the reader. Finally, it explores the alterity of the classic literary text in that it has of strange, dislodger and traumatic. The text concludes with the defense of the use of reading of the classic literary text as part of the academic formation of the psychologists while professional of the human being and the human care.
Keywords: Reading; Formation; Experience; Alterity; Psychology.
A maior parte das pessoas diz que Otelo matou Desdêmona porque acreditou que sabia que ela lhe tinha sido infiel. Movido por seu próprio monstro de olhos verdes e pelas intrigas ardilosas de Iago, Otelo matou Desdêmona. Assim, se a conseqüência do suposto conhecimento de Otelo é trágica, em que consistiria a moral dessa tragédia? Poder-se-ia dizer que consistiria apenas no fato de que não podemos, no fim das contas, conhecer tudo sobre a outra pessoa, mesmo, e talvez, principalmente, quando se trata das pessoas que amamos. Acho que isso quer dizer que, em nossa relação com as outras pessoas, temos de aprender a reconhecer o que não podemos conhecer, e o fracasso em fazer isso foi o erro trágico de Otelo. O fim da certeza pode ser o início da confiança (CRITCHLEY, 2006, p. 18).
Este estudo teórico faz uma aproximação entre a literatura e a psicologia, no sentido de enfatizar o papel da leitura do Cânone literário ocidental na formação do profissional em psicologia. Sua importância se dá na compreensão da relação da literatura com o conhecimento psicológico, não no sentido de uma psicologia do texto ou do autor, ou mesmo da criação literária, mas da contribuição do texto literário para a formação de profissionais do humano e do cuidado com o humano. De fato, a literatura como instrumento de formação ética tem sido explorada por uma vertente de pensadores de diversas disciplinas humanas, a exemplo de Quintás (1997). No decorrer desta investigação, foi proposta uma disciplina eletiva, com dupla oferta – Literatura e Subjetividade (no curso de Mestrado em Psicologia) e Literatura e Psicologia (no curso de Graduação em Psicologia) –, em consonância com as novas diretrizes curriculares do curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Destas experiências, e da pesquisa bibliográfica sobre o tema, foram alimentadas as discussões do grupo de pesquisa. A experiência da leitura de textos clássicos da literatura ocidental, por parte de cada integrante do grupo, propiciou a referência necessária ao trabalho de argumentação sobre a importância da literatura na formação do psicólogo. Pretende-se, em um outro momento, criar um espaço de comunicação de leitores com os produtores literários e uma oficina de leitura e discussão de textos clássicos da literatura universal no âmbito do curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Resultaria desta proposta mais abrangente a imbricação pesquisa-ensino-extensão (comunicação), tendo por elemento fulcral o texto literário.
A questão da formação
Na Idade da Tela, as pessoas não lêem de modo profundo e sério. E se não se lê profunda e seriamente, não se raciocina muito bem. O pensamento depende da memória; e o que iremos lembrar se não lembramos o melhor do que foi escrito? Não sei quantos jovens no Brasil hoje lêem Camus, quantos jovens italianos lêem Dante, quanto jovens alemães lêem Goethe ou quantos jovens aqui lêem Walt Whitman. Acho que algo está ruindo (BLOOM apud PEN, 2005).
A formação por meio da literatura é um tema polêmico, com certeza. Se, de um lado, temos a defesa do Bildungroman como modelo de literatura, de outro temos a afirmação peremptória de que os textos canônicos do Ocidente servem apenas à fruição da leitura descomprometida.
Quintás (1997; s/d), no primeiro caso, propugna não só a formação pela via da literatura, mas a formação ética em especial. Ele chega a defender “como método ideal para formar em questões éticas a leitura profunda de obras literárias de qualidade” (QUINTÁS, s/d, tradução minha). A tese inicial é a de que a obra literária é um campo de jogo e iluminação, em que as realidades se colocam como âmbitos da vida. Interpretar uma obra seria, então, entrar em jogo com ela, refazendo suas experiências-chave e sendo iluminado por suas intuições originais. Ao intérprete, caberiam três tarefas (em uma “leitura genética”): dar conta do que o autor diz; descobrir por que ele o diz; e assinalar o que ele não disse, mas deveria ter dito. Caberia à leitura de obras de qualidade fazer com que as crianças experimentassem os vários níveis da realidade humana: físico, fisiológico, psicológico-afetivo, espiritual-criativo, sociológico e simbólico. A leitura buscaria, então, o sentido da obra, e não apenas seus significados.
Além disso, a leitura nos conduziria aos vários âmbitos do entorno, para além dos limites dos objetos. Isso implicaria em dar conta da mistura de âmbitos, de suas colisões e integrações. Implicaria, também, em uma transcendência dos valores imediatos, das aparências, e no cultivo das três qualidades da inteligência: largo alcance, amplitude e penetração. Por outro lado, o argumento da obra é ficcional, mas não seu tema, que se traduz em uma realidade peculiar que nos afeta, apesar de sua aparente estranheza e irrealidade. Além de tudo isso, a leitura de obras literárias fomenta a criatividade de seu leitor.
Urge-nos cautela, pois a senda humanista a que Quintás nos convida nos acena com a normatividade ética. Que a literatura nos ofereça material humano imprescindível à compreensão do psiquismo – o sofrimento, os afetos, a dúvida etc. –, até aí tudo bem. Porém, quando a tais sentimentos ou estados d’alma se ligam valores, princípios ou normas, qualquer tentação moralista deve ser combatida.
Bloom (1995; 2000), contudo, embora defenda que a invenção do humano se deu com Shakespeare, em Hamlet, isenta a literatura de qualquer papel pedagógico. Ele é peremptório: “Ler os melhores escritores – digamos Homero, Dante, Shakespeare, Tolstoi – não vai nos tornar melhores cidadãos. A arte é inteiramente inútil, segundo o sublime Oscar Wilde, que tinha razão a respeito de tudo” (BLOOM, 1995, p. 24). E mais adiante: “Ler a fundo o Cânone não nos fará uma pessoa melhor ou pior, um cidadão útil ou nocivo. O diálogo da mente consigo não é basicamente uma realidade social. Tudo que o Cânone Ocidental pode nos trazer é o uso correto de nossa solidão, essa solidão cuja forma final é nosso confronto com nossa mortalidade” (BLOOM, 1995, p. 36-37).
Bloom entende que o Cânone Ocidental não encarna virtudes morais pretensamente existentes em valores normativos ou princípios democráticos, pois para ele os escritores são subversivos de todos os valores. A recepção estética apenas nos permite falar a nós mesmos e nos suportarmos, a contrapelo de quaisquer ideologias. Bloom segue dizendo que a leitura de Shakespeare pode ensinar-nos, contudo, a aceitar a mudança em nós e nos outros, e até a mudança final – a morte. Chegar até aqui não foi tão difícil. Mas inviabilizar qualquer ganho ético em nome de uma “dignidade estética” (expressão atribuída por Bloom a Baudelaire) solipsista é um exagero. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, nos parece. Nem a leitura moralizante, nem o (des)prazer solitário de um leitor entre outros leitores que nunca chegará a conhecer.
Larrosa (1998) trata a questão por dois ângulos: a leitura como formação e a formação como leitura. Assim, a leitura nos forma – de-forma ou trans-forma –, fazendo-nos o que somos, em assumida inspiração nietzscheana. A formação também se faz pela leitura de nós mesmos e do mundo à nossa volta. Se a leitura nos deforma, isso pode se dar de duas maneiras. Corrompendo-nos, ou seja, mudando para pior. Ou simplesmente nos descaracterizando, que pode significar sair da forma (modo ou molde) original, da rigidez caracteriológica. Se a leitura nos transforma, isso implica mudança, alteração ou modificação. Já não somos o que éramos (ou pensávamos) ou agora somos o que realmente somos, no sentido de que somos abertura para ser, porvir, devir.
Não será por falta de aviso que poderemos cair na armadilha de achar que a literatura pode cumprir uma função “pedagogizante”. Brayner (2005), confrontando as posições de Meirieu e Larrosa, acusa-os de serem defensores de um poder formador e regenerador da literatura, mesmo que por diferentes perspectivas, o que poderia ser somente mais uma “tecnologia do eu”, apenas mais sofisticada. Em Meirieu, ele vê a defesa do uso da literatura como meio para o crescimento, a partir da experiência alheia, em uma transformação de uma recepção ficcional em recepção pragmática (o que não estaria previsto em Stierle). Em Larrosa, vê a experiência da leitura como trabalho de autoconstrução subjetiva, em que alguns detêm o poder do “estranhamento” e da crítica, que a outros é vedado. Por fim, Brayner (2005, p. 71) adverte-nos de “que a obra literária é antes de tudo [...] obra literária, e que toda recuperação pedagogizante dela não passa de uma forma de controle de sua recepção, uma maneira de administrar a ficção”.
Deixemos que o próprio Larrosa nos esclareça o sentido da experiência da leitura.
A leitura como experiência
A literatura, plural por excelência, contém todos os outros discursos, do político ao filosófico, passando pelo psicanalítico e o histórico, e revela um saber sobre o ser falante que as outras ciências levaram muito tempo para descobrir ou teorizar (WILLEMART, 2000, p. 19).
Larrosa (1998) dedica todo um livro à experiência da leitura. Ao fazê-lo, parte da significação de ex-per-ientia como “sair para fora” e “passar através”. De fato, há uma aproximação da noção de existência (ex-sis-tere) – mostrar-se, sair de –, o que nos coloca em um plano fenomenológico-existencial. O experiencial e o existencial da leitura remetem ao acontecimento de sair de si mesmo na direção da alteridade (do outro, do texto) ou, o que vem a ser a mesma coisa, deixar-se perpassar pelo que vem de fora, afetar-se pela diferença: a experiência é o que nos passa, o que nos atravessa, o que nos acontece, o que nos toca (LARROSA, 2002). A esse duplo movimento, Lévinas (1988; 1978) denominou separação (de Mim em relação ao Outro) e substituição (de Mim pelo Outro).
Há, todavia, um sujeito da experiência, ou melhor, um sujeitar-se aos acontecimentos. Sujeito, aqui, muito mais próximo da idéia de súdito ou de submetido à vontade de outrem do que da noção moderna de consciência voluntariosa. Esse sujeito “se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura” (LARROSA, 2002, p. 24). Estamos próximos do pensamento levinasiano, em que a dimensão ética nos coloca a serviço do Outro, em uma sensibilidade e vulnerabilidade ilimitadas. Do ponto de vista da leitura, trata-se de uma abertura ao outro do texto, à diferença que se traduz em afecção d’alma, por meio do páthos (paixão, padecimento, exposição).
São várias as metáforas da leitura. Leitura como fármaco, segundo Larrosa (1998). Leitura como viagem. Leitura como tradução. Há que se pensar sobre as influências – benéficas ou maléficas – da leitura; neste caso, retornar ao phármakon (polissemia do remédio, do veneno, da droga, do filtro) de Platão é indispensável. A escritura como phármakon, na concomitância da vida e da morte, no mesmo da repetição e do suplemento, gera a “diferência” (différance). “O phármakon é o movimento, o lugar e o jogo (a produção de) a diferença. Ele é a diferência da diferença” (DERRIDA, 1997, p. 74). Não obstante, a experiência da leitura representa perigo – e não é à toa que experiência e perigo se aproximam etimologicamente como ensaio, tentativa e prova (HOUAISS, 2001)). De qualquer forma, o perigo apresenta-se também na viagem e na tradução, como na vida (já que a condição ontológica do ser-no-mundo implica em finitude e facticidade, desde o Heidegger de Ser e tempo).
A leitura enquanto viagem. Seja a viagem rumo ao desconhecido, seja a deambulação, os perigos colocam-se ao viajante leitor. Quer se perdendo no labirinto da biblioteca ou encontrando seus avessos nas obras de muitos e contraditórios escritores, o sujeito ledor é chamado a um trabalho exaustivo e muitas vezes solitário, em que se pode reencontrar ou se desencontrar de si mesmo, aprender e desaprender o mundo. Há um chamamento ao encontro com a alteridade, do texto, do mundo, do outro que si mesmo. Larrosa (1998) identificará em Montaigne a idéia de um leitor que, crendo dominar a leitura, é lido pelos textos com que se defronta. Em Rousseau e Descartes, encontrará o temor de que a viagem literária induza ao erro, pela via da estranheza e da diversidade. Já a necessidade de apropriação do texto em Hegel reivindica um saber e um poder sobre o estranho, a fim de torná-lo familiar. Nesses casos, a viagem deve ser tutelada e deve-se garantir o retorno a casa. Já em Nietzsche, dá-se o oposto: não há verdade nos livros, não há método de leitura; o que é possível é apropriar-se da força do texto e usar a experiência vivida para acessá-lo.
Por último, a leitura como tradução. Aqui, também, são muitas as vertentes, que vão da presunção de uma leitura fiel ao autor (em Schleimacher, por exemplo) à suplementaridade derridiana. Interessa-me, e ao próprio Larrosa, o veio que nasce em Heidegger (a partir de Hölderlin) e passa por Gadamer. Sinteticamente, “traduzir é trair”. Seja porque não há uma verdade única a ser atingida, seja porque os horizontes do autor e do leitor se fundem ao final, a tradução é interpretação. Ler, então, é pôr em questão a ilegibilidade do texto, ou, melhor dizendo, “deixar que o texto nos diga o que não compreendemos, o que não sabemos, o que desafia nossa relação com nossa própria língua” (LARROSA, 1998, p. 369). Lévinas (1988) nos fala da necessidade de “pôr o ser em questão”, e tal exigência podemos associar ao ato da leitura, que no fundo é uma violência em relação ao já dito e já pensado do próprio sentido do texto. Portanto, “ler o que não está dito, pensar o que todavia há que pensar, dizer o inefável, escutar o silêncio” (LARROSA, 1998, p. 370). Não é à toa que se deu a escolha heideggeriana pela palavra poética de Hölderlin.
Aproximemos tal posição daquela de um Foucault ainda interessado pela literatura e veremos que o silêncio nos fala. Na conferência “Linguagem e Literatura”, de 1964, ele dizia: “A literatura não se constitui a partir do silêncio. A literatura não é o inefável de um silêncio, a efusão daquilo que não pode ser dito e que jamais se dirá. A literatura, na realidade, só existe na medida em que não se deixou de falar, de fazer circular signos” (FOUCAULT, 2001, p. 167).
De qualquer maneira, um dado parece-nos indiscutível: o texto literário é portador de uma riqueza ímpar, e, como nos diz Barbosa (1993, p. 23), “a literatura nunca é apenas literatura; o que lemos como literatura é sempre mais – é História, Psicologia, Sociologia”. Por isso, a experiência da leitura vai muito além dos limites do texto. Implica na constituição subjetiva do universo de leitores e, para além destes, dos indivíduos em geral. Kehl (2001), que toma a leitura dos romances realistas como um dos principais mecanismos de constituição do individualismo moderno, coloca, ao mesmo tempo, como característica da literatura também moderna, o dar a voz ao sujeito comum em seu desamparo, em seu desajuste, em sua incompreensão.
Cândido (2000, p. 68) defende uma posição da estética e da sociologia da arte que vê na obra um dinamismo que “cria o seu público, modificando o comportamento dos grupos e definindo relações entre os homens”. Ele entende que a literatura é um sistema vivo de obras que agem umas sobre as outras e sobre seus leitores, que a vivem, a decifram, a aceitam e a deformam. É essa experiência viva da leitura que me interessa enfatizar neste trabalho e, como corolário, o seu uso na formação do psicólogo.
A alteridade dos textos clássicos
"A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos." (CALVINO, 1998, p. 16).
Foucault (2001) afirma que a obra clássica se caracteriza pelo fato de levar, pelo jogo de figuras da retórica, da densidade, da opacidade, da obscuridade da linguagem à transparência, à luminosidade dos signos. Tal afirmação nos leva a duvidar da qualidade dos textos facilmente digeríveis ou pouco enigmáticos. Isso porque há duas operações envolvidas no ato da leitura: o prazer que reflete o contentamento do leitor, e o gozo que implica em destruição da cultura e desconstrução da língua, e que gera desconforto neste mesmo leitor (DIÓGENES, 2006).
Couri (2000), ao analisar prefácios de Machado de Assis a seus livros que, segundo ela, “cumprem peculiarmente a função convencional de apresentar uma obra literária”, remete-nos para a alteridade do discurso literário. Comentando a “Advertência” de Machado de Assis na sua obra Papéis avulsos, a autora diz-nos:
É o uso “normal” da língua – em sua franca potência de equivocidade – proposto como um esclarecimento. As regras são obedecidas, mas forçadas em direção ao limite, até que elas desregulem nossas cadências familiares, os ritmos costumeiros, as cadeias habituais. Livres dessas amarras, ainda que fugazmente, podemos sentir alguma emoção, como desvanecimento, raiva, alívio, ódio, surpresa, medo, até felicidade. Decerto ele tinha ao escrever um olho nessa reação (e piscava para ela), outro nas regras, outro em nossos quatro pés, e outro nas asas das palavras, outro no espelho, outro no Outro, grande Outro de Lacan que, no fim e ao cabo, talvez sejamos nós mesmos, quadrúpedes e alados, nesta, e em todas as Outras Cenas desta vida e de todas as demais, “se as há” (COURI, 2000).
Bloom (1995) ensina-nos que o que torna o autor e as obras canônicos é a estranheza, ou seja, uma originalidade inassimilável ou que nos assimila a ponto de não mais vê-la como estranha. Em suma, seria “um acréscimo de estranheza à beleza” (BLOOM, 1995, p. 12), essa capacidade de nos sentirmos estranhos em nossa própria casa, ou, ao contrário, de deixar-nos à vontade do lado de fora como estrangeiros. Tal referência nos remete de forma irrecusável a Freud e a Lévinas. O primeiro tratou da estranheza, o sinistro (das unheimlich), de forma exemplar, como aquilo que nos habita e, portanto, nos é familiar, mas secreto (heimlich). Já o filósofo lituano-francês, ao tratar da alteridade radical, envia-nos para o absolutamente outro – como excesso, transcendência e diferença – de nós mesmos, que, a nosso ver, está tanto dentro como fora de nós mesmos.
A literatura, portanto, pela via da estranheza e da estraneidade, nos impeliria na direção de nossa própria diferença. Bloom (1995, p.19-20) já disse que: “A grande literatura é sempre reescrever ou revisar, e baseia-se numa leitura que abre espaço para o eu, ou que atua de tal modo que reabre velhas obras a nossos novos sofrimentos”.
Tomemos uma figura de alteridade, aquela a que os psicólogos são menos afeitos – a loucura. Foucault, lembra-nos Machado (2001), disse que a loucura é que detém a verdade da psicologia, e não o inverso. Pois bem, um Foucault que ainda admitia tratar da importância da literatura via, na experiência literária, o jogo do limite e da transgressão, contestação da cultura que faz transcender as fronteiras entre a razão e a loucura, pela expressão do trágico humano e mundano (MACHADO, 2001). Para sermos mais explícitos, uma obra como D. Quixote nos põe diante da experiência da loucura como o possível de nossa alteridade.
Cabe-nos entender essa relação com a alteridade como traumática, a partir de uma visada levinasiana (FIGUEIREDO; COELHO JR., 2004), o que implica em fraturas e exige trabalho e esforço para lidar com o excesso do outro e a necessidade de transformações. Na relação com o outro (o texto, para nós nesse momento), a passividade radical é condição subjetivante básica, já que o outro me antecede e me constitui.
Para nós que intentamos fazer psicologia, reconhecer esse outro implica em compreender sua proximidade como interioridade. Motta (1994) já nos induzia a isso, a partir de Proust: “Pois esse outro que legisla a minha palavra a ponto de precipitá-la no absurdo, no paradoxo, no riso, na gafe – na loucura – só tem esse poder por força de uma coincidência: esse outro sou eu mesmo, sujeito, subvertido pela dupla estratégia que é a minha” (MOTTA, 1994, p. 70).
Entendemos, assim, que a experiência da leitura, a partir do reconhecimento e da implicação da alteridade dos textos clássicos, é sobremaneira salutar para a constituição de sujeitos abertos ao cuidado humano, em especial, no nosso caso, dos psicólogos. O traumatismo advindo da literatura, seja pela irrupção dos textos, seja pelo contato com outros leitores e suas (auto)narrativas, ou mesmo pela intimidade de determinadas obras com os temas debatidos nas disciplinas de um curso de graduação ou pós-graduação em psicologia, mais que desejável, é inevitável. Propomos, então, que tal possibilidade se instaure como atividade complementar e regular da formação do psicólogo.
À guisa de conclusão
Diante de tudo o que discutimos, resta sintetizar algo acerca da importância da relação entre literatura e psicologia ou, dizendo melhor, da importância da leitura para a formação de psicólogos como profissionais do humano. Embora a literatura nos ofereça material humano necessário ao entendimento do psiquismo, da subjetividade ou do comportamento humanos, o que se busca não é o proselitismo moral, a padronização de ideais ou uma pedagogia do mesmo.
A boa leitura, se assim podemos dizer, é aquela que nos apresenta o humano em suas variadas formas, claras ou obscuras, definidas ou ambíguas, serenas ou intranqüilas. É ainda aquela que lida com elementos do afeto, da cognição e da volição, mas sem recorrer às taxonomias.
A leitura deve ensinar-nos o valor do mutável, dinâmico, inesperado, inédito, rúptil. É disso que se trata quando ansiamos por compreender a existência. São fatos, acontecimentos, vivências e convivências. Urdidura de lembranças e esquecimentos, passagens e paisagens, desejos e dejetos, a memória, a percepção e a motivação humanas estão expostas nos livros e na vida dos homens. Porém, resta, por detrás, o inédito e o inaudito.
Aceitando a mudança, seja em nós mesmos, seja nos outros, poderemos esperá-la, antevê-la, buscá-la ou provocá-la – base do trabalho de qualquer psicólogo. E de todas as formas de mudança, a morte é aquela que mais esforço exige para a compreensão, aceitação e encontro. Na literatura, ela (a morte) nos chega como fenômeno, como personagem ou como narrador, mas sempre estará presente (ou iminente), como na vida.
Todavia, a leitura, ela mesma nos transforma, nos muda, nos atinge. Após a leitura de um grande livro, não podemos imaginar sermos ainda quem éramos. Ele nos toca em nossa abertura ao mundo e ao outro. A literatura, portanto, impele-nos na direção de nossa própria diferença, de nossa alteridade, em nós e nos outros. É um sistema vivo que age em seus leitores e entre as obras que o perfazem e, assim, exigem decifração e se dão à deformação. E a literatura moderna, por excelência, é aquela que nos permite lidar com nosso desamparo, com nossos limites e com a evidência do incompreendido.
REFERÊNCIAS
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José Célio Freire
E-mail:jcfreire@ufc.br
Recebido em: 04/01/2008
Aprovado em: 22/07/2008
Revisado em: 11/09/2008
1Este artigo é fruto do projeto de pesquisa “Literatura e psicologia: a alteridade d(n)os textos e a constituição subjetiva do psicólogo” e, conseqüentemente, dos estudos e discussões com o Grupo de Pesquisa do qual fizeram parte os bolsistas Tiago de Oliveira Magalhães (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica/Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PIBIC/CNPq)), Filipe Fontenele Oliveira (PIBIC/UFC) e os alunos Kadja Marques Rodrigues, Joyce Cristina dos Santos Aguiar e Victor Meneses de Arruda Carlos. Agradecemos a leitura criteriosa e sugestiva da colega Idilva Maria Pires Germano.