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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.61 n.2 Rio de Janeiro ago. 2009

 

ARTIGO

 

Implicações subjetivas e sociais do câncer de boca: considerações psicanalíticas

 

Subjective and social implications of mouth cancer: Psychoanalytics considerations

 

 

Leônia Cavalcante Teixeira

Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Ceará, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O câncer constitui uma patologia que pode acarretar efeitos orgânicos, subjetivos e sociais, daí ser um tema na interface entre saberes e práticas biológicas, psicológicas e sociológicas. Apesar da ênfase em aspectos biomédicos na abordagem do sujeito portador de neoplasia, os aspectos subjetivos marcam as vicissitudes do adoecimento e da terapêutica. Este artigo discute as implicações subjetivas e sociais do câncer de boca, enfatizando a construção do sujeito e do social à luz da Psicanálise e suas fronteiras com a Medicina e a Sociologia. Focaliza as conotações subjetivas da face e da boca em relação aos conceitos de esquema e imagem inconsciente do corpo, contextualizando as demandas estéticas na atual civilização na qual o corpo constitui o cenário catalisador das experiências singulares e sociais. Conclui-se que as avarias orgânicas exigem uma retificação subjetiva que ratifica a importância da escuta clínica dos sentidos construídos pelos sujeitos em adoecimento, possibilitando intervenções que não se limitem ao corpo-organismo.

Palavras-chave: Câncer; Subjetividade; Corpo; Psicanálise; Interdisciplinaridade.


ABSTRACT

Cancer is a disease that can cause organic, subjective and social effects; therefore it is an issue in the interface between knowledge and biological, psychological and sociological practices. Despite the emphasis on biomedical aspects in the approach regarding the subject who has cancer, the subjective aspects mark the vicissitudes of disease and therapy. This article discusses the subjective and social implications of mouth cancer, emphasizing the building up of the subject and the social under the light of psychoanalysis and its borders with medicine and sociology. It focuses on the subjective connotations of the face and mouth in relation to the concepts of scheme and unconscious image of the body, contextualizing the aesthetic demands in the current civilization where the body is the catalytic scene of the unique and social experiences. The conclusion drawn is that the organic failures require subjective rectification that ratifies the importance of psychoanalytic listening of the senses built by the subject when having the disease, making interventions that are not limited to the body-organism possible.

Keywords: Cancer; Subjectivities; Body; Psychoanalysis; Interdisciplinarity.


 

 

O câncer é hoje uma doença que aflige um grande número de pessoas em todo o mundo (INCA, 2005). Em virtude do estilo de vida sedentária, do estresse da vida cotidiana e da má alimentação, esta doença vem ganhando importância em estudos epidemiológicos (DURAZZO, 2005) e clínico-qualitativos. Graças a esforços de profissionais de várias áreas, cada vez mais vêm aumentando as chances de cura de pacientes que têm essa doença diagnosticada precocemente. Mesmo assim, ainda convivemos com o movimento paradoxal dos avanços no campo do cuidado e com aspectos como a desinformação e o medo que acabam por tornar o câncer um mito ancorado em torno da noção de estigma (GOFFMAN, 1988; SONTAG, 1994).

Hoje se sabe que alguns cânceres são favorecidos pela predisposição genética, mas a grande casuística do câncer corresponde aos diversos hábitos frutos de nossa sociedade industrializada. Os hábitos e o estilo de vida adotado pelas pessoas podem determinar diferentes tipos de câncer (BORTOLUZZI ET AL., 2005; MATARAZZO, 2006; SOUZA, 2003b).

Alves et al. (2002) relatam que, nas duas últimas décadas, o câncer alcançou a segunda causa de morte por doença, só perdendo hoje em dia para as doenças que comprometem o sistema cardiovascular. O câncer tem sido considerado um sério problema de saúde pública (DIB, 2004). Sabe-se que as mais eficazes formas de reverter tal situação se situam nos campos da prevenção (BRASIL, 2003) e do diagnóstico precoce, aliados à informação da população em geral (BRASIL, 2002).

Este texto tem como foco a investigação das implicações subjetivas e sociais do câncer de boca. A escolha de tal patologia se deveu aos efeitos psíquicos que essa acarreta nos pacientes e em seus familiares, especialmente quando aqueles se submetem a tratamentos mutiladores que deixam sequelas na organização do esquema corporal (SCHILDER, 2000), demandando reconstruções na experiência da imagem inconsciente do corpo (DOLTO, 2001; LACAN, 1949-1998; LEVIN, 2001), bem como nas atividades da vida diária.

A investigação dos efeitos subjetivos do câncer bucal foi realizada a partir de estudo bibliográfico exploratório sobre a construção da corporeidade e dos lugares da face na constituição da subjetividade, ressaltando-se, no que se refere à boca, as implicações para a oralidade, tanto em termos de alimentação, respiração, como em relação à comunicação com o outro.

O referencial teórico norteador deste estudo foi a Psicanálise, sendo priorizados os seguintes autores: Birman (2001; 2003), Costa (2004), Dolto (2001), Freud (1914-1978; 1905-1976; 1915-1976a; 1915-1976b), Lacan (1949-1998), Teixeira (2006) e Volich (2000). Ressaltamos que este artigo constitui um estudo exploratório, situando-se nas fronteiras entre os saberes médicos e psicanalíticos, daí seu caráter interdisciplinar. Pensamos que tal abordagem de investigação possibilita uma apreensão complexa dos fenômenos de adoecimento.

 

ASPECTOS BIOMÉDICOS DO CÂNCER DE BOCA

O câncer é uma doença que resulta do crescimento autônomo e desordenado das células que se reproduzem em grande velocidade, desencadeando o surgimento de tumores ou neoplasias malignas que, quando afetam tecidos vizinhos, produzem metástases. O tecido neoplásico apresenta uma estrutura atípica dos tecidos e órgãos dos quais se originou, bem como uma capacidade ilimitada e incontrolável de se reproduzir.

Em condições normais, o processo de divisão celular se mostra de modo ordenado e controlado, sendo responsável pela formação, pelo crescimento e pela regeneração de tecidos saudáveis. O tumor consiste no resultado de um processo desordenado de multiplicação celular.

O câncer bucal constitui uma doença que acomete principalmente pessoas de meia-idade e idosas o que, entretanto, não significa estarem os jovens inteiramente imunes a ela (NEVILLE, 1998).

As causas do câncer bucal são diversas assim como as incógnitas existentes nos seus fatores predisponentes. Não foi descoberto um agente causal específico, mas um emaranhado de fatores ambientais e biológicos que se unem por mecanismos ainda desconhecidos, formando juntos uma possível neoplasia. Os vírus oncogênicos podem desempenhar um papel fundamental não somente para o câncer bucal, mas também para uma gama enorme de outros tipos de câncer. Entretanto há quatro deles que se destacam dos demais: vírus do herpes simples, papilomavírus humano (HPV), retrovírus e adenovírus.

Lopes (1998) relata que o tratamento do câncer de boca varia, em termos gerais, com sua localização, estadiamento clínico, condições físicas do paciente e graduação histológica, sendo realizado por intermédio de vários tipos de intervenções. O tratamento pode apresentar resultados satisfatórios, porém pode trazer alterações irreversíveis ao aparelho ortognástico - estéticas e funcionais -, comprometendo o equilíbrio psicossomático.

O tratamento do câncer bucal (ROPOPORT, 1997) dispõe, fundamentalmente, de três componentes terapêuticos que podem ser aplicados isolados ou em associação. Estes são a cirurgia, a radioterapia e a quimioterapia (MARTINS-SILVA ET AL., 2002). A cirurgia do câncer de boca pode causar grande mutilação. Normalmente, são observadas perdas funcionais e estéticas, com efeitos sobre o esquema e a imagem do corpo do paciente. A cirurgia radical interfere na mastigação e na deglutição, agravando o estado nutricional do paciente. Este comprometimento da funcionalidade do sistema estomatológico pode acarretar problemas de natureza nutricional: ressecções do maxilar e língua anterior podem afetar severamente a deglutição. Somando-se a esses efeitos funcionais, deve-se salientar a perda da morfologia e da estética do paciente, podendo gerar sérios dilemas subjetivos expressos nas esferas da vida singular e social.

Levando em consideração estudos como os de Martins-Silva et al. (2002), optamos em focalizar como objeto deste artigo as implicações subjetivas e sociais do câncer de boca, visto que o autor acima citado ressalta a gravidade das sequelas dos tratamentos mutiladores. Assim, abordaremos o tema a partir da experiência da corporalidade, enfatizando os sentidos da face na constituição da relação consigo e com o outro, isto é, na vivência psicossomática (WINNICOTT, 2000) como panorama ético de construção do humano.

 

PSICANÁLISE E CÂNCER: SOBRE OS LUGARES SUBJETIVOS DA FACE E DA BOCA

O corpo constitui-se historicamente, não sendo pré-cultural ou natural. Na perspectiva da Psicanálise, o corpo não é distinto do psiquismo, constituindo o psicossoma, tal como nos indica Winnicott (2000). A organização psicossomática marca os modos de constituição do sujeito, podendo ser abalada em seu equilíbrio (DEBRAY, 1995) por acontecimentos de ordem interna - pulsões - (FREUD, 1915-1976a; 1915-1976b) e externa. O processo de adoecimento - pathos - corresponde ao existir humano, consistindo na sua radicalidade (BERLINCK, 2000; CECCARELLI, 2005). Partindo da premissa que os modos de subjetividade são firmados no pathos e que um saber sobre o padecimento humano constitui uma tentativa de atribuir sentidos à experiência, consideramos que o estado de adoecimento diz respeito à existência, não lhe sendo alheio. A doença e suas vicissitudes exprimem o caráter inexorável da finitude, da morte.

O corpo sofrente diz do sujeito em padecimento, do seu pathos, consistindo em uma forma de expressão subjetiva, um modo de existência possível para o sujeito no momento de sua vida. O câncer, apesar dos avanços dos saberes e das práticas biomédicas, constitui uma enfermidade que exige a construção de estratégias diversas de vida por aquele que sofre, já que coloca em xeque suas modalidades usuais de relação consigo e com o outro, repercutindo em diversos aspectos da vida (TEIXEIRA, 2006). O câncer de boca, pela região do organismo que é acometida, instaura desafios ao sujeito em sofrimento quanto às vivências do seu corpo e as relações com seus pares, já que, dependendo da gravidade do caso, intervenções cirúrgicas mutiladoras podem ser necessárias.

Nesse sentido, parece-nos interessante investigar as repercussões subjetivas da avaria na face, especialmente pelo caráter ético que a face ocupa na constituição da corporeidade (GIL, 1997). Para tanto, empreenderemos uma discussão acerca do lugar da face na constituição subjetiva a partir de Dolto (2001), Dolto e Nasio (1991), Freud (1905-1976; 1915-1976a; 1915-1976b), Gil (1997), Lacan (1964-1985; 1949-1998), Mello Filho (1992) e Nasio (1997).

Gil (1997) considera o corpo como espaço ético, no qual a subjetividade se constrói pelo atravessamento de plurais subjetividades, consistindo em um amálgama de intensidades em devir. Em sua perspectiva, não há uma linha demarcatória entre interior e exterior, sendo o corpo constituído na relação ética e estética com o corpo do outro. Para o filósofo, a corporeidade é marcada pela estranheza e mediada pela afetividade, consistindo em um espaço indeterminado sem contornos nem limites interiores.

Gil (1997) forja o conceito de espaço de limiar, visando romper com as dicotomias corpo-alma e interno-externo. O espaço de limiar é constituído pelo corpo inteiro, pelas zonas erógenas, pelos poros, pelos órgãos sexuais, pelas carícias, pelo tato, pelos desejos (GIL, 1997). Operando a mediação entre interior e exterior, o espaço de limiar é dinâmico e móbil, ocupando os orifícios da face lugar de destaque. Tal concepção de Gil (1997) parece-nos importante quando pensada juntamente com autores como Dolto (2001) e Winnicott (2000), já que os conceitos de imagem inconsciente de corpo e de espaço transicional se fundamentam também na ideia de uma corporeidade não essencialista, não previsível e em constante construção.

A boca ocupa lugar de destaque na patologia neoplásica em questão, sendo interessante analisá-la não somente como parte do organismo com funções essenciais, mas ressaltar aspectos que ultrapassam seu valor funcional e que imprimem marcas no processo de construção subjetiva. Para tanto, fazemos apelo a autores como Botazzo (2000), Kowalski e Nishimoto (2000) e Souza (2006) que discutem o sentido da bucalidade, considerando ''a propriedade do bucal nas dimensões psíquica e cultural'' (BOTAZZO, 2000, p. 23).

Botazzo (2000; 2006), Freitas (2006) e Narvai (2006) enfatizam os aspectos da boca que não se restringem ao mapeamento e funcionamento orgânicos, ressaltando o caráter de erotismo, linguagem e manducação. Tais aspectos consistiriam na amplitude da boca entendida a partir do conceito forjado por Botazzo (2000) de bucalidade. Kovaleski et al. (2006) focalizam a bucalidade como construção sócio-histórica, portanto marcada por normatizações em um processo de disciplinarização. Os autores destacam a ''dimensão civilizatória daquilo que é bucal: a manducação, o erotismo e a linguagem; o óstio de entrada do mundo pelo corpo e do corpo pelo mundo'' (KOVALESKI; FREITAS; BOTAZZO, 2006, p. 100).

O processo de saúde-doença da boca, visto sob o conceito de bucalidade, possibilita a apreensão polissêmica dos lugares que a boca representa para o sujeito, já que pode ser experimentada ''cheia de seio, no gozo inescrupuloso do corpo do outro'' (BOTAZZO, 2006, p. 8), pela suas potencialidades amorosas e agressivas, bem como de sedução, viscosidade e mesmo podridão. A produção social da boca humana instaura ''o movimento que envolve o sujeito em permanente elaboração na fronteira entre razão e desejo'' (BOTAZZO, 2006, p. 15).

Seguindo a mesma linha de pensamento, encontramos Souza (2003a; 2003b; 2006) que discute a relação sofrimento e desejo a partir de narrativas de pacientes com câncer de boca, ressaltando a subjetividade no adoecimento por câncer.

Botazzo (2006, p. 16) questiona: ''esse processo de disciplinarização bucal é parte dos dispositivos de produção de indivíduos alienados, com sua autonomia diminuída. E as repressões da boca não terão conseqüências sobre a positividade da sua saúde?''. É neste específico sentido que Botazzo pergunta: ''Não podendo a boca gozar o tempo todo, viria por acaso adoecer disso?''.

No caso do câncer de boca, a boca mutilada pode ser fator de exclusão social. Considerando as elaborações de Botazzo (2006), Souza (2006, p. 27) escreve:

A boca humana é corpo humano. Produção e reprodução são eventos que se realizam no corpo do homem, pelo corpo e para o corpo. É aqui que os fenômenos da saúde e da doença se dão como expressão da cultura (incluindo o psiquismo) e se fundem nos nexos poderosos dos modos de produzir a existência. Suporte de ações (e das relações) sociais; são inseparáveis as suas instâncias sensórias e as da razão. Duplo gozo, pois que é o gozo que lhe proporcionam suas mucosas, músculos e glândulas, como Freud mesmo teria dito, e também o gozo da coisa pensada, uma idéia, um raciocínio ou um cálculo. Ele se reveste de cultura e civilização e, nesta, se expressam os controles da sua fisiologia, quer dizer, é no processo civilizador que se instauram dispositivos de controle dos modos de comer, a disposição no leito, o controle dos odores, a depositação das suas excretas, a efetivação da sua limpeza.

As contribuições da Psicanálise (FREUD, 1895-1976; 1898-1976) à investigação dos fenômenos psicossomáticos (LACAN, 1964-1985, 1975-1988) inauguram um vasto saber sobre as determinações múltiplas do adoecer orgânico. Sobre a contribuição freudiana, que corrobora com o campo da psicossomática, Volich (2000, p. 62) escreve:

Questionando as vias que levam o conflito psíquico a manifestar-se na esfera somática, aceitando acolher aquilo que a ciência de sua época rejeitava - os sonhos, os lapsos, a histeria e, inclusive, outra anatomia, imaginária -, Freud fundou a Psicanálise, desenvolvendo uma clínica e um aparelho teórico que buscam permitir a compreensão das diferentes passagens e relações entre as manifestações psíquicas e corporais.

Freud (1895-1976) apresenta um corpo para além de suas causalidades puramente biológicas, concebendo uma relação entre a corporalidade e a realidade psíquica do sujeito que definiria o momento do adoecimento orgânico. Teixeira (2006, p. 23) nos elucida:

Freud, então, abrindo as portas da investigação clínica ao corpo doente, interroga as convicções dualistas soma/psique, ao afirmar que os sintomas psíquicos exercem função na economia subjetiva manifestando-se no substrato corporal.

O processo de adoecimento implica a consideração de aspectos plurais quando a ênfase é posta na subjetividade. O desencadeamento e o curso da doença orgânica devem ser contextualizados na história de vida do sujeito, sendo este o foco e não a história da patologia de acordo com a racionalidade médica, com o organismo (ASSOUN, 1997).

Não compartilhando da tese de que o câncer consiste em uma doença psicossomática, apresentando os pacientes perfis psicológicos específicos (MELLO FILHO, 1992), afirmamos que o modo de adoecer do sujeito exprime sua organização psicossomática (DEBRAY, 1995).

A partir da Psicanálise freudiana, podemos sugerir que o padecimento causado por psicopatologias orgânicas pode ser iluminado, em termos teórico-clínicos, pelos conceitos de desejo, pulsão, investimento libidinal, somatização, escolha do órgão, luto e masoquismo (ASSOUN, 1997; FLEMING, 2003; 2006), dentre outros. A Psicanálise nos ensina que as afecções orgânicas constituem produções do sujeito, modos de expressão do pathos (BERLINCK, 2000; NASIO, 1997) que o habita.

É nessa perspectiva que lidamos com o adoecimento do câncer, ratificando que não compactuamos com visões que tendem a reduzir a etimologia a fatores orgânicos ou psicológicos. Concebemos a doença como construção humana, repleta de sentidos singulares e sociais.

 

ESQUEMA E IMAGEM CORPORAL: FACE EM PEDAÇOS

Em sua comunicação de 1949, intitulada ''O estádio do espelho como formador da função do Eu'', Lacan apresenta sua tese sobre a constituição da imagem corporal na criança. Lacan (1949-1998, p. 100) dará uma nova conotação ao espelho ao identificá-lo como o Outro materno, observando que:

A função do estádio do espelho revela-se para nós, por conseguinte, como um caso particular da função da imago,que é estabelecer uma relação do organismo com sua realidade [...].

A finalidade de tal experiência seria proporcionar à criança uma junção de seu corpo orgânico com sua imagem corporal. Mais adiante, Lacan (1949-1998, p. 234) acrescenta que:

[...] O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação - e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos ortopédica - e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo seu desenvolvimento mental.

O espelho, portanto, não corresponde ao objeto em si, mas ao olhar e ao discurso maternos. O real do corpo não é levado em conta pela mãe. Essa identificação especular configura-se como fundamental para a formação do eu e para a constituição do sujeito que só se dará na sua inserção no mundo do simbólico. A imagem especular refletida corresponde a um ser completo levando a criança a um estado de júbilo.

Em outra perspectiva, Dolto (2001) concebe o espelho como uma experiência de castração. Para ela a imagem do espelho não se limita ao especular, mas abrange todos os sentidos. A criança não seria um ser despedaçado e sim completo, que, diante do espelho, se confronta com uma imagem contrária. O resultado de tal experiência é a introdução da criança no narcisismo primário. Haveria, então, três momentos no narcisismo: o fundamental, o primário e o secundário. Fundamentando-se em sua prática clínica com crianças, Dolto (2001) elabora o conceito de imagem inconsciente do corpo como um resultado dos efeitos da linguagem. Ela a define como: ''a síntese viva de nossas experiências emocionais: inter-humanas, repetitivamente vividas através das sensações erógenas eletivas, arcaicas ou atuais'' (DOLTO, 2001, p. 14). Sobre a distinção entre imagem corporal e esquema corporal, Dolto (2001, p. 14) comenta que:

[...] o esquema corporal é, em princípio, o mesmo para todos os indivíduos (aproximadamente de mesma idade, sob um mesmo clima) da espécie humana, a imagem do corpo, em contrapartida, é peculiar a cada um: está ligada à sua história. (...) o esquema corporal é, em parte, inconsciente, mas também preconsciente e consciente, enquanto que a imagem do corpo é eminentemente inconsciente.

No caso das neoplasias bucais, as sequelas provocadas pela remoção do tumor atingem o esquema corporal em sua concretude funcional e estética. Dolto (2001) ressalta que nem sempre o esquema corporal causa danos à imagem do corpo. Partindo do pressuposto de que a linguagem é que sustenta a imagem do corpo, Dolto e Nasio (1991) afirmam que não há uma relação direta entre a lesão no esquema corporal e na imagem do corpo, pelo fato de a imagem ser construída a partir da experiência da relação do sujeito com seus correspondentes por meio dos sentidos. Em paralelo a Lacan (1949-1998), o esquema corporal equivale ao Real do corpo, podendo uma lesão em tal estrutura comprometer a imagem corporal.

 

ESTÉTICA FACIAL E ATUALIDADE: CONSIDERAÇÕES SOBRE UMA FACE AVARIADA

Como já discutido, as intervenções cirúrgicas do câncer de boca costumam ser agressivas e comprometem a integridade corporal do sujeito, mais especificamente a face, assim como suas relações interpessoais (MORONI, 1982). Tal panorama adquire lugar de destaque quando contextualizamos o adoecer no cenário sociocultural atual, no qual a cultura somática (COSTA, 2004) é premente, constituindo o solo hegemônico nos quais os processos subjetivos têm lugar.

Na atualidade, o corpo constitui o parâmetro central para as concepções de saúde, doença, normal, patológico, vida e morte, bem como o modelo normativo de beleza e de boa forma física (COSTA, 2004; LE BRETON, 2003; 2006). Estas qualidades tornam-se referenciais de conduta, viabilizando todo um mercado da estética. Tal indústria contribui para o que Birman (2003) chama de ''cultura da imagem'' e ''estetização da existência'' e Costa (2004), ''cultura somática'' e ''personalidade somática''.

Em relação ao câncer de boca e aos seus efeitos iatrogênicos, muitas vezes mutilantes, tal aspecto merece destaque, visto que a face, como espaço corporal mais visível pelo olhar do outro, constitui um dos objetos de preocupação estética do sujeito atual. Faria (2003, p. 19) afirma:

[...] Os padrões estéticos parecem estar sempre vinculados ao que se mostra na televisão. Sempre que possível, a informação transmitida pelos meios de comunicação visuais: televisão, out-doors, internet, associam beleza e sucesso: a beleza é representada por rostos e corpos bonitos, bem delineados, em perfeita harmonia, nos quais se destacam bocas, lábios, sorrisos amplos e dentes claros e alinhados [...]

Os tratamentos de pacientes com tumor podem ser agressivos, acarretando modificações do esquema corporal e da imagem inconsciente do corpo. As incisões cirúrgicas vão além da superfície cutânea, atingindo o psiquismo, acarretando mudanças profundas na subjetividade. A agressão à imagem corporal pode proporcionar modificações nas significações socioculturais que são representações psíquicas relacionadas com a organização do ego. Segundo Mello Filho (1992), tal agressão pode ocasionar também um enfraquecimento ou até um desaparecimento do superego do paciente. Por isso quando o superego do doente está enfraquecido, ou desaparecido, ele não possui uma censura nas suas ações, como se utilizasse a doença para não ser punido nem criticado. Mello Filho (1992, p. 221) enfatiza:

O fator mais agressivo recebido por um paciente com câncer é a modificação das atitudes e comportamentos dos próximos em relação a ele. Podem chegar a um nível terrível de agressividade e representar, a partir do próprio universo emocional, a concretização de sentimentos históricos agressivos e sádicos, muito difíceis de lidar ou de serem evitados por parte do doente.

As sequelas causadas pelo câncer de boca em estado avançado podem alterar, de forma significativa, a estrutura facial. O rosto deixa de ser um atrativo ao olhar e o sujeito pode passar a ser considerado uma aberração. A importância que possui o rosto na constituição do sujeito, desde o leito materno até sua identificação imagética no espelho e o caráter erógeno da pulsão escópica (Lacan, 1949-1998), revela que a lesão no esquema corporal afeta a imagem do corpo. O olhar desejante do outro se abstém, cedendo lugar para a visão de uma aberração que causa horror e espanto, deslocando-se do campo do desejo para o da curiosidade que ''coisifica'' o paciente, confundindo-o com a doença, anulando-o como objeto de investimento narcísico.

Lacan (1964-1985) retomará o conceito de pulsão escópica como alicerce para a constituição do sujeito, estabelecendo a diferença entre visão e olhar a partir do terceiro tempo da pulsão escópica. O olhar enquanto objeto pulsional será identificado ao objeto, a causa do desejo, resultado da falta constitutiva do sujeito.

A primazia da função escópica sobre a olfativa, conforme Jorge (2000), tem suas raízes no processo civilizatório da humanidade. Como primata, o homem se portava como quadrúpede, tendo o olfato como principal função vital que lhe permitia distinguir os seres, os elementos naturais e excitar-se sexualmente. Com o tempo, o abandono de tal postura em favor da ereta fez com que a visão se tornasse a principal função vital no reconhecimento em sua relação com o mundo e na escolha de suas parceiras sexuais. A civilização reforçou a primazia do escópico em relação aos demais sentidos.

Constatamos que o predomínio da visão biomédica do processo de adoecimento pelo câncer traz implicações para o doente e sua família, ratificando a ênfase dos aspectos biológicos nos modos de subjetivação contemporâneos, dificultando a consideração das implicações subjetivas no adoecimento.

Presumimos que a ideia de constituição subjetiva não permeia as práticas médicas e que a intervenção cirúrgica, com finalidade curativa e/ou reparadora, teria ''o poder de reconstituir o paciente mutilado'', já que as intervenções médicas parecem se limitar ao conhecimento e às manipulações do corpo orgânico.

 

MITOS E ESTIGMAS: IMPLICAÇÕES SUBJETIVAS DO CÂNCER DE BOCA

O estigma (GOFFMAN, 1988) do câncer é algo que se encontra arraigado nas pessoas, ocasionado pela má informação sobre o assunto, tanto em âmbito familiar como social. Logo são várias as expectativas e fantasias negativas, inadequadas muitas vezes, que fazem com que familiares e amigos se separem ou se afastem dos pacientes, em virtude de seus receios diante do diferente, pelo medo de possíveis contaminações (do câncer, da dor, da morte...). Desta forma, o paciente, diante desta realidade, pode se ver só, sem apoio e perspectivas, e ter de enfrentar sozinho a situação de sua doença - tratamentos, exames agressivos, cirurgias mutilantes.

Em nossa sociedade há a crença de que o tratamento do câncer tem de ser obrigatoriamente acompanhado por dores e, o pior, que o paciente fica impossibilitado de exercer sua autonomia. Assim como enfatiza Áries (1997, p. 37), do paciente oncológico ''é roubado o seu processo de morrer, suas possibilidades de decisão, sua autonomia e o controle da própria vida''.

O paciente acometido por um tumor de cabeça e pescoço, muitas vezes, perde a capacidade de falar e, com ela, perde o sentimento de pertinência à comunidade humana; pode sofrer mutilações devastadoras e consequentemente alterações da autoimagem. O tratamento prejudica de forma intensa a relação que o paciente tem com a imagem do seu próprio corpo, com a confiança e a estima que sente por si mesmo, ele deixa de gostar, de confiar no seu corpo, renuncia a mostrá-lo, a utilizá-lo com liberdade e a reconhecê-lo como seu, ele questiona sobre a sua existência: um corpo doente, um ser incapacitado, um indivíduo comprometido, um futuro incerto.

A face é o meio através do qual expressamos nossas emoções e afetos e nos identificamos com o mundo. Mello Filho (1992) cita que os gregos acreditavam que algumas características das feições denotavam o indício da personalidade ou do caráter. Características físicas esteriotipadas, como no caso de pessoas com mutilações ou deformações e anomalias faciais podem afetar a personalidade da pessoa em questão, provocando, por exemplo, isolamento, angústia e baixa autoestima (MELLO FILHO, 1992).

Verificamos que o câncer de boca carrega um estigma forte (GOFFMAN, 1988), especialmente concentrado nos mitos e metáforas (SONTAG, 1994) construídos acerca da patologia. Na atualidade, com os avanços da biotecnologia, percebemos que os investimentos da ciência no corpo doente são maciços, especialmente em virtude dos tratamentos que têm efeitos iatrogênicos e que, em termos subjetivos, delineiam um corpo de sofrimento desenhado pela anatomia médica.

Costa Neto e Araújo (2001) afirmam que cerca da metade dos pacientes, ao ser diagnosticada, já apresenta tumores avançados, o que conduz em uma intervenção mais agressiva, como cirurgias, que ainda hoje são bastante mutiladoras, pois provocam alterações estéticas e funcionais significativas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS: À ESCUTA DO CÂNCER DE BOCA

Sobre a interferência no corpo do paciente com câncer de boca, em decorrência das repercussões psicológicas que a cirurgia pode causar, ressaltamos que certos autores são unânimes em considerar que esse tipo de intervenção produz falhas na estruturação subjetiva, como problemas em relação às funções da oralidade, tais quais o alimentar-se, o respirar e o falar, influenciando, sobremaneira, na construção das fronteiras corporais, nas experiências de dentro-fora e interior-exterior e na comunicação oral, causando dificuldades que suscitam desafios nas relações com o outro. Também ressaltamos que o gestual da face pode sofrer modificações, sendo, assim, prejudicado o olhar e sua polissemia como constituintes culturais do vínculo social (BARBIERI; GOBBI, 2003; MAGRINI, 2003; MORONI, 1982; SOUZA, 2003a; MARTINS-SILVA ET AL., 2002).

As reações perante a necessidade de uma cirurgia com características mutiladoras variam de acordo com cada portador da referida enfermidade. Segundo Moroni (1982, p. 101):

Na maioria das vezes ele - o portador do câncer - não entende porque sua lesão exige tamanha margem de segurança e, conseqüentemente, porque numa lesão de pequenas dimensões e com pobre sintomatologia, ele deva ser desfigurado por agressiva cirurgia. Não consegue, enfim, compreender porque uma pequena ferida deva transformar-se em uma deformidade.

Segundo Magrini (2003), ao estudarmos a importância da aparência para o homem devemos levar em consideração as relações com o narcisismo fundamental, pois este é constituído pelo cruzamento da imagem corporal com o esquema corporal. Magrini (2003, p. 25) segue nos informando:

A imagem corporal é subjetiva e não corresponde à imagem do espelho, enquanto o esquema corporal é aquele que, de uma forma geral, especifica o ser humano, isto é, temos uma boca, dois olhos, dois braços, etc.

O corpo, para a referida autora, é o lugar de explicitação dos desejos, o responsável por fundamentar nossa individualidade, o local do prazer e das relações interpessoais e como estas se exprimem (MAGRINI, 2003). E ainda vemos como a autora retoma a proposta da psicossomática e valida a importância do outro e do laço social na construção da subjetividade dos sujeitos:

Esse corpo psíquico que se forma desde o momento da concepção, através dos desejos materno e paterno, e que após nascer irá se compor junto com o olhar do outro, com seus aspectos culturais associados, mostrará seu lugar no mundo (MAGRINI, 2003, p. 25).

Souza (2003a; 2003b) afirma que a estruturação psíquica do sujeito é tão importante quanto sua disposição orgânica, corroborando que estas duas instâncias encontram-se intimamente relacionadas e seriam responsáveis pela caracterização do homem no mundo.

Embora percebamos a predominância do modelo biomédico nas práticas psicológicas com pacientes portadores de câncer, ressaltamos que são diversos os campos de atuação profissional, especialmente quando é o sujeito adoecido que constitui o foco da atenção de cuidado e não a patologia. Pensamos ser fundamental a consideração do caráter multifatorial do câncer de boca para que o psíquico não seja considerado como ''causador'' do fenômeno somático, o que nos encaminharia para uma visão também reducionista e pouco fértil em relação à terapêutica.

A clínica dos fenômenos somáticos atualiza a problemática da corporeidade na atualidade, interrogando a Psicanálise acerca de seus postulados metapsicológicos e de sua técnica quando fracassa na constituição de um espaço intersubjetivo no qual o romance do sintoma, sobre o qual se apoia, pode ser ficcionado (TEIXEIRA, 2006): espaço de constituição do psíquico e do pathos (FLEMING, 2006).

Ratificando as opiniões ora expostas, concordamos com Debray (2001, p. 9, tradução nossa) quando afirma que

[...] separar nos indivíduos humanos o que atua na cena psíquica do que se vive no plano do corpo é injustificado. De fato a antiga dicotomia psique/soma não resiste a esta evidência: somos todos seres psicossomáticos.

Restabelecer a saúde perfeita constitui um dos ideais da biomedicina, para a qual o Bem almejado é a saúde. Questioná-lo parece ser a via mais lúcida pela qual podemos acolher o sofrimento expresso pelas manifestações orgânicas, sofrimento que demanda o reconhecimento dos afetos e da construção subjetiva da imagem corporal.

O ethos que suporta as experiências médica e psicanalítica em seus enfoques dos fenômenos psicossomáticos deve residir na não exclusão do doloroso e do insuportável da vivência subjetiva, da experimentação do corpo em suas possibilidades nos campos da saúde e da doença, da instalação de enigmas que impliquem o sujeito na ficção de sua história.

A partir das possibilidades de subjetivação na cultura contemporânea, vemos que a corporeidade ocupa lugares teóricos e clínicos plurais e que as políticas do corpo, embora apontem prioritariamente para a equivalência entre o estado de saúde e a vida, também apontam para saberes que não se enquadram nos rigores das racionalidades médicas ocidentais presentes no modelo biomédico. Atentar para as relações de poder/saber constituintes das configurações dos campos de experiência subjetiva, nos quais as ideias de vida, morte, saúde e doença se atualizam, constitui um dos pressupostos do exercício clínico.

A clínica dos fenômenos psicossomáticos aparece, pelos ricos paradoxos e amplitude que institui na experiência transferencial, como terreno paradigmático de investigação do psíquico. A emergência dos apelos expostos pelas mazelas orgânicas e a aura de sofrimento que as acompanha exigem o entendimento, por parte do profissional, das configurações singulares na interface com a sintomatologia enredada no socius.

Concordamos com Spink (1997) quando escreve que a pesquisa qualitativa sobre o câncer pode contribuir para o aprofundamento e compreensão da produção de sentido diante das experiências reais ou potenciais da doença. Apenas como forma de ilustrar a proposta acima, respaldada na análise de Spink (1997), vale a pena reforçar que a pesquisa sobre produção de sentido é necessariamente sócio-histórica e exige esforço interdisciplinar de aproximação do contexto cultural e social em que se inscreve o sujeito que sofre.

O câncer de boca pode servir como rica fonte de pesquisas qualitativas nas Ciências Humanas por se tratar de uma doença que acarreta mutilações físicas, comprometimento das funções vitais e implicações subjetivas para o paciente.

 

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Endereço para correspondência:
Leônia Cavalcante Teixeira
E-mail:leoniat@unifor.br

Recebido em: 17/12/2008
Aprovado em: 02/07/2009
Revisado em: 02/07/2009

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