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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.62 no.1 Rio de Janeiro abr. 2010
ARTIGOS
O acompanhamento terapêutico e a formação do psicólogo: por uma saúde humanizada
The therapeutic accompaniment and the psychologist formation: for an humanized health
Luciana Chauí-Berlinck
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil
RESUMO
Este artigo visa problematizar a formação do psicólogo e as habilidades terapêuticas desenvolvidas pelos cursos de psicologia. Apesar de todos os avanços teóricos e práticos trazidos pelo movimento antimanicomial os cursos de psicologia no Brasil não parecem ter assimilado essa perspectiva em seus projetos didático-pedagógicos. Contudo, não basta a crítica, é preciso propor uma perspectiva inovadora para esta formação. Pensamos na importância do ensino do Acompanhamento Terapêutico (AT) na grade curricular da psicologia, refletindo sobre a maneira pela qual esse acompanhamento se configura como política de humanização dos indivíduos que são/estão segregados socialmente por motivos psíquicos. Tomamos o AT como uma prática que visa a inclusão social e a formação do psicólogo para que este seja um profissional capacitado a enfrentar com êxito as dificuldades e exigências impostas por sua prática. Cria-se, assim, um espaço para o exercício de alteridades.
Palavras-chave: Acompanhamento terapêutico; Formação do psicólogo; Saúde humanizada; Luta antimanicomial; Reforma psiquiátrica.
ABSTRACT
This article addresses some questions about the courses of Psychology in regard to the formation of the psychologist and his therapeutic expertise. In spite of the theoretical/pratical advances carried out by the Anti-Asylum Movement, the Psychology courses in Brazil don’t seem to have assimilated such results in their didatic/pedagogical programs. Nevertheless, it’s not enough to criticize but it’s necessary to introduce a new and creative perspective in order to obtain such a formation. We think that the innovation may be accomplished through the undertanding of the importance of including the teaching of Therapeutic Accompaniment during the courses of Psychology as a practice through which it’s possible to attain the humanization of those individuals socially segregated because of psychic difficulties. We conceive the TA as a means of social inclusion, to promote the psychologist as a professional aware of his role. To helps us in the creation of new forms of relating to alterity.
Keywords: Therapeutic accompaniment; Formation of the psychologist, Humanization, Anti-asylum movement, Psychiatric reform.
Este artigo surgiu de reflexões feitas quando reformulávamos o projeto pedagógico de um curso de psicologia em conformidade com as novas diretrizes curriculares nacionais. As novas diretrizes para os cursos de psicologia prevêem que a formação do psicólogo se dê de tal forma que os egressos desses cursos estejam preparados para trabalhar com a diversidade e com a multidisciplinaridade. Ao pensarmos nas exigências das diretrizes para esta formação, fomos levados a discutir as várias possibilidades e os vários instrumentos que teríamos para alcançar tal objetivo. Dada nossa formação acadêmica passamos a questionar se o ensino da psicopatologia nos moldes em que é feito hoje (com uma visão psiquiátrica, nos moldes dos psicodiagnósticos e dos manicômios) atenderia a esses requisitos da pluralidade e diversidade, exigidos pelas diretrizes. Esse questionamento nos levou a outro ainda mais amplo: estaria de acordo com o movimento mundial de reformas psiquiátricas, com os movimentos brasileiros de construção da cidadania como subjetividade portadora de direitos e com as questões da luta antimanicomial insistir nesse modelo de ensino da psicopatologia?
Passamos a problematizar a formação do psicólogo e as habilidades terapêuticas desenvolvidas pelos cursos de psicologia. Isso porque, apesar de todos os avanços teóricos e práticos trazidos pela reforma psiquiátrica e pelo movimento antimanicomial, os cursos de psicologia, no Brasil, não parecem ter assimilado essa perspectiva em seus projetos didático-pedagógicos. Nossa experiência profissional tanto clínica como docente nos faz acreditar que mudanças são necessárias para que um novo discurso possa surgir, um discurso que não carregue em seu bojo a gama tão extensa de preconceitos quanto à doença/saúde mental e o sofrimento psíquico. Indagamos se seria possível incorporar nas grades curriculares dos cursos de Psicologia uma disciplina de Acompanhamento Terapêutico (AT)1. Afinal, qual o discurso que institui o AT? Será uma retomada do discurso psiquiátrico ou poderia ser entendido como uma prática que visa ao reconhecimento da alteridade e da relação intersubjetiva? O que nos suscitou estas questões? A visível ambigüidade do AT: de fato, por um lado, seu foco maior ainda se encontra nas questões da psicose, por outro lado, porém, hoje esta prática se relaciona também ao que se conhece por vulnerabilidade social (adoecimento resultante de uma série de fatores tanto individuais como coletivos e contextuais, que geram maior suscetibilidade ao adoecimento).
POR QUE PROBLEMATIZAR O DISCURSO DO PSICÓLOGO E O DO AT?
Acompanhemos Michel Foucault. Tanto em “História da loucura na Idade Clássica” (1978)como em “Vigiar e Punir”(1977), Foucault enfatiza que a Modernidade é o momento em que a razão é a detentora dos caminhos do saber e da verdade e definidora da cidadania (o indivíduo racional independente), e é exatamente quando a razão ocupa o lugar do rei (para usarmos a expressão empregada em “As palavras e as coisas” (1966/ 1999) que iremos encontrar o surgimento e a institucionalização da psiquiatria. O louco é aquele que está destituído de razão e a loucura é tratada pela psiquiatria como uma forma de alienação social. Na alienação econômico-social vemos o indivíduo destituído dos bens que produz; na loucura, vemos o louco como alienado porque destituído de si mesmo, uma vez que o si mesmo se define pela plena posse da razão. Assim, a tradição racionalista moderna tacitamente articulou duas formas de alienação: uma, invisível, social e economicamente determinada; outra, visível, posta pelas teorias filosóficas e científicas. Contrapondo-se a essa tradição, articulamos alienação e reinvenção da subjetividade autônoma. A luta pela recriação da subjetividade é a luta contra a alienação (social) e a alienação (psíquica).
O doente mental aparece como uma espécie de detrito social a ser escondido. É submetido a um processo de exclusão, segregado e encarcerado em instituições fechadas que, além de ocultá-lo da sociedade, passam a usá-lo como cobaia em experimentos variados. Despojado da condição de sujeito, é desumanizado e tratado como coisa.
Essas discussões sobre a subjetividade concreta dos doentes mentais aparecem nas três Conferências Nacionais de Saúde Mental, realizadas no Brasil em 1987, 1992 e 2001. Pensava-se, então, que seria preciso criar um novo lugar social para a doença mental. Para isso seria preciso “construir uma mudança no modo de pensar a pessoa com transtornos mentais em sua existência sofrimento, e não apenas a partir de seu diagnóstico” (BRASIL, 1994).
Justamente por isso ocorre a substituição do termo doença mental por sofrimento psíquico e pessoas portadoras de sofrimento psíquico. Pensava-se, nessa época, que se a sociedade acabasse com as formas institucionais concretas de exclusão, isso garantiria os direitos de subjetividade autônoma para aqueles que por séculos foram socialmente excluídos, por serem, a partir de então, considerados cidadãos iguais perante a lei. Entretanto, essa igualdade tende a ser formal e abstrata porque, concretamente, não somos todos iguais. Em outras palavras, o discurso da igualdade formal ou legal é abstrato porque, ao tomar o indivíduo como expressão particular de uma entidade universal – o homem racional, livre e igual – oculta as diferenças concretas. O que se torna necessário, portanto, é a identificação e o respeito às diferenças.
A loucura/doença mental não é mais considerada irracionalidade, defeito, falha ou desqualificação; ela ocupa um novo lugar social. Todavia, esta posição só poderia ser efetiva se não mais entendesse a subjetividade autônoma a partir de direitos outorgados formalmente pela lei (outorga que, aliás, elimina qualquer autonomia do sujeito, pois produz a subjetividade sem que esta seja auto-fundadora de si), e sim como auto-criação e reconhecimento de si no discurso dos direitos concretos.
No entanto, não vimos o desaparecimento do discurso racionalista sobre a alienação. Pelo contrário, vemos a alienação tomar conta do cenário por conta do lugar da própria alienação. De fato, o paciente se deixa definir pelo especialista e este se deixa definir pelas instâncias de poder ou pelas instituições. Ninguém é sujeito, pois o que cada um é, é definido por um outro no qual ninguém se reconhece – e é exatamente isto a alienação, o ser definido por um outro – alienus -- irreconhecível. O discurso da instituição inventa subjetividades que não são sujeitos.
Nossa questão volta-se, então, para um espaço institucional: o da escola e o preparo, a formação dos profissionais que irão atuar na saúde mental. É possível um profissional que não se perceba como sujeito de sua prática, ou melhor, não perceba sua prática como criadora de sua subjetividade; e que não perceba o paciente como um sujeito diferenciado; não se perceba, nem perceba o paciente como subjetividades autônomas? Estas questões balizam nossa reflexão sobre o espaço institucional da formação do psicólogo e do discurso do AT.
De fato, muitos consideram que o Acompanhamento Terapêutico, nascido dos discursos sobre reforma e novas práticas terapêuticas, teria trazido uma riqueza inigualável. Isto porque seria próprio do Acompanhamento, desde sua origem, o trabalho com a diversidade, uma vez que os próprios acompanhantes vêm de diversas formações, sempre fazendo reflexões e comprometendo-se com seu trabalho. Porque não poderiam fazer um acompanhamento sem estar totalmente comprometidos na relação tão particular que se estabelece entre acompanhante e acompanhado. Dessa maneira, podemos indagar qual há de ser o objetivo do Acompanhamento: retirar o paciente de dentro dos muros do manicômio e faze-lo passear pela cidade? Ou o Acompanhamento visa que o paciente se aproprie de seus desejos, se aproprie de si e seja sujeito de sua vida?
Não partimos da estaca zero ou do grau zero do discurso. Nosso ponto de partida está referenciado por duas experiências pessoais, em outras palavras, tomaremos como balizas nossa experiência pessoal como acompanhante terapêutica e como professora de psicologia. Em nossa experiência como acompanhante terapêutica, a prática do Acompanhamento Terapêutico abriu a possibilidade de um espaço para que a pessoa do terapeuta tivesse uma atitude ética e para que o acompanhado, sentindo-se apoiado, pudesse também exercer uma atitude igual. Criava-se, assim, um espaço para o exercício de alteridades reciprocamente reconhecidas porque visíveis ou reconhecíveis; de certa maneira, uma prática clínica era levada a cabo, provocando movimento, abertura, troca social no cotidiano do paciente que, sob vários aspectos, leva uma vida marcada pela segregação. Em nossa experiência, era estar como intermediário, propiciando um espaço relacional que permitia que o outro fosse tirado da condição de doente e pudesse criar vínculos sociais e emocionais, contar sua história.
No entanto, empregamos termos como Acompanhamento Terapêutico (AT), paciente, inclusão, etc. conscientes de que são termos polissêmicos e estão atravessados por preconceitos e subentendidos. De fato, partindo de nossa experiência como professora, refletimos sobre como a instituição escolar produz um discurso a respeito da Psicologia, AT, doença/saúde mental, inclusão etc., que reforça preconceitos e subentendidos. Como diz Guirado (2006), o sujeito psíquico é sempre institucionalmente matriciado, mesmo que sempre seja singular, e por esta razão o egresso do curso de Psicologia e, portanto, o profissional psicólogo é matriciado por uma teia discursiva, repetida e legitimada pela instituição escolar.
Contudo, não basta a crítica ao papel repetidor e naturalizador da instituição escolar ou à formação do psicólogo oferecida pelos cursos de psicologia, mas pensamos ser possível propor uma perspectiva inovadora para esta formação. Em vista disso, procuramos propor a articulação entre o AT, pensado dessa maneira ampliada, e a formação do psicólogo para que este seja um profissional capacitado a enfrentar com êxito as dificuldades e exigências impostas por sua prática, caracterizada por relações intersubjetivas, afetivas, éticas e sociais, isto é, mediada por instituições e produzida institucionalmente. Isto significa que temos que pensar a própria idéia de instituição.
Como operar na contra-corrente da instituição e, ao mesmo tempo, fazer uma proposta institucional, uma vez que a escola é instituição? Aqui, o pensamento de Merleau-Ponty (L’institution – La passivité) (1955/ 2003), poderá nos auxiliar. Partindo da distinção entre fala falante e fala falada, isto é, entre o discurso estabelecido, cotidiano e sedimentado pela cultura de uma sociedade e de uma época, e o discurso criador, como o da literatura, que instaura novos significantes e novos significados, Merleau-Ponty distinguiu entre criação e sedimentação. Essa distinção o conduziu à afirmação de que uma ambigüidade perpassa a idéia de instituição, desde que, à maneira da distinção entre falante e falado, distingamos também entre o instituínte e o instituído. O instituído é a sedimentação, cristalização, repetição e naturalização, ou seja, é o estabelecido; o instituínte é a invenção do novo, a criação do novo, a temporalidade viva, ou seja, é fundação. A instituição é, dessa maneira, ambígua, pois é um começo radical (um ato fundador) e é um estado de coisas estabelecidas (a cristalização e naturalização). Em outras palavras, como discurso instituínte, uma nova prática pode se instituir como pensamento novo que pensa o novo; como discurso instituído, a prática reproduz uma matriz cujo sentido se ignora e que se mantém pela repetição. Se, portanto, tomarmos a mudança do ensino da Psicologia sob o prisma do discurso instituínte, essa mudança pode propiciar uma instituição nova, cuja raiz é justamente a crítica do discurso instituído.
Por isso mesmo, observamos os múltiplos sentidos dos termos empregados pela psicologia e pelos psicólogos e acompanhantes terapêuticos, conforme os vários discursos que os dizem, e indagamos se é possível superar os sentidos institucionalizados para instituir outra formação do psicólogo. Uma formação que gere novo discurso e nova prática, visto que um discurso é um ato ou uma ação. Dessa forma, acreditamos valer a pena explorar essa ambigüidade numa atitude que se volta contra o instituído e propõe algo instituínte, no interior da instituição, neste caso, da Psicologia e dos cursos de Psicologia.
Uma vez que entendemos que a psicopatologia, tal qual é ensinada hoje (em grande parte das universidades), cria um tipo de discurso que nos afasta das lutas pela subjetividade autônoma e da formação mais ampla para o psicólogo, propomos a inclusão de uma disciplina de AT que, por sua prática diferenciada, pode modificar o discurso do psicólogo e contribuir para a refundamentação de uma psicopatologia, uma vez que, facilita a identificação e o respeito às diferenças, tarefa de uma psicopatologia crítica voltada à saúde pública.
O AT, O MOVIMENTO ANTIPSIQUIÁTRICO E A LUTA ANTIMANICOMIAL
Michel Foucault em “Maladie mentale e psychologie” (1962) e “História da loucura na idade clássica” (1978), descreve e narra a transformação do fenômeno da loucura e da figura do louco da antiguidade ao século XIX, enfatizando os dois momentos decisivos da transformação: os meados do século XVII, quando ocorre o fenômeno do internamento, e o final do século XIX, quando a loucura se torna objeto da psicologia e doença mental. Não que anteriormente a medicina não se ocupasse dos loucos, diz Foucault, mas o fazia apenas nos momentos de frenesi, furor, acessos de melancolia, episódios de violência, isto é, aquelas manifestações esporádicas e passageiras que podiam ser medicadas.
Até o século XVII, escreve Foucault (1962), “ a loucura é experimentada em estado livre; ela circula, faz parte do cenário e da linguagem comuns, é para cada um uma experiência cotidiana que se busca mais exaltar do que dominar”(p. 80). Nos meados do século XVII, porém, a loucura vai passar ao mundo da exclusão: surgem as grandes casas de internamento, nas quais ficam reclusos os inválidos, os mendigos, os idosos miseráveis, os desempregados reincidentes, os libertinos, os dissipadores e os loucos, em suma, todos aqueles inaptos ou perturbadores da ordem capitalista do trabalho, isto é, marcados pela “incapacidade em que se encontram de tomar parte na produção, na circulação ou na acumulação das riquezas” (FOUCAULT, 1962, p. 81). Foucault observa que o internamento não tem nenhuma vocação médica. Essa mescla heterogênea de internados produziu sobre a loucura um efeito que permanece até nossos dias: ficou próxima de culpas morais e sociais, até que, a partir do século XIX, torna-se causa de crimes e, no século XX, “descobre-se no centro da loucura um núcleo primordial de culpabilidade e agressão” (p. 82), numa palavra, doravante a loucura é criminalizada.
A partir do final do século XIX, a loucura muda de lugar: torna-se doença mental. Enquanto mental pertence ao campo da psicologia e, enquanto doença, ao da medicina: seu espaço agora é o da psiquiatria. E como ela vem criminalizada ou como moralmente culpada, a psiquiatria inferioriza, infantiliza e violenta o louco. As reflexões de Foucault encontrarão um forte eco na prática dos que se ergueram contra essa figura da loucura, contra o tratamento dado ao louco e a violência da psiquiatria.
Desde o final dos anos 1940, são realizadas na Inglaterra e na França experiências de comunidades terapêuticas à margem das instituições psiquiátricas tradicionais. Todavia, essas experiências não puseram explicitamente em questão a psiquiatria, seus conceitos e suas práticas. Isto ocorrerá na década de 1960, quando do próprio interior da psiquiatria surge uma proposta de transformação radical: é o movimento antipsiquiátrico. Na Inglaterra, nos EUA e na Itália surgem contestações e alternativas para os tratamentos psiquiátricos. O que se colocava em questão era a condição do indivíduo como um sujeito que fora privado de direitos por ser doente mental.
Na Inglaterra, Laing (1927- 1989), Cooper (1931- 1986) e Esterson (1923- 1999) contestaram a separação entre normalidade e loucura; formaram um grupo de psiquiatras que, descontentes com o tratamento tradicional dispensado aos pacientes dos hospitais psiquiátricos, decidiram criar casas que recebessem pacientes psicóticos que demandassem acompanhamento, criando condições nas quais outras alternativas pudessem aparecer na relação técnico-paciente. Nos Estados Unidos, Thomas Szasz (1920) questionava o conceito de doença mental e, na Itália, Franco Basaglia (1924- 1980) acreditava que somente fora da instituição asilar é que uma relação terapêutica de ajuda com o indivíduo portador de psicopatologia poderia concretizar-se; para ele, era impossível que uma relação terapêutica verdadeiramente livre tivesse lugar em uma instituição cuja finalidade era vigiar.
Basaglia, tomando como referência a expressão cunhada por Goffman (1922- 1982) – Instituições totais-, falou em Instituições da Violência para referir-se aos hospitais psiquiátricos, que concentram os pacientes em grandes salas de onde ninguém pode sair, à agressividade de enfermeiros e médicos descarregada sobre os pacientes, aos instrumentos de tortura para “acalmar” os doentes, à falta de higiene nos quartos coletivos e nas celas. Escreve Basaglia (1968/ 2001):
Analisando a situação do paciente internado num hospital psiquiátrico, podemos afirmar desde já que ele é, antes de mais nada, um homem sem direitos, submetido ao poder da instituição, à mercê, portanto, dos delegados da sociedade (os médicos) que o afastou e excluiu. (...). O diagnóstico assume o valor de um rótulo que codifica uma passividade dada por irreversível. No instante em que esta é considerada em termos de doença confirma-se a necessidade da sua separação e exclusão, sem que se ponha em questão o significado discriminatório do diagnóstico. Desta maneira, a exclusão do doente do mundo dos sãos libera a sociedade dos seus elementos críticos de uma só vez confirmando e sancionando a validade do conceito de norma que a sociedade estabeleceu. A partir dessas premissas a relação entre o doente e aquele que toma conta dele é forçosamente objetual, na medida em que a comunicação entre ambos ocorre somente através do filtro de uma definição, de um rótulo que não deixa qualquer possibilidade de apelo (p. 107, 108, 109).
Essas palavras de Basaglia ecoam as escritas por Foucault em 1962:
O reconhecimento que permite dizer: este aqui é um louco, não é um ato simples nem imediato. Ele repousa, de fato, sobre um certo número de operações prévias e principalmente sobre o recorte do espaço social segundo as linhas da valorização e da exclusão. Quando o médico crê diagnosticar a loucura como um fenômeno da natureza, na verdade é a existência desse limiar que lhe permite fazer um juízo sobre a loucura (p.93)
Basaglia (1968/ 2001) fala numa crise da psiquiatria que é também uma crise institucional, ambas, segundo ele, tendo a mesma causa, qual seja, a relação objetal estabelecida com o doente, relação que, por reduzir um outro ser humano à condição de objeto ou de coisa, é uma relação de violência.
O que caracteriza atualmente tal relação, em todos os níveis, (psiquiatra, família, instituições, sociedade) é a violência (a violência que serve de base para uma sociedade repressiva e competitiva) com que o perturbado mental é atacado e repelido (p.126).
No Brasil, a ramificação do movimento antipsiquiátrico é a Luta Antimanicomial, que põe em pauta a discussão da condição do indivíduo doente mental como um não-sujeito ou um indivíduo privado de direitos, denunciando a violação do direito à liberdade e à convivência social, conduzindo as questões da saúde mental para o campo da ética e dos direitos humanos. Como observa Paulo Amarante (2001):
Atualmente, vários serviços de saúde mental ou de atenção psicossocial vêm sendo implantados no Brasil. A década de 1990 assistiu à produção de um bom número de novas instituições e experiências locais. Uma das necessidades atuais é a de compor uma rede de comunicação entre esses trabalhos, que possa enriquecê-los e fortalecê-los através de trocas e debate. A transformação que se opera na subjetividade dos doentes e da instituição, quando se trabalha para a desconstrução do paradigma psiquiátrico, pode ter grande amplitude, rompendo com conceitos e reinscrevendo a forma da loucura na sociedade (p.14).
Dessa maneira, podemos pensar que o questionamento da antipsiquiatria em relação ao confinamento e à segregação nas instituições psiquiátricas dão o embasamento teórico para a idéia e o nascimento do Acompanhamento Terapêutico.
Na década de 1970, surge na Argentina, com a criação da função de auxiliar ou atendente psiquiátrico, uma nova figura, que acompanhava os pacientes dentro das próprias instituições ou em atividades que porventura ocorressem fora delas. Conforme ganhavam a rua, esses atendentes receberam o nome de amigo qualificado. No Rio de Janeiro também encontramos no final dos anos 1960 o surgimento de uma figura que irá compor o quadro de funcionários da clínica Vila Pinheiros. Este novo elemento denomina-se auxiliar psiquiátrico e sua função é acompanhar o paciente em sua vida cotidiana na comunidade da Vila Pinheiros. Contudo, quanto mais o trabalho se afastava da instituição a denominação acompanhante terapêutico foi ganhando corpo, pois afinal, era preciso que se delimitassem com maior clareza as funções e vínculos desses profissionais. E o acompanhante terapêutico foi se especializando. Estudantes de várias áreas trabalhavam como acompanhantes, mas conforme ocorria uma maior especialização e um aumento da demanda por acompanhamento, os profissionais da área da saúde começaram a exercer essa função.
O Acompanhamento Terapêutico é uma alternativa à internação; é mais um recurso no tratamento psíquico. E, como dissemos, embora seu foco principal esteja ainda nas questões referentes à psicose, hoje esta prática se relaciona também ao que se conhece por vulnerabilidade social, ou seja, aos fatores que geram maior suscetibilidade ao adoecimento. Podemos dizer que o trabalho do acompanhante terapêutico é uma intervenção voltada para a socialização, um fazer que procura atender as necessidades e desejos da pessoa a partir de situações reais da vida do indivíduo, permitindo que novos horizontes sejam vislumbrados e que haja o exercício de seus direitos.
A via pela qual me aproximo do AT é a da teoria psicanalítica. Acredito que podemos compreender o sofrimento humano desde um ponto de vista psicanalítico, mas pensando num outro tipo de atuação, de manejo, que se diferenciaria em primeiro lugar pelo setting. O que proponho é uma compreensão psicanalítica do AT e não o AT como uma atuação psicanalítica. Para nós é constitutivo do AT algo que surgiu em nossa experiência de acompanhante, qual seja, uma grande proximidade entre o trabalho do AT e o da psicanálise, a percepção de que ambos trilham caminhos que buscam o(s) sentido(s) para a(s) existência(s) e para o sofrimento, buscando dar palavra e lugar para um sofrimento que dói sem que sequer saiba o que é. Como escreveu Pontalis (1977/ 2001), “o acesso ao figurável requer por vezes uma longa permanência em um doloroso enfrentamento com o que não tem nome, nem figura”(p. 217), momentos nos quais a“função do analista se reduz à de um objeto utilizado”(p. 217). O silêncio da dor é o discurso singular como grito. Ouvir o grito e auxiliar o movimento que vai da vociferação ao discurso próprio foi uma tarefa que muitas vezes vimos realizada em nossa experiência de acompanhante terapêutico.
Nessa perspectiva, formar psicólogos socialmente comprometidos com uma visão do paciente não como alguém que deve ser segregado, mas como sujeito válido, como pessoa moral, como sujeito autônomo, pode auxiliar nas conquistas do movimento antimanicomial, pode juntar em si as questões da clínica, da saúde pública e da psicologia social e também as questões da saúde do trabalhador e por aí da psicologia do trabalho, dando um sentido amplo e inovador às diretrizes curriculares nacionais.
REFERÊNCIAS
AMARANTE, P. Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. São Paulo. Hucitec, 2001. [ Links ]
BASAGLIA, F. A instituição negada. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 3ª. Ed., 2001. [ Links ]
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FOUCAULT, M. Maladie mentale et psychologie. Paris: Puf, 1962. [ Links ]
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GUIRADO, M. Psicanálise e análise de discurso: matrizes institucionais do sujeito psíquico. São Paulo: EPU, 2006. [ Links ]
LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. 4a. edição. São Paulo:Martins Fontes, 2001. [ Links ]
MERLEAU-PONTY, M. L’institution – la passivité: notes de cours au Collège de France. Tours: Éditions Belin, 2003.
Endereço para correspondência
Luciana Chauí-Berlinck
E-mail:diluclo@terra.com.br
Submetido em: 30/07/2009
Revisto em: 18/03/2010
Aceito em: 19/03/2010
1Para facilitar a diferenciação dos termos utilizaremos maiúsculas para Acompanhamento Terapêutico (AT) e minúsculas para acompanhantes terapêuticos (at).