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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.62 no.1 Rio de Janeiro abr. 2010
RELATOS DE PESQUISA
Estresse pós-traumático, ansiedade e depressão em vítimas de queimaduras
Posttraumatic stress symptoms, anxiety and depression in burn-victims patients
Leticia Galery MedeirosI; Christian Haag KristensenII; Rosa Maria Martins de AlmeidaIII
I Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), Santa Catarina, Brasil
II Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Rio Grande do Sul, Brasil
III Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rio Grande do Sul, Brasil
RESUMO
Há um crescente interesse na investigação das consequências emocionais relacionadas a queimaduras. O objetivo deste estudo foi identificar a prevalência de sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), depressão e ansiedade em pacientes vítimas de queimaduras internados no Hospital Municipal de Pronto Socorro (HPS) de Porto Alegre (RS, Brasil). A sintomatologia dos pacientes foi avaliada com o Rastreio para os Sintomas de Estresse Pós-Traumático (RSEPT), o Inventário Beck de Depressão (IBD) e o Inventário Beck de Ansiedade (IBA). Verificou-se que pacientes vítimas de queimaduras apresentaram níveis elevados de psicopatologia, incluindo sintomas de TEPT com relevância clínica (21,7% dos participantes), e sintomas moderados a graves de ansiedade (25%) e depressão (30%). Em geral, a extensão e o grau de queimadura não foram associados ao nível de sintomatologia. Conjuntamente, os resultados sugerem que as vítimas de queimaduras devem receber atenção adicional ao seu estado de saúde mental, incluindo intervenções destinadas à prevenção do TEPT.
Palavras-chave: Queimados; Transtorno de Estresse Pós-Traumático; Depressão; Clínica.
ABSTRACT
There is a growing interest in the investigation of the emotional consequences related to burns. This study aimed to identify the prevalence of posttraumatic stress (PTSD), depression, and anxiety symptoms among burnt inpatients in the Hospital Municipal de Pronto Socorro de Porto Alegre (RS, Brazil). In patients’ symptomatology was assessed with the Screen for Posttraumatic Stress Symptoms (SPTSS), the Beck Depression Inventory (BDI), and the Beck Anxiety Inventory (BAI). It was found that burn-victims patients showed high levels of psychopathology, including clinically-relevant PTSD (21.7% of participants), and moderate-to-severe anxiety (25%) and depression (30%) symptoms. Overall, burn extension and degree weren’t associated to the level of symptomatology. Taken together, the findings suggest that victims of burn should receive additional care regarding their mental health status, including interventions tailored to prevent PTSD and depression.
Keywords: Burn; Posttraumatic Stress Disorder; Depression; Clinic.
INTRODUÇÃO
As queimaduras continuam a provocar graves problemas clínicos, econômicos, psicológicos e sociais em todo o mundo. Por exemplo, nos Estados Unidos, as queimaduras são as principais causas de morte acidental, e o número de anos produtivos perdidos em decorrência desse problema é maior que o perdido em decorrência das sequelas de câncer, de doença cardíaca e de acidentes vasculares cerebrais (HAFEN ET AL., 2002). As queimaduras são causas de sérios problemas de saúde pública como, por exemplo: depressão e dependência química, especialmente nos países em desenvolvimento, incluindo-se o Brasil (CRUVINEL ET AL., 2005; DE-SOUZA ET AL., 2002; GOSH; BHARAT, 2000). Por outro lado, o tratamento e a reabilitação de pacientes vítimas de queimaduras têm sofrido uma melhora significativa nos últimos 25 anos, em que o foco das pesquisas se deslocou da mortalidade para a morbidade (MUNSTER, 1999).
As queimaduras podem constituir-se em lesões complexas, pois além dos danos aos tecidos podem causar uma lesão que prejudica o equilíbrio corporal normal de fluidos e eletrólitos, a temperatura, o equilíbrio térmico, a função articular, a habilidade manual e a aparência física. A gravidade de uma queimadura é determinada pelos seguintes fatores: grau da queimadura, extensão da área de superfície corporal total queimada, gravidade da lesão, local da queimadura e complicações associadas, como condições físicas e mentais preexistentes e idade da vítima (HAFEN ET AL., 2002). As queimaduras são classificadas de acordo com o grau de lesão causado à pele e tecidos subjacentes, sendo denominadas queimaduras de primeiro, segundo e terceiro graus (HAFEN ET AL., 2002). A maior parte das queimaduras apresenta uma combinação destas classificações, sendo que uma parte da pele pode apresentar queimadura de primeiro grau; outra parte, de segundo grau; e ainda outra, de terceiro grau. A queimadura de primeiro grau envolve somente a epiderme (camada externa da pele), caracterizada por dor e presença de vermelhidão. A queimadura de segundo grau envolve a camada da epiderme e da derme, e é caracterizada por bolhas, inchaço e dor. Já as queimaduras de terceiro grau envolvem todas as camadas da pele, assim como a gordura subcutânea, músculos e ossos, caracterizando-se por pele ressecada, curtida e carbonizada. Há dois métodos para se calcular a porcentagem de área corporal queimada: a regra dos nove e o método de superfície palmar (SALISBURY ET AL., 1983). A regra dos nove divide o corpo em regiões: cabeça e pescoço (9%), parte posterior do tronco (18%), parte anterior do tronco (18%), cada extremidade superior (9%), cada extremidade inferior (18%) e genitália externa (1%). O método da superfície palmar é uma alternativa para se fazer o mesmo cálculo. A palma da mão da vítima é igual a aproximadamente 1% da superfície corporal, independente da idade. Pode-se calcular a superfície queimada comparando-se sua extensão com o tamanho da palma da vítima (HAFEN ET AL., 2002).
Sobreviventes de queimaduras graves atravessam um longo processo de reabilitação física com dor, pruridos, cicatrizes, repetidas cirurgias e, em alguns casos, sequelas permanentes. Ser vítima de um acidente com queimaduras é um evento traumático grave que pode desencadear transtornos psiquiátricos (WILLEBRAND ET AL., 2002).
Os problemas psicológicos mais frequentemente encontrados em pacientes vítimas de queimaduras são: a depressão e o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) (BRYANT, 1996). Em uma amostra de pacientes avaliados um mês após acidente com queimaduras, verificou-se grau moderado de depressão em 28% dos pacientes, e depressão grave em 26% dos pacientes (WIECHMAN ET AL., 2001). O TEPT é definido no DSM-IV-TR (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2002) como uma resposta sintomática a um evento estressor envolvendo três agrupamentos: (a) revivência, (b) evitação e entorpecimento e (c) excitabilidade aumentada. O evento é experimentado com resposta de intenso medo, impotência ou horror, gerando sofrimento significativo e/ou prejuízo funcional com a manutenção de sintomas por mais de um mês. A prevalência do TEPT ao longo da vida tem sido estimada em 6,8% da população geral (KESSLER ET AL., 2005), apresentando alguma variabilidade conforme o instrumento empregado para a avaliação do transtorno (KRISTENSEN ET AL., 2005). No entanto, em pacientes vítimas de queimaduras, a prevalência do TEPT varia entre 9% a 35%, quando os pacientes são avaliados entre dois a quatro meses após a queimadura (YU; DIMSDALE, 1999).
O objetivo desse estudo foi identificar a prevalência de sintomas de depressão, ansiedade e estresse pós-traumático em pacientes vítimas de queimaduras, de ambos os sexos, internados no Hospital Municipal de Pronto Socorro de Porto Alegre (RS, Brasil).
MÉTODO
Delineamento
A investigação caracterizou-se por ser uma pesquisa descritiva quanto aos objetivos; quanto aos procedimentos, foi feito um delineamento ex post facto.
Participantes
Participaram deste estudo 24 pacientes adultos, internados na Enfermaria de Queimados do Hospital Municipal de Pronto Socorro de Porto Alegre, no período de março a junho de 2007, com idade entre 19 e 64 anos (Med = 39,0 anos; DP = 13,5), distribuídos em relação ao sexo conforme segue: quinze homens (62,5%) e nove mulheres (37,5%). Os critérios de inclusão adotados foram: (a) ter idade superior a 18 anos e (b) apresentar queimaduras graves. Os critérios de exclusão empregados foram: (a) ter idade inferior a 18 anos e superior a 65 anos, (b) paciente em sedação e (c) recusa em participar do estudo. Por se tratar de um serviço de referência no Estado do Rio Grande do Sul, um percentual expressivo dos participantes (62,5%) residia fora da região metropolitana de Porto Alegre e possuía, em sua maioria, empregos e/ou ocupações variadas. O grupo caracterizou-se, ainda, pela baixa escolaridade, visto que 74% desta amostra de adultos sequer entrou no Ensino Médio. Quanto ao estado civil, os indivíduos distribuíram-se da seguinte forma: casados (n = 14), solteiros (n = 6), viúvos (n = 3) e separados/divorciados (n = 1); e 75% dos participantes tinham filhos.
Instrumentos
Foi utilizado o Rastreio para Sintomas de Estresse Pós-Traumático (RSEPT)1, que é um instrumento de triagem para sintomas de estresse pós-traumático desenvolvido originalmente por Carlson (2001) na forma de uma triagem breve e de autorrelato, composta de dezessete itens apresentados na primeira pessoa do singular. Neste estudo, foi empregada a versão em português desenvolvida por Kristensen (2005). Para rastreio de sintomas de depressão e ansiedade, foi utilizado o Inventário Beck de Depressão (IBD) e o Inventário Beck de Ansiedade (IBA), respectivamente. O IBD consiste de uma escala de autorrelato com 21 itens de múltipla escolha apresentados na forma de afirmativas e destinados a medir a severidade de depressão em adultos e adolescentes (BECK; STEER, 1993a). O IBA consiste em uma escala de autorrelato com 21 itens na forma de descrições de sintomas de ansiedade a serem classificados em uma escala de 4 pontos (BECK; STEER, 1993b).
Procedimento
Transcorridos trinta dias do acidente que provocou a queimadura, os pacientes foram contatados quando retornavam ao hospital para a consulta de revisão com a equipe médica, visto que a maioria já havia recebido alta hospitalar. Aqueles que preencheram os critérios de inclusão (homens e/ou mulheres vítimas de acidentes com queimaduras) foram convidados a fazer parte do estudo por meio de contato e explicação dos objetivos, procedimentos, riscos e benefícios (conforme Resolução 016/2000 do Conselho Federal de Psicologia e Resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde, referente à ética na pesquisa com seres humanos). Após a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelo paciente e pesquisador, a entrevista foi realizada no Ambulatório de Queimados do HPS. Em uma única sessão, os instrumentos foram lidos e preenchidos por um dos pesquisadores, uma vez que alguns pacientes se encontravam impossibilitados de manipular o material de avaliação. A sequência de apresentação dos instrumentos foi variada, buscando-se controlar o efeito da ordem de apresentação.
Tratamento dos dados
Os dados coletados foram tabulados no programa Microsoft Excel (versão 10.26). O tratamento dos dados consistiu em procedimentos descritivos para as variáveis de interesse (sintomas de estresse pós-traumático, ansiedade e depressão) e para as variáveis sociodemográficas, envolvendo propriedades da distribuição, medidas de tendência central e medidas de dispersão ou variabilidade. Considerando o aspecto descritivo do estudo, os dados são apresentados em termos de frequências observadas. A estatística inferencial consistiu em cálculos de diferenças entre médias (Teste de Friedman) e cálculos correlacionais (coeficiente de correlação para postos de Spearman). Todos os cálculos foram realizados no programa SPSS for Windows (versão 10.0), e foi adotado um grau de significância de p < 0,05.
RESULTADOS
Entre os pacientes avaliados, a maior parte sofreu queimaduras na própria residência (54,2%) ou no local de trabalho (33,3%), sendo que um paciente sofreu queimaduras por agressão, um como decorrência de acidente de trânsito e um como decorrência de tentativa de suicídio. A grande maioria dos pacientes sofreu queimaduras por chama (83%), embora três pacientes (12,5%) tenham sido vítimas de choque elétrico e um paciente (4,2%) tenha se queimado em uma máquina industrial a vapor de uma lavanderia comercial. O tempo de internação variou de um dia a três meses. Entre os pacientes internados, doze estavam utilizando alguma medicação psiquiátrica e dezesseis pacientes estavam sendo medicados com morfina. A morfina é utilizada rotineiramente nos pacientes internados, sendo aplicada antes dos procedimentos de limpeza da ferida, para prevenir a dor e para tratamento da dor da queimadura, durante o curso da internação. A extensão da área de superfície corporal total queimada, neste grupo de pacientes, variou entre 5% a 63%. Em média, os pacientes sofreram queimaduras em 21,52% da extensão da área de superfície corporal total (Med = 15,0; DP = 16,71). A Tabela 1 apresenta a variabilidade dos graus de queimadura em cada região corporal verificada nos participantes deste estudo.
Tabela 1
Características dos participantes quanto ao acidente e uso de medicação
Os sintomas de estresse pós-traumático, ansiedade e depressão foram avaliados pelo RSEPT, IBA e IBD, cujos escores são descritos na Tabela 2. Em relação à sintomatologia pós-traumática, os escores variaram de 0 a 135 pontos (M = 57,78; DP = 35,44), apresentando uma distribuição normal, conforme o teste de Shapiro-Wilk, S-W (23) = 0,98; p = 0,85. Por meio do RSEPT, foi possível visualizar os escores de cada um dos agrupamentos de sintomas que compõem a síndrome. Entre os agrupamentos de sintomas, aquele que apresentou escore médio mais elevado foi o agrupamento de excitabilidade aumentada, seguindo-se pelo agrupamento de evitação e entorpecimento da responsividade geral e, com escore médio mais baixo, o agrupamento de revivência. Por meio do procedimento do Teste de Friedman, verificou-se que a diferença entre as médias dos agrupamentos de sintomas não foi significativa, χ2(2, 23) = 0,29; p = 0,86.
Tabela 2
Sintomas de estresse pós-traumático, ansiedade e depressão
O tratamento dos itens individuais do RSEPT permitiu verificar o perfil de sintomas pós-traumáticos entre os participantes. A maior frequência foi atribuída ao sintoma de evitação cognitiva (esforços no sentido de evitar pensamentos associados ao trauma, M = 6,70), seguido por dificuldades em adormecer ou permanecer dormindo (M = 5,09), evitação comportamental (esforços no sentido de evitar atividades associadas ao trauma, M = 4,52) e incapacidade de recordar algum aspecto importante do trauma (M = 4,30). Ainda que o agrupamento de sintomas mais prevalente tenha sido o de excitabilidade aumentada, verificou-se o predomínio de sintomas de evitação entre aqueles mais apontados pelos pacientes queimados.
Em relação aos sintomas de ansiedade mensurados no IBA, foi possível obter escores válidos para a totalidade dos participantes, variando entre 0 e 32 pontos. Conforme os pontos de corte indicados por Cunha (2001), foram identificados sintomas de ansiedade de moderados a graves em 25% dos participantes (n = 6). Os sintomas com escore médio mais elevado foram: suor (não devido ao calor; M = 1,58), sensação de calor (M = 1,33), incapaz de relaxar (M = 1,13), medo de que aconteça o pior (M = 1,08) e sentir-se aterrorizado (M = 1,04).
Os sintomas de depressão foram mensurados por meio do IBD em vinte pacientes. Neste grupo, foi possível verificar sintomas de depressão moderados a graves em 30% dos participantes (n = 6). Os sintomas mais intensos foram: preocupações somáticas (M = 1,10), irritabilidade (M = 1,05), distúrbios do sono (M = 0,93), tristeza (M = 0,83) e insatisfação/anedonia (M = 0,81).
A associação entre a extensão, grau da queimadura e sintomas pós-traumáticos, ansiosos e depressivos foi verificada por meio do cálculo do coeficiente de correlação para pontos de Spearman (rho), com teste de significância monocaudal. Não foram observadas correlações significativas entre as variáveis de queimadura (extensão e grau) e as variáveis de sintomas, à exceção da associação entre extensão da queimadura e o IBA. Foram observadas correlações significativas entre o RSEPT, o IBA e o IBD.
Tabela 3
Correlações entre queimaduras (extensão e grau), sintomas de estresse pós-traumático, ansiedade e depressão
Em seu estudo original, Carlson (2001) observou uma boa consistência interna para o RSEPT (α = 0,91) e correlações bivariadas item-total entre r = 0,49 e r = 0,75 (p < 0,001). Também foram obtidos dados sobre validade referente a critérios ou, especificamente, validade concorrente, incluindo dados sobre sensibilidade e especificidade para o diagnóstico do TEPT a partir de diferentes pontos de corte no RSEPT. Por exemplo, utilizando a Structured Interview for Post Traumatic Stress Disorder (SI-PTSD) (DAVIDSON ET AL., 1989 apud CARLSON, 2001) em um ponto de corte ≥ 5, o RSEPT apresentou sensibilidade = .85 e especificidade = .73. Utilizando um ponto de corte ≥ 3,5, o RSEPT apresentou sensibilidade = .95 e especificidade = .50. Neste estudo, em relação aos pacientes queimados para os quais foi possível avaliar com o RSEPT (n = 24), utilizando um ponto de corte ≥ 3,5 verificou-se a presença de sintomas compatíveis com o diagnóstico de TEPT em 47,8% da amostra. O emprego do ponto de corte ≥ 5,0 resultou na detecção de sintomas compatíveis com o diagnóstico de TEPT em 21,7% da amostra (n = 5). Quando este subgrupo de cinco pacientes foi comparado àqueles dezenove restantes, observou-se que os pacientes com provável diagnóstico de TEPT apresentavam queimaduras com graus mais profundos, mais sintomas de depressão e mais sintomas de ansiedade, ainda que menor extensão da área de superfície corporal total queimada.
DISCUSSÃO
Os pacientes investigados sofreram, em média, queimaduras em 21,52% da extensão da área de superfície corporal total. Há evidências, na literatura revisada, de que aproximadamente 25% dos pacientes vítimas de queimaduras severas (média de 35% de extensão da área de superfície corporal total queimada) – e que requerem hospitalização – desenvolvem transtornos mentais em longo prazo (GILBOA, 2001; WIECHMAN ET AL., 2001; WILLEBRAND ET AL., 2004; WILLEBRAND ET AL., 2006). Entre os transtornos mentais, optamos por investigar sintomas de estresse pós-traumático, ansiedade e depressão.
Em relação à sintomatologia de estresse pós-traumático, verificou-se um escore médio no RSEPT de 57,8 pontos, sugerindo sintomas pós-traumáticos relevantes. Entre os agrupamentos de sintomas, aquele de excitabilidade aumentada foi o mais evidente. Já a prevalência do TEPT, neste estudo, foi de 47,8%, quando utilizado um ponto de corte ≥ 3,5. Estes resultados sugerem que a queimadura induz a uma série de alterações psicológicas pós-traumáticas, o que é consistente com estudos prévios. Tem sido sugerido na literatura que a prevalência de TEPT em vítimas de queimaduras varia entre 8 a 35% (EL HAMAOUI ET AL., 2002; LAWRENCE; FAUERBACK, 2003; YU; DIMSDALE, 1999). Quando foi empregado um ponto de corte ≥ 5,0 (associado à maior especificidade diagnóstica), verificou-se a presença de sintomas compatíveis com o diagnóstico de TEPT em 21,7% da amostra. Este resultado sugere uma prevalência do TEPT similar àquela identificada na literatura internacional. Por exemplo, Roca et al. (1992) relataram que 22% dos pacientes com queimaduras apresentaram TEPT, enquanto Patterson (1990) encontrou 29% de TEPT em uma amostra com vítimas de queimaduras.
Patterson et al. (1993) acompanharam 54 pacientes queimados admitidos consecutivamente para sintomas de TEPT, em que 63% dos pacientes relataram memórias intrusivas e recorrentes sobre o evento da queimadura, mas somente 30% preencheram todos os critérios para o diagnóstico de TEPT. Em nosso estudo, 47,8% dos participantes assinalaram recordações aflitivas, recorrentes e intrusivas (de forma significativa), 21,7% relataram ter sonhos aflitivos e recorrentes, e 34,8% relataram sofrimento psicológico intenso e reatividade fisiológica quando da exposição a indícios internos ou externos associados ao evento traumático.
Foram identificados sintomas de ansiedade moderados a graves em 25% dos participantes avaliados e sintomas de depressão moderados a graves em 30% dos participantes. Estudos anteriores revelam que a depressão moderada ocorre em 23% a 61% dos pacientes queimados (FRANULIC; GONZÁLEZ, 2000; LONCAR ET AL., 2006), enquanto a depressão severa ocorre em 19% a 30% (WIECHMAN ET AL., 2001; CHOINIÈRE ET AL., 1989).
Entre os pacientes, não foram verificadas associações estatisticamente significativas entre as variáveis de queimadura (extensão e grau) e as variáveis de sintomas, à exceção da associação entre a extensão da queimadura e o IBA. Uma análise do padrão de correlação entre os dados sugere alguns aspectos interessantes, descritos a seguir como tendências. Primeiro, há relativa independência entre o grau e a extensão de uma queimadura; por exemplo, uma queimadura pode ser extensa (ou seja, grande superfície corporal) sem ser, necessariamente, profunda (ou seja, atingir somente a epiderme). Segundo, sintomas de TEPT e depressão estão mais associados ao grau da queimadura do que à extensão – o que poderia ser explicado pela possível presença de queimaduras com mais sintomas de dor e cicatrizes. Os sintomas de ansiedade, por outro lado, estão associados com a extensão, mas não com o grau da queimadura. Em estudo anterior, Gilboa (2001) verificou, da mesma forma, que a sintomatologia ansiosa está associada ao tamanho da queimadura e ao tempo decorrido desde a queimadura. Esses resultados são tratados como tendências, pois as limitações do estudo atual (tamanho reduzido da amostra e breve período de avaliação) não permitem conclusões mais definitivas. Assim, fica clara a necessidade de estudos adicionais, com delineamento longitudinal e amostras mais representativas.
Os sintomas de estresse pós-traumático mostraram-se positivamente correlacionados com os escores do IBA e do IBD. A ansiedade e a depressão são descritas como os dois distúrbios psicológicos mais comuns após acidentes com queimaduras. Estes sintomas comumente ocorrem juntos, com índices de prevalência entre 25% a 65% em um ano ou mais após a queimadura (ALTIER ET AL., 2002; FRANULIC; GONZÁLEZ, 2000; GILBOA, 2001; KILDAL ET AL., 2004). Alguns relatos indicam que os sintomas diminuem com o tempo, especialmente um ano após a queimadura (FRANULIC; GONZÁLEZ, 2000; VAN LOEY; VAN SON, 2003; YANAGAWA ET AL., 2005). Uma exceção foi apresentada por Ward et al. (1987), que observaram aumento com o tempo na depressão clinicamente significativa. Entretanto, estes autores também relataram que a psicopatologia pré-mórbida foi o melhor indicador de depressão pós-queimadura, sugerindo que para muitos pacientes a depressão pós-queimadura poderia ser resultante de uma condição pré-mórbida e crônica do que propriamente uma sequela da queimadura. A relação entre características físicas da queimadura e ansiedade e depressão não foi clara. Um estudo encontrou que a ansiedade e a depressão aumentavam quando havia lesão de mãos e face (CHANG; HERZOG, 1976), enquanto dois outros (EL HAMAOUI, 2002; FRANULIC; GONZÁLEZ, 2000; YU; DIMSDALE, 1999) não encontraram nenhuma relação entre ansiedade ou depressão com a extensão da área de superfície corporal total queimada e presença de cicatrizes. Estas diferenças apontadas pela literatura talvez sejam explicadas pela falta de padronização nos instrumentos utilizados para a avaliação dos pacientes e grande variabilidade nos delineamentos de pesquisa empregados, dificultando a comparação dos resultados entre os diferentes estudos.
Por meio deste levantamento, foi possível concluir que os pacientes vítimas de queimaduras, internados no HPS de Porto Alegre (RS), apresentaram prevalência elevada de estresse pós-traumático, ansiedade e depressão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O TEPT é uma entidade clínica frequentemente negligenciada e mal diagnosticada pelas equipes de atenção primária à saúde. Uma melhora na qualidade de vida dos pacientes vítimas de queimaduras está ainda na dependência de um diagnóstico precoce e de intervenções terapêuticas específicas para este transtorno, visto que, mesmo na presença de cuidados psicológicos e/ou psiquiátricos, a prevalência de sintomatologia pós-traumática foi elevada entre os pacientes estudados.
Atualmente, os estudos sobre transtornos de ansiedade em pacientes vítimas de queimaduras estão mais elaborados metodologicamente. Os estudos têm usado amostras mais significativas, representativas, pacientes admitidos consecutivamente, critérios diagnósticos padronizados e testagens repetidas. As limitações do presente estudo referem-se, principalmente, ao tamanho reduzido da amostra, à dificuldade na captação de sujeitos e à perda de dados devido ao mau preenchimento do IBD por vinte pacientes da amostra. Ainda assim, a prevalência da sintomatologia pós-traumática, ansiosa e depressiva sugere que o sofrimento psicológico entre os pacientes estudados é intenso. Investigações futuras são necessárias para esclarecer os fatores de risco para TEPT, permitindo assim intervenções mais precoces e eficazes. Estudos longitudinais também podem auxiliar na definição do curso do TEPT.
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Endereço para correspondência
Leticia Galery Medeiros
E-mail:legalery@yahoo.com
Christian Haag Kristensen
E-mail:christian.kristensen@pucrs.br
Rosa Maria Martins de Almeida
E-mail:rosa_almeida@yahoo.com
Submetido em: 19/11/2008
Revisto em: 29/10/2009
Aceito em: 30/10/2009
1No original, Screen for Posttraumatic Stress Symptoms (SPTSS).