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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.63 no.1 Rio de Janeiro  2011

 

ARTIGOS

 

A experiência estética sob um olhar fenomenológico1

 

The esthetic experience from a phenomenological point of view

 

La experiencia estética desde una perspectiva fenomenológica

 

 

Alice Casanova Reis

Doutoranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e do Trabalho. Universidade de São Paulo (USP). São Paulo. São Paulo. Brasil. alicecasanova@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo enfoca a experiência estética como um fenômeno centrado na percepção sensível. O trabalho desenvolve-se por meio de uma pesquisa em psicologia social baseada na fenomenologia, sobretudo nas vertentes de Merleau-Ponty e Dufrenne. A experiência estética é concebida como um modo de relação mediado pela percepção sensível de um objeto estético. São analisados diversos aspectos envolvidos na experiência estética: sua dimensão sensível e relacional; de que modo se constituem nessa experiência o sujeito e o objeto estético; a corporeidade da experiência estética; a questão da intencionalidade na estética; a experiência estética da Natureza. Conclui-se que há uma significação ontológica na experiência estética, pois ela se configura como abertura ao diferente a partir do contato com a alteridade, promovendo no sujeito um novo olhar sobre a realidade. Pontua-se ao final a relevância dessa experiência para a Psicologia Social.

Palavras-chave: Experiência estética; Percepção; Alteridade; Psicologia social; Fenomenologia.


ABSTRACT

This article focuses on the aesthetic experience as an experience based on the perception of the senses. The work is developed through a social psychology study based on phenomenology, particularly from Merleau-Ponty and Dufrenne points of view. The aesthetic experience is conceived as a mode of relationship mediated by the perception of an aesthetic object. Several aspects involved in aesthetic experience are analysed: sensitive and relational dimension; how the subject and the (aesthetic) object relate in the experience; the embodiment of the aesthetic experience; the question of intentionality in aesthetics; the aesthetic experience of Nature. We conclude that there is an ontological significance in the aesthetic experience as it takes shape as an opening to the new by contact with the otherness, thus promoting in the subject a new outlook on reality. At the end, the relevancy of this study to Social Psychology is pointed out.

Keywords: Aesthetic Experience; Perception; Otherness; Social psychology; Phenomenology.


RESUMEN

Este artículo describe la experiencia estética como un fenómeno centrado en la percepción sensorial. El trabajo se desarrolla a partir de una investigación de la psicología social basado en la fenomenología, sobre todo en los planteamientos de Merleau-Ponty y Dufrenne. Concibe la experiencia estética como un modo de relación mediada por la percepción sensorial de un objeto estético. Se analizan diversos aspectos de la experiencia estética: la dimensión relacional y sensible; ¿cómo se constituye el sujeto y el objeto estético; la dimensión corporal de la experiencia estética; la intencionalidad en la estética; la experiencia estética de la naturaleza. Llegamos a la conclusión de que hay un significado ontológico de la experiencia estética, ya que proporciona una apertura a la diferencia por el contacto con la alteridad, y una nueva mirada a la realidad. Se destaca al final la relevancia de esta experiencia a la Psicología Social.

Palavras-clave: La experiencia estética, La percepción, La alteridad, La psicología social, La fenomenología.


 

 

Estética: uma entrada no sensível

Ao falar em estética, comumente nos remetemos ao campo da arte. No entanto, estética é algo mais amplo: o termo vem do grego aesthesis = sensível; portanto, comporta uma série de fenômenos ligados à dimensão da sensibilidade. Este artigo tem como objetivo refletir sobre a experiência estética como um fenômeno centrado na percepção sensível. O trabalho desenvolve-se por meio de uma pesquisa em Psicologia Social, baseada na fenomenologia e tendo como principais fontes Merleau-Ponty (1969, 2004, 2005, 2006) e Dufrenne (1953a, 1953b, 1967a, 1967b, 2008).

Nessa perspectiva, a experiência estética se configura a partir da percepção sensível envolvida na criação ou na contemplação de um objeto estético. Trata-se de uma relação ao mesmo tempo social e individual entre um sujeito e um objeto, pois na percepção estética estão envolvidos tanto significados socialmente compartilhados quanto sentidos que remetem à singularidade do sujeito dessa experiência. O objeto estético não é necessariamente uma obra de arte; pode ser também um objeto que não foi produzido originalmente com uma finalidade estética2. Além disso, também a natureza por vezes nos brinda com seu espetáculo natural, podendo ser convertida em objeto estético pelo olhar humano (Dufrenne, 2008).

A Estética, como campo do saber, foi originalmente definida a partir de Platão como filosofia do belo. “Formulada como disciplina no século XVIII por Baumgarten, a Estética baseava-se na ideia de que a Beleza e seu reflexo nas Artes representavam um tipo de conhecimento sensível” (Frayze-Pereira, 2006, p. 31). Essa delimitação exclui da reflexão estética outras categorias, como: o feio, o trágico, o sublime, o cômico, o grotesco, etc. (Sánchez-Vázquez, 1999). Como filosofia da arte, a Estética só reconhece como seu objeto de estudo as expressões artísticas socialmente reconhecidas como tais; contudo, a arte, embora seja o campo em que o estético mais comumente se apresenta, não é única.

A própria definição do que seja arte já é em si problemática, pois, mesmo entre estetas, historiadores da arte, críticos e os próprios artistas não há um consenso a esse respeito. O que é arte? Uma pergunta cuja resposta varia conforme o tempo e o lugar considerados, mostrando-nos que “arte é tudo aquilo a que os homens na história chamaram e chamam arte” (Formaggio, 1981, p.9). Somente com o reconhecimento social pelo público e por instâncias institucionais (galerias de arte, museus, exposições) é que um objeto é legitimado como obra de arte. Entretanto, os estudos da Estética Fenomenológica, nos quais me baseio neste trabalho, abordam os diversos fenômenos envolvidos na experiência estética, seja ela uma experiência com ou sem objetos de arte. Refletir sobre essa experiência interessa à Psicologia Social, porque esta, como veremos ao longo da discussão, proporciona aos sujeitos uma nova forma de olhar o mundo, através do contato com a alteridade, mediado pela sensibilidade, imaginação e criatividade.

Embora Merleau-Ponty não tenha nos deixado uma teoria estética propriamente dita, é inegável o contributo estético presente na sua obra. Para Frayze-Pereira (2004):

...o pensamento de Merleau-Ponty é estético de ponta a ponta pelo menos em três sentidos principais: 1) porque se funda sobre uma análise da percepção como fenômeno central de inserção do homem no mundo; 2) porque faz do sensível o estrato original ao qual se remetem todos os outros ontologicamente possíveis e 3) porque a arte e suas implicações desempenham um papel paradigmático em toda a reflexão do filósofo (p. 21).

O pensamento de Merleau-Ponty é estético especialmente no que tange à sua filosofia da expressão. É atentando para isso que Câmara (2005) espreita na obra do filósofo a presença de uma estética da expressão, que é uma chave para a compreensão da arte moderna:

Contra as clássicas estéticas da representação (...) procura Merleau-Ponty, ao longo dos escritos da década de 50, em vista à elaboração da sua teoria da expressão, fundar o que poderíamos igualmente chamar, por oposição à designação anterior, uma estética da expressão. Esta faria jus, verdadeiramente, à natureza da arte, na sua capacidade criadora, na diferença que ela introduz no seio do mundo (CÂMARA, 2005, p. 43-44, grifo do autor).

Nas estéticas da representação, a arte é a reprodução das formas sensíveis, ou seja, um simulacro da realidade. Esse conceito, que remonta à arte como mimesis da antiguidade clássica, encontrou seu apogeu no Renascimento, quando, a partir da técnica da perspectiva, logrou-se uma imitação cada vez mais “fiel” da realidade, coroando-se uma arte objetiva. Contudo, a crença em que a arte traduz uma verdade dada nas coisas é apenas uma faceta do pensamento clássico como representação. Adverte-nos Câmara (2005) de que a arte, segundo Merleau-Ponty, não representa o mundo, não é cópia do real, mas o expressa de modo criativo:

Ainda que diga que é a arte clássica mais “objetiva” do que a arte moderna, visto precisamente o peso nela da representação das formas da natureza, acentua o filósofo que a arte, toda a arte, jamais é objetiva – porque é expressão, porque é a expressão transfiguradora dos dados da percepção, porque já esta impõe ao real a coerência dum, não só lícito, mas necessário poder de “deformação”, metamorfoseando-o (p. 48-49).

Lembremos que para Merleau-Ponty a arte, assim como outros fenômenos expressivos, nasce da percepção sensível do mundo, que não reconhece um sentido dado no objeto (empirismo), nem o busca nos confins do sujeito (intelectualismo), mas instaura um sentido a partir da relação entre ambos. Na experiência estética, esse sentido é metamorfoseado em um “ser inteiramente novo e irrepetível” (Frayze-Pereira, 2006, p. 43): o objeto estético. Liberta da demanda do decalque do real, a arte ainda assim não é ilusão, mas nos apresenta uma certa verdade:

A pintura moderna, como em geral o pensamento moderno, obriga-nos absolutamente a compreender o que seja uma verdade que se não assemelhe às coisas, que prescinda de modelo exterior, de instrumentos de expressão predeterminados, mas que seja, mesmo assim, uma verdade (MERLEAU-PONTY, 1969, p. 92-93).

No interior da fenomenologia, são muitos os que se dedicaram à reflexão estética, permitindo-nos considerar inclusive a existência de uma escola estético-fenomenológica, cujo principal representante seria Dufrenne, segundo reivindica Henriques (2008). Se em Merleau-Ponty vislumbramos um pensamento estético disperso em sua obra, em Dufrenne (1953a, 1953b, 2008) a estética é o leitmotiv central de sua filosofia. A contribuição maior de Dufrenne é a construção de uma fenomenologia da experiência estética de ordem geral, ou seja, que não se ocupa “de uma ou outra forma de experiência suscitada por algum tipo especial de manifestação artística” (Henriques, 2008, p. 15). A experiência estética é primeiramente uma experiência sensível. Vejamos agora em detalhes esse conceito.

 

A experiência estética

A experiência estética é, essencialmente, uma experiência perceptiva. Ela designa uma relação sensível do sujeito ante um objeto visado como obra: “Ninguém põe em dúvida que a experiência estética diga respeito primariamente à sensibilidade... Nós nos confiamos sempre ao veredicto da sensibilidade: o criador para julgar a obra acabada; o espectador para julgá-la bela” (Dufrenne, 2008, p. 90).

Aqui, Dufrenne resvala para a estética como filosofa do belo, tocando no ponto nevrálgico da estética kantiana: o juízo de valor estético. No entanto, se o faz não é para filiar-se a Kant, para quem o belo é símbolo do bem, mas para dele se diferenciar: o belo para Dufrenne não é uma ideia moral, mas é uma qualidade presente em certos objetos e que evoca a plenitude experimentada na percepção desses. Plenitude que é própria de sua forma expressiva, na qual observamos “a adequação total do sensível e do sentido” (Dufrenne, 2008, p. 51). Uma vez mais: perceber “não é julgar, é apreender um sentido imanente ao sensível antes de qualquer juízo” (Merleau-Ponty, 2006, p. 63). Essa afirmação encontra seu apogeu na experiência estética, porque “indubiamente a obra de arte existe para alguém, mas ela só espera ser reconhecida – apreciada, se quisermos – mas não julgada; a obra de arte espera a percepção que lhe faça justiça” (Dufrenne, 2008, p. 51).

Porque envolve necessariamente a percepção, a experiência estética depende de minha participação no objeto para acontecer: “É a experiência da realidade de um objeto que exige que nele eu esteja presente para ser” (Dufrenne, 2008, p. 91). O que possibilita essa “estada no objeto” é justamente a percepção estética, que é diferente da percepção cotidiana. A percepção estética não visa ao objeto segundo a sua finalidade prática ou utilitária, mas implica a abertura e entrega do sujeito a um mundo sensível que o convida não a decifrá-lo, mas a senti-lo. Na percepção estética, o sujeito não visa ao telos (o conceito que define o objeto para o pensamento), mas ao eidos (aquilo que se vê, aparência, forma):

...são suspensos quaisquer interesses práticos ou intelectuais; mais precisamente: o único mundo que ainda está presente no sujeito é, não o mundo em torno do objeto ou atrás da aparência mas... o mundo do objeto estético, imanente à aparência enquanto ela é expressiva (DUFRENNE, 2008, p. 81, grifo do autor).

A experiência estética, portanto, desenvolve-se através da percepção de um sentido imanente ao sensível, acessível não pelo discurso em um trabalho do pensamento, mas experimentado no nível mesmo da sensibilidade. Mas em que essa percepção se diferenciaria então da percepção normal, concebida por Merleau-Ponty (2006) nos mesmos termos? A especificidade da percepção estética, segundo Dufrenne (2008), está em que ela subentende uma participação ainda mais ativa por parte do percebedor, de quem o objeto estético necessita impreterivelmente para aparecer, uma vez que “esse objeto só existe por nós e para nós” (p. 82).

De certa forma, o objeto estético só se completa como tal a partir do olhar humano que lhe faz justiça. Além disso, a percepção estética é uma percepção criativa, porque é mediada pela imaginação. A imaginação tem o poder de unificar o sensível em um sentido novo, fazendo jus à singularidade do objeto estético, que, ademais, exprime ele mesmo um mundo imaginário, sempre pressentido como um possível:

...só a imaginação, para me grudar ao percebido, pode separar o objeto de seu contexto natural e ligá-lo a um horizonte interior, pode expandi-lo num mundo ao mobilizar, em mim, todas as profundezas onde ele possa ressoar e encontrar um eco. A imaginação... reúne as potências do eu para que se forme uma imagem singular. Ela tem o poder de unir, mas para fazer surgir a diferença e não para atenuá-la (DUFRENNE, 2008, p. 96).

Na experiência estética, a percepção é mediada por uma sensibilidade imaginativa, que conduz o sujeito a adentrar mundos possíveis, cuja presença se revela ao sentimento. Essa experiência “nos abre para aquilo que não somos” (Merleau-Ponty, 2005, p. 156), colocando-nos em contato com a alteridade e com o novo, o inédito, o único, que “exige de nós criação para dele termos experiência” (Merleau-Ponty, 2005, p. 187). Desse modo, é uma experiência que proporciona aos sujeitos expandir seu olhar diante da realidade, transcendendo os esquemas perceptivos que condicionam nosso olhar cotidiano, quase sempre mediado por preconceitos e crenças limitadoras. A arte muitas vezes propõe questões para o espectador e o desafia a olhar determinada coisa por outros ângulos, mobilizando nele a potência criativa que iniciada no olhar pode ser estendida para o plano das atitudes, pensamentos e ações. Essa abertura à diferença, ao novo, é essencial para que os sujeitos reconheçam a possibilidade de mudança, e qualquer transformação social começa por uma mudança de perspectiva, um esforço individual e coletivo para enxergar possibilidades mais satisfatórias de construir nossas próprias vidas, nossas relações sociais, nosso trabalho, nosso presente e nosso futuro.

Na experiência estética o sujeito está implicado através da percepção em uma posição ativa perante o objeto estético. O sujeito pode ser tanto o autor da obra quanto o seu espectador, e uma análise fenomenológica completa da experiência estética deveria seguir ambas as direções: investigar o fenômeno da criação e o da recepção estética. Entre os fenomenólogos, há uma prevalência da segunda linha de pesquisa, surgindo vários estudos ligados à teoria literária a partir do final da década de 1960, primeiro na Alemanha e depois nos Estados Unidos. Tais estudos foram englobados pela tradição com a denominação de Estética da Recepção (Jauss, 1979a, 1979b; Warning, 1989; Iser, 1989) e, de um modo geral, defendem a soberania do leitor na recepção do texto literário, por vezes erroneamente compreendida como uma experiência passiva:

A experiência estética não se inicia pela compreensão e interpretação do significado de uma obra; menos ainda, pela reconstrução da intenção do seu autor. A experiência primária de uma obra de arte realiza-se na sintonia com (Einstellung auf) seu efeito estético, isto é, na compreensão fruidora e na fruição compreensiva (JAUSS, 1979a, p. 46).

Mas o que seria essa sintonia? É justamente o encontro sensível com o objeto estético, no qual o sujeito lhe empresta seus olhos para consagrar o enigma da visibilidade que o espreita de dentro da obra. Dufrenne (2008) analisa essa experiência como um pacto, um acordo tácito por meio do qual o sujeito se coloca “à disposição do objeto para reanimar a significação que nele está implícita”, conhecendo-o “como o homem conhece a mulher, na intimidade de um ato comum onde se experimentam as fronteiras da individualidade” (p. 87). A comparação da experiência estética com a experiência amorosa, que aparece novamente em outras passagens do autor, põe em relevo a necessária incursão do sujeito no objeto estético, assim como o prazer que advém dessa relação, pois, tanto quanto Jauss (1979a), Dufrenne (2008) também analisa a experiência estética como fruição. Dessa forma, conhecer um objeto estético é, mais do que ter com ele, ser com ele: “o amor estético é um amor feliz. Julgar que a obra é bela é, simplesmente, manifestar o prazer, experimentar a plenitude, a perfeição do acordo: sentir de preferência a pensar” (Dufrenne, 2008, p. 90).

A fenomenologia da experiência estética de Dufrenne, embora não se inclua entre os estudos clássicos da Estética da Recepção, utiliza em suas análises o mesmo recorte metodológico, privilegiando a experiência do espectador. Isso se justifica, porque para o autor é por meio da atividade do espectador que se efetua a passagem da obra de arte ao objeto estético e, ademais, mesmo o criador se converte em seu espectador durante e após sua produção, a fim de julgar-lhe como obra acabada. Mas o que afinal vem a ser um objeto estético?

 

Objeto estético: um quase-sujeito

Objeto estético não é sinônimo de obra de arte, é aquilo que advém na relação que um sujeito estabelece com um objeto artístico ou não, ou com um objeto natural. Henriques (2008) lembra a definição dufrenniana de objeto estético como “o correlato específico da experiência estética do espectador” (p. 57), pois é por seu olhar estético que esse objeto se constitui. Dufrenne (2008) diferencia o objeto estético entre aquele criado pelo homem, designado por ele como um “quase-sujeito”, (p. 84) e o objeto estético oferecido pela Natureza. Vejamos cada um deles.

No caso do objeto estético natural, “é o próprio mundo como real que é espetáculo: presente e não representado” (Dufrenne, 2008, p. 62). O que o define primeiramente é a improvisação: não é um objeto fabricado para o fim de ser contemplado como arte. Há uma espontaneidade no objeto natural, pois ele “exalta os aspectos sensíveis do mundo, cuja imprevisibilidade e prodigalidade são então virtudes dominantes, sem que se seja tentado a procurar nele o rigor de uma organização premeditada” (p. 62).

Mas qualquer coisa na natureza pode ser um objeto estético? Para Dufrenne não, pois há objetos naturais que não são estetizáveis. Por exemplo: o insignificante, que nos deixa indiferentes, o pequeno, ou seja, algo que não é grandioso, e o plano, ou seja, o que não é profundo. “A natureza torna-se objeto estético quando, humanizada ou não, é ao mesmo tempo expressiva e natural” (Dufrenne, 2008, p. 71). Assim, vemos que a expressividade é uma qualidade do objeto estético natural, que se apresenta sempre de modo autêntico. E em que consistiria essa expressão? “A verdadeira expressão brota das profundezas do objeto quando essas profundezas ascendem à superfície e se expõem, todas, no sensível, para despertar no espectador o sentimento singular de uma qualidade afetiva que pode ser enquadrada numa categoria afetiva” (Dufrenne, 2008, p. 73).

É a expressão de um valor afetivo, que no caso da natureza geralmente é englobado na categoria estética do sublime. Dufrenne cita como exemplo uma tempestade violenta, que não pode ser considerada trágica em sua expressão, embora o possa em seus efeitos. Voltaremos ao objeto estético natural quando nos aprofundarmos na experiência estética da natureza.

No caso do objeto estético criado pelo homem, nele se imprime e exprime a subjetividade do criador, que na matéria transformada por seu trabalho criativo deixa sua marca: a obra reflete o estilo do seu autor. No entanto, como adverte Merleau-Ponty (2004), a obra não é gestada nos recôncavos da subjetividade, mas no encontro do artista com o mundo, que ele transmuta por sua arte em um outro mundo: o mundo de Cézanne, por exemplo, é como reunimos o conjunto da obra desse pintor moderno, a quem frequentemente se referia o filósofo em suas análises. Transpondo a reflexão para o campo da psicologia social, dizemos que na obra objetiva-se a subjetividade de seu criador (Zanella et al., 2005), tanto que muitas vezes ela é tomada pelo nome de quem lhe assina: ao vermos um quadro o identificamos por seu autor e dizemos “este é um Cézanne”. A obra revela o artista e só isso já bastaria para definir o objeto estético como um quase-sujeito.

 

 

Para Dufrenne (2008), há um reenvio constante entre a objetividade da obra e a subjetividade do artista: “quando o artista se verifica artista e se põe a criar, é a si mesmo que ele descobre no seu fazer: uma visão singular que se certifica de si mesma num estilo singular” (p. 135). O objeto estético encarna a visão de mundo de seu criador: “o pintor, qualquer que seja, enquanto pinta, pratica uma teoria mágica da visão” (Merleau-Ponty, 2004, p. 20). Contudo, tendo o devido cuidado para não cair no psicologismo que reduz o fenômeno estético à atividade psicológica do artista, a visão de que fala Merleau-Ponty não é aquela que projeta sobre o mundo a ideia que dele faz um sujeito; é uma visão das coisas no avesso do corpo, de onde o sentido emerge para transformar-se em gesto nas pinceladas do pintor, em traços, em cores e em formas sobre a tela, até finalmente se reconverter em um ser expressivo para o espectador. O pintor imprime no quadro essa relação paradoxal com o visível, na qual, ao olhar as coisas, sente que são as coisas que o olham, como descreve o pintor André Marchand:

Numa floresta, várias vezes senti que não era eu que olhava a floresta. Certos dias, senti que eram as árvores que me olhavam, que me falavam... Eu estava ali, escutando... Penso que o pintor deve ser traspassado pelo universo e não querer traspassá-lo... Espero estar interiormente submerso, sepultado. Pinto talvez para surgir (André Marchand, citado por MERLEAU-PONTY, 2004, p. 22).

O enigma da visibilidade celebrado pelo pintor é, por sua vez, retomado pelo espectador na contemplação estética da obra. Assim, “a experiência estética revela que há em toda experiência um amálgama de objetividade e de subjetividade. A obra de arte permanece como irredutível referência objetiva, mas liga-se duplamente à subjetividade” (Henriques, 2008, p. 72), porque solicita a subjetividade do artista para sua criação, assim como a subjetividade do espectador para sua recepção estética. O objeto estético fala, por meio dele o artista comunica algo; logo, ele é um quase-sujeito, mas só fala para alguém e sua voz ecoa no corpo do ouvinte:

É pelo corpo que há uma unidade do objeto estético, e particularmente das obras compósitas como a ópera ou o ballet, que fazem apelo a diversos sentidos ao mesmo tempo... a unidade de sua expressão não poderá ser compreendida senão sob a condição de que a diversidade do sensível esteja primeiramente unida num sensorium commune: o corpo é o sistema sempre já estabelecido de equivalências e transposições intersensoriais, é por ele que há uma unidade dada antes que a diversidade (Dufrenne, 1967b, p. 426).

É interessante o exemplo citado por Dufrenne, pois lança-nos uma luz na análise do fenômeno estético concernente às artes cênicas e, sobretudo, à dança, que solicita múltiplos sentidos do espectador: quando assisto a uma dança, sou enlaçado pela visão de suas imagens vivas; pela audição da música que o dançarino segue, sou mobilizado por seus movimentos, que por um milagre da cinestesia reverberam quase imperceptivelmente em meu corpo3, de modo que nessa experiência o corpo é levado a uma apoteose do sensível e se torna capaz, por incríveis transposições intersensoriais, de “ver a música e escutar a dança”.

No caso específico da dança, talvez mais do que em qualquer outra expressão criativa, o objeto estético objetiva uma subjetividade, porque a dança não se apresenta como um produto estético, mas como um processo em que um sujeito se esteticiza. A dança é um caso exemplar da potência expressiva do corpo e é uma forma de comunicação não-verbal na qual o sentido emerge da intercorporeidade, ponto enfocado por Merleu-Ponty (2006) ao explicar a comunicação gestual:

O sentido dos gestos não é dado mas compreendido, quer dizer, retomado por um ato do espectador. Toda dificuldade é conceber bem este ato e não confundi-lo com uma operação do conhecimento. Obtém-se a comunicação ou a compreensão dos gestos pela reciprocidade entre minhas intenções e os gestos do outro, entre meus gestos e as atitudes legíveis na conduta do outro. Tudo se passa como se a intenção do outro habitasse meu corpo ou como se minhas intenções habitassem o seu (p. 251).

Por essa sua capacidade expressiva, o corpo pode ser comparado à obra de arte. Para o autor, o conceito de intercorporeidade enfatiza a dimensão corporal por onde transitam os afetos e sentidos no processo de comunicação interpessoal, trazendo a intersubjetividade para um plano concreto. Essa noção remete à imbricação entre eu e o outro, na qual se forma um núcleo de significações vividas, em um processo no qual “meu corpo pode comportar segmentos tomados do corpo dos outros assim como minha substância passa para eles, o homem é espelho para o homem” (Merleau-Ponty, 2004, p. 23). A intercorporeidade pode ser compreendida como uma zona de intersecção entre eu e o outro, uma indivisão que, entretanto, não significa indiferenciação, mas comunhão de sentidos (Coelho Júnior, 2003).

 

O corpo como obra de arte

Há no corpo um aspecto simbólico. Seja na pintura, escultura, dança, seja no cotidiano, o corpo nos fala por meio de seus gestos, movimentos, suas vestes, muitas vezes expressando significados socialmente instituídos, às vezes transgredindo-os e engendrando novos sentidos em outras formas de objetivação e subjetivação. Para Merleau-Ponty (2004, 2005, 2006), a linguagem expressiva do corpo o aproxima da arte. Com isso, suas reflexões adentram no campo da estética, tomando como exemplo principalmente a pintura. Como explica o autor, a pintura é uma técnica de corpo: os traçados da mão transubstanciam para a tela um certo impacto do mundo sobre o pintor. Contudo, não somente a pintura, mas “toda arte é corporal porque o artista se encontra corporalmente situado no mundo” (Andriolo, 2005, p. 45) e porque é ofertando seu corpo ao mundo que o artista transforma o mundo em arte.

A obra de arte torna visível para o espectador o sentido que emerge para o artista na sua percepção sensível do mundo. E a pintura, talvez mais do que outras expressões artísticas, “jamais celebra outro enigma senão o da visibilidade” (Merleau-Ponty, 2004, p. 20). A obra de arte faz ver por si mesma, pois nela o que se quer exprimir é indissociável de seu meio de expressão, e é justamente nesse aspecto que Merleau-Ponty compara o corpo à obra de arte:

Um romance, um poema, um quadro, uma peça musical são indivíduos, quer dizer, seres em que não se pode distinguir a expressão do expresso, cujo sentido só é acessível por contato direto, e que irradiam sua significação sem abandonar seu lugar temporal e espacial. É nesse sentido que nosso corpo é comparável à obra de arte. Ele é um nó de significações vivas e não a lei de um certo número de termos co-variantes (Merleau-Ponty, 2006, p. 209).

Embora o filósofo não tenha feito referência à dança, talvez nela fique ainda mais clara a similaridade do corpo à obra de arte, porque a dança “é possibilidade de arte encarnada no corpo” (Dantas, 1999, p. 24). Na dança o artista dispõe do próprio corpo como matéria de criação e o transforma em uma obra efêmera, que se apresenta na medida em que é realizada e cujo sentido cintila no corpo. Ao se expressar por meio da dança, o corpo comunica de modo imediato, porque o espectador reconhece a partir de seu próprio esquema corporal o movimento que vê no corpo do dançarino. Entendo que se trata de uma forma de comunicação por ressonância, uma vez que o espectador, a partir da visão do corpo do dançarino, mobiliza e coloca em questão seu próprio corpo. Mas para o corpo emergir como objeto estético é necessário o olhar intencional do sujeito.

 

Intencionalidade e estética

Uma fenomenologia da experiência estética não poderia deixar de examinar como ali opera o conceito de intencionalidade. Inicialmente, parte-se da constatação de que “o aparecer do objeto é sempre solidário da intenção que visa este objeto” (Dufrenne, 1967a, p. 53). Só há objeto estético para uma consciência, seja ela a do criador, seja a do espectador, mas de qualquer modo é nessa relação que se constitui o sentido estético.

A noção de intencionalidade supera o paradigma dicotômico sujeito-objeto, reafirmando-os, no caso da percepção estética, como os dois termos em uma estreita relação de mútuo reenvio, conforme descreve Dufrenne (2008): “O espectador não é somente a testemunha que consagra a obra, ele é, à sua maneira, o executante que a realiza; o objeto estético tem necessidade do espectador para aparecer” (p. 82). A experiência estética, portanto, é sempre mediada pela intencionalidade, que não introduz um sentido no objeto, mas nele se introduz para captar-lhe o sentido.

A percepção estética é, de fato, a percepção real, aquela que só quer ser percepção... enquanto a percepção ordinária – sempre tentada à intelecção desde que tem acesso à representação – procura uma verdade sobre o objeto, que eventualmente dá um arrimo à práxis, e a procura em torno do objeto, nas relações que o unem aos outros objetos; a percepção estética procura a verdade do objeto, assim como ela é dada imediatamente no sensível (Dufrenne, 2008, p. 80, grifos do autor).

Para acessar a verdade do objeto estético, é preciso que o sujeito nele se perca para se reencontrar de outro modo, enriquecido por aquela experiência. Essa perdição do espectador é descrita por Dufrenne como uma alienação no objeto; porém, aqui se alienar não significa inconsciência, mas vivência da alteridade. Nesse sentido, é belo o exemplo dufrenniano da experiência estética da música:

A música nos ensina isto; no concerto, estou perante a orquestra, mas estou dentro da sinfonia... a sinfonia está em mim para designar esta posse recíproca; mas para evitar todo subjetivismo, é antes de uma alienação do espectador no objeto – diz-se algumas vezes um feitiço – que é necessário falar; a presença do objeto tem qualquer coisa de absoluto, de modo nenhum o absoluto de um cogito transcendental que seria exterior ao jogo mas o absoluto de uma consciência inteiramente aberta e como que possuída pelo que ela projeta: a testemunha não é um espectador puro mas um espectador comprometido – na própria obra (Dufrenne, 1953a, p. 92-93).

A experiência estética comporta uma abertura, ela nos abre para o outro, ela nos convida a adentrar mundos imaginários, seguindo o liame da intencionalidade que ata o sujeito ao objeto estético, ao mesmo tempo em que, tal qual o fio de Ariadne, permite que o sujeito retorne a si, ainda que modificado por essa experiência. A ideia de intencionalidade, segundo analisa Henriques (2008), conduz o pensamento de Dufrenne da fenomenologia à ontologia, pois para ele a experiência estética dá lugar à revelação do Ser:

A intencionalidade significa, no fundo, a intenção do Ser que se revela – a qual não é outra coisa que sua revelação – e suscita o sujeito e o objeto para se revelar. O objeto e o sujeito, que só existem no seio da mediação que os une, são, destarte, condições do advento de um sentido, os instrumentos de um Logos (Dufrenne, 2008, p. 79).

Adentramos o labiríntico terreno da ontologia, e para iluminar esse caminho devemos esclarecer alguns pontos. Logos foi traduzido como conceito filosófico que designava a Razão; no entanto, esse não é o modo com que o concebe Dufrenne. A experiência estética, embora não prescinda da capacidade de racionalização individual, solicita primordialmente a percepção sensível do sujeito perante o objeto. Portanto, se há um Logos envolvido naquela experiência, trata-se de um Logos Estético. Contudo, esse termo tão controverso também nomeia um princípio universal de Ordem e Beleza, e parece que aqui encontramos o sentido em que o utiliza Dufrenne. Para o autor, Logos é o Ser e o Ser é Natureza, que se desdobra em mundo e que se revela na experiência estética como um “fundo originário do qual promanam sujeito e objeto, antes de qualquer polarização, antes de qualquer cisão entre eles, deixando assim entrever que podem, novamente, ser reunidos” (Henriques, 2008, p. 119). O que reúne de novo sujeito e objeto é a intencionalidade; por meio dela a Natureza se faz consciência. A fenomenologia de Dufrenne desemboca, portanto, em uma filosofia da Natureza, por meio da qual o autor esboça a hipótese de uma significação ontológica da experiência estética.

 

A experiência estética da Natureza

Se, por um lado, Dufrenne (2008) faz uma distinção entre o objeto estético fabricado pelo homem e o natural, por outro o autor relativiza essa diferença, esclarecendo que não se trata aqui de uma oposição entre a arte e a natureza, porque a verdadeira arte é natural: “todo objeto estético é, de algum modo, natureza” (p. 71). Assim, a oposição seria antes entre o artificial e o natural, e no segundo caso o objeto estético traz em si a marca da espontaneidade, exprimindo em sua própria conuração a necessidade que o governa: “é a necessidade natural que dá forma ao objeto natural, que compõe sobre o mar cada ‘diamante de imperceptível espuma’, que burila os flancos da montanha” (Dufrenne, 2008, p. 72).

É essa necessidade, que talvez pudéssemos associar ao Logos Estético, que preside a criação dos objetos estéticos, orquestrando a harmonia dos elementos que os compõe, sejam eles uma paisagem, sejam uma obra de arte. A esteticidade de um objeto pressupõe essa necessidade, que exclui do ato criativo toda a gratuidade: “a natureza, se é estética, não faz atos gratuitos, como não os faz o artista, mesmo o bailarino, que não deixa de obedecer à gravidade no momento em que a desafia” (Dufrenne, 2008, p. 71).

 

 

A experiência estética da natureza é mediada pela percepção do belo, compreendido como plenitude e perfeição do sensível e por meio do qual a Natureza nos fala. Mas o que ela nos diz? “A natureza não nos traz somente sua presença, ela nos ensina que estamos presentes nessa presença. A experiência estética que ela suscita nos dá uma lição de estar no mundo” (Dufrenne, 2008, p. 76). Por isso, ao falar de si, a natureza me fala de mim, porque sou parte dela, embora às vezes esqueçamos isso. Assim, a experiência estética da natureza pode trazer uma vivência da totalidade que nos conforta com a sensação de que, apesar do individualismo generalizado, não estamos sós, mas somos parte de um todo maior, onde todos os homens e seres estão interligados, despertando em nós o comprometimento com uma ética do cuidado voltada para a preservação da natureza e da vida em todas as suas formas.

Não é precisamente essa a significação ontológica da experiência estética? Para Dufrenne (193, 2008), a experiência estética nos revela a consubstancialidade entre o homem e a natureza: “nela a Natureza se anuncia como fundo originário” (Henriques, 2008, p. 116). Essa revelação é dada ao homem à medida que ele co-participa, como criador ou espectador do objeto estético, no movimento de criação em que o Ser se expressa como devir. Isso se revela ao sentimento, pois é uma verdade vivida, que só pode ser anunciada em uma linguagem sensível:

Somente uma linguagem outra, a poética – capaz de vencer a rigidez do domínio do logos – poderia dar conta não de dizer o fundo dos fundos, esta espécie de fundamento último do acordo entre homem e natureza, mas de deixar que, por ela, este fundo se diga. Esta a significação ontológica ou a perspectiva metafísica, indicada pela análise da experiência estética (HENRIQUES, 2008, p. 117, grifo do autor).

A experiência estética evidencia a consubstancialidade entre homem e natureza. Nessa experiência, a consciência individual floresce desde o rizoma subterrâneo desse fundo originário no qual, pela conjunção no sensível, pulsamos todos. E para seguir o ritmo cadenciado dessa pulsação, só mesmo a poética: “pelo poeta a Natureza vem à consciência como o outro da consciência... Ser poeta é estar disponível ao que da Natureza vem” (Dufrenne, 1963, p. 226), criando metáforas para dar visibilidade ao invisível.

Toda arte tem sua poética. A poética está na essência da experiência estética como abertura ao ser. Seja pela palavra, por imagens, seja pelo corpo, o artista, como analisa Dufrenne (2008), responde ao apelo da Natureza, exprimindo-a “ao exprimir os mundos dos quais está grávida” (p. 30). Assim, o artista “dá existência visível ao que a visão profana crê invisível” (Merleau-Ponty, 2004, p. 20). É por seu corpo que o artista concretiza o ato criativo. As imagens criadas pela arte brotam a partir do comércio que o corpo empreende com as coisas (Merleau-Ponty, 1960). Sublinha Andriolo (2005) que “o corpo é o suporte e o instrumento privilegiado da experiência estética” (p. 45). A arte, que nasce do trabalho estético realizado por um corpo e vive no olhar contemplativo de um outro corpo, circunscreve um campo de experimentação da corporeidade em todo seu poder expressivo. “Acedemos à experiência artística por via do corpo, mercê da nossa condição de seres encarnados numa existência. ‘Compreender’ a obra artística é abrir-lhe o nosso próprio corpo, reconhecendo-lhe a autoria em um outro corpo” (Câmara, 2005, p. 101).

A experiência estética da Natureza possui, portanto, uma significação ontológica (Dufrenne, 1953a, 1953b, 2008). Entendo que, como abertura ao ser, ela possibilita a co-vivência com a alteridade e promove um acréscimo de ser, vivenciado como transcendência:

...a experiência estética... se situa na origem, naquele ponto em que o homem, confundido inteiramente com as coisas, experimenta sua familiaridade com o mundo; a Natureza se desvenda para ele, e ele pode ler as grandes imagens que ela lhe oferece (Dufrenne, 2008, p. 30-31).

Na experiência estética, a transcendência significa ir além, descobrir outras possibilidades antes não imaginadas e que se revelam à percepção estética, esse olhar pelo qual o sujeito pode redescobrir o mundo não como determinação, mas como criação, ampliando seu horizonte existencial.

 

Considerações Finais

A experiência estética é essencialmente uma experiência perceptiva, na qual o sujeito participa ativamente com sua sensibilidade, seu corpo, seus afetos, sua imaginação e sua criatividade diante de um determinado objeto. O objeto estético, como demonstra Dufrenne (2008), liga-se duplamente à subjetividade: primeiramente a do criador, que nele expressa as impressões de sua própria relação com o mundo, constituindo-o como um quase-sujeito; posteriormente, solicita a subjetividade do espectador que, ao percebê-lo sensivelmente, consagra-o como um objeto estético. Na verdade, é o espectador que opera, via percepção, a conversão de um dado objeto em um objeto estético, seja ele criado pelo homem com ou sem uma finalidade estética, seja ele um objeto natural. O objeto estético, portanto, é o correlato específico da experiência estética do percebedor, cuja relação com este é sempre mediada social e historicamente.

A Psicologia desde os seus primórdios se interessou pela questão da percepção. Como o homem percebe o mundo e a si próprio? Como a percepção determina o modo com que o sujeito compreende seu entorno e, consequentemente, atua sobre ele? Onde situar o sentido: estaria ele dado nos objetos ou neles seria colocado a partir de um processo psíquico interno ao sujeito? O estudo da experiência estética interessa à Psicologia justamente por nos auxiliar a refletir sobre a percepção, abordando esses e outros problemas sob uma nova ótica.

Na experiência estética evidencia-se que a percepção não é uma operação do pensamento, mas envolve primordialmente o corpo e sua relação sensível com o mundo. É pelo corpo que o sujeito está imerso no mundo, percebendo-o através de seus sentidos, seus movimentos, dirigindo sua atenção para determinado objeto e abrindo-se às possibilidades de significação que este lhe propõe. A experiência estética nasce desse encontro sensível entre sujeito e objeto, em que o sentido não está em nenhum dos polos isoladamente, mas na interação estabelecida entre eles via percepção. Assim, essa experiência comporta sempre uma abertura, amplia o horizonte vivencial dos que nela se engajam, encontrando novas sensações e novos sentidos na fruição do objeto visado.

A experiência estética sublinha a capacidade expressiva do corpo, que é comparado à obra de arte, tanto por Dufrenne quanto por Merleau-Ponty. Seja nas expressões artísticas, como a dança e o teatro, nas quais sua função simbólica é mais evidente, seja no cotidiano, através de seus movimentos, gestos e ações, o corpo objetiva a existência que nele se encarna. O corpo não é somente o nosso modo próprio de presença, é também o meio através do qual o mundo se nos torna presente, porque, como demonstra Merleau-Ponty (2006), o corpo é o sujeito da percepção. Assim, a reflexão sobre essa experiência pode auxiliar a Psicologia a compreender melhor a subjetividade em sua corporeidade.

Além disso, a experiência estética nos leva a compreender que o sentido é sempre relacional, ele emerge na intercorporeidade, que ata o sujeito ao objeto através da percepção estética. Não podemos esquecer que um objeto, por ser produzido pelo homem, pauta um modo de comunicação social entre sujeitos. Pois o criador, por meio de sua obra, fala a um espectador, transmite-lhe alguma mensagem que ecoa em seu corpo: o sentido da música não vive nela mesma, mas entra nos ouvidos e reverbera no corpo de quem se abre para escutá-la. Ela comporta sempre uma abertura ao outro. A Psicologia Social há tempos vem mostrando que o eu se constitui na relação com o outro, que a subjetividade deve ser pensada na intersubjetividade das relações sociais. Nesse sentido, a recepção estética nos esclarece sobre nossa natureza social, levando-nos a refletir sobre o papel da percepção nas relações sociais nas quais o sujeito se constitui, interagindo com os outros, percebendo e sendo percebido.

A experiência estética proporciona ao sujeito o contato com a alteridade, com o diferente, com o inesperado, com o novo, engajando o sujeito em uma forma de percepção diferente da cotidiana, uma percepção sensível e criativa. A Psicologia Social se propõe não apenas explicitar que os sujeitos e a sua realidade são socialmente construídos, mas também entender de que modo ambos podem ser reconstruídos a partir de relações mais igualitárias, segundo uma ética em que o outro seja reconhecido como legitimamente outro, onde todos possam ter uma vida digna e atingir um equilíbrio biopsicossocial. Mas toda mudança começa por uma nova visão diante da realidade e a experiência estética pode ajudar a desenvolver nos sujeitos um novo olhar, aberto ao outro, que se sensibiliza para o diferente, que vislumbra novos sentidos, que redescobre o mundo. Se a tarefa da Psicologia Social, segundo Lane (2006), é contribuir no movimento de transcendência do homem perante uma dada realidade, contribuindo, consequentemente, para que ele se torne agente da história e capaz de transformar a sociedade em que vive, talvez possamos encontrar na experiência estética um caminho alternativo nessa direção, um caminho que implica os sujeitos em perceber possibilidades outras de ver e viver, comprometidos com uma estética da existência que reconhece a realidade não como um dado definitivo, mas como um movimento de criação constante em que todos podem participar.

 

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Submetido em: 24/07/2010
Revisto em: 12/04/2011
Aceito em: 26/04/2011

 

 

1 Este texto refere-se à pesquisa de tese de doutorado da autora, em andamento, intitulada "Há experiência estética na Biodança? Um estudo fenomenológico sobre a experiência do corpo em um grupo de Biodança", orientada pelo Prof. Dr. Arley Andriolo e com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Brasil.
2 Por exemplo, a pia batismal da igreja de São Bartolomeu, na Bélgica, produzida em princípios do século XII para cumprir uma finalidade ritual-católica e que hoje é ali contemplada pelas pessoas como uma obra de arte.
3 Muitas vezes, ao observar a plateia de um espetáculo de dança, surpreendi pessoas que acompanhavam os bailarinos não apenas com os olhos, mas com gestos, marcando o compasso da dança discretamente com os pés ou com leves batidas das mãos sobre a perna.

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