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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.63 no.3 Rio de Janeiro  2011

 

ARTIGOS

 

Jornalismo, a questão da verdade e a produção de subjetividade

 

Journalism, the question of truth and subjectivity production process

 

Periodismo, el tema de la verdad y la producción de la subjetividad

 

 

Luciana RodriguesI; Inês HennigenII

IMestranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Rio Grande do Sul. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Rio Grande do Sul. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do campo saber-poder dos estudos foucaultianos, interrogamos a produção da verdade no território jornalístico e sua implicação nas subjetividades contemporâneas. Em um trabalho de reflexão teórica, abordamos noções como veracidade e perícia no tratamento das informações, e recursos como novelização e dramatização de histórias da vida real para discutir seus efeitos na instauração do que é dito e aceito como verdadeiro. Constatamos que tais características e recursos jornalísticos atuais constituem estratégias que buscam certificar e emocionar, capturando pela sedução à vontade de verdade. Assim, as histórias visibilizadas pelo jornalismo oferecem possibilidades de reconhecimento e identificação aos sujeitos, produzindo certos modos de ser.

Palavras-chave: Jornalismo; Verdade; Subjetividade; Foucault.


ABSTRACT

From a knowledge-power field of Foucaultian studies, we question the production of truth in journalism and its implications for the contemporary subjectivity process. In a theoretical reflection, we deal with notions such as veracity and expertise in media data processing, and current journalistic resources, such as the 'novelization´ and dramatization of real life stories, to discuss their effects on the establishment of what is said and accepted as truth. We find out that such features and current journalistic resources constitute strategies that seek to certify and thrill, capturing subjects by seduction to the will to truth. Therefore, stories made visible through journalism offer subjects the possibility of recognition and identification, creating certain ways of being.

Keywords: Journalism; Truth; Subjectivity; Foucault.


RESUMEN

Partiendo del campo del saber-poder de los estudios foucaultianos, interrogamos acerca de la producción de la verdad en el campo del periodismo y su implicación en las subjetividades contemporáneas. En un trabajo de reflexión teórica, abordamos nociones como veracidad y pericia en el tratamiento de las informaciones, y de recursos como novelización y dramatización de historias reales, para discutir sus efectos en la instauración de lo que se dice y se acepta como verdadero. Verificamos que tales características y recursos periodísticos actuales constituyen estrategias que buscan certificar y emocionar, capturando por la seducción al deseo de la verdad. Así, las historias visibilizadas por el periodismo ofrecen posibilidades de reconocimiento e identificación a los sujetos, produciendo modos de ser.

Palabras-clave: Periodismo; Verdad; Subjetividad; Foucault.


 

 

Intenções: contextualizando a proposta desta escrita

Este artigo traz reflexões que vêm subsidiando a construção de um processo investigativo que está operando com a análise de produções jornalísticas (jornais impressos e telejornais) a partir de questões relacionadas ao campo saber-poder dos estudos foucaultianos e a suas implicações na subjetividade. A escolha dessa materialidade como corpus de análise da pesquisa se fez pela potencialidade que encontramos nas produções jornalísticas para pensar o engendramento de modos de ser sujeito nos dias de hoje.

Esse estudo, que se encontra em andamento, focaliza e problematiza os discursos midiáticos relacionados à adoção e aos serviços de acolhimento, instituições que visam assegurar a efetivação do direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária. Entretanto, nosso objetivo no presente escrito não é discorrer sobre tal pesquisa, mas apresentar e discutir alguns referenciais teóricos que fomos articulando e que podem servir de ferramentas para a construção de pesquisas que, como a nossa, desejam fazer uso de recortes das visibilidades midiáticas em espaços jornalísticos, pois conjecturamos que elas contribuem para produzir certas formas de existência, certos modos de subjetivação.

Tal opção metodológica se apoiou no entendimento da mídia como uma instância ímpar para abordar o contemporâneo. Pois, se a mídia é esse grande palco por onde a vida, cada vez mais, acontece, então é possível capturar algumas de suas cenas cotidianas para problematizar os processos de subjetivação que têm se constituído na atualidade.

Trabalhar com a análise de materiais jornalísticos, em um plano de investigação que problematiza, no jogo das forças que instituem verdades, os processos de produção de determinados modos de ser, é uma perspectiva que nos ajuda a explicitar as relações e posições de sujeito que estão sendo estabelecidas, as estratégias de controle e governo da vida, assim como nos permite manter o olhar sensível às linhas de fuga que podem tornar possível a composição de outras formas de subjetivação à existência dos sujeitos.

Cabe assinalar que esse modo de pesquisar encontra ressonância no que Kastrup (2007) destaca acerca do método cartográfico (desenvolvido por Deleuze & Guattari): a possibilidade de acompanhar e investigar processos de produção - bem diferente de procedimentos que visam apenas representar um objeto. Ou seja, nessa perspectiva, não se vai à busca de uma coleta de dados, de uma descoberta daquilo que já estaria pronto, apenas esperando para ser revelado, mas se realiza uma construção dos dados da pesquisa que nos convoca, como pesquisadores, a assumir a atenção não como algo concernente à seleção de informações, mas como algo processual. Processos de produção que temos o compromisso de explicitar, para que as subjetividades constituídas em nosso presente sejam visibilizadas e, dessa forma, seja possível, como nos sugere Michel Foucault, pensar sobre como nos tornamos o que somos hoje.

 

Ancoragens e pontos de partida

Para trabalhar com a possibilidade de problematizar a produção de verdades e os processos de subjetivação que se inscrevem na contemporaneidade a partir da captura de materiais jornalísticos (produzidos e veiculados pelos territórios midiáticos), partimos de alguns lugares, perspectivas teóricas, modos de olhar e ler os acontecimentos do mundo. Lugares que nos falam de determinadas formas de entender a linguagem na constituição da realidade.

Assim, iniciamos nossas problematizações seguindo o rastro da Virada Linguística, perspectiva que pontua o predomínio da linguagem sobre o pensamento, e que caracteriza um novo paradigma para os filósofos. Nesse sentido, Ghiraldelli (2007) se apresenta como um autor que nos possibilita percorrer um caminho investigativo que entende a linguagem como um

"instrumento" natural de seres naturais para lidar com o mundo - se o tamanduá tem língua para comer formigas e se a formiga tem antenas para, talvez, lidar umas com as outras e "informar" sobre o tamanduá, nós humanos temos a linguagem para arcarmos com tamanduás, formigas, nós mesmos e todo o resto (Ghiraldelli, 2007, s/p.).

Em sintonia com esse autor, consideramos a linguagem não como uma via para se representar as coisas, mas sim como instituidora dos sentidos de nossa realidade. Esse modo de conceber a linguagem tem implicações na forma através da qual entendemos o mundo e, portanto, em como fazemos as perguntas para tentar compreendê-lo (Ghiraldelli, 2007). Tal estatuto da linguagem nos possibilita entender como as palavras incrustadas em discursos nos subjetivam, nos ensinam a ver o mundo por determinadas "lentes" - a partir das possibilidades do que está posto, acessível, disponível em nossa cultura.

Já Foucault (2004a) nos mostra que os discursos são práticas que forjam os objetos dos quais se ocupam, e nos convida a problematizá-los em seus múltiplos arranjos e estratégias para, então, ser possível visualizarmos como as coisas estão dispostas, como estão montadas. Tal convite propõe que interroguemos as condições de verdade para que possamos pensar e inventar outras possibilidades, outros jeitos, outras formas de habitar o mundo. Produzir outras verdades que abram brechas à composição de relações, que possam tomar distância dos grandes blocos discursivos que tendem a capturar a vida em certas formas de subjetivação - que, produzindo determinados efeitos e posições de sujeitos, muitas vezes estão longe de potencializar a vida. A proposta que é feita pelo filósofo, nessa perspectiva de trabalho, é de interrogar, nos instigando a "mapear os 'ditos´" (Fischer, 2001, p. 205). Ou ainda, a "escovar" palavras.

Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. Logo pensei de escovar palavras. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras (Barros, 2003, p. s/p.).

Ao operar em nossas pesquisas a partir dos estudos foucaultianos sobre os discursos, não estaríamos, como o poeta, que fala de sua vontade de escovar palavras, a "rachar as palavras"? Claro, não para procurar ver algo oculto atrás delas, já que não há nada por trás das cortinas, toda a realidade está manifesta, mas sim para acender luminosidades, dar visibilidade aos ditos, ao que está sendo enunciado como verdade pelos discursos que circulam, demarcando assim posições aos sujeitos. No dizer de Foucault (2004a), importa realizar uma descrição das coisas ditas, uma análise histórica que não está interessada em interpretações, pois "às coisas ditas, não [se] pergunta o que escondem, o que nelas estava dito e o não dito que involuntariamente recobrem, a abundância de pensamentos, imagens ou fantasmas que as habitam; mas, ao contrário, de que modo existem" (Barros, 2003, p.124).

Quando se trabalha com discursos a partir da concepção foucaultiana (ou seja, tomando-os como práticas que forjam determinados objetos), é preciso ter cuidado para não resvalar em "personalismos", não colar os discursos às pessoas ou instâncias que os colocam em circulação, como se elas fossem detentoras ou criadoras do que é enunciado. O que existe não são discursos produzidos por um ou outro sujeito, mas posições de sujeitos, "lugares do sujeito na espessura de um murmúrio anônimo" (Deleuze, 1992, p.19). Lugares perpassados por regimes de verdade, e que possibilitam aos sujeitos o agenciamento de enunciações acerca daquilo que é dizível em cada época e sociedade. Ditos através dos quais circulam verdades inscritas em palavras, que postulam e ensinam determinados modos de existir, de ser e habitar o mundo. Palavras que, segundo Larrosa (2002, p. 21), "determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras".

Essa produção de verdade - que ensina a todos nós aquilo que é e que deve ser aceito como normalidade, como desejável aos modos de existência possíveis - não deve ser confundida com uma verdade natural, algo relativo à (suposta) essência das coisas do mundo. Pois aquilo que é dito verdadeiro, é produzido em meio a estratégias e jogos de força que remetem "ao saber que os indivíduos utilizam para compreender a si mesmos" (Nardi & Silva, 2005, p. 95). Nas palavras de Foucault (2004b, p. 14), a verdade é um "conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados", que está intrinsecamente ligada a sistemas de poder que não apenas a produzem, mas a apoiam e disseminam, visto que ela não existiria em algum lugar fora ou desvinculado do poder. Observe-se que o poder, em Foucault, não está relacionado a algo unitário e global, mas remete a "formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente" (Machado, 2004, p. 10).

A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade... tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (Machado, 2004, p.12).

Nesse sentido, a "economia política" da verdade apresenta cinco características históricas, que são: centralidade na forma de discurso científico e nas instituições de sua própria produção; submissão à incitação econômica e política constante; ser objeto de diversas formas de difusão e consumo (circula em aparelhos de educação e de informação); produção e transmissão controlada por grandes aparelhos políticos e econômicos; e constituir-se como objeto de debate político e controle social (Foucault, 2004b).

Uma vez que, nessa economia política, a verdade é objeto de difusão e consumo, é pela possibilidade de recorte no plano da sua circulação pelos aparelhos de informação - mais especificamente, nas materialidades jornalísticas - que propomos, com esse escrito, traçar algumas reflexões com vista à análise do processo de produção de subjetividades contemporâneas. Para tanto, nos aproximamos de autores, como Fischer (2001), que propõem um modo de entender o território midiático não apenas como veículo, mas como produtor de discursos que "passam a existir 'realmente´ desde o momento em que acontecem no espaço dos meios de comunicação" (Fischer, 2000, p. 111) e, portanto, que forjam diferentes significados, identidades e modos de ser.

 

No território do jornalismo - a verdade produzida e produtiva

Seus vizinhos, que a conheciam e gostavam dela, estavam convencidos de que ela era culpada:

- Por quê? - perguntou o advogado.

- Porque os jornais dizem. - Mas os jornais mentem - disse o advogado.

- Mas o rádio também diz - explicaram os vizinhos -. E até a televisão! Galeano (2009, p. 146)

Na pesquisa que desenvolvemos, lançar mão das produções jornalísticas em meio à pluralidade de materiais disponíveis no território midiático foi uma escolha que realizamos ao constatar algumas características singulares que esses materiais apresentam, a saber: a (noção de) veracidade implicada no que ganha visibilidade - pois o que é veiculado estaria sempre pautado por um fato, ou seja, tratar-se-ia de um "retrato" da realidade (Gomes, 2009); e a (ideia de) perícia no tratamento da informação - a partir da qual se demarcaria o que é verdadeiro, permitindo estabelecer a confiança dos sujeitos atravessados cotidianamente pelo material jornalístico (Miguel, 1999).

Entendemos que tais características produzem efeitos subjetivos importantes, posto que "assegurariam" aquilo que os sujeitos podem (devem?) considerar como verdade, assim contribuindo para o estabelecimento de uma espécie de "credibilidade generalizada" ao que é visibilizado pelo jornalismo, seja o relato de um acontecimento, o comentário apensado, a indicação de desdobramentos, seja a "recomendação" de (melhores) hábitos, posturas, modos de ser.

A título de ilustração sobre esse último aspecto, podemos citar o telejornal Jornal Hoje (exibido pela Rede Globo de Televisão), que sempre veicula matérias sobre como bem viver, saúde, educação, relações interpessoais, entre uma profusão de temáticas, chamando a falar especialistas (a quem o lugar de perícia é atribuído) e colhendo depoimentos que atestam a posição/concordância da população acerca do que está sendo indicado. Assim, em uma reportagem sobre adoção apresentada pelo Jornal Hoje, em janeiro de 2010, na série de reportagens intitulada Filhos do Coração, tendo como proposta mostrar "histórias de homens e mulheres que decidiram formar uma família", assistimos ao depoimento de um pai adotivo que fala de um modo de exercer a paternidade, pois: "a criança não vem com manual, então o que o pai faz é dar o melhor de si, é tentar ser honesto, sabe, ser certo, buscar o que é certo quando erra, quando exagera tentar pedir desculpas". Nesse recorte da matéria, mesclam-se valores (importância de constituir família, de dar o melhor aos filhos, de refletir e desculpar-se com eles) e orientações (afinal, é um exemplo de modo de proceder que foi eleito para figurar na TV) que acabam se estabelecendo como verdades a serem incorporadas pela população.

Nesse sentido, é pertinente assinalar que as produções jornalísticas impressas (como notas, pequenas e grandes reportagens, infográficos, fotografias e cadernos especiais) e televisivas (reportagens e série de reportagens) realizam uma seleção daquilo que será escrito ou irá ao ar, nos ofertando e/ou rechaçando determinadas posições de sujeito. Assim, no exemplo citado, através do depoimento que ganhou visibilidade na reportagem, foi-nos oferecida certa posição de ser pai, em detrimento de outras. Nesse caso, a posição oferecida remete à versão "pai-consciente", dificilmente contestável. Contudo, associado a tal perfil paterno, não estaríamos a receber outra verdade, aquela que fala de uma primazia dos filhos e que tem "n" desdobramentos e implicações (polêmicas) no contemporâneo?

Dessa forma, no jogo de forças imanente ao campo social - e ao jornalístico em particular -, certos modos de viver são apresentados, implícita ou explicitamente, como mais ou menos aceitáveis, pois alguns serão apoiados, enquanto outros passarão a ser condenados. Entretanto, cabe pontuar também que, apesar de determinados modos de ser figurarem, muitas vezes, com formas e valorações bastante semelhantes, não acontece repetição sem diferença, e o caráter pluridiscursivo e agonístico do tecido social acaba por impor sua marca, estabelecendo algum dinamismo nesse território.

Em relação ao que é produzido pelo jornalismo e apresentado ao espectador ou ao leitor, Gomes (2009) menciona a notícia, qualificando-a como "o produto específico dessa atividade, [que] ganha em geral a forma verbal de um enunciado declarativo, de uma descrição ou de uma narrativa sobre eventos reais" (Gomes, 2009, p. 10). A partir desse entendimento, vemos o jornalismo se posicionando como um sistema produtor de notícias que, ao apresentar uma postura de veracidade (Gomes, 2009), se coloca, muitas vezes, como um sistema perito que permite aos sujeitos manter uma relação de confiança quanto à veracidade das informações (Miguel,1999). Estamos vivendo em um desencaixe das relações sociais: ao invés do contato face a face, nossas vidas estão ligadas a grupos de pessoas que nunca iremos ver Miguel (1999). Nesse contexto, um dos mecanismos de grande importância é o que o autor chama de expert systems (ou sistema perito ou sistema especialista), que, incluindo saberes e práticas, organizam o ambiente social.

Ao discutir a questão da verdade dos fatos na produção jornalística, Gomes (2009) fala de uma ingenuidade em relação a como o conceito de verdade é tratado em certas concepções de jornalismo. Para o autor, há um princípio de veracidade no jornalismo que está sempre implícito no ato de fala e que funciona a partir da seguinte lógica: aquele que fala com seriedade (e/ou pretensão de) assume, de maneira implícita, um compromisso diante dos seus interlocutores, a saber, o compromisso de que os argumentos apresentados são julgados verdadeiros pelo próprio sujeito que os enuncia. Em outras palavras, para o autor, é preciso que a posição sustentada pelo que é dito seja considerada verdadeira por aquele que o diz. Esse imperativo da veracidade dos fatos, que incide sobre a produção das notícias como produção do verdadeiro, do que realmente acontece ou aconteceu, caracteriza o jornalismo como uma atividade apoiada integralmente pela norma da veracidade "não há notícia sobre a qual não se imponha legitimamente uma obrigação de veracidade; alias, só é notícia um ato verbal que comporte uma pretensão de ser verdadeiro" (Gomes, 2009, p. 11).

Assim, operando no que o autor chama de ramo da verdade, o jornalismo não apenas assume com o consumidor de notícias a obrigação de ser veraz, mas também o compromisso de usar todos os recursos possíveis para evitar o engano e o erro - o que caracteriza o jornalismo contemporâneo como um sistema profissional que provê o mercado de informações, descrições, relatos, comentários e opiniões sobre a atualidade. Na citação a seguir, nosso grifo tem o objetivo de marcar que distinções são feitas nesse compromisso com a verdade. Pode-se conjecturar que elas tanto podem servir para tornar mais relativo o pacto de busca da verdade jornalística como podem reforçá-lo mais ainda. Afinal, revelaria o cuidado que o campo teria com a veracidade do que enuncia até sobre si mesmo. "O jornalismo, principalmente aquele inserido na indústria da informação, estabelece a estrutura paradigmática do discurso verdadeiro, ao mesmo tempo em que funda sobre a deontologia da fidelidade aos fatos toda a sua legitimidade" (Gomes, 2009, p. 12).

Entendemos ser importante ressaltar que essa noção de veracidade do material jornalístico é relativizada por algumas perspectivas da Teoria da Comunicação, que não fazem uma ligação direta entre a notícia e algo que poderia ser caracterizado como a "pureza" dos fatos. Segundo Alencar (2010), em perspectivas de pensamento como a construcionista ou certas teorias da comunicação mais recentes, a verdade é entendida e abordada como uma versão ante as várias possíveis, pois sua construção se dá através da linguagem, que nunca é neutra. No entanto, para a autora, a ideia de notícia como a verdade dos fatos (a essência desses) é a que permanece para a grande maioria do público, bem como para alguns jornalistas:

A ideia da notícia como "fato puro", verdade ou "espelho da realidade" está presente na ideologia profissional do jornalismo desde o princípio do processo de comercialização e profissionalização dos jornais, no século XIX. Essa concepção corresponde ao paradigma da notícia como informação e não mais opinião partidária, em um momento no qual o positivismo reinava no Ocidente (idem, p. 6-7).

É a partir dessa ideia, que tem sido sustentada há mais de um século, que consideramos pertinente aproximar a materialidade jornalística do estudo das produções subjetivas. Pois, se ainda há, em nosso cotidiano, essa forte e, poderíamos dizer, espontânea relação entre o que é visibilizado pelo jornalismo e o que acontece no mundo dos fatos, é porque o leitor e/ou espectador - aquele que desenvolveu uma confiança "de base" - tende a aceitar como verdade, praticamente inquestionável, a vida e o mundo tal como aparece naquilo que é veiculado, construído pela mídia jornalística. Assim, um modo de olhar e/ou conceber a produção jornalística (que tem implicações importantes nas formas de estar e interpretar o mundo) foi sendo engendrado pela configuração das suas práticas discursivas, por aquilo que se diz/produz nesse e sobre esse campo da comunicação.

Aproximando-se do conceito que Miguel (1999) denomina sistema perito, Gomes (2009) chama a atenção para a função de certificação das narrativas que o jornalismo tem assumido na atualidade. De acordo com o autor, é através das notícias que o mundo passa a ser um horizonte que abrange os fatos que podem ser chamados de reais, sendo possível distingui-los daqueles que serão considerados errôneos ou, até mesmo, irreais. Para justificar/constituir sua função social, o jornalismo empenha-se sempre em nos dizer como as coisas "realmente" são. Há, portanto, uma produção de fatos reais e um acordo tácito entre os consumidores de notícias e o jornalismo que marca o limite do que existe e é digno de menção, onde a "palavra, o logos, do narrador, assume características análogas às do verbo divino: confere o ser... tudo aquilo que é, é notícia" (idem, p. 15). Assim sendo, o discurso jornalístico assume um caráter de "juízo oracular" na medida em que, apoiado em sua autolegitimação, veicula os fatos, os relatos como se fossem uma revelação das coisas em si mesmas e não como uma narrativa sobre os fatos (Gomes, 2009).

Além das características demarcadas pelos autores discutidos até aqui, a materialidade jornalística apresenta outro ponto importante para pensarmos sua implicação com a produção de subjetividades: sua presença cotidiana na vida dos sujeitos. Como aponta Spink (2006), o jornal é parte de nossas vidas diárias, oferecendo possibilidades de posicionamento diante de notícias, produtos, serviços e eventos sociais. O que acaba estando em jogo não diz respeito apenas à informação ou ao ato de noticiar fatos que acontecem no mundo; mais do que uma mera "exposição" do que se passa ao nosso redor, ocorre uma produção de realidade que nos convoca a ver determinadas coisas e a olhá-las de certo ponto de vista através do que está colocado no recorte processado, no modo de produção das narrativas apresentadas, nas imagens veiculadas pelo jornalismo. Discorrer sobre as razões que movem os diferentes meios jornalísticos a focalizar certas situações, a realizar um recorte, a privilegiar determinadas formas de enfocar em detrimento de outras foge ao escopo do presente trabalho, pois se trata de matéria complexa e controversa (Spink, 2006). Embora esse autor fale especificamente do jornal impresso, pensamos que suas ponderações são válidas - e talvez até realçadas - no que tange ao jornalismo televisivo, uma vez que a imensa maioria dos brasileiros tem pelo menos um aparelho de televisão e hoje podemos acompanhar uma profusão de telejornais locais e nacionais em variados horários, locais e canais/redes.

Contudo, presente em nosso dia-a-dia, o jornal, sem dúvida, contribui para a naturalização de certos modos de olhar, de compreender, de se posicionar diante da vida ou, como na discussão empreendida por Spink (2006), na naturalização da desigualdade. Entretanto, para o autor, o jornal não seria

nem vilão, nem anjo, [mas] tão contraditório como qualquer outra parte de uma rede complexa de acontecimentos e possibilidades, de materialidades e socialidades, que sustentam a desigualdade - marca registrada do Brasil. Tal como outras partes da matriz da desigualdade, o jornal aponta, denuncia e também naturaliza (Spink, 2006, p.90).

Outra ferramenta conceitual interessante, que nos ajuda a trabalhar a relação mídia e subjetivação na atualidade, é o conceito de dispositivo pedagógico da mídia, cunhado por Fischer (2002). Conceito que a autora descreve como relativo a um aparato discursivo e não discursivo pelo qual há um incitamento à constante revelação de si mesmo. Práticas que estão acompanhadas da "produção e veiculação de saberes sobre os próprios sujeitos e seus modos confessados e aprendidos de ser e estar na cultura em que vivem" (Fischer, 2002, p. 155). Para essa autora, a mídia opera no aprendizado dos modos de existência

no sentido de participar efetivamente da constituição de sujeitos e subjetividades, na medida em que produz imagens, significações, enfim, saberes que de alguma forma se dirigem à "educação" das pessoas, ensinando-lhes modos de ser e estar na cultura em que vivem (Fischer, 2002, p. 153).

Por isso, mais do que abordar a mídia a partir do processo concreto de comunicação (que abarca produção, veiculação e recepção de produtos midiáticos), a autora propõe uma análise que visa contemplar não apenas o que diz respeito às questões de linguagem e estratégias de construção dos produtos, mas, em consonância com a perspectiva foucaultiana, sobretudo atentar para questões relacionadas ao poder e a formas de subjetivação.

Em seu trabalho, Fischer (2002) ressalta ainda como a tecnologia de exposição dos indivíduos na TV vem sendo aperfeiçoada ao longo do tempo. Nesse sentido, os telejornais estão buscando, cada vez mais, registrar e editar os momentos mais dramáticos de exposição da privacidade daqueles que, por acontecimentos da vida e/ou posições ocupadas, ganham visibilidade nesses espaços, de tal sorte que, através de seus testemunhos, confessam verdades sobre si - mas que valem para todos. Assim, mostram-se/produzem-se lições de vida (verdades para serem assimiladas) com intensa carga emocional - uma estratégia de captura recorrente, porque bastante eficaz (Sodré, 2006).

Tal destaque dramático evidencia-se, por exemplo, em cenas e depoimentos, veiculados no Jornal Hoje, em reportagem apresentada por esse noticioso, em dezembro de 2008, na mesma série de reportagens já citada, de homens e mulheres que realizaram(conforme enuncia a repórter) um "ato de amor" ao adotar uma criança. Desse modo, em histórias que são "de se emocionar", podemos assistir e partilhar da grande "felicidade" que esse ato propiciaria. No depoimento emocionado de um pai, uma lição que se levará pela vida: "a gente vê realmente o sentido de família depois que tem um filho...família é uma coisa insuperável, a gente tem esse sentimento de família só depois que ele chegou...". Assim, envolvidos pela emoção, os telespectadores aprendem mais algumas formas de ser, valorar, viver.

Em relação ao uso do recurso dramático como estratégia para compor as visibilidades televisivas, Alencar (2010) nos traz uma abordagem teórica que trata dessa questão compreendendo-a como uma novelização (que estaria ocorrendo atualmente no telejornalismo nacional). A autora propõe que as análises sobre tal questão não devem seguir um viés negativo, julgando o processo de novelização como algo ruim, mas sim procurar compreender como acontece a apropriação jornalística do roteiro ficcional. Essa apropriação ultrapassaria a definição dos gêneros que, historicamente, subdividem o jornalismo em opinativo, informativo e interpretativo (ressalvando que, independentemente de subdivisões, o que se mantém como ponto comum é o caráter informativo do jornalismo). Nesse sentido, não haveria um modelo único, um protótipo cristalizado para a produção de notícias telejornalísticas, pois ela não se encontra separada do contexto no qual emerge, o que a coloca sujeita às variações de cada momento histórico. A mesma autora também chama a atenção para não se confundir a questão da novelização do telejornalismo com alguma forma de manipulação sobre os telespectadores, pois entende que a veracidade dos fatos é permanentemente esperada pelo público e não estaria comprometida por tal processo.

Outro ponto que não nos permite falar de um modelo estanque do fazer telejornalístico é a hibridização dos gêneros. Conforme Alencar (2010, p.10), "muitos dos gêneros televisuais são híbridos, a exemplo do que ocorre com uma revista eletrônica semanal como o 'Fantástico´. Até que ponto a abordagem dos fatos e o conjunto dos conteúdos exibidos no domingo à noite é jornalístico?". Um questionamento que nos remete ao que tem sido chamado de infotainment. Conforme Gomes (2010), infotainment(termo que não deve ser confundido com um conceito) é um neologismo que traduz o embaralhamento das fronteiras entre duas áreas tradicionalmente distintas da cultura midiática: a informação e o entretenimento.

O infotainment surge a partir de dois contextos: o das engenharias da computação e da indústria automobilística (caracterizando as aplicações multimídia digitais em tempo real, que permitem o acesso a serviços de informação e entretenimento); e o das Ciências Sociais, especialmente na Comunicação, referindo-se ao embaralhamento entre informação e entretenimento, entendido aqui, conforme a definição trazida pela autora, como "um valor das sociedades ocidentais contemporâneas que se organiza como indústria e se traduz por um conjunto de estratégias para atrair a atenção de seus consumidores" (idem, p. 204).

Embora esse embraralhamento, como ressalta Gomes (2010), não se restrinja ao território jornalístico, tem sido mais estudado a partir de interrogações acerca das estratégias utilizadas pelos meios jornalísticos na busca pela audiência. Nesse sentido, pensamos que é capital pontuar quanto as estratégias telejornalísticas que apelam ao fazer sentir, ao emocionar-se, à exposição da vida íntima na TV, longe de dissolver a confiança e a veracidade (marcas da produção jornalística), potencializam a credibilidade nos fatos veiculados, pois nos captura pela sedução à vontade de verdade. Isso se processa pela construção de narrativas e imagens que, a exemplo do jornalismo investigativo (talvez a tradução mais acabada do marketing "função social da mídia"), buscam a verdade lá onde ela realmente está: na rua, na casa, no corpo, na dor, na alegria de cada sujeito. Sujeitos que se aproximam de nossa própria vida cotidiana, de nossas emoções, das histórias que cada um de nós tem para contar. Não surpreende, portanto, o que é enunciado na abertura de um tradicional telejornal gaúcho, o Jornal do Almoço (Grupo RBS de Comunicações): "a partir de agora a sua vida está na TV".

 

Para finalizar: produção de subjetividades à luz do jornalismo

O jornalismo se apresenta como singular no que se refere à pretensão de veracidade dentre as produções midiáticas. Esteja no formato impresso ou televisivo, apoia-se em uma herança de credibilidade que se mantém até os dias atuais, nos convocando ao consumo da "verdade dos fatos", da vida como ela "é" ou como acontece na "realidade" de nosso dia-a-dia, de nosso modo de viver na contemporaneidade.

Nesse sentido, julgamos pertinente perguntar: qual a relação que estamos estabelecendo com as verdades oferecidas pelo jornalismo? E que efeitos essa relação tem produzido, quando tão frequentemente escutamos, ou mesmo pronunciamos, a frase "isso parece coisa de filme", diante de determinados retratos de nosso cotidiano, ou, ainda, "que novela" para alguma narrativa que acompanhamos no território jornalístico e que seria, portanto, a veiculação de uma história (dita) "real"?

Através das articulações teóricas que buscamos tecer neste artigo, verificamos ser importante - ao se propor um trabalho que utilize produções jornalísticas para a produção de um pensar sobre nossos modos de ser - desnaturalizar sua pretensão à veracidade dos fatos. Nesse sentido, é fundamental ter em mente que as cenas-narrativas, veiculadas como retrato fiel da realidade, são também ficcionadas e produzidas, e que, atualmente, proliferam estratégias que buscam dramatizar as histórias da vida "real", que, assim, são talhadas para nos emocionar.

Tais estratégias, na tentativa do "resgate" de histórias de vida (como elas "verdadeiramente" aconteceram), ficcionam e novelizam a vida de pessoas "comuns" pelo uso de recursos visuais e sonoros que, como em filmes e novelas, nos sensibilizam e nos tocam. No caso da pesquisa que desenvolvemos, reportagens que veiculam histórias sobre a situação de crianças em instituições de acolhimento ou que narram a chegada de um filho através do processo de adoção são bons exemplos disso. Na medida em que somos convidados a assistir cenas como a que foca duas crianças que vivem em abrigos e que, ao serem interrogadas sobre o que faltaria para serem felizes, respondem "ser adotado" (na reportagem veiculada pelo Jornal Hoje, em dezembro de 2009, na série Filhos do Coração), somos também convocados a olhar para elas como crianças que só alcançarão a felicidade em meio a uma família. Cena essa que, construída e veiculada em uma reportagem jornalística, assume um caráter de verdade que, por sua vez, coloca em movimento processos subjetivos que constituem tanto nosso modo de ser diante dessas crianças, atravessado pelo sentimento de pena, como constituem as próprias crianças como sujeitos infelizes.

Ao serem postas diante de nós, as histórias que são produzidas na mídia jornalística nos emocionam ao mesmo tempo que nos oferecem uma possibilidade de identificação - pois são histórias da vida cotidiana, como poderia ser a sua, a minha, enfim, a nossa. Histórias que são apresentadas não como uma produção (uma invenção, como nas ficções), mas como um retrato da "vida real". Desse modo "tais estratégias captam os telespectadores na sua intimidade, produzindo neles, muitas vezes, a possibilidade de se reconhecerem naquelas verdades ou mesmo de se auto-avaliarem ou auto-decifrarem com relação àquele tema" (Fischer, 2002, p. 157).

Ao operar com a perspectiva foucaultiana de subjetividade, que pode ser definida como um conceito que envolve uma postura, um modo de vida, "uma expressão de nossa relação com as coisas, através da história" (Cardoso, 2005, p. 345), é possível problematizar que modos de vida estão sendo postos à luz nos palcos jornalísticos. Nesse sentido, pensamos a mídia como constituinte das chamadas pedagogias culturais - que é uma expressão usada "para falar de agenciamentos sociais, que funcionam como dispositivos pedagógicos, para além dos muros escolares" (Maraschin, 2003, p. 237).

Se o que é visibilizado na mídia jornalística está implicado com a produção de modos de existência, é preciso ir além das evidências (Fischer, 2002), do que é apresentado como verdade "natural", para pensar sobre o que está sendo enunciado e oferecido nesse jogo de informações e dramatizações, que constitui possibilidades de subjetivação aos indivíduos. Pois brechas a outras composições são possíveis a despeito do que as luzes do enfoque midiático nos mostram (e nos ensinam) como modos de ser ou não ser no contemporâneo.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Luciana Rodrigues
luciana_rodrig@yahoo.com.br
Inês Hennigen
ineshennigen@gmail.com

Submetido em: 08/09/2011
Revisto em: 30/12/2011
Aceito em: 30/12/2011

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