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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.64 no.1 Rio de Janeiro abr. 2012
ARTIGOS
A comunicação terapêutica na abordagem centrada na pessoa
The therapeutic communication in the person centered approach
La comunicación terapéutica en el enfoque centrado en la persona
Carmen Silvia Nunes de MirandaI; José Célio FreireII
IMestranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza. Ceará. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza. Ceará. Brasil
Endereços para correspondência
RESUMO
Este artigo apresenta uma discussão sobre o processo de comunicação entre terapeuta e cliente nas fases da Abordagem Centrada na Pessoa, a partir de uma revisão bibliográfica inspirada na proposta da hermenêutica filosófica de Gadamer. São quatro fases: não diretiva, reflexiva, experiencial e coletiva. Perceberam-se, ao longo deste percurso, modificações na relação e comunicação terapeuta-cliente. Passa-se de um fluxo unidirecional, em direção ao cliente, para uma comunicação bilateral, com uma maior expressão do terapeuta, embora ainda restrita a expressões eficazes ao processo do cliente. Na fase experiencial tem-se a compreensão de uma comunicação de mão-dupla, um duplo movimento de expressão e escuta que acarreta uma maior escuta de si e do outro concomitantemente, gerando um fluxo mais igualitário. Já no último período, encontra-se uma comunicação transcendental, presente nos momentos de comunicação intensa em estados alterados de consciência.
Palavras-chave: comunicação; abordagem centrada na pessoa; relação terapêutica.
ABSTRACT
The paper discusses the communication process between therapist and client along the stages of Person-centered Approach from a literature review point of view, inspired by the philosophical hermeneutics proposal of Gadamer. There are four stages: nondirective, reflexive, experiential and collective. Along this path, modifications have been noticed: it goes from a unidirectional flux centered on the client to a bilateral communication with a higher expression of the therapist, although the expressions of the therapist are restricted to those which are effective to the client's process. In the experiential stage arises a comprehension about a two-way communication, a double movement of expression and listening, that lead to greater listening of himself and of the other simultaneously, taking up a more equitable flux. In the last period, can be found a transcendental communication, which appears in the altered states of consciousness.
Keywords: communication; person centered approach; therapeutic relationship.
RESUMEN
Este artículo presenta una reflexión sobre el proceso de comunicación entre terapeuta y cliente en las fases del Enfoque Centrado en la Persona basada en una revisión de la literatura, inspirada en la hermenéutica filosófica de Gadamer. Son cuatro fases: no directiva, reflexiva, vivencial y colectiva. Se dieron cuenta, a lo largo de este trayecto, de cambios en la relación y en la comunicación terapeuta - cliente. Se pasa de un flujo unidireccional, en dirección al cliente, a una comunicación bilateral con una mayor expresión del terapeuta, aunque todavía limitado a expresiones eficaces al proceso del cliente. En la etapa experimental existe la comprensión de una comunicación de dos vías, un movimiento doble de expresión y escucha, que lleva a una escucha mayor de sí mismo y del otro al mismo tiempo, teniendo un flujo más equitativo. En el último período, es una comunicación trascendental, presente en los momentos de intensa comunicación en los estados alterados de conciencia.
Palabras clave: comunicación; enfoque centrado en la persona; relación terapéutica.
Introdução
O presente artigo apresenta discussão sobre o processo de comunicação entre terapeuta e cliente nas diferentes fases da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), de Carl Rogers (1997). A partir de uma revisão bibliográfica, buscou-se caracterizar as formas de comunicação presentes no relacionamento terapêutico ao longo das fases do pensamento rogeriano. A hermenêutica filosófica de Gadamer (2008) foi tomada como inspiração metodológica que permitiu o diálogo com as obras revisadas, de modo a construir uma leitura a partir de horizontes teóricos distintos, e de um novo horizonte, dentre outros possíveis. Dessa forma, tentou-se tecer novas possibilidades de compreensão da noção tematizada.
Diferentes autores sistematizaram o legado de Rogers em fases que apresentariam características peculiares (Cury, 1987; Moreira, 1990; 2007; Holanda, 1998). Neste trabalho, toma-se a proposta de Cury (1987) que divide a ACP nas seguintes etapas: fase não diretiva (1940-1950); fase reflexiva (1950-1957) e fase experiencial (1957-1970), acrescentando-se a estas a fase coletiva (1970-1985) proposta por Moreira (2007) ou fase inter-humana, por Holanda (1998). Esta última, apesar do distanciamento de Rogers da prática psicoterápica e seu foco nas atividades de grupo e interculturais (Wood, 1983), apresenta formulações relevantes para a compreensão da comunicação inter-humana na obra rogeriana e na prática psicoterapêutica por ela inspirada.
Ao longo desses períodos, as formas de relacionamento terapêutico sofreram mudanças significativas. Partiu-se de uma postura mais distanciada do terapeuta rumo a uma maior implicação deste com a terapia, e sua presença genuína e calorosa tornou-se essencial para o processo de mudança da personalidade do cliente. Nesse sentido, inicialmente o cliente é tomado como centro do processo, mas caminha-se em direção a um maior foco no relacionamento, alcançando-se uma transcendência da própria relação (Rogers, 1983). Ressalte-se que um fio condutor de todas as etapas da obra de Rogers é o respeito à experiência do cliente e a autonomia deste em resignificar sua história de vida.
Em relação à comunicação, ao final de sua obra, Rogers (Rogers&Rosenberg, 1977) chega a afirmar que seu percurso havia girado em torno "do desejo de clareza de comunicação, com todos os tipos de consequências que este desejo implica" (p.44). A busca por uma comunicação límpida acompanhava suas palestras e produções escritas. Ao lermos seus livros percebemos a fácil acessibilidade do seu pensamento, a partir de uma escrita clara e coerente. Nessa direção, comunicação não diz respeito apenas a conteúdos de cunho cognitivo e intelectual, mas refere-se, segundo Rogers (1983), "a algo mais 'vivencial', algo que abrange a pessoa inteira, tanto as reações viscerais e os sentimentos como os pensamentos e as palavras" (p.4). Ao relatar as dificuldades e consequências experimentadas nesse tipo de comunicação, Rogers (1983) afirma:
constato [...] que ouvir traz conseqüências. Quando efetivamente ouço uma pessoa e ossignificados que lhe são importantes naquele momento, ouvindo não suas palavras, mas ela mesma, e quando lhe demonstro que ouvi seus significados pessoais e íntimos, muitas coisas acontecem. (p.6).
Para Amatuzzi (2001), ouvir efetivamente seria compreender o significado real atribuído pelo falante, o que ele quis dizer ao se expressar, ao invés de ficarmos presos às palavras pronunciadas, ao mero significado que "fica no nível das palavras, enquanto o significado pleno se prende a toda presença significante da pessoa." (p.68). Ao terapeuta caberia, então, ouvir e responder não apenas as palavras do cliente no sentido semântico, mas a significação simbólica (Amatuzzi, 1989). Essa comunicação efetiva, que seria total e aberta, é compreendida como um movimento de "duas fases igualmente importantes: a primeira é expressar a emoção. A segunda é permanecer aberto e experienciar a resposta do outro" (Fadiman & Frager, 1986, p.233).
A comunicação na relação terapêutica é composta por manifestações verbais e não verbais, em que "falar pode ser entendido [...] no seu sentido amplo de comportar-se significativamente diante de, não se reduzindo [...] a expressões ou comportamentos verbais exclusivamente." (Amatuzzi, 1989, p.172). Esse autor defende ainda que a comunicação interpessoal é um processo que se dá entre interlocutores de uma mesma comunidade linguística, sendo intrinsecamente associada às dimensões existencial, individual e coletiva da fala. Este trabalho pauta-se nessa conceitualização de comunicação como um processo dialógico e que corresponde a uma relação simbólica entre o que se expressa e o que se vivencia, relacionando-se diretamente com a comunicação intrapessoal.
Em um de seus escritos, publicado em Tornar-se Pessoa, Rogers (Rogers, 1961/1997) se referiu à estreita relação entre psicoterapia e problemas na comunicação:
Todo trabalho da psicoterapia se refere a uma falha na comunicação. A pessoa emocionalmente desadaptada, o 'neurótico', tem dificuldades, em primeiro lugar, porque rompeu a comunicação consigo próprio e, em segundo, porque, como resultado dessa ruptura, a comunicação com os outros se viu prejudicada. (p.382)
Ao longo das etapas da teoria rogeriana, notam-se mudanças nas formas de comunicação estabelecidas na relação terapêutica, na medida em que há uma contínua redefinição dos papéis assumidos por terapeuta e cliente. Vai-se, assim, de uma comunicação mais unilateral, com o foco na comunicação do cliente, para uma comunicação centrada na relação, posteriormente com uma conotação mais mística, transcendente. Conforme dito anteriormente, na discussão aqui apresentada buscamse as diferentes formas de comunicação que permearam as diversas configurações propostas para o relacionamento terapeuta-cliente ao longo da evolução da ACP.
Orientações metodológicas
As discussões ora realizadas tiveram inspiração metodológica na perspectiva da hermenêutica filosófica (Gadamer, 2008), focalizando a possibilidade de uma hermenêutica baseada na ideia de fusão de horizontes. Para Gadamer (2008), "horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que pode ser visto a partir de um determinado ponto." (p.307). Para esse autor, essa noção pode ser considerada no que diz respeito à consciência reflexiva presente na hermenêutica. Nesse sentido, refere-se à possibilidade de ampliação, abertura de novos horizontes e perspectivas interpretativas, tomando-se inicialmente horizontes distintos.
Gadamer (2008) nos ensina, assim, que o fenômeno hermenêutico ocorreria mediante compreensão e confronto dos horizontes envolvidos, produzindo-se um novo horizonte possível. Nossa abordagem dos escritos rogerianos e de seus comentadores tem essas orientações como norte. Tal procedimento se deu, neste artigo, na ampliação da compreensão e interpretação dos horizontes apresentados, de Rogers e de outros autores, e fusão destes, a partir de seus confrontos na produção de um novo horizonte, o corpo textual final deste artigo. Dessa forma, este trabalho não produz uma leitura neutra e meramente reprodutiva de Rogers e seus interlocutores. O fato de o conceito de comunicação não ter sido abordado diretamente pelo psicólogo norte-americano ressalta essa abordagem. Dessa maneira, faz-se necessário destacar as características que permitem entendimentos sobre essa temática escolhida.
A comunicação terapêutica nas fases do pensamento rogeriano
A fase não diretiva é marcada pela atuação acadêmica de Rogers como docente na Universidade de Ohio e em escolas e centros comunitários. Nota-se ainda a luta pela ampliação da prática clínica, que, nos Estados Unidos, era restrita à prática médica (Rogers & Rosemberg, 1977). Tem-se neste período a publicação do seu segundo livro, Psicoterapia e Consulta Psicológica, em 1942(Rogers, 1979). Ao ser indagado sobre essa publicação, Rogers (Evans, 1979) afirma que seu
tema central era a noção de que o potencial para uma saúde melhor estava no cliente e esse era, sem dúvida alguma, um livro de orientação técnica. As respostas do aconselhador deviam ser do tipo que favorecesse o desenvolvimento do potencial do cliente. (p.56)
Nessa primeira fase a proposta de "não dar diretivas" implicava em não aconselhar, dar instruções ou interpretar. Essas ações, tidas como diretivas, eram reconhecidas à época como inerentes ao papel do terapeuta (Rogers, 1942/1979; Rogers & Kinget, 1977). A utilização desse termo trouxe e ainda traz confusão com a ideia de não direção (Holanda, 1998). Nessa última, a neutralidade do terapeuta está implicada, com a ausência de orientação ou de significação por parte deste, o que é de fato impossível em qualquer relação humana (Rogers & Kinget, 1977). Dessa forma, a significação dada por Rogers não implicava em "ausência de atividade, mas ausência de atividade intervencionista" (Rogers & Kinget, 1977, p.34). Rogers (1942/1979) enfatizava que a psicoterapia era uma experiência de crescimento e desenvolvimento para o cliente, pois nela
o indivíduo aprende a compreender-se a si mesmo, a optar de uma forma independente e significativa, a estabelecer com êxito relações pessoais de uma forma adulta [...] Seguramente, este tipo de terapia não é uma preparação para a mudança, é ele próprio mudança. (p.42)
Nessa etapa, Rogers (1942/1979) aposta em uma relação controlada, com certa neutralidade do terapeuta que, ao se expressar de forma mais direta, poderia exercer algum tipo de pressão ou coerção, colocando a segurança do ambiente terapêutico em risco, impedindo o cliente de se expressar livremente. Apesar dessa neutralidade, o conselheiro deve reconhecer seu envolvimento emocional como parte da relação, mesmo não o expressando abertamente, diferenciando-se da neutralidade como isenção, tal como era no molde psicanalítico (Cury, 1987).
Para Barreto (2005), nesta fase a ação do terapeuta deveria ser "não interventiva, de aceitação, e usar respostas do tipo clarificação" (p.173) na construção de uma relação terapêutica estruturada verbalmente, por meio de técnicas concretas passíveis de controle empírico. A busca pelo estabelecimento de leis gerais reproduzíveis é assinalada por Rogers (1942/1979) no prefácio da obra de referência do período: "a consulta psicológica é um processo susceptível de ser conhecido, previsto e compreendido, um processo que pode ser aprendido, testado, elaborado e aperfeiçoado" (p.11).
Cury (1987) aponta que o objetivo colocado ao terapeuta era o de proporcionar permissividade suficiente para que o cliente modificasse a percepção de si, por meio da livre expressão de sentimentos. A postura do terapeuta, "criar uma relação caracterizada pelo calor, pelo interesse, capacidade de resposta e uma dedicação afectiva num grau limitado com clareza e precisão" (Rogers, 1942/1979, p.98), proporcionaria os mecanismos necessários para alcançar esta meta. É importante apontar que, apesar do relevo dado a essa implicação afetiva, a postura do terapeuta é técnica, mantendo certo distanciamento da relação direta com o cliente. Importa a correta aplicação de procedimentos para garantir os resultados esperados e, ainda, que essa aplicação seja reproduzível. Desse modo, o processo terapêutico era percebido como "a aquisição pelo cliente de insight sobre si mesmo e sobre suas relações, formando desta maneira uma sequência ou série de eventos" (Barreto, 2005, p.173) que eram percebidos como blocos estanques, a partir das técnicas aplicadas pelo terapeuta e não como o desenrolar de um movimento.
Buscando diferenciar a relação terapêutica dos outros tipos de relações pessoais, Rogers (1942/1979) elenca seus quatro aspectos fundamentais. O primeiro aspecto é a presença significativa e calorosa do terapeuta, o que faria evoluir o nível afetivo da relação. Todavia, conforme explicitado anteriormente, essa implicação se daria de forma limitada, pois, para o conselheiro, "trata-se de uma relação nitidamente controlada, uma ligação afectiva com limites definidos" (p.97). O segundo seria a permissividade para a expressão do cliente que passa a "reconhecer que todos os sentimentos e atitudes se podem exprimir" (p.98). Para o autor, isso diferenciaria fundamentalmente esse tipo de relação das demais. Como o terceiro aspecto tem-se o estabelecimento dos limites da relação entre terapeuta-cliente como, por exemplo, o horário e a duração definidos da sessão. O último aspecto fundamental elencado é a ausência de formas de pressão ou coerção, pois "o conselheiro competente abstém-se de introduzir nas situações terapêuticas os seus próprios desejos, reações e inclinações" (p.99).
A partir do exposto, depreende-se que nesse período a comunicação é marcada pela necessidade de uma interlocução clara entre terapeuta e cliente, no que se refere às expressões do cliente. A este último deve-se dar a oportunidade de expressar-se livremente. No entanto, há uma nítida limitação colocada ao terapeuta, pois as manifestações deste se reduzem exclusivamente àquelas que proporcionem mudanças nas percepções que o cliente tem de si. Dessa maneira, priorizam-se as interlocuções que garantam ao cliente a sensação de não coerção e liberdade na sua expressão. Há, portanto, um foco na comunicação do cliente, sendo as manifestações do terapeuta uma ferramenta para facilitar tal expressão e, mais fundamentalmente, não atrapalhála.
Poderíamos, portanto, compreender certa unilateralidade da comunicação, pois o terapeuta não se coloca como um interlocutor cuja expressão tem relevo para a relação, mas como um facilitador da expressão do cliente. O terapeuta precisa criar o clima de permissividade para que o cliente se expresse. Mas, parte dessa função passa por criar um espaço no qual juízos e coerções morais não devem se fazer presentes. Inclusive, saindo de cena para não correr o risco de que seus próprios valores intervenham no processo.
A preocupação com o não estabelecimento de qualquer tipo de pressão ou coerção, apontado no último aspecto apresentado, pode ser encontrado ao longo de toda a teoria e prática rogerianas, embora de forma bastante diferente, no que se refere à postura do terapeuta. Ao longo do tempo, Rogers foi ousando propor uma maior pessoalidade do terapeuta, porém diferenciando essa postura de uma pressão ou coerção de base moralista. Nem toda expressão, mesmo que de cunho pessoal e carregada por valores, estabeleceria uma coerção moral ao cliente.
Conforme Cury (1987), ocorre na fase reflexiva a modificação da nomenclatura de não diretiva para centrada no cliente. Essa mudança traz uma alteração de perspectiva. A terapia centrada no cliente sugere um papel mais ativo do terapeuta com sua atenção voltada para o cliente e para os seus próprios sentimentos, provocados pelo cliente (Cury, 1987). Assim, o terapeuta é levado a vivenciar o relacionamento terapêutico de forma mais completa, iniciando a destruição da barreira que dividia o terapeuta no momento da terapia da pessoa que ele era fora da sala de atendimento.
Nesse período, Rogers ensinava psicologia na Universidade de Chicago, onde montou Centro de Aconselhamento (Leitão, 1986). Em 1951, o autor publicou o livro Terapia Centrada no Cliente (Rogers, 1975). Sobre esse momento, Rogers (Evans, 1979, p.56) relata: "Havia muita ênfase nas características filosóficas e na atitude do terapeuta, e um decidido afastamento de técnicas para buscar, talvez ainda às apalpadelas, um relacionamento pessoal íntimo. Foi nessa época que comecei a formular as três condições da terapia". Segundo Barreto (2005), Rogers, nessa fase, busca uma maior sistematização de sua teoria com o início da formulação das três condições da terapia, compreendidas como: a empatia (capacidade de captar com precisão os sentimentos vivenciados pelo ciente), a autenticidade ou congruência (capacidade do terapeuta simbolizar suas experiências no contato com o cliente) e a aceitação positiva incondicional (consideração genuína pelo cliente e suas experiências). Data também desse momento o desenvolvimento da noção de tendência atualizante, princípio norteador presente ao longo de sua obra, posteriormente ampliado gerando o conceito de tendência formativa. A tendência à auto atualização, para Rogers (1997),
constitui a mola principal da vida. [...] É a necessidade que se faz evidente em toda a vida orgânica e humana - de expandir, estender, tornar-se autônoma, desenvolver, amadurecer - a tendência de expressar e ativar todas as capacidades do organismo, ao ponto em que tal ativação aprimore o organismo ou a pessoa. (p.40)
A tendência atualizante estaria presente em todos os indivíduos aguardando condições apropriadas para se expressar. Ela faria parte de uma tendência maior e universal que é a tendência formativa. A tendência formativa, por sua vez, estaria presente num contexto bem mais amplo, incluindo das menores moléculas às galáxias (Wood, 1983). Tais tendências são acusadas de serem demasiadamente otimistas, ingênuas e idealistas, não dando a devida atenção aos fenômenos contrários aos de expansão, ou seja, os de degeneração (Freire, 1987, 1989; Moreira, 2007).
Sobre o afastamento das técnicas em direção às atitudes, Rogers (1951/1975), ao discorrer sobre a formação de conselheiros e terapeutas, critica o foco na técnica. Tal foco criaria certa ortodoxia, de modo que a autenticidade do terapeuta ficaria em segundo plano. Por outro lado, ainda considerava importante o uso da técnica, pois essa proporcionaria uma segurança para o terapeuta iniciante descobrir formas genuínas de atuação. Nesse período, portanto, percebem-se as limitações de uma atuação tecnicista, mas ainda é a partir das técnicas, e sem afastar-se completamente delas, que se busca chegar à eficácia das atitudes.
Dá-se na psicoterapia a procura por um relacionamento pessoal mais próximo, em que se exigia a atenção do terapeuta ao cliente, pois "se, anteriormente, seu papel era ficar fora do caminho do cliente, agora ele é levado a comprometer-se numa busca por compreensão empática do sistema de referência da outra pessoa" (Cury, 1987, p.16). Além disso, para pôr-se em prática a empatia, a congruência e a aceitação positiva incondicional era necessária uma maior atenção ao seu próprio campo fenomenal no momento da terapia.
Esse campo experiencial é formado por tudo o que é experimentado pelo organismo, mesmo que tais experiências não venham a ser captadas pela consciência (Rogers, 1951/1975). A consciência, nesse caso, seria a simbolização de experiências vividas. Rogers (1951/1975) afirma que é a partir desse mundo interno que ocorria uma determinada conduta. O indivíduo, portanto, agiria no mundo a partir das suas percepções sobre este, pois a forma como apreende e experimenta o mundo é para ele a realidade. Assim, modificando-se tais percepções, as condutas poderiam vir a se alterar.
Mas como alterar tais percepções? Rogers (1951/1975) propõe que um maior acesso ao quadro de referência interno permitiria uma maior compreensão das percepções e comportamentos, possibilitando tais alterações. Compreensão é entendida aqui de forma intelectualizada, gerada pela consciência do indivíduo sobre algo. Ao possibilitar a simbolização correta das experiências vividas, permite-se a experimentação de novas percepções e comportamentos. O acesso a esse quadro interno se daria a partir do que é expresso pelo indivíduo em diferentes formas de comunicação, embora o autor considere que a comunicação seja sempre deficiente e imperfeita. Para Rogers (1951/1975) "podemos [... ] inferir, de forma absolutamente directa, a partir da comunicação do indivíduo ou, de modo menos exacto a partir da observação do seu comportamento, uma parcela da observação do seu campo perceptivo e experiencial" (p.479).
A relação estabelecida entre campo fenomenal, consciência e comunicação fundamenta a terapia rogeriana como um espaço para a livre expressão do cliente. Objetivar-se-ia facilitar o acesso ao campo fenomenal deste, permitindo uma maior compreensão das suas condutas. Tem-se também aí a preocupação redobrada do terapeuta em relação ao seu próprio campo fenomenal, pois isso ajudaria a captar com mais precisão o que está sendo comunicado pelo cliente. Buscava-se, assim, melhorar o acesso do terapeuta ao campo fenomenal do cliente, o que auxiliaria a trazer experiências à consciência. Para Rogers (Evans, 1979)
a premissa básica do terapeuta, ou aconselhador, era que o indivíduo tem capacidade suficiente para lidar com todos os aspectos de sua vida que podem vir à consciência. Assim, o terapeuta se esforçava para criar uma relação interpessoal na qual o material pudesse vir à consciência. (p.56)
Dessa forma, existe uma aproximação intencional entre o cliente e o terapeuta na relação, visando maior eficácia. Nessa nova configuração, o terapeuta passa a ter um papel mais ativo e afirma-se uma participação intensa dele na terapia, ainda que não exposta (Cury, 1987). Percebe-se, nessa fase, o relacionamento terapêutico como uma série de relações de causa e efeito. Importava, então, o efeito que as atitudes do terapeuta causavam no cliente, a despeito do reconhecimento dos limites da técnica diante da eficácia das atitudes (Barreto, 2005).
A comunicação, dessa forma, pode ser considerada bidirecional na medida em que abre espaço para a expressão do terapeuta, apesar de sua limitação pelas técnicas. A comunicação na terapia, portanto, passa a descentrar-se do polo das expressões do cliente e é amplia-se às expressões do terapeuta, embora tais expressões sejam ferramentas técnicas que auxiliam no processo do cliente. O terapeuta mantém um distanciamento da relação e de suas experiências pessoais de modo a ser um aplicador de técnicas consideradas eficazes para o processo do cliente. Mesmo que para tanto se faça necessário aproximar-se de seus sentimentos e sensações, que permeiam o momento da relação terapêutica, transformando as técnicas em atitudes.
As dificuldades no atendimento de usuários de hospitais psiquiátricos culminaram em reformulação na configuração da relação terapêutica. A resposta ao conteúdo verbal sentimentos de apreensão e solidão do terapeuta era relevante para o processo terapêutico do cliente (Gendlin, 1987; Cury, 1987). O atendimento desse público levou os terapeutas a perceberem a importância de responder empaticamente não apenas ao conteúdo do que é falado, mas à significação, à experiência sentida, à vivência presente, seja a partir do silêncio quase absoluto seja a partir de outras formas de expressão (Gendlin, 1987), implicando em uma maior presença autêntica por parte do terapeuta. Nessa direção, passa a caber ao terapeuta, na fase experiencial, expressar seus sentimentos, focalizando as formas de experienciar, bem mais que os conteúdos das experiências. A partir desse repensar, Gendlin desenvolveu o conceito de experienciação, ou, como também é conhecido, experiência imediata.
Eugene Gendlin foi um dos colaboradores mais próximos de Rogers, tendo sido membro pesquisador do projeto de psicoterapia com esquizofrênicos em Wisconsin e participado da consolidação da Psicologia Humanista e do surgimento do movimento de grupos de encontro (Messias & Cury, 2006). Ele propôs o termo experienciação para designar a experiência vivida, o "processo de sentimento, vivido corpórea e concretamente que constitui a matéria básica do fenômeno psicológico e de personalidade" (Gendlin, 1961, p.357). Para Barreto (2005), esse conceito levou Rogers a uma reinterpretação do termo experiência, que passou a referendar aquilo que era diretamente sentido. Já Amatuzzi (1989) considera que, com esse novo termo, houve uma complementação, possibilitando uma referência direta à experiência sentida, mas sem substituir o conceito de experiência usado por Rogers anteriormente. Para Amatuzzi (1989):
Ele [Rogers] adotará o conceito de experienciação de Gendlin, ou modo de experienciar. Mas ele não absolutiza nem o toma como substituto do seu conceito de experiência, mas como uma outra forma, em alguns momentos muito útil, de expressar aquilo que ele pretende expressar. É esse 'aquilo-que-ele-pretendeexpressar' que é o mais importante, os símbolos sendo de certa forma relativos. (p.114)
É, portanto, a inovação do falar diretamente sobre o fluxo de experiência imediata que Rogers (1961/1997) reconhece como contribuição do conceito de experienciação quando diz: "Gendlin chamou-me a atenção para a qualidade significativa da vivência como ponto de referência" (p.171). Amatuzzi (1989) ressalta essa perspectiva, ao afirmar que
É nesse ponto que Rogers agradece a Gendlin por ter lhe dado esse referencial que procurava. Gendlin mostrou que podemos ter acesso a uma vivência interior que está além de nossas formulações explícitas, prestando atenção ao sentimento enquanto tal, subjacente a essas formulações (ou ações), o qual tem um significado implícito. É principalmente essa via de acesso à experiência que Rogers acata de Gendlin, por ser prática. (p.116-117)
Foi tomando por base a contribuição do conceito de experienciação, que Rogers (1961/1997) elaborou uma escala de medição do processo terapêutico do cliente descrito como um continuum. Neste, o cliente iria de um estado de rigidez para uma maior fluidez e maleabilidade de sentimentos e de formas de vivenciá-los. Os sete estágios desse continuum podem ser encontrados na obra de referência desse período, Tornar-se Pessoa, publicada em 1961(Rogers, 1997). A teoria passa, portanto, a ser encarada de forma mais dinâmica e o processo terapêutico como fluxo experiencial a partir da contribuição do conceito de experienciação (Barreto, 2005).
Cury (1987) entende que, nesse período, com o redimensionamento da autenticidade do terapeuta, que passa a considerar sua experienciação na relação como parte essencial do processo do cliente, a relação terapêutica torna-se bicentrada ou bipolar. Assim, enfatiza-se a interação de dois mundos em benefício do cliente. Moreira (1990) sublinha que a denominação centrada na pessoa passa, na fase experiencial, a ser insuficiente para descrever o processo terapêutico como experiência de relação intersubjetiva, embora não considere que Rogers, mesmo tendo evoluído nesse sentido, tenha chegado a "soltar suas amarras de uma concepção teórica centrada na pessoa" (Moreira, 1990, p.159). Para a autora, Rogers ainda regride, em alguns momentos, do foco na relação para a pessoa do cliente em atendimentos relatados no período.
Ao se referir a essa fase, Rogers (Evans, 1979) afirma que nela já reconhecia que o terapeuta deveria estar como pessoa no relacionamento terapêutico eficaz, aproximando-se de uma relação Eu-Tu buberiana, caracterizada por um "profundo sentimento de comunicação e unidade" (Evans, 1979, p.57). Assim, nesse momento, ele começa a conferir um caráter maior à relação do que necessariamente à pessoa do cliente. Dessa forma, o terapeuta e o cliente afetam-se mutuamente, mesmo que em níveis diferentes. O que diferencia significativamente o terapeuta é a "disponibilidade [...] para fluir de acordo com as experiências diretamente sentidas durante a interação num grau mais aprofundado do que o cliente" (Cury, 1987, p.22).
Nesse período, segundo Barreto (2005), a congruência "não é mais compreendida como o grau de consciência direta das experiências tomadas isoladamente, mas sim a conscientização de sua experienciação, a ausência de barreiras entre a experimentação e a capacidade de simbolização." (p.176). O termo congruência é tido por Rogers (1997 como "adequação entre a experiência, a consciência e a comunicação" (p.392).
Amatuzzi (1989) atenta para a dúbia compreensão dessa adequação, que pode ser percebida como uma mera equação, na qual o mesmo conteúdo seria passado de um plano para o outro ou a presença de um mesmo conteúdo nos três planos ao mesmo tempo, que é o que acredita que Rogers queria introduzir:
E é isso precisamente (ou seja, a não-separação da experiência e da consciência) que, a meu ver, Rogers pretendia garantir com sua formulação anterior. A autenticidade, então, não seria uma relação entre experiência e consciência, mas uma equação mesmo, nesse sentido de que nela a experiência se torna consciente, os dois níveis funcionam juntos e sem que um substitua o outro, e não no sentido de um conteúdo idêntico que passaria de um nível para o outro (como Gendlin pretende que Rogers tivesse pensado). (p.116)
Tal autor ainda chega à conclusão de que a confusão se dá na medida em que falar desses planos num estado ou modo de ser congruente é diferente de falar deles em incongruência, dependendo, portanto, do ponto de vista acerca dos conceitos. Além disto, não existe uma congruência ou incongruência completa e absoluta. Rogers (1961/1997) refere-se não a um conceito absoluto, mas a uma maleabilidade de graus de congruência. Pois,
os indivíduos diferem no seu grau de congruência e [...] num mesmo individuo esse grau é variável conforme os momentos, grau que depende do que está experimentando e de sua atitude de aceitar conscientemente a sua experiência ou se defender dela. (p.396)
Assim sendo, Amatuzzi (1989) não concebe o conteúdo desses eventos como fixo e definido, acrescentando ainda que
Não somente devemos conceber uma interação entre esses três níveis, como também eles não precisam ser entendidos nesta ordem: experiência - consciênciacomunicação; como se a autenticidade consistisse em resgatar conteúdos da experiência para a congruência e desta para a comunicação. Existe um fechamento do ciclo, unindo comunicação com a experiência formando uma espécie de sistema. E podemos ler este sistema tomando qualquer um dos termos como ponto de partida. (p.119)
Podemos, portanto, compreender a relação estabelecida entre esses planos numa ordem diferente da apresentada por Rogers, a saber, experiência, consciência e comunicação, pois o que existe é uma espécie de sistema, podemos tomar qualquer um desses planos como ponto de partida. Assim, a partir do impacto do conceito de experienciação, a congruência é considerada como a aceitação de determinado sentimento experienciado naquele momento e a capacidade de comunicá-lo, quando necessário.
Devido à imbricação de tais conceitos, a saber, comunicação, experiência e consciência, a nova formulação trouxe também alterações para as noções de consciência e comunicação. Gobbi Missel, Justo e Holanda (2005) apontam que, a partir do conceito de experienciação, de experiência imediata, Rogers modifica sua compreensão de consciência, tornando-a mais fluida. Anteriormente, a experiência era considerada fora da consciência, podendo ser simbolizada, ou seja, representada ou não. Com a ideia de experiência imediata, a experienciação encontra-se dentro da consciência, podendo ser uma experiência diferenciada, consciente, ou mesmo, indiferenciada, não simbolizada. Dessa forma, a consciência passou a ser permeada pela experienciação, ganhando referência no presente imediato e, portanto, maior maleabilidade.
Já a comunicação que se produz nessa nova configuração da relação terapêutica tem características de uma comunicação de mão-dupla. Rogers (1983), ao participar de uma conferência em 1964, afirmou ser a autenticidade, tal como compreendida nessa fase, fundamental para que a comunicação atinja o seu máximo; ou seja, para que as pessoas implicadas possam ouvir e sentir-se ouvidas pela outra pessoa e por si mesmas da forma mais clara e efetiva possível. É este duplo movimento de ouvir e ser ouvido pelos outros e por si mesmo que se nomeia neste artigo uma comunicação de mão-dupla.
O terapeuta passa, portanto, a expressar-se mais livremente, expondo seus sentimentos e sensações pertinentes na relação. Ele expressa o que é comunicado explícita ou implicitamente, a partir da escuta empática efetiva de si e do cliente. Para Amatuzzi (1989): "É por isso que, com Rogers, podemos dizer que o terapeuta responde não às palavras do cliente, mas à comunicação total dele ou àquilo que com essas palavras assim pronunciadas se faz efetiva e intencionalmente presente" (p.173). Uma escuta efetiva seria, portanto, estar aberto ao significado presente nas entrelinhas do que foi expresso, seja através de palavras, silêncio ou gestos, embora não seja papel do terapeuta capturar esse significado de forma acabada. Na verdade, a expressão aponta a experiência, criando novos significados. Assim,
a expressão, por mais fiel que seja ao vivido, é uma ruptura. Por isso mesmo ela nunca é total, deixando sempre um excesso, o qual, entretanto, nem por isso é determinado e acabado. A expressão, por mais adequada que seja, não esgota o vivido, mas aponta para ele. E é nesse apontar que ela cria um significado, atribui um sentido. (Amatuzzi, 1989, p.129)
Tem-se nessa fase, portanto, uma relação marcada por uma comunicação de mãodupla, em que o terapeuta objetiva escutar efetivamente o cliente. Tal escuta permitiria que, no ambiente seguro da terapia, este último possa entrar em contato com as experiências imediatas, explorando e reconfigurando experiências distorcidas, antes consideradas ameaçadoras. Com isto, o cliente poderia vir a modificar a noção que tem de si e aproximar-se valorizando, cada vez mais, o seu próprio fluxo experiencial, criando novos significados. A psicoterapia objetivaria, portanto, a partir de uma maior comunicação intrapessoal do terapeuta - a escuta de si mesmo - uma comunicação mais genuína com o cliente, o que acarretaria, com o tempo, numa maior comunicação intrapessoal por parte do cliente, desencadeando a ressignificação de sentimentos e sentidos.
Ouvir a si, nesse contexto, implica ouvir as relações, incluindo a relação estabelecida na própria terapia. Dessa forma, a comunicação do terapeuta com si mesmo, uma maior atenção aos sentimentos provocados em si na relação com cliente, também são comunicação com o cliente, uma escuta deste (Cury, 1987). Essa escuta compreensiva, primeira, em que o terapeuta procura ouvir o significado pleno, ao ser comunicada ao cliente pode levá-lo a uma maior compreensão de si mesmo. É a isso que estamos chamando de duplo movimento de ouvir e ser ouvido. É um duplo movimento, pois na medida em que ocorre uma escuta de si mesmo, não deixa de haver uma escuta do outro, da relação por eles estabelecida. O ponto de partida de compreensão desse duplo movimento, reafirmamos, é dado por nós, àqueles que tentam estudá-lo. Doravante, a comunicação nos moldes abordados nessa fase é um profícuo espaço de surgimento de falas originárias e se dá também desencadeado por elas. Os momentos de comunicação total e intensa são momentos existenciais de insights e ressignificações de posturas diante do mundo.
Diante da extensão da produção rogeriana para além do período classicamente considerado como a última fase de seu pensamento, a fase experiencial (Cury, 1987), Moreira (1990; 2007) e Holanda (1998) propuseram uma nova fase, a coletiva ou inter-humana, iniciada em 1970, que abrangeria os últimos quinze anos de trabalho do referido autor.
Nesse período Rogers afastou-se da prática clínica, embora ainda realizasse demonstrações de atendimento individual coletivamente (Moreira, 1990). Passou a dedicar-se a pequenos e grandes grupos, além do interesse por questões interculturais, como na mediação entre grupos de interesses antagônicos na África do Sul, no período do apartheid, ou entre católicos e protestantes, na Irlanda do Norte (Rogers, Wood, O'Hara, & Fonseca, 1983). Percebe-se, assim, uma maior preocupação com as relações humanas de uma forma geral e a ampliação dos preceitos da psicoterapia a novos campos de atuação, como a mediação de conflito e intensificação na área da educação. Leitão (1986) resume o panorama de transformações ocorridas na prática rogeriana. Para essa autora, tal prática tem início na relação psicoterapêutica, com a focalização do indivíduo, seguida da relação de pessoa para pessoa, chegando ao processo da relação interpessoal, quando estendida às relações humanas no geral.
Surge, desta forma, em 1976, a expressão centrada na pessoa (Gobbi et al., 2004/2005), que passa a referir-se não mais ao cliente, mas à pessoa inteira (Wood,1983) em qualquer relação interpessoal, não apenas psicoterapêutica. Para Wood (2008), a nomenclatura Abordagem Centrada na Pessoa é utilizada para designar a intensificação da atuação nessas outras áreas com foco nas interações sociais e compreende os últimos 30 anos de Rogers. Tem-se, portanto, a busca por relações interpessoais facilitadoras de crescimento dos envolvidos, sejam duas ou mais pessoas. Essa última fase é caracterizada também por uma preocupação com o futuro do homem e do mundo e a transcendência de valores e ideais. Ocorre uma aproximação com outras áreas da ciência como a física e a química (Rogers, 1983), saindo-se do cientificismo tradicional para uma interdisciplinaridade (Gobbiet al., 2005).
Para Wood (1983), o objetivo da terapia centrada na pessoa, individual ou de grupo, é "facilitar a criação de um clima que a tendência formativa possa expressar-se livremente em cada pessoa e no grupo de pessoas" (p.48). Como já explicitado, a tendência formativa é uma ampliação da tendência atualizante, caracterizando-se por ser "sempre atuante em direção a uma ordem crescente e a uma complexidade inter-relacionada, visível tanto no nível inorgânico como no orgânico" (Rogers, 1983, p.45). Nessa fase, como observado, ela ganha destaque na prática rogeriana. Assim, "A tendência formativa pode ser vista movendo para adiante o experienciar de um cliente na presença de uma outra pessoa que é percebida como empática, genuína e cálida." (Wood, 1983, p.60)
Nesse período tem-se uma maior complexidade do esforço terapêutico e envolvimento do terapeuta como pessoa genuína com um número maior de pessoas, aproximandose mais de relações estabelecidas na vida real. Para tanto, o terapeuta renuncia ao controle do intelecto e da teoria para confiar mais na experiência. Existe também uma crença em processos mais intuitivos e o aprofundamento da entrega do terapeuta à complexidade (Wood, 1983).
Sobre a entrega do terapeuta a processos mais intuitivos, percebe-se um viés transcendental presente na atuação terapêutica: "Tenho a certeza de que nossas experiências terapêuticas e grupais lidam com o transcendente, o indescritível, o espiritual." (Rogers, 1983, p.48). Essa transcendência é o pano de fundo para o que Rogers (1983) nomeia de estados alterados da consciência. Segundo Barreto (2005), os estados alterados de consciência são uma espécie de fluxo de consciência da experiência imediata coletiva, um nível comum e compartilhado de consciência. Para Rogers (1983), em tais momentos, ele se aproxima do seu âmago transcendental e dá-se uma comunicação intensa, transcendente e curativa:
Nestas ocasiões, a minha presença, simplesmente, libera e ajuda os outros. Não há nada que eu possa fazer para provocar deliberadamente essa experiência, mas quando sou capaz de relaxar e de ficar próximo do meu âmago transcendental, comporto-me de um modo estranho e impulsivo na relação, que não posso justificar racionalmente e que não tem nada a ver com meus processos de pensamento. Mas esses estranhos comportamentos acabam sendo corretos, por caminhos bizarros: parece que meu espírito alcançou e tocou o espírito do outro. Nossa relação transcende a si mesma e se torna parte de algo maior. Então, ocorrem uma capacidade de cura, uma energia e um crescimento profundos. (p.47)
É, portanto, quando relata estar mais próximo de si, de seu âmago transcendental, que se ele sente lançado para e mais próximo do outro, de forma que transcende a própria relação em direção a um crescimento profundo e compartilhado. Apesar do foco na atuação com grupo, não se exclui tal compreensão da relação terapêutica (terapeuta e cliente) centrada na pessoa. Pode-se, portanto, referir-se a esses momentos de comunicação intensa e mística no cenário terapêutico usual (Bowen, 1987). Dessa forma, a comunicação na relação terapêutica, nesse período, é marcada pela capacidade de intuição do terapeuta e facilitação da ação da tendência formativa na relação. Tem-se, assim, a configuração de uma comunicação estabelecida de forma una, compartilhada coletivamente e mística.
Considerações finais
Buscou-se neste artigo elucidar as diferentes formas de comunicação que permearam as diversas propostas para o relacionamento terapeuta-cliente ao longo da evolução da Abordagem Centrada na Pessoa. Para alcançar este objetivo, utilizou-se de inspiração hermenêutica filosófica, focalizando a possibilidade de uma hermenêutica baseada na ideia de fusão de horizontes. Dessa forma, tomaram-se os escritos rogerianos como horizontes de partida na produção de novas possibilidades, configurações não necessariamente presentes no original. Essas configurações tornam-se possíveis, desencadeando a possibilidade de outros olhares e leituras a partir do embate entre os distintos horizontes iniciais. Para a compreensão da comunicação na obra rogeriana fez-se necessário analisar a configuração da relação terapêutica e as noções de congruência, experiência e consciência nas fases que compõem a trajetória do pensamento deste autor. São elas: a fase não diretiva; a reflexiva; a experiencial e a coletiva ou inter-humana.
Em um primeiro momento, a comunicação segue um fluxo unidirecional, o do cliente. Na fase seguinte, ocorre uma bilateralização do fluxo comunicacional, com uma maior expressão do terapeuta, embora sendo restrita a expressões eficazes ao processo do cliente. Na fase experiencial tem-se a compreensão de uma comunicação de mãodupla, um duplo movimento de expressão e escuta, que acarreta uma maior escuta de si e do outro concomitantemente, gerando um fluxo mais igualitário. Já no último período, encontra-se uma comunicação mística ou transcendental, presente nos momentos de comunicação intensa dos estados alterados de consciência. Nestes, ocorre uma maior entrega do terapeuta à sua intuição e à complexificação, levando à transcendência da relação terapêutica.
Percebeu-se, ao longo desse percurso, uma ampliação das expressões e pessoalidade do terapeuta, com o redimencionamento de sua congruência; uma mudança de foco do cliente para a relação e, depois, sua extrapolação por uma via transcendente; uma maior fluidez teórica e conceitual, com a possibilidade de referência à experiência imediata e modificações na noção de consciência, permitindo acessibilidade à experiência sentida e, posteriormente, um compartilhamento da experienciação coletiva nos estados alterados de consciência.
Conclui-se que, na Abordagem Centrada na Pessoa, a comunicação terapeuta-cliente deve ser compreendida não como um conceito único, mas segundo as diferenças estabelecidas em cada fase do pensamento rogeriano. A compreensão do processo de comunicação a partir da contextualização de cada fase permite um melhor entendimento e ampliação das possibilidades de reflexão crítica acerca da comunicação terapêutica vivenciada atualmente por psicoterapeutas dessa abordagem. Esses profissionais se inspiram em diferentes fases da teoria rogeriana para a sua prática. Estudos posteriores sobre essa temática fazem-se necessários, para explorar as diferentes formas de comunicação possíveis no setting terapêutico, dentre as verbais e não-verbais, assim como as implicações terapêuticas e éticas dos modelos de comunicação terapeuta-cliente adotados pelos psicoterapeutas em sua prática.
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Endereços para correspondência:
Carmen Silvia Nunes de Miranda
csilvinha@gmail.com
José Célio Freire
jcfreire@ufc.br
Submetido em: 16/08/2011
Revisto em: 26/05/2012
Aceito em: 26/05/2012