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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.68 no.3 Rio de Janeiro dez. 2016

 

ARTIGOS

 

Clínica da Atividade: conceitos e fundamentos teóricos

 

Clinic of Activity: concepts and theoretical foundations

 

Clínica de la Actividad: conceptos y fundamentos teóricos

 

 

Francisco Pablo Huascar Aragão PinheiroI; Maria de Fátima Vasconcelos da CostaII; Pamella Beserra de MeloIII; Cassio Adriano Braz de AquinoIV

IDocente. Universidade Federal do Ceará (UFC - Campus Sobral). Sobral. Estado do Ceará. Brasil
IIDocente. Pós-graduação em Educação Brasileira. Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza. Estado do Ceará. Brasil
IIIMestranda. Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza. Estado do Ceará. Brasil
IVDocente. Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza. Estado do Ceará. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A clínica da atividade surgiu na década de 1990 como perspectiva de análise e intervenção sobre o trabalho. Diante da crescente difusão dessa abordagem no Brasil, este artigo pretende apresentar alguns de seus principais conceitos, quais sejam, ofício e atividade, considerando sua interlocução com a teoria histórico-cultural de Vygotsky e com a linguística de Bakhtin. Destacam-se as interpretações sobre a lacuna entre aquilo que a organização "determina" e aquilo que o trabalhador "verdadeiramente faz", a partir de um contraponto com as perspectivas da psicodinâmica do Trabalho e da Ergonomia. Para a clínica da atividade, faz-se necessária uma solução dialética para tal lacuna, propondo-se a superação da dicotomia entre atividade e subjetividade. Discute-se a noção de ofício, destacando-se suas quatro dimensões: pessoal, interpessoal, transpessoal e impessoal. Por último, discute-se o conceito de atividade real, que engloba a atividade realizada e o real da atividade.

Palavras-chave: Clínica da atividade; Ofício; Atividade.


ABSTRACT

The clinic of activity emerged in the 1990s as a perspective of analysis and intervention on work. Given the increasing diffusion of this approach in Brazil, this paper intends to present some of its main concepts, namely, work and activity, considering its dialogue with the cultural-historical theory of Vygotsky and with the linguistic of Bakhtin. The interpretations about the gap between what the organization "determines" and what the worker "truly does" are highlighted from a counterpoint with the perspectives of the psychodynamics of work and of the ergonomics. For the clinic of activity, a dialectical solution to this gap is necessary, proposing to overcome the dichotomy between activity and subjectivity. The notion of work is discussed, highlighting its four dimensions: personal, interpersonal, transpersonal and impersonal. Finally, the concept of real activity, that includes the activity performed and the real of the activity, is discussed.

Keywords: Clinic of Activity; Work; Activity.


RESUMEN

La clínica de la actividad surgió en la década de 1990 como una perspectiva de análisis e intervención en el trabajo. Dada la creciente difusión de esta propuesta en Brasil, tenemos la intención de presentar algunos de sus conceptos fundamentales, esto es, el oficio y la actividad, teniendo en cuenta su diálogo con la teoría histórico-cultural de Vygotsky y la lingüística de Bakhtin. Se destacan las interpretaciones de la laguna entre aquello que la organización "determina" y aquello que el trabajador "realmente hace", a partir de un contrapunto con las perspectivas de la psicodinámica del trabajo y de la ergonomía. Para la clínica de la actividad es necesaria una solución dialéctica a esta laguna, proponiéndose la superación de la dicotomía entre actividad y subjetividad. Se discute la noción de oficio, destacándose sus cuatro dimensiones: personal, interpersonal, transpersonal e impersonal. Finalmente, se discute el concepto de actividad real, que incluye la actividad realizada y lo real de la actividad.

Palabras clave: Clínica de la actividad; Oficio; Actividad.


 

 

Introdução

A Clínica da Atividade possui uma história recente no campo da análise do trabalho. Segundo Silva, Barros e Louzada (2011), tal perspectiva começou a se desenvolver no ano de 1990. No Brasil, as traduções das publicações de seu criador, Yves Clot, ainda estão ganhando corpo. A princípio, podem ser identificados dois livros (Clot, 2007a, 2010a), alguns artigos em livros coletânea (Clot, 2007b, 2011) e em periódicos científicos (Clot, 2006a, 2010b; Fernández & Clot, 2010), além de algumas entrevistas (Clot, 2006b, 2008), ressalvando-se que uma busca mais abrangente pode revelar textos não referidos aqui. Obviamente, sua produção acadêmica é bem mais vasta. Esta constatação mostra que a perspectiva da Clínica da Atividade ainda é pouco difundida no Brasil. Os textos já disponibilizados em português revelam uma enorme precisão conceitual e uma proposta metodológica rigorosa.

Segundo Clot (2008), a Clínica da Atividade é tributária das teorias histórico-culturais em Psicologia e em Linguística. A primeira, elaborada por Lev Vygotsky, e a segunda, pensada por Mikhail Bakhtin. Dentre outros interlocutores, o autor francês também afirma sofrer influência de várias correntes teóricas da tradição francesa de análise do trabalho, mesmo que, em alguns casos, fazendo contrapontos a estas.

Pretende-se, neste artigo, discutir conceitos da Clínica da Atividade, a saber: ofício e atividade. Ao longo do debate, serão apresentadas algumas intercessões teóricas com os autores mencionados acima, a fim de expor suas contribuições para o desenvolvimento do corpo teórico-metodológico da Clínica da Atividade. Inicia-se a discussão com um posicionamento crítico diante de duas importantes correntes contemporâneas dedicadas a compreensão do trabalho, quais sejam, a Ergonomia e a Psicodinâmica do Trabalho. O contraponto a estas perspectivas mostra-se um ponto de partida pertinente para o entendimento dos conceitos da Clínica da Atividade.

Em seguida, realizar-se-á uma explanação acerca da noção de ofício, considerando-se suas quatro dimensões: impessoal, pessoal, transpessoal e interpessoal. Destaca-se a dimensão transpessoal do trabalho, o gênero profissional, como uma construção coletiva que orienta a ação do trabalhador. Por fim, abordar-se-á o conceito de atividade real, que engloba a atividade realizada e o real da atividade, as múltiplas possibilidades não realizadas no decorrer da ação do trabalhador. Espera-se, assim, contribuir para a difusão das ideias da Clínica da Atividade no Brasil, como um campo de estudos e prática em expansão.

 

Tarefa e atividade

Dentro da tradição francesa que se debruça sobre a análise do trabalho, um aspecto é central: não há uma identidade entre aquilo que as organizações determinam ao profissional e o que de fato acontece quando ele assume seu posto de trabalho e desenvolve suas funções. A existência desse fosso parece ser um consenso entre várias perspectivas, todavia a interpretação que é dada a ele tem variações singulares. Adiante, com a finalidade de estabelecer um contraponto com a Clínica da Atividade, segue uma apresentação de como duas perspectivas de enorme relevância para a análise do trabalho, a Ergonomia e a Psicodinâmica do Trabalho, compreendem e lidam com esse fosso.

Em Ergonomia (Guérin, Kerguelen, Laville, Daniellou & Duraffourg, 2001), tem-se uma contraposição entre tarefa e atividade. A tarefa é orientação básica dada ao profissional para delimitar quais suas atribuições e como ele deve proceder para executá-las. Determinada pela organização, a tarefa antecipa as condições de que o indivíduo dispõe, de modo a alcançar um resultado preestabelecido. Nesse ponto, há uma alienação do sujeito, pois ele não é capaz de decidir sobre as limitações, sobre as exigências a que deve se submeter para viabilizar sua ação.

Essa antecipação, contudo, não traduz a realidade que o trabalhador vai encontrar, na medida em que a tarefa é concebida a partir das características médias da população e há diferenças entre os perfis dos profissionais. Somem-se a isso as variações presentes nas matérias-primas, no uso do maquinário, no público a quem se destina o bem ou o serviço prestado, nos relacionamentos entre chefias e subordinados ou mesmo entre colegas, além de imprevistos, intempéries, bem como aspectos que extrapolam o campo mais restrito do trabalho, tais como condições sociais, políticas e econômicas mais amplas que compõem o contexto de desenvolvimento do mesmo. Vê-se, portanto, que a presunção do resultado é uma ficção que se espera obter em condições ideais. Há que se afirmar, entretanto, que a tarefa é essencial, pois é ela, quando delimita a atividade, que dá a permissão para o sujeito agir. Sem uma definição mínima da tarefa, impõe-se ao sujeito uma paralisia que o impede de determinar os cursos que sua ação deve seguir.

Guérin et al. (2001) afirmam que, visando a delimitar e a avaliar a produtividade dos trabalhadores na sua relação com os instrumentos disponíveis para a realização das operações, a tarefa diz respeito aos objetivos que a organização coloca aos trabalhadores, assim como aos modos de proceder para atingi-los. Na tarefa também estão compreendidas as formas de interagir com as ferramentas disponíveis, as instruções relativas a segurança e as definições técnicas do produto a ser fabricado ou do serviço que será prestado.

Há que se considerar, ainda, que a tarefa ganha substância em normas para procedimentos, em manuais necessários à operação de maquinários e em diversos documentos gerados pelas organizações, mas não somente. Há formas de "prescrever sem escrever", de acordo com Falzon (2007). As gerências, supervisores ou chefias, por vezes, têm expectativas em relação às tarefas que não estão expressas explicitamente nos documentos, mas que, apesar de transmitidas tacitamente, orientam a ação dos trabalhadores, por exemplo: diante da urgência para entregar um pedido, determinadas regras de segurança podem ser burladas para garantir a agilidade necessária ao cumprimento dos prazos estabelecidos.

No tocante à atividade, que compõe a outra ponta do par formado com a tarefa, Ferreira (2000) advoga que ela é uma noção essencial para a demarcação do conceito de trabalho para a Ergonomia, pois "se constitui como a [sua] principal fonte produtora de conhecimento" (p. 73). A atividade comporta as estratégias de adaptação à situação real de trabalho. Ao agir, o sujeito precisa se adequar às imposições que lhe são feitas pela tarefa e, ao mesmo tempo, lidar com as contingências que o contexto traz.

Abrahão, Sznelwar, Silvino, Sarmet & Pinho (2009) afirmam que a definição de atividade pode englobar o que o trabalhador faz na sua ação, assim como o que precisa despender de si mesmo para sua execução em termos fisiológicos e psíquicos. A partir desse parâmetro, a atividade torna-se visível na fala do sujeito, em seu modo de se portar, nos movimentos e deslocamentos realizados e até mesmo na direção do olhar.

Falzon (2007) assume que "a atividade é o que é feito, o que o sujeito mobiliza para efetuar a tarefa. A atividade é finalizada pelo objetivo que o sujeito fixa para si, a partir do objetivo da tarefa" (p. 9). Na definição de Daniellou e Béguin (2007) tem-se que a atividade integra, na ação, as respostas dadas aos determinantes a que o trabalhador está submetido; determinantes oriundos da tarefa prescrita formalmente, do coletivo de trabalho ou de caraterísticas e de limitações pessoais.

 

Trabalho prescrito e trabalho real

A Psicodinâmica do Trabalho, por seu turno, distingue o trabalho real do trabalho prescrito. No início de suas investigações, Dejours (Dejours & Abdoucheli, 1994), fundador desta perspectiva teórica, procurava por patologias mentais específicas a cada ofício. O autor francês acreditava que as pressões a que os trabalhadores eram submetidos, das quais decorreriam afecções mentais características de cada profissão, seriam evidenciadas pela análise das condições e da organização do trabalho, bem como dos métodos aplicados pelas gerências. Pressupunha-se que "se as pressões do trabalho [...] são as mesmas para todos os membros de um grupo de trabalhadores [...] será satisfatório poder identificar consequências similares, senão idênticas, sobre o estado mental de todos os membros do grupo trabalhador considerado" (Dejours & Abdoucheli, 1994, p. 123). A procura por tais afecções se mostrou infrutífera. Constatou-se que as resistências pessoais impediam o surgimento de patologias uniformes em todo o coletivo de trabalho, na medida em que os sujeitos se mostravam capazes de se defender das pressões impostas pelo trabalho.

Viu-se que, coletivamente, os trabalhadores faziam descrições de pressões absolutamente diferentes daquelas apresentadas pelos gestores ou visíveis na observação imediata. Além de uma leitura singular do contexto em que estavam inseridos, os trabalhadores também criavam, em conjunto, estratégias para suportar tais constrangimentos, sejam eles oriundos das condições ou da organização do trabalho. Tais pressões eram fontes de sofrimento, mas não necessariamente de adoecimento. Sobre isto, é preciso ressaltar a ênfase dada à organização do trabalho como implicada com a saúde mental, em contraposição às condições de trabalho, que infligiriam possíveis danos de ordem fisiológica.

A partir destas constatações, vê-se que a própria definição do conceito de trabalho está amalgamada à ação do trabalhador ao lidar com as prescrições da organização e as variações inerentes à realidade. Desta feita, para Dejours (2004), a noção de trabalho não está associada à vinculação empregatícia ou à obtenção de uma remuneração, mas à capacidade do sujeito de se engajar - por meio de seus movimentos, inteligência, conhecimentos, criatividade - na resolução de tarefas, cujo escopo é formatado pelas pressões sociais e técnicas. O autor ressalva que, por mais precisa que seja a concepção das tarefas, dos métodos, das instruções para o uso de equipamentos e da organização do trabalho, o trabalho somente é capaz de atingir seus objetivos se todos esses postulados forem, em alguma medida, burlados e modificados: "para que o processo de trabalho funcione, é preciso reajustar as prescrições e afinar a organização efetiva do trabalho, diferente da organização prescrita" (Dejours, 2004, p. 32). A partir disso, compreende-se que

Trabalhar é preencher a lacuna entre o prescrito e o real [...] o que é preciso fazer para preencher esta lacuna não tem como ser previsto antecipadamente. O caminho a ser percorrido entre o prescrito e o real deve ser, a cada momento, inventado ou descoberto pelo sujeito que trabalha. [Desta forma] o trabalho se define como sendo aquilo que o sujeito deve acrescentar às prescrições para poder atingir os objetivos que lhe são designados; ou ainda aquilo que ele deve acrescentar de si mesmo para enfrentar o que não funciona quando ele se atém escrupulosamente à execução das prescrições (Dejours, 2004, p. 28).

O real do trabalho, aquilo que escapa à habilidade do sujeito, se manifesta de modo afetivo, através do fracasso do trabalhador em dar conta das variações e imprevisibilidades. Nesse sentido, há, para aquele que atua, uma relação de sofrimento decorrente do trabalho. Sofrer é compreendido como pathos, como ser afetado por esse real. Ainda segundo Dejours (2004), esse sofrimento não é o final de um processo. Ele é o início de um engajamento subjetivo, por meio do qual nasce uma inteligência utilizada para tentar superar as resistências do real em ser dominado.

Esta é uma inteligência corporificada, que não é dada a priori e é constituída na atividade, em meio ao coletivo de trabalho. Diz-se corporificada sem limitá-la à dimensão biológica do organismo, mas afirmando o corpo como morada da subjetividade, entendendo que ele é permeado por experiências afetivas e comprometido na relação com o outro. No entendimento de Molinier (2003), este corpo é aquele "em que habitamos, aquele através do qual nós experimentamos a vida, o sofrimento, o prazer, a excitação sexual, o desejo" (p. 44).

Nesse sentido, o trabalho que interessa, que parte do sofrimento e faz-se valer da inteligência corporificada, encontra-se no campo subjetivo, portanto não é passível de verificação ou avaliação a partir de sua experiência concreta. Até mesmo porque, ao fugir das prescrições e achar seu modo singular de agir, o trabalhador corre o risco de sofrer sanções por parte das gerências, implicadas em manter o controle de procedimentos e operações.

O real também se manifesta no campo social, na medida em que o trabalho sempre tem um destinatário (colega, chefe, patrão, cliente). No espaço comum a todos os trabalhadores, a própria inteligência é colocada à prova, pois nem todas as artimanhas são aceitas pela coletividade, de sorte que uma série de acordos, explícitos ou tácitos, garantem a convivência do grupo e mesmo um esforço conjunto da inteligência para a superação das dificuldades. Amplia-se, por conseguinte, a definição de trabalho:

O trabalho não é apenas uma atividade; ele é, também, uma forma de relação social, o que significa que ele se desdobra em um mundo humano caracterizado por relações de desigualdade, de poder e de dominação [...] Assim o real do trabalho não é somente o real da tarefa, isto é, aquilo que, pela experiência do corpo a corpo com a matéria e com os objetos técnicos, se dá a conhecer ao sujeito pela sua resistência a ser dominado. Trabalhar é, também, fazer a experiência da resistência do mundo social; e, mais precisamente, das relações sociais, no que se refere ao desenvolvimento da inteligência e da subjetividade. O real do trabalho, não é somente o real do mundo objetivo; ele é, também, o real do mundo social (Dejours, 2004, p. 31).

A concepção metodológica da Psicodinâmica do Trabalho está relacionada, por um lado, à invisibilidade do trabalho real e, por outro, à compreensão da coletividade da inteligência no espaço de trabalho. Nas ações visíveis, não se pode alcançar o verdadeiro trabalho desempenhado pelo sujeito. Portanto, a partir da observação do método da Ergonomia, não se pode extrair as façanhas da inteligência. Decorre daí um distanciamento da análise da atividade realizada e a procura pela fala do sujeito. Não interessa, entretanto, a fala individual, mas as construções coletivas, as estratégias formuladas pelo grupo diante das pressões que lhes são impostas (Heloani & Lancman, 2004).

De forma sintética, pode-se averiguar que, na Ergonomia, a atividade foi definida como objeto e a observação foi considerada o método adequado para o seu estudo. A Psicodinâmica, derivada da Psicopatologia do Trabalho, pela via da fala coletiva, se atém à subjetividade. De acordo com Molinier (2003), "a subjetividade é o próprio objeto da Psicodinâmica do Trabalho" (p. 44).

Na interpretação sobre a defasagem entre o que se ordena e aquilo que se realiza, tem-se, então, atividade, por um lado, e subjetividade, por outro. Observação e escuta. Em relação a isto, Clot (2010b) pontua que a ergonomia, focada nos modos como o trabalhador realiza suas operações em situações reais de trabalho, não se interessa, a princípio, pelos discursos e centra seus esforços na observação da atividade. A psicopatologia do trabalho, por sua vez, descarta a necessidade das observações e centra sua atenção na palavra proferida pelos trabalhadores.

A Clínica da Atividade, conforme ver-se-á adiante, propõe, teórica e metodologicamente, uma solução dialética na qual se supere a separação entre atividade e subjetividade, de modo a constituir uma unidade de análise em que estes dois termos estejam contemplados, ou melhor, intrinsecamente relacionados. Nas palavras de Clot (2010b): "de um lado, o risco de uma atividade sem subjetividade e, de outro, de uma subjetividade sem atividade. Podemos dizer que a clínica da atividade busca ultrapassar essa dificuldade" (p. 226-227).

 

O ofício

Para a Clínica da Atividade, é preciso ir além da distinção entre tarefa e atividade, trabalhos prescrito e real. O contraponto se dá em torno da capacidade heurística destes pares. Em relação a isso, Clot (2010a) faz uso da crítica de Bakhtin à Linguística de Saussure (1972): a língua (prescrita) não é oposta à fala (do sujeito em ação), tal como o social ao individual, pois entre elas há gêneros discursivos estáveis que permitem a comunicação. Este último opõe a língua, enquanto conjunto virtual-abstrato de formas socialmente convencionadas, à fala, momento em que essa, virtualizada, se materializa na manifestação verbal de um falante individualmente considerado. Bakhtin (1997) argumenta que, nesta perspectiva, a língua não é considerada como prática social, na qual os sujeitos são constituintes e constituídos, mas como "ser social", ou seja, forma fetichizada da linguagem. Por outro lado, ao tomar a fala como o individual em oposição ao social, esta concepção esquece que o falante e sua experiência privada são também produto social. Este falante não é um indivíduo, mas um sujeito socialmente produzido, cuja enunciação é socialmente condicionada, uma vez que a linguagem é a expressão de sua subjetividade a se confrontar ou a incorporar a expressão das outras subjetividades.

Para definir os gêneros discursivos, Bakhtin (1997) afirma que a atividade humana é permeada pelo emprego de enunciados que dão efetividade ao uso da língua. Cada âmbito em que é realizada uma atividade garante uma constituição específica do enunciado, bem como determina sua finalidade, de modo que este é formado, de maneira indissolúvel, por seu conteúdo temático, estilo e construção composicional, ou seja, respectivamente, o assunto sobre o qual se fala, quais recursos da língua (gramaticais, por exemplo) são empregados e o modo como esses recursos constroem uma formação específica. Desta forma, Bakhtin (1997) afirma que os gêneros do discurso são enunciados relativamente estáveis construídos pela língua, a despeito destes serem considerados individuais quando vistos isoladamente. As diversas formas de atividade humana comportam repertórios variados de gêneros, cujas facetas se ampliam à medida que a própria atividade é desenvolvida e se torna mais complexa.

Considerando esta definição sobre os gêneros discursivos, para Clot (2010a) estes:

[...] são os falares sociais em uso em determinada situação, nos são praticamente dados, assim como nos é dada a língua materna. Tanto quanto as formas gramaticais, os gêneros organizam nossa fala. Na melhor das hipóteses, o sujeito chega a recriá-los, mas não os cria. Mais do que dados, eles são emprestados para que ele seja capaz de falar e ser entendido pelos outros [...] A fala não é, portanto, um ato puramente individual oposto à língua como fenômeno social. Existe outro regime social da linguagem organizado segundo as formas sociais catalogadas da fala em um domínio de atividades (p. 121).

De forma análoga, entre prescrito e real, tarefa e atividade, interpõem-se gêneros profissionais: culturas de trabalho tácitas, construídas por um coletivo, que orientam a atividade do sujeito. Além das prescrições da organização, há vários acordos implícitos que os sujeitos fazem e que são transmitidos entre os membros do grupo. Tais combinações dão suporte à atividade dos trabalhadores, determinando os modos característicos de agir daquele grupo.

A "organização do trabalho" (presente de forma explícita ou implícita) dá o arcabouço inicial pelo qual o sujeito se guia e, como visto acima, quase sempre é pervertida diante das contingências e variabilidades impostas pela situação de trabalho concretamente experienciada. O "gênero profissional" ou "trabalho da organização" compõe a história transpessoal do coletivo de trabalho, provendo normas que orientam a ação, "uma história que não é apenas a história dos sujeitos concernidos mas a história de um ofício (métier) que não pertence a ninguém em particular mas pela qual todos, no entanto, se sentem responsáveis" (Clot, 2011, p. 73). Normatividade que difere daquela imposta antecipadamente pelas gerências, pois é forjada no convívio cotidiano, nas trocas e nos diálogos, mas que, ao se consolidar momentaneamente, não é necessariamente expressa para ser compreendida, pois o sucesso dessas orientações coletivas está na economia que promovem ao mobilizar o sujeito para ação. Clot (2010a) define o gênero profissional como:

[...] a parte subentendida da atividade, o que os trabalhadores de determinado meio conhecem e observam, esperam e reconhecem, apreciam ou temem; o que lhes é comum, reunindo-os sob condições reais de vida; o que sabem que devem fazer, graças a uma comunidade de avaliações pressupostas, sem que seja necessário re-especificar a tarefa a cada vez que ela se apresenta. É como uma "senha" conhecida apenas por aqueles que pertencem ao mesmo horizonte social e profissional. Essas avaliações comuns subentendidas [...] estão entranhadas na carne dos profissionais, pré-organizam suas operações e sua conduta; de algum modo, estão grudadas às coisas e aos fenômenos que lhes correspondem [...] O gênero, como intermediário social, é um conjunto de avaliações compartilhadas, que, de maneira tácita, organizam a atividade pessoal (p. 121-122).

O gênero garante a pertença do sujeito a um coletivo e é, igualmente, uma ferramenta para ação. Permite que os pares se reconheçam, se comuniquem e atuem conjuntamente, mesmo quando nunca o fizeram previamente (Clot, 2007a). Forma, ainda, uma etiqueta social para o convívio entre os profissionais e para manejar as relações interpessoais que se formam em torno de objetivos de ação comuns. Por outra via, é um instrumento para a mobilização e determina as formas de proceder aceitas pelo coletivo. Recorre-se ao gênero para evitar os erros, recorrem-se às normatividades e descrições providas pela memória coletiva comum. Ao gênero cabe uma função psicológica essencial, de onde decorre seu caráter transpessoal, porque não vincula sujeitos entre si, entretanto, profissionais em suas interações (Clot, 2010a). Conforme Clot (2007a), o gênero, em uma situação dada, determina as atividades, todavia prescinde das idiossincrasias dos indivíduos que as realizam. Garante-se, para além de uma relação interpessoal específica, a interação entre profissionais, tornando os lugares que esses ocupam instrumentos para própria ação. Assim, o gênero "diz, sem dizer, o que deve fazer em tal ou qual situação o suposto desconhecido que jamais vamos conhecer" (p. 50).

A ideia do gênero como uma ferramenta tem suas raízes no pensamento de Bakhtin (1997), mas, neste caso, como um instrumento utilizado para a fala de um modo geral. Para compreender este postulado é essencial aprofundar a definição de enunciado expressa acima.

O linguista russo afirma que a "fala só existe, na realidade, na forma concreta dos enunciados de um indivíduo: do sujeito de um discurso-fala. O discurso se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dessa forma" (Bakhtin, 1997, p. 293). A fronteira de um enunciado, a demarcação que lhe permite se diferenciar dos demais, está na sucessão que se estabelece entre aqueles que falam. O interlocutor reconhece a pausa no discurso daquele que lhe fala e entende essa sinalização como a passagem da palavra para si, o que demanda uma resposta, mesmo que passiva ou mesmo que não verbal, mas expressa em uma ação que surge como réplica ao enunciado que lhe chega. Assim, o diálogo, que demanda réplicas, pressupõe a presença do outro.

O enunciado, além de caracterizado pela sucessão nas falas entre os interlocutores, também é demarcado por seu acabamento, ou seja, a finalização que o sujeito lhe dá, que suscita a resposta do outro. Tal acabamento é constituído por três fatores: o tratamento dispensado ao sentido que é atribuído ao enunciado, a intenção discursiva do locutor e o gênero utilizado para efetivar o acabamento, sendo este último fator o mais relevante para Bakhtin (1997). Desta feita, a citação a seguir, na qual o entendimento sobre o uso instrumental do gênero é expresso, merece destaque:

Para falar, utilizamo-nos sempre dos gêneros do discurso, em outras palavras, todos os nossos enunciados dispõem de uma forma padrão e relativamente estável de estruturação de um todo. Possuímos um rico repertório dos gêneros do discurso oral e escritos. Na prática, usamo-los com segurança e destreza, mas podemos ignorar totalmente a sua existência teórica [...] Na conversa mais desenvolta, moldamos nossa fala às formas precisas de gêneros, às vezes padronizados e estereotipados, às vezes mais maleáveis, mais plásticos e mais criativos [...] Esses gêneros do discurso nos são dados quase como nos é dada a língua materna, que dominamos com facilidade antes mesmo que lhe estudemos a gramática [...] Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e, menos ainda, é óbvio, por palavras isoladas). Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a organizam as formas gramaticais (sintáticas) [...] Se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível (Bakhtin, 1997, p. 301-302).

Os gêneros, apesar da facilidade com que são utilizados, impõem uma normatividade ao falante, na medida em que ele os coleta do meio social e não os cria. Decorre desta constatação a crítica à linguística de Saussure mencionada acima, na medida em que não se sustenta a oposição entre o enunciado e o sistema linguístico. Aquele como ação individual, mesmo considerando sua singularidade, e este, que teria uma função prescritiva ao indivíduo, como um fenômeno social (Bakhtin, 1997).

Cabe pontuar que o gênero profissional não é uma entidade fixa. Ao contrário, seu vigor está em, continuamente, ser renovado a partir de suas confrontações com a atividade real. É nesse ponto, quando o sujeito interpõe o gênero entre si e os objetivos a alcançar, que se constitui a atividade estilística: forma-se, desta maneira, o estilo profissional. É ele que propicia o desenvolvimento do gênero a partir de sua transformação. Segundo Clot (2010a), o sujeito, ao atuar, emprega seu estilo a partir de uma apropriação dos gêneros, tendo em vista as circunstâncias imediatas da situação vivida. O gênero, e as diversas facetas que o compõe, precisa ser habilmente manipulado pelo operador, a fim de atingir os objetivos implicados com a ação.

Se, por um lado, o estilo se interpõe entre a história do coletivo e o indivíduo em ação, ele também se coloca entre o sujeito e sua história pessoal. É nesse sentido que Clot (2010a) afirma que o estilo possui uma "dupla vida". Toda a memória pessoal, preenchida por elementos afetivos, corporais, operacionais, dentre outros, construída ao longo da vida do sujeito, se coloca à disposição como ferramenta, mas também como limitação, para superar as dificuldades impostas pela atividade real. A partir disto, compreende-se que o estilo é "um 'misto' que confirma a liberação possível da pessoa em relação a sua memória singular da qual ela, entretanto, continua sendo sujeito e de sua memória transpessoal e social da qual permanece forçosamente o agente" (Clot, 2010a, p. 129).

A noção de estilo na linguística bakhtiniana (Bakhtin, 1997) decorre da ideia de que os enunciados, mesmo aqueles enunciados típicos que caracterizam o gênero discursivo, são individuais e, assim, trazem consigo elementos da singularidade daquele que os profere. Há, por conseguinte, uma relação indissolúvel entre estilo e gênero. Ressalve-se, contudo, que nem todo gênero é propenso ao estilo. O gênero militar, por exemplo, rigidamente padronizado, não permite ao sujeito que expressa ordens estritamente estipuladas uma variação que não seja aquela inerente a sua compleição física, relacionada ao timbre da voz. O estilo, como intenção criativa daquele que se expressa, se faz presente, por exemplo, no gênero literário, mas nos outros é um fenômeno secundário. Há que se dizer também que o estilo ganha sua forma dentro dos limites do gênero ao qual está vinculado.

As duas dimensões, transpessoal e pessoal (gênero e estilo profissionais, respectivamente), apresentadas até o momento, não são suficientes para situar o entendimento que a Clínica da Atividade tem sobre o conceito de ofício, apesar de já situarem a limitação da dicotomia entre prescrito e real para a análise da atividade. Há que se delinear também as dimensões impessoal e interpessoal, pois o ofício é definido como uma "estrutura arquitetônica" composta por quatro dimensões que mantêm uma tensão recíproca (pessoal, interpessoal, impessoal e transpessoal). A conexão estrutural entre estas dimensões contribui para a vitalidade daquele que trabalha, pois limita a perda de energia psicológica. Assim, "[...] saúde e eficácia no trabalho dependem da fluidez dessas relações tensas" (Clot & Kostulski, 2011, p. 684-685, tradução nossa).

A dimensão impessoal do ofício abarca a tarefa, a organização do trabalho, a infraestrutura disponível, as condições de trabalho de modo geral, dentre outros aspectos já discutidos acima. Seu caráter impessoal está em os sujeitos serem perfeitamente substituíveis ou permutáveis, na medida em que a definição das tarefas e funções, bem como dos meios pelos quais a atividade deve se realizar, cabe à organização (Clot, 2011). O trabalhador, a princípio, não pode determinar tais características, sendo elas minimamente constantes para qualquer um que resolva atuar sob tais condições.

A dimensão interpessoal compreende os diálogos e relacionamento entre pares e demais membros da organização. A Clínica da Atividade, em suas intervenções, se apoia nessa dimensão como forma de acessar e produzir efeitos sobre as demais.

Para compreender o ofício, é necessário, portanto, levar em conta essas quatro dimensões (impessoal, interpessoal, transpessoal e pessoal) que escapam à observação direta e, ao mesmo tempo, também não podem ser completamente visualizadas quando o pesquisador interage com o sujeito sem considerar o contexto de realização de sua atividade (Clot & Kostulski, 2011).

 

A atividade real

No reposicionamento diante da tradição francófona de análise do trabalho promovido pela Clínica da Atividade (Clot, 2007a), é preciso apontar também que há uma reconceituação acerca da noção de atividade. O que é visível nas interações entre sujeito e objeto de trabalho, gestos ou comunicações, é somente uma pequena parte da atividade desempenhada. Ao agir, o trabalhador não lida somente com o gesto executado, mas com todas as demais possibilidades que precisaram ser deixadas de lado para que uma em especial fosse vencedora. Esconde-se da observação um diálogo interior no qual o sujeito arbitra os caminhos que sua ação deve seguir, o curso que não deve tomar, ou mesmo quando se impõe fazer o que não é preciso e aquilo que o afasta de atender às expectativas que nele são depositadas. Nesse caso, o movimento psíquico, em si, já é um agir do sujeito a ser explorado e compreendido e não somente a força vencedora em meio a essa movimentação. Deve-se considerar as inúmeras possibilidades irrealizadas que dariam cursos distintos ao desenvolvimento da atividade. Vê-se que, assim como na perspectiva vygotskyana (Vygotsky, 1995), a dicotomia interno-externo aqui também é superada. A interação, construto central nas teorias que embasam a Clínica da Atividade, é suposta em diferentes planos de ação, nos quais a subjetividade e a objetividade estão mutuamente implicadas num dado contexto histórico.

Outra diferenciação proposta pela Clínica da Atividade (Clot, 2007a) está em postular que não é possível presumir que o trabalhador, ao assumir seu posto, imediatamente se desfaça dos outros papéis que ocupa (pai, filho, marido, religioso, peladeiro de fim de semana, dentre outros) e esteja plenamente disponível para a consecução de suas tarefas. Também podem ser consideradas questões oriundas do contexto de trabalho que se colocam ao sujeito, mas que não dizem respeito à execução da tarefa em si: o medo do desemprego ao ser mal avaliado ou por não cumprir metas de produtividade, por exemplo. Todas as interações e necessidades vinculadas a estes papéis permeiam o cotidiano de trabalho e entram na competição citada acima. Diante dessa constatação, compreende-se que a atividade é também marcada pelas "pré-ocupações" que acompanham o sujeito. É preciso, a cada instante, assenhorar-se de si, num julgamento em que pesam o sentido do que se faz e a necessidade de eficácia da ação, e dominar as inúmeras opções ou interferências que se apresentam àquele que tem diante de si uma atividade a realizar.

Diante do quadro acima delineado, a Clínica da Atividade (Clot, 2007a) conclui que a atividade a que se refere a Ergonomia, aquela que se traduz nos gestos e nas interações do sujeito com seu objeto de trabalho, não corresponde a tudo que se passa no decurso da ação do profissional. Esta passa a se denominar "atividade realizada". Soma-se a ela o real da atividade, no qual se fazem presentes todas as possibilidades não efetivadas, as quais o sujeito tem que manejar. A existência desse devir da atividade, desses caminhos possíveis, mas não explorados ou abandonados por qualquer razão, é que possibilita o seu desenvolvimento. A formulação de Clot (2010a) é esclarecedora:

O real da atividade é, igualmente, o que não se faz, o que se tenta fazer sem ser bem sucedido - o drama dos fracassos - o que se desejaria ou poderia ter feito e o que pensa ser capaz de fazer noutro lugar. E convém acrescentar - paradoxo frequente - o que se faz para evitar fazer o que deve ser feito; o que deve ser refeito, assim como o que se tinha feito a contragosto [...] Ora, a existência dos sujeitos é tecida nesses conflitos vitais, que eles procuram reverter em intenções mentais, para deles se desprenderem. A atividade é uma provocação subjetiva mediante a qual o indivíduo se avalia a si próprio e aos outros para ter a oportunidade de vir a realizar o que deve ser feito. As atividades suspensas, contrariadas ou impedidas - até mesmo as contra-atividades - devem ser incluídas na análise (p. 103-104).

A fim de justificar a necessidade de se considerar o não realizado pelo sujeito como elemento pertinente à análise do trabalho, Clot (2007a) retoma o texto de Vygotsky (1991) "A consciência como problema da psicologia do comportamento". Nele, o autor russo afirma que "cada minuto do homem está cheio de possibilidades não realizadas" (Vygotsky, 1991, p. 50).

Conforme Vygotsky (1991), a metáfora mais adequada para explicar o funcionamento do sistema nervoso no comportamento humano, no qual se efetiva um processo dialético entre o meio, o sujeito e sua vida psíquica, é de uma multidão em pânico que tenta deixar um prédio que dispõe somente uma porta estreita. Apesar de todas as pessoas tentarem desesperadamente deixar o local, apenas algumas sobrevivem ao cruzar a pequena saída. De forma análoga, inúmeras reações são consideradas diante das contingências que se apresentam ao organismo, mas poucas se efetivam. Depreende-se, então, que "o comportamento do homem e o estabelecimento nele de novas reações condicionadas são determinadas não somente pelas reações complexas, manifestas e totalmente explícitas, mas por aquelas não reveladas externamente, que não podem ser facilmente vistas" (Vygotsky, 1991, p. 52).

É preciso discorrer, ainda, sobre os múltiplos destinos da atividade, na medida em que esta não se dá por uma ligação direta e unívoca entre o sujeito e o objeto de sua ação. Na perspectiva da Clínica da Atividade, assume-se que a atividade é triplamente dirigida. Por um lado, existe a conduta do sujeito, cuja relação com os objetos é sempre mediada por outros sujeitos, presencialmente ou virtualmente, de tal modo que o sujeito, mesmo que isolado em seu posto, tem uma conexão, ainda que aparentemente invisível, com colegas, chefias e usuários do produto fabricado ou serviço prestado. A atividade, deste modo, é sempre atividade para o outro, ou mesmo uma contra-atividade, não no sentido de uma oposição, mas como uma sensibilidade responsiva à atividade de outrem. Para Clot (2007a), "na situação vivida, [a atividade] é dirigida não só pelo comportamento do sujeito ou dirigida por meio do objeto da tarefa, mas também dirigida aos outros" (p. 97), cabendo ao gênero profissional realizar a mediação entre estes eixos.

Um exemplo dado por Clot (2007a) é o dos condutores de trem na França. Estes, apesar de percorrerem inúmeros quilômetros de trilhos solitários em suas cabines, têm de mediar suas ações e interesses a partir da relação com os usuários do sistema e com os controladores de tráfego. Os passageiros precisam de pontualidade e conforto, portanto é essencial que se evitem paradas bruscas e que o horário dos comboios seja seguido à risca. Aos controladores, cabe garantir a segurança dos comboios, regulando a abertura e o fechamento de sinais. Deste modo, os condutores precisam lidar com as avaliações e decisões que são tomadas por quem assume o controle do percurso.

Com esta renovação conceitual, pensada a partir de uma revisitação da tradição francófona de análise do trabalho, procura-se reposicionar a relação entre atividade e subjetividade. Não se deve pensá-la estanque, formada por dois polos apartados, pois "a atividade é [...] o continente escondido da subjetividade no trabalho" (Clot, 2001, p. 49). Na medida em que se incluem as ações impedidas no interior da atividade, ao se delimitar a noção de real da atividade, atina-se para o movimento em direção a si próprio que o profissional efetiva para viabilizar sua ação. Agir é também voltar-se em direção à atividade do outro, seja ela como destino da ação ou como forma de proceder consolidada, de forma temporária, na história transpessoal do gênero. Clot (2010b) propõe que:

A atividade não é o contrário da subjetividade. A subjetividade eu a defino claramente [...] como uma relação entre atividades. A subjetividade é uma atividade sobre a atividade. É a minha atividade ou a atividade de meu colega de trabalho como objeto de pensamento. É assim que se desenvolve a produção subjetiva de minha experiência. Portanto, não somos obrigados a escolher entre atividade e subjetividade (p. 225).

Mas esta definição só se sustenta porque "a atividade realizada não tem o monopólio do real da atividade" (Clot, 2010b, p. 226). Nesse sentido, há espaço para o desenvolvimento, pois existem mais possibilidades do que a que se manifestou concretamente na ação. Há, portanto, a condição necessária para se agir sobre o próprio agir, para voltar-se sobre o próprio fazer, e para se realizar como sujeito.

 

Considerações finais

No início da discussão aqui empreendida, viu-se como o fosso entre tarefa e atividade é tratado pela Ergonomia e pela Psicodinâmica do Trabalho. Apesar de o reconhecerem e centrarem seus esforços em lidar com ele, ambas carecem de uma solução dialética que articule atividade e subjetividade na produção de suas análises. Nesse fosso cabem: ou a ação do sujeito ou a sua fala; ou os modos de proceder ou a significação sobre aquilo que se faz. Diante disto, fez-se necessário à Clínica da Atividade tratar do sujeito que, ao agir, constrói significados sobre sua ação e, para além disso, pode reformulá-los e elaborar novas formas de proceder a partir do coletivo de trabalho.

Esse coletivo provê ferramentas para ação ao criar enunciados que se estabilizam em normas tácitas sobre como reagir diante do lapso em que se encontra o trabalhador quando toma sua tarefa e se dirige ao posto de trabalho. O gênero profissional só se torna possível, pois, ao sujeito que dele se apropria, é facultado o direito de renová-lo impondo sua marca pessoal. A pessoalidade se faz absolutamente necessária, porque o gênero, como qualquer prescrição, não dará conta de todas as intempéries com as quais a atividade tem de lidar. Dessa maneira, o trabalhador, a partir de seu estilo, insere na história do gênero suas vivências e experiências que, em larga medida, superam aquelas experimentadas exclusivamente no contexto de trabalho.

A compreensão sobre o ofício se completa com o entendimento de que esse trabalhador mantém relacionamentos interpessoais intrínsecos a sua posição e de que a ele são impostas condições para agir. Condições sobre as quais nem sempre tem controle e que podem ser aplicadas indistintamente a qualquer um que ocupe seu posto. Elabora-se, desta forma, a estrutura básica que permite dar inteligibilidade ao ofício, composta pelo gênero e pelo estilo profissionais, bem como por suas dimensões interpessoal e impessoal.

À Clínica da Atividade interessa transformar o trabalho e dessa transformação deriva sua possibilidade de compreendê-lo. Assume-se que essa transformação é possível porque a atividade não se resume ao observável. Nela está incluído um potencial derivado do que não ganhou formas aparentes e de outros elementos. Potencial que permite ao sujeito buscar novos modos de proceder quando as formas cristalizadas de agir já não dão conta das vicissitudes que se acumulam e podem paralisá-lo. A atividade realizada é, portanto, um dentre os inúmeros caminhos que permanecem como possíveis no real da atividade.

Desta forma, superando as limitações de abordagens unicausais e deterministas, compreende-se que a ruptura conceitual proposta pela Clínica da atividade, assentada nas concepções histórico-dialética de linguagem e de desenvolvimento humano, elaboradas, respectivamente, por Bakhtin e Vygotsky, têm muito a contribuir para inovadoras problematizações no que concerne às demandas oriundas do mundo do trabalho. Especialmente as perspectivas em saúde do trabalhador que propõem autonomia e protagonismos dos trabalhadores.

Paradoxalmente, num mundo onde a máquina parece se impor ao homem, mesmo nas esferas mais íntimas da sua vida, é um sopro de esperança renovar a crença na possibilidade de uma prática comprometida com o desenvolvimento do poder de agir dos trabalhadores e, portanto, com a promoção da sua saúde, entendida como a ampliação de suas forças criativas na reinvenção de si. Desta forma, destaca-se que várias são as possibilidades de aplicação prática destes conceitos, porém não coube aqui elencá-las devido aos limites deste artigo. Tais aplicações, em publicações futuras, podem ser estudadas para uma melhor compreensão dos conceitos aqui apresentados.

 

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Endereço para correspondência:
Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro
pablohap@hotmail.com

Maria de Fátima Vasconcelos da Costa
dphatyma@gmail.com

Pamella Beserra de Melo
pamellamelo_@hotmail.com

Cassio Adriano Braz de Aquino
brazdeaquino@gmail.com

Submetido em: 17/04/2015
Revisto em: 11/10/2016
Aceito em: 04/12/2016

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