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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.69 no.1 Rio de Janeiro 2017
ARTIGOS
Pseudoloucura e loucura moral: um caso histórico sobre simulação
False madness and moral insanity: a historical case of simulation
La pseudo-locura e la locura moral: um caso histórico de simulación
Cristiane Teresinha De Deus Virgili VasconcellosI; Silvio José Lemos VasconcellosII
IDiscente. Universidade Luterana do Brasil (Ulbra-SM). Santa Maria. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Santa Maria. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
RESUMO
A simulação da doença mental pode ocorrer quando alguém tenta evitar uma condenação judicial. Há mais de um século, tal problema já existia no âmbito do sistema judicial. O correto diagnóstico sobre a ocorrência de uma doença mental em um acusado ou, de outro modo, a identificação de que o mesmo está simulando sempre se revelou um empreendimento difícil. Este artigo analisa um caso emblemático envolvendo a dificuldade de diagnóstico em um casal que vivia na cidade no sul do Brasil no início do século passado. A pesquisa foi realizada em periódicos e processos-crime relativos a esse período. Os autores inferem que aspectos inconclusivos dessa discussão no contexto forense são muito similares a outros tantos ocorridos na atualidade.
Palavras-chave: Loucura; Doença mental; Psicologia Forense; História da Psicologia.
ABSTRACT
Simulation of mental disease can occur when people attempt to escape criminal conviction. More than one century ago, this problem already existed in the court system. It has always been difficult to correctly diagnose whether the accused suffered from a real disease or if simulated the disorder. This article analyzes an emblematic case characterized by a difficulty to diagnose a couple involved in a murder in a city in the south of Brazil in the beginning of the last century. The research was conducted in periodicals and judicial processes from that period. The authors conclude that the inconclusive discussions regarding this subject, in a forensic context, are very similar to some current cases.
Keywords: Madness; Mental disease; Forensic Psychology; History of Psychology.
RESUMEN
La simulación de enfermedad mental puede ocurrir cuando alguien trata de evitar una condena judicial. Durante más de un siglo, este problema existía en el sistema judicial. El diagnóstico correcto en un acusado en la aparición de una enfermedad mental real, o por el contrario, la identificación de la simulación siempre ha sido difícil. En este artículo se examina un caso histórico que implica la dificultad del diagnóstico en una pareja que vivía en sur de Basil, al comiezo del siglo pasado. La investigación se llevó a cabo en periódicos y procesos de principios de siglo XX. Los autores concluyen que muchos aspectos de este debate inconcluso son muy similares a las situaciones que existen en la actualidad.
Palabras clave: Locura; Enfermedad mental; Simulación; Psicología Forense; Historia de la Psícologia.
Introdução
A doença mental concebida como manifestação capaz de ser devidamente caracterizada e circunscrita é relativamente recente na história das sociedades civilizadas. Compreende-se, a partir dessa perspectiva, que a racionalidade pode ser comprometida e, por conseguinte, a capacidade de estabelecer uma interação social plena com os demais indivíduos também. O advento de um novo olhar sobre a mente humana e sobre as patologias que podem atingi-la carrega consigo a própria noção de que muitos sintomas, supostamente deteriorantes do juízo crítico, também podem ser simulados diante de conveniências circunstanciais.
Para entender de que forma dissociamos, na atualidade, essas duas condições, faz-se necessária a compreensão histórica sobre os primeiros empreendimentos científicos feitos com esse intuito. Entende-se que o modo pelo qual essas concepções orientavam as práticas jurídicas e curativas no final do século XIX e início do século XX pode ser ilustrativo quanto às questões destacadas.
Em termos gerais, o presente trabalho revisa algumas ideias constantes na produção bibliográfica sobre o tema em diferentes épocas e analisa um caso emblemático ocorrido no Rio Grande do Sul e mencionado em periódicos, processos crimes, papeletas, bem como relatórios produzidos em diferentes instâncias no período aludido. Tais documentos foram consultados nos arquivos históricos (Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa e Arquivo Público de Porto Alegre), ambos na cidade de Porto Alegre e no Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Embora as fontes estejam disponíveis para consulta pública, optou-se, neste trabalho, pela não identificação nominal dos indivíduos citados. Foram utilizadas, portanto, apenas as iniciais relacionadas a esses nomes.
A utilização de fontes primárias nesta pesquisa pode contribuir para elucidar a forma como algumas concepções sobre a doença mental foram sendo reforçadas e outras tantas abandonadas ao longo de um extenso período. A pesquisa nos prontuários médicos (papeletas), que constitui parte da coleta de dados realizada, foi precedida de uma autorização formalizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Psiquiátrico São Pedro (00.005 - DEP-HPSP). Este levantamento de dados pode, em termos gerais, contribuir para um melhor entendimento de impasses no campo da Psiquiatria Forense e da Psicologia Jurídica que ainda hoje persistem.
Concepção de loucura (1870-1910)
No final do século XVIII, Tuke na Inglaterra e Pinel na França descreveram a loucura como uma doença especial que precisava de tratamento (internação e medicalização). Conforme Cunha (1986), no Brasil, foi somente a partir da década de 30 do século XIX que os médicos passaram a conferir o status de doença para a loucura.
Em 1830, uma comissão da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro realizou um diagnóstico da situação dos loucos na cidade. É a partir desse momento que os loucos passam a ser considerados doentes mentais, merecedores, portanto, de um espaço social próprio, para a devida reclusão e tratamento (Amarante, 1994).
Na década de 1980, surgiram os primeiros especialistas em nosso país. Dessa forma, quando o alienismo nasceu no Brasil, estava alicerçado no saber mais atualizado sobre a doença mental da época (Cunha, 1986). Observa-se que no momento que o alienismo surgiu, a loucura era basicamente entendida como o comprometimento duradouro da racionalidade ou do autocontrole (Pessoti, 1996; 1999). Observa-se, entretanto, que logo surgiram as dúvidas sobre a loucura, pois como explicar a loucura (entendida como déficit da racionalidade/autocontrole) observada na Loucura Raciocinante de Pinel, na monomania de Esquirol e na Loucura Moral de Prichard? Concepções como essas são difíceis de serem diagnosticadas, considerando que estavam escondidas sobre a capa da normalidade e invisíveis ao leigo. Tais casos somente eram passíveis de verificação por um especialista, uma vez que quem sofria desse transtorno aparentava ter seu raciocínio intacto.
O alienista Morel postulava que a loucura era um subproduto da desoneração, por isso os pobres corriam mais riscos de serem "contaminados" por essa doença, além de atribuir à loucura, uma natureza hereditária (Cunha, 1990). No Brasil republicano, tal concepção inseriu-se nas chamadas "teorias da degenerescência um eficaz instrumento de controle social" (Cunha, 1990, p. 23). Houve ainda, em nossa realidade, uma inversão quanto à afirmação de que não era a degeneração criada pela pobreza e insalubridade, mas sim a degenerescência que fazia nascer a marginalização, os pobres e os elementos perigosos (Cunha, 1990).
Franco da Rocha considerava que a imigração foi: "a responsável por uma verdadeira invasão de levas de degenerados" (Cunha, 1990, p. 26). Juliano Moreira ressaltava que a degeneração no Brasil foi causada pelo envio de degenerados portugueses e negros para o nosso país e essa degeneração era uma ameaça que deveria ser enfrentada pelos meios científicos. Dessa forma, em sua essência, o pensamento alienista buscava uma profilaxia do meio urbano (Cunha, 1990). Em contrapartida, Oda e Dalgalarrondo (2000) salientam que Juliano Moreira não considerava que a degeneração era causada pela mestiçagem e sim pela sífilis, pelas precárias condições sociais, educacionais, sanitárias e pelo alcoolismo. Dessa forma, não seria a cor negra a causa da degeneração. Ideia essa que, enfaticamente, estava em discordância com o entendimento de Nina Rodrigues. Um contemporâneo de Juliano Moreira que acreditava ser a miscigenação o próprio fenômeno que a propiciava. Observa-se, portanto, a plena discordância dos autores dessa época quanto à causalidade da degeneração.
Com a teoria psiquiátrica da degenerescência, nascia um amplo número de práticas de controle social que se colocavam muito além do campo restrito dessa especialidade médica, na qual a normalidade era imposta pela ciência, a serviço da política de gerência da sociedade. Assim, o regime republicano no Brasil apoiou significativamente o saber alienista, baseando-se na ideia de que o progresso necessitava de indivíduos saudáveis em sua estrutura psíquica. Os alienistas, bem como os políticos republicanos, valiam-se do pensamento positivista que, por sua vez, "formulava uma concepção intensamente elitista e excludente da política e da sociedade" (Cunha, 1990, p. 36).
No Rio Grande do Sul, não é possível identificar totalmente essa parceria entre Estado e Medicina na época da República Velha, pois, em solo gaúcho, instaurou-se o Regime Positivista. Um dado que, nesse sentido, contradiz parcialmente a acepção de Cunha (1990), para quem o Positivismo coloca-se como aliado da Medicina no Brasil. Em contrapartida, Weber (1999) ressalta que o Positivismo instalado no Rio Grande do Sul impossibilitou o avanço da legitimação médica (uma vez que não havia necessidade de diploma para exercer um ofício). Pode-se observar esse fato de uma forma mais concreta, a partir da leitura de uma papeleta de 1894, do então Hospício São Pedro, na qual consta que o paciente G. P., alemão naturalizado brasileiro, residente em Porto Alegre, casado, branco e com o diagnóstico de loucura ppiteptica - delírio de perseguição, é descrito como tendo a profissão de médico, mas com a observação de não possuir título científico (Papeleta n° 814, 1894). Sua internação era paga pela polícia de Porto Alegre, mas dois meses após a mesma, passa à classe de indigente, permanecendo em tal condição até o seu óbito que data de junho de 1896. Consta ainda como causa do falecimento uma hemorragia cerebral (moléstias intercorrentes/fratura de costela e embolia pulmonar).
Nesses termos, o que se pode observar diante da pesquisa realizada nas fontes primárias (relatórios, papeletas, periódicos e livros publicados nesse período), tal como exemplifica o caso anterior, foi a constante busca dos médicos pela legitimação do saber próprio de sua formação acadêmica. Constata-se ainda a própria especialização a respeito da patologia mental.
O presente trabalho objetiva, dessa forma, demonstrar que a opinião dos profissionais da medicina asseverava a existência de dificuldades para diagnosticar precisamente a loucura, devendo ser essa uma tarefa exclusivamente médica, diante da qual os leigos não poderiam opinar. Esse dado é facilmente observável nos próprios jornais da época que abriam espaços para suas opiniões e ainda denunciavam charlatanismos, conforme irá evidenciar este artigo.
A imprensa escrita como fonte reveladora
Para ser imposto, o alienismo precisou convencer também seus destinatários e tal empreendimento só foi possível graças ao seu discurso científico e à eficaz ajuda da imprensa. Um fato que, conforme Cunha (1990), acabou sendo a "nova roupa" de velhos preconceitos erigidos, nesse momento, pelos conhecimentos psiquiátricos. Dentre eles, o racismo mal disfarçado, convertido no princípio das hierarquias das diferenças raciais e sociais; o sexismo condensado na pretendida "cientificidade", postulando a inferioridade biológica e psíquica das mulheres, bem como a moral sexual em seus distintos aspectos, a desconfiança contra aqueles que provêm de fora, além da própria segregação da pobreza (Cunha, 1990).
O discurso jornalístico tem um propósito diferente em relação ao documento oficial, mesmo quando, tal como no caso do Jornal A Federação, constitui-se em um órgão oficial. Pode-se, inclusive, observar a evolução desse periódico, que, nas suas primeiras publicações, revelava-se pouco atraente em sua diagramação. No início do século XX, deu-se a modernização do jornalismo gaúcho, que passou a destacar a publicidade comercial, contribuindo para a hegemonia positivista republicana nesse estado (Steyer, 2001). Conforme destaca Sandra Pesavento: "O jornal estetiza o fato, ou seja, reorganiza a narrativa, encadeia o enredo, exprime um juízo de valor. Poderíamos dizer que o jornal informa, 'literariamente', sobre o acontecido" (Pesavento, 2004, p. 29). Desse modo, o jornalista transforma-se em um orientador de opiniões que, ao mesmo tempo, influencia, mas também é influenciado por seu público, criando-se assim, uma superposição de sentidos em sua escrita (Pesavento, 2004). Pode-se, portanto, inferir que essa história que se diz verdadeira é um produto a ser vendido, sendo papel do jornalista provocar a curiosidade para a leitura de sua escrita, leia-se, mercadoria. Tais considerações mostram-se necessárias para que se possa melhor entender a essência das informações contidas nessas fontes primárias, analisadas, por sua vez, no presente trabalho. Nesses termos, é possível afirmar que os jornais da época reservavam algum destaque para notícias envolvendo diretamente o tema loucura e criminalidade,
Como destaca Schwarcz, os momentos finais do século XIX, corresponderiam ao período de formação da grande imprensa nacional, ou seja, da transformação de jornais que passavam de:
experiências isoladas, aventuras passageiras a grandes e estáveis empresas constituídas e mantidas através da verba de grupos, sem dúvida envolvidos nesse debate enquanto segmentos da sociedade que se organizavam, vinculando, refletindo e produzindo novas representações (Schwarcz, 1987, p. 16).
Diferentes pensadores que estiveram voltados para a relação crime e loucura
Para entender as ideias que direta ou indiretamente influenciaram o trabalho de relatores, juristas e médicos considerados na produção deste artigo, faz-se necessário entender também o que postulavam alguns pensadores brasileiros da época. Suas acepções, em muitos casos divergentes, retratam impasses que não foram, por certo, exclusivamente teóricos. Considera-se que destacar o trabalho e as influências de cada um desses expoentes da época, tal como está sendo feito na sequência deste artigo, pode contribuir para elucidar os impasses envolvendo o estudo de caso que fundamenta esta pesquisa. Sendo assim, destacam-se, no período em questão, os seguintes pensadores:
Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906): importante personagem para o processo de institucionalização da medicina no Brasil, em especial por seu empenho para a prática da medicina legal. Foi também um dos fundadores da Sociedade Médico-Legal da Bahia e da Revista Médico-Legal. A partir de 1897, seus trabalhos aparecem em publicações internacionais. Em 1897, fala da carência de uma organização médica judiciária em nosso país (Maio, 1995). Seus alunos, bem como aqueles que partilhavam de suas ideias, formaram a chamada Escola Nina Rodrigues, que via uma impossibilidade de igualdade entre as raças negra e branca, pois, conforme esse entendimento, a raça negra não possuía capacidade para civilizar-se. Esse mesmo autor defendeu, em seu livro intitulado As raças humanas, a criação de códigos penais diferenciados, uma vez que os negros estariam em um estágio inferior de desenvolvimento (Schwarcz, 1987). A mestiçagem para essa escola teria como resultado uma degeneração tanto física, como moral que só traria resultados negativos para o país. Nina Rodrigues, devido ao seu grande destaque, foi chamado pelo próprio Lombroso, conforme destacam Augusto e Ortega (2011) de um apóstolo da antropologia criminal do novo mundo.
João Carlos Teixeira Brandão (1854-1920) - Em relação aos degenerados escreve que: É possível ainda, que tendo as funções intellectuaes, apparentemente intactas, o degenerado não revele a sua origem senão pela perversão ou ausência do senso moral que o conduz a prática dos actos mais revoltantes (Brandão, 1918, p. 97).
Em 1897, Teixeira Brandão escreve para o Ministro do Interior para exemplificar o quanto é laboriosa a verificação da suspeita de alienação mental e como deve ser cauteloso o Supremo Tribunal para a concessão de habeas corpus. Para esses fins, reproduz então o pedido do advogado que havia escrito: "recurso do habeas corpus vem pedir que a liberte da influencia do meio em que se acha, porque póde realmente enlouquecer, realizados assim os intuitos necessários de sua reclusão" (Brandão, 1918, p. 174). Ressalta-se, nesse caso, que o marido da paciente tinha pedido o internamento de sua esposa para observação de seu estado mental, mas o advogado da mesma alegava que ela estava lúcida e deveria ter alta. Teixeira Brandão discordava, postulando que ainda não havia findado o tempo necessário para a verificação. Seu argumento relacionava-se à necessidade de mais trinta dias de observação no Hospício Nacional de Alienados, uma vez que tal tarefa revelava-se extremamente minuciosa. Conforme as suas palavras:
Parece-me estranhável a concessão de habeas corpus quando se trata de alienados ou suspeitos em observação: pois, em verdade, o que se procura apurar, na espécie, é a existência de uma moléstia allegada ou real, questão puramente scientifica, que si, não póde, as vezes, ser resolvida pelos competentes em muitos dias, menos o será por um juiz leigo na materia, em poucas horas. E, si assim for, a parte o conflito que forçosamente se estabelecerá entre a justiça e os médicos, que nesse caso especial tem por fim esclarecel-a, as consequências que resultarão da liberdade imediata que dimana do habeas corpus, podem ser excessivamente funestas. É sabido que um grande numero de alienados, exactamente, os que mais rechamam contra a reclusão em que se acham, nos asylos, e que se assignalam pela perversão do caracter, pelas mentiras pelas perfidias e pela hypocrisia, conservando intactas as parecido tumultuário o processo e improcedentes as razões alega foram designadas pelos alienistas que lhes estudaram o estado mental - maníacos - raciocinantes, loucos lúcidos etc, - podem, por muito tempo, não deixar transparecer o menor symptoma mórbido, illudindo com as dissimulações as mais engenhosas os espíritos incautos. E, si para diagnosticar-lhe a moléstia, o alienista, o mais consummado precisará surprehendel-os, lutar com elles em artifícios, compregando toda a perspicácia de que é capaz, estudar-lhes os antecedentes, os hábitos e a vida moral, ficando entre tanto, muitas vezes perplexo, como poderá o juiz leigo resolver de prompto, depois de um interrogatório que não tem competência para dirigir e de uma inspecção para a qual lhe falta o critério scientifico? (Brandão, T., 1918, p. 176).
Francisco Franco da Rocha (1864-1933) - Formou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e foi aluno de Teixeira Brandão, tendo sido adepto da teoria psiquiátrica francesa. Em 1893, começou a exercer a função de médico do Hospício de Alienados de São Paulo. A partir desse momento, tornou-se um defensor da criação de um hospital que seguisse a moderna psiquiatria. Em 1896, foi nomeado diretor do Hospício de Alienados de São Paulo e, em 1898, com a inauguração do novo hospício, futuro Hospício do Juquery, foi empossado como diretor, permanecendo no cargo até 1923. Apontava a imigração como a responsável pela invasão das muitas levas de degenerados (Cunha, 1990).
Juliano Moreira (1873-1933) - Médico baiano e um dos fundadores da moderna psiquiatria brasileira, foi o responsável pela introdução da psiquiatria alemã em nosso país. Correspondeu-se com Emil Kraepelin entre os anos de 1905 e 1906. Criticava crenças da então chamada Psiquiatria Comparada que, mais tarde, passou a ser denominada de Etnopsiquiatria. Para esse pensador, não existiam doenças psiquiátricas específicas dos climas tropicais, sendo que a raça não favorecia nem o aparecimento e nem a sanidade mental de um indivíduo. Não acreditava, além disso, na inferioridade intelectual da raça negra e afirmava que se isso ocorria, tal fato podia ser explicado pela educação e pelos aspectos culturais (Oda, & Piccinini, 2005). Para esse autor, as causas ocasionais das moléstias mentais seriam, conforme destacam Oda, e Dalgarrondo (2000), a sífilis, o alcoolismo, o impaludismo, as verminoses (sobretudo a ancilostomose), bem como as intoxicações diversas e os excessos e desvios sexuais. De acordo com Portocarrero (2002), Juliano Moreira realizou um sistema que buscava dar assistência psiquiátrica para o problema da delinquência, diferentemente do que se observava na grande maioria dos pensadores do século XIX que, nesse sentido, voltavam-se apenas para a doença mental. Também foi, no Brasil, o primeiro pesquisador a identificar a leishmaniose cutânea-mucosa (Jacobina, & Gelman, 2008).
Afranio Peixoto (1876-1947) - Nasceu na Bahia e foi diretor do Hospital Nacional de Alienados. Ministrou aulas de medicina legal na faculdade de direito e medicina da Universidade do Rio de Janeiro, tendo sido professor honorário do Instituto de Medicina Legal, psiquiatria e toxicologia da Universidade de Madri. Além de um destacado romancista que também atuou como politico.
Assim como Juliano Moreira, Afranio Peixoto conhecia perfeitamente a produção científica internacional sobre o debate a respeito da Etnopsiquiatria. Ambos concordavam que a exigência da modernidade, superpopulação, pobreza, em outras palavras, o ambiente da época favorecia o aumento das doenças mentais. Postulava que o progresso da civilização e os excessos alimentares, sexuais e alcoolicos favoreceriam o aparecimento de certas doenças como a neurastenia e dementia paralytica (Oda & Piccinini, 2005).
Sebastião Afonso de Leão (1866-1903) - Formou-se em medicina no Rio de Janeiro, foi médico legista da chefatura de polícia de Porto Alegre, cidade na qual havia nascido, e diretor da Oficina de Identificação, posteriormente chamada Oficina de Antropologia Criminal. Trabalhando na Casa de Correção, realizou pesquisas sobre a criminalidade. Acreditava que, dentre as origens do crime, as condições sociais exerceriam forte influência. Foi premiado em 1893 pelo Círculo Médico Argentino pela obra "Subsídios para o estudo clínico da neurastenia, memória científica" (Lhullier, Leite, & Gomes, 2001; Pesavento, 2009).
Sebastião Leão implantou o sistema de identificação antropométrico de Alfhonse Bertillon (1853-1914), essa identificação também foi implantada em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Sistema esse que também foi alvo de severas críticas. Nas palavras proferidas por um dos seus oponentes: "é curioso acentuar que andam sempre juntas a antropometria do Sr. Bertillon e a antropologia do Sr. Lombroso" (Pacheco, 1902, citado por Galeno, 2012). Entretanto, se o sistema Bertillon reforçava as teorias lombrosianas, conforme Pacheco, isso não ocorreu no sul do Brasil, contexto da presente pesquisa, considerando o fato de que o próprio Sebastião Leão manifestou opinião distinta em relação ao entendimento de Lombroso. Nesse sentido, conforme destaca Pesavento:
A postura cientificista da época, em interlocução com as mais recentes teorias da antropologia criminal da fin de siècle, debatia-se entre duas posições: a do renomado Lombroso, que afirmava que o indivíduo já nascia criminoso e que sua aparência externa revelaria, em traços visíveis, o seu íntimo condenável, e a de Alexandre Lacassagne, a postular que o meio social é que produzia o crime. Na Casa de Correção de Porto Alegre, o Doutor Sebastião Leão, médico renomado, realizava estudos minuciosos com os detentos, à frente do Laboratório de Antropologia Criminal, inaugurado em 1897. Haveria realmente um homo criminalis? (Pesavento, 2004, p. 31).
Dentre os seus trabalhos, o que mais tem destaque na atualidade envolve o fato de ter organizado seu famoso álbum fotográfico para possibilitar uma análise, catalogação e a consequente comparação dos traços da fisionomia dos presos da Casa de Correção. Sobre os prisioneiros negros, Sebastião Leão teve especial cuidado em sua pesquisa, pois ia de encontro à teoria Lombrosiana. Em Relatório de 1897, Sebastião Leão escreve sobre o fato de que homens ilustres da ciência, como também da indústria possuem filhos degenerados, tendo dessa forma a questão social como causa da criminalidade e não a hereditariedade.
Dessa forma, esse pensador preferiu a teoria de Lacassagne para quem o crime não era uma questão de cunho atávico e sim cultural e pedia para que surgissem medidas eficazes ou, conforme destaca Pesavento: "controle e intervenção no social e se descortinavam possibilidades de recuperação, para o caminho da ordem, dos personagens da contramão da vida" (Pesavento, 2004, p. 31).
Embora uma alusão aos pensadores da época que exerceram influência direta ou indireta no contexto estudado não se esgote facilmente, entende-se que a breve referência a esses mesmos teóricos permita melhor contextualizar, neste trabalho, o estudo de caso que o embasa. Dessa forma, os autores objetivam ater-se a um caso emblemático ocorrido no Rio Grande Sul no período mencionado. Um caso que é indicativo dos inúmeros impasses que caracterizaram o saber médico da época no que se refere à concepção de loucura e periculosidade, bem como elucidativo de uma problemática que perdura até a atualidade. Entende-se que o estudo proposto pode, portanto, revelar-se informativo para determinados campos da Psicologia Jurídica nos dias atuais, sendo que essa mesma aproximação será mais bem destacada no final deste artigo.
A loucura criminosa
De um modo geral, observa-se que na época em questão vigorava a ideia de que a doença deveria ser tratada e o crime punido. Restava, porém, o impasse se os loucos, perpetradores de crimes, deveriam ser julgados como criminosos. O código penal de 1890 então vigente não permitia mecanismos punitivos propriamente ditos. Considerava que, se tais indivíduos estivessem fora de seu juízo, não poderiam ser responsabilizados pelos seus próprios atos. Pessoas que cometiam crimes e eram classificadas como loucas eram internadas no hospício, conforme a denominação da época, para que se fizesse possível a confirmação de sua doença. A plena confirmação da patologia mental não era considerada uma atividade fácil conforme é possível inferir a partir da leitura dos prontuários. Os próprios médicos reclamavam dos empecilhos para um diagnóstico preciso em tão pouco tempo. Desde a inauguração do Hospício São Pedro, seu primeiro diretor Carlos Lisboa em 1884 já reclamava da dificuldade no que se refere a um diagnóstico preciso para verificar a simulação ou não de alienação mental realizada por um criminoso.
O artigo 22 marca um prazo fixo e limitado ao médico para emitir seu juízo sobre o estado mental de um indivíduo, que será examinado pela primeira vez e do qual apenas lhe dizem o nome, a residência, naturalidade, condição civil e estado. Compreende-se facilmente a responsabilidade que pesa sobre o médico que é levado a cumprir o artigo citado, e quão grave comprometimento a observância desse mesmo artigo pode acarretar; mormente quando ele tiver de examinar a espécie muito particular de alienados, a que se dá o nome de simuladores e, com seu juízo, esclarecer a justiça, a quem tem de dizer se se trata de um criminoso, ou simplesmente de um louco (RDHS, 1884, citado por Wadi, 2002, p. 122, 123).
Essa dificuldade também foi ressaltada em 1914 pelo médico diretor do Hospício São Pedro, José Carlos Ferreira que, por sua vez, reivindicava a criação de um local apropriado para o diagnostico desses pacientes: "Lembro mais a permanência aqui em observação, de um degenerado - débil mental - sugestionável, criminoso (a meu ver semi-louco, semi-responsável) em processo e que cometeu homicídio a frio e premeditado, como mandatário" (RDHSP, 1914, citado por Wadi, 2002, p.180).
Nesses termos, a verificação quanto ao fato do paciente ser ou não doente mental ou um criminoso que aparentava insanidade, quer por estar simulando conscientemente ou apenas aparentar sê-lo ao observador comum, acabava sendo, nessa época, atribuição do Hospital São Pedro. Situação essa que persiste até a inauguração, em 1925, do Manicômio Judiciário, cujo diretor foi, no citado período, Jacinto Godoy.
Também nessa época, destacam-se no Brasil as acepções de Heitor Carrilho (1890-1954) sobre essa temática. Carrilho dirigiu o primeiro manicômio judicial do país de 1921 até 1954 e asseverava que: "O crime é um 'sintoma' da anormalidade, e é ele o que denuncia essa anormalidade, instaurando o processo criminal e o laudo médico. No caso dos loucos morais e dos epiléticos larvados, o crime é frequentemente o único sintoma visível" (Jacó-Vilela, Espírito Santo, & Pereira, 2005, p. 27).
Entre as formas de "loucura" nomeadas nesse contexto, uma era concebida como a mais perigosa, ou seja, a loucura moral, sendo menos visível em suas manifestações. Em termos gerais, os leigos acreditavam que apenas os delírios, alucinações ou manifestações que são, na atualidade, denominadas como sintomas positivos dos quadros psicopatológicos, eram sinais de alienação mental. De outro modo, os alienistas já haviam identificado "loucuras" de difícil diagnóstico, uma vez que não se mostravam "visíveis". Conforme Zuquim, "Em sua extensa rede teórica, no Brasil do início do século XX, o criminoso é o louco moral", (Zuquim, 2002, p. 133). Dessa forma, o criminoso nato está identificado com o louco moral também na realidade brasileira.
Simular uma doença mental para escapar de uma punição jurídica, uma vez que sendo classificada como louca não seria, por seu turno, criminosa, ou simplesmente forjar uma alienação mental era, antes dos trabalhos de Pinel, entendido como própria da loucura. Não existindo, portanto, uma divisão. Entretanto, no decorrer do século XIX, a correta averiguação do que era verdade e do que era mentira a respeito dos sintomas apresentados pelo provável alienado passou a ser exigida, considerando-se a possibilidade de uma loucura simulada como estratégia voltada para o livramento da pena. Sendo que "o reconhecimento da simulação de insanidade mental" como afirmava Jung em 1904, "é uma das tarefas mais difíceis da arte diagnóstica", quase sempre realizada em presos ou condenados (Jung, 1994, p. 18).
Gasper relatava sete princípios para reconhecer a simulação. O sétimo deles encontra-se pormenorizado no trabalho de Sousa Lima em 1938 e, por sua vez, assevera: "A loucura é simulada quando os acessos de delírio sobrevêm só nos momentos justamente propícios ao indivíduo, por exemplo quando é preso, quando sabe que está sendo observado, etc." (Sousa Lima, 1938, p. 354).
A simulação: O estudo de um caso histórico
Conforme relatos da época, em uma cidade do Rio Grande do Sul, em 10 de fevereiro de 1910, um homem foi morto, após ser espancado e apunhalado. O crime teve como autores o cunhado e a irmã da vítima, sendo que ambos justificaram o ato como uma tentativa de "tirar o diabo do corpo" do agredido. A vítima era considerada doente mental. Os autores da violência acreditavam que se batessem, da forma como o fizeram, poderiam curá-lo. O casal foi classificado como apresentando boa índole, não revelando antecedentes criminais. Considerou-se ainda que, após o ocorrido, os mesmos alegaram não conseguir lembrar dos fatos e, desse modo, ganhou força a suspeita de que marido e mulher pudessem sofrer de doença mental. Os assassinos foram então presos e encaminhados pelo promotor público para avaliação de sanidade mental. No entanto, ressalta-se que os médicos da cidade em questão não se consideravam aptos a avaliá-los. Atitude essa capaz de demonstrar que a própria loucura já era, na época, considerada uma área pertencente a uma determinada especialidade da medicina, não cabendo a um médico sem experiência nesse tipo de assunto, considerar-se apto a realizar tão complexa avaliação. Indicaram, desse modo, o internamento no Hospício São Pedro para serem examinados, conforme esclarecem alguns trechos do documento apresentados na sequência e reproduzidos com a grafia original.
Nos abaixo assignnados, médicos resitentes nesta cidade, nomeados peritos para dar parecer sobre o estado das faculdades mentaes, dos accusados J. B. e I. S., não podendo enquadrar o estado psychico d'estes criminosos, numa affecção mental definida, por falta de meios necessários a uma observação completa para chegar a uma conclusão satisfactoria, somos de parecer que os accussados precisam ser recolhidos a um estabelecimento apropriado, como o Hospício de Alienados, a fim de serem observados minuciosamente. Deixamos por esse motivo de responder aos quesitos que nos foram apresentados. 30 de Maio de 1910. Dr. A. S. Dr. N. B. (Processo Crime n° 23, p. 30i).
Estando os acusados I. S. e seu marido na citada instituição, os médicos consideraram, em um primeiro momento, I. S. como sendo pseudolouca e seu cônjuge como doente mental. Posteriormente, assinalaram que ambos estavam simulando a loucura. Tais inferências podem ser verificadas nas seguintes notícias do Jornal A Federação de Porto Alegre:
Continuam em observação, no hospício S. Pedro, J. de B. e I. S., auctores da morte de um irmão desta, no logar denominado Pau Fincado [...]. Da Observação procedida pelos médicos legistas da policia Drs. Carlos Penafiel e Pitta Pinheiro, resulta quase a certeza que J. de B. é realmente louco, o mesmo não acontecendo a I., pois, segundo parece, trata-se de uma pseudo louca (Jornal A Federação, 1910, p. 4).
eis meses após a última notícia sobre o caso e quase um ano após o crime, é possível encontrar a seguinte informação:
Está verificado pelos médicos legistas da policia que J. de B. e I. S. que estavam em observação no Hospicio S. Pedro, não se acham sofrendo das faculdades mentaes como quiseram fazer crer esses dois criminosos. Foram eles actores, conforme devem os leitores estar lembrado, de um crime hediondo, assassinando friamente a J. de B. para lhe tirar o diabo do corpo. Sexta feira foram eles removidos para a Casa de Correção, onde estão a disposição do Juiz de comarca, segundo dizemos noutro logar (Jornal A Federação, 1910, s/pag.).
Com base nesse diagnóstico, retornaram para a localidade para serem julgados, uma vez que ambos foram considerados lúcidos e, portanto, passíveis de serem acusados pelo crime. Curiosamente, embora os laudos médicos tenham afirmando que eles não eram, de fato, "loucos", o casal foi absolvido. No julgamento, foram considerados doentes mentais e, diante disso, não puderam ser responsabilizados pelo crime.
Ressalta-se que I. S. tinha aproximadamente 40 anos de idade, era casada com J. B., com idade de 50 anos, e natural do mesmo município. Nas instâncias do julgamento, quando questionado sobre o assassinato de que era acusado, J. B. tão somente "Respondeu que tem a dizer que não se cometeu crime e só o soube depois que sarou" (Processo crime n° 23, p. 53). A vítima era irmão de I. S. e estava internado na Casa de Caridade de São Gabriel, seu cunhado (que futuramente o assassinou) tirou-o dessa instituição para ser tratado na casa da mãe de sua esposa I. S., trazendo ainda uma receita de uma curandeira. Destaca-se, porém, que no texto escrito à mão, e presente no processo crime já citado, menciona-se apenas a receita de um escalda-pés, não constando então que o paciente deveria ser agredido para retirar o "diabo do corpo". De outro modo, a mãe da vítima e também da ré, I. S., afirmou que a ordem para tirar o "diabo do Corpo através de pauladas" foi dada verbalmente conforme relata o trecho exposto: "perguntei a velhinha M. S. pela receita dada pela curandeira, apresentou-me-o, dizendo que quanto a de surras I. par que sahice-o demônio ou feitiço foi dado verbalmente para J. B." (Processo crime nº 23, p. 7)
A respeito desse caso de simulação, dois pontos revelam-se notórios. Inicialmente, a forma como a loucura era tratada, sendo que esse mesmo tratamento remetia a práticas de curandeirismo, sendo cabível, nesse contexto, o uso de violência física como forma de lidar com a possessão demoníaca. Além disso, observa-se que a opinião do especialista, ou seja, o médico do Hospício São Pedro, havia sido ignorada, como também foi ignorada a opinião dos médicos da cidade que haviam indicado o internamento para assim poder diagnosticar tal patologia. Em outras palavras, o senso comum considerou-os loucos e foi essa averiguação que prevaleceu. Os médicos ainda não detinham, como destaca Weber (1999), o poder sobre o diagnóstico, ainda que, nessa mesma categoria profissional já existissem os chamados especialistas. Os mesmos não eram considerados, entretanto, capazes de proferir a palavra final, sendo uma conquista lenta a legitimação desse saber.
Curado (2007) salienta a batalha nos tribunais entre o pensamento médico e o pensamento jurídico. Grandes debates públicos e inúmeros textos sobre o tema foram escritos por intelectuais no século retrasado. Conforme ressalta o autor, "os intelectuais de oitocentos estavam arregimentados em ordens que combatiam entre si pelo prêmio da influência sobre as pessoas e a sociedade" (Curado, 2007, p. 2). Essa batalha ocorria, por exemplo, sobre a responsabilidade penal de um individuo com suspeita de alienação mental. Situação essa diretamente relacionada ao caso que está sendo analisado no presente artigo.
Magali Engel destaca que, por mais escondida que estivesse a alienação mental, tendo em vista que existiam insanos que aos olhos leigos seriam considerados normais, a especialidade médica viabilizaria a capacidade cada vez mais aprimorada de diagnosticá-la (Engel, 2001). Em 1875, Santos já escrevia que não bastava a crença de que o bom senso era suficiente para o reconhecimento de uma doença mental, evidenciando assim, que já existia em nosso país uma busca pelo reconhecimento de um saber especializado sobre a alienação mental (Santos, 1875 citado por Engel, 2001).
Debelada pela lógica da verdade e vencida pelo rigor dos fatos baqueia a teoria paradoxal que pretende que o simples bom senso basta para o reconhecimento das afecções mentais. Semelhantes pesquisas são de competência exclusiva do médico, portanto é este o único que reúne as condições necessárias para pronunciar-se acerca da presença, ausência ou simulação da loucura (Santos, 1875 citado por Engel, 2001, p. 117).
No jornal A Tribuna pode-se ler ainda as seguintes notícias:
À disposição do Sr. Dr. Juiz de comarca desta sede, deram entrada na Casa de Correcção de Porto Alegre, J. de B. e I. S (A Tribuna, 1910, s/p).
Chegaram, hontem, da capital do Estado, competentemente escoltados, os réos J. B. e sua mulher E. S., que se acham recolhidos ao Hospício S. Pedro, em observação. Estes indivíduos que assassinaram um cunhado, com o fim de tirarem-lhe o "diabo do corpo", serão julgados na próxima sessão do jury, que terá logar segunda-feira vindoura (Jornal A Tribuna, 1911, p. 2).
Além disso, Baldoni (1997) chama a atenção para o fato que, na cidade em questão, no Rio Grande do Sul, era uma questão econômica e política absolver ou não um criminoso, uma vez que a reclusão seria feita em Porto Alegre. Conforme o autor:
O elevado número de absolvições e processos sem julgamento deve-se a morosidade da justiça. Não havia interesse por parte desta em julgar e condenar os réus, primeiro porque na cidade não havia lugar adequado para detê-los, ou seja, presídio. Os condenados eram enviados a Porto Alegre para cumprirem a pena. Segundo, porque aos interesses políticos deveriam ser garantidos o maior número possível de eleitores para o PRR. Portanto, condenar um réu significava que o Estado teria mais gastos, não importando o crime (Baldoni, 1997, p. 27).
No entanto, não é cabível aludir exclusivamente à questão econômica para explicar a absolvição nesse caso. Há, por certo, outro fato que deve ser analisado relativo à questão da disputa entre poderes. De um lado, o poder da classe médica e, de outro, o dos operadores do Direito. O tribunal absolveu os criminosos em questão, depois que eles foram examinados por peritos da cidade e enviados para uma observação mais acurada em Porto Alegre. Localidade na qual ficaram reclusos por quase um ano para que seus comportamentos pudessem ser observados, visando um diagnóstico preciso. A partir disso, os peritos chegaram à conclusão que não eram doentes mentais e deveriam ser julgados pelo seu crime, sendo acrescido o fato de estarem tentando simular a loucura como forma de livramento diante de uma possível condenação.
Baldoni (1997) argumenta que um dos motivos para a absolvição da grande maioria dos crimes de assassinato cometidos, tanto por indivíduos do sexo masculino como feminino na cidade era o gasto financeiro elevado com transporte, internamento, uma vez que a cadeia estava sediada em Porto Alegre. De um modo mais específico, essa parece não ser a justificativa para a absolvição no que se refere ao caso destacado. Afinal, se existiriam gastos com a prisão desses indivíduos, tais gastos haviam sido igualmente realizados com o internamento no Hospício São Pedro. De outro modo, o que parece ter ocorrido foi, nesse caso, a total recusa em aceitar o diagnóstico dos médicos do Hospício São Pedro.
Também não é possível encontrar justificativas quanto ao fato de que as mulheres não eram, em sua maioria, condenadas pelos crimes cometidos conforme destaca Harris (1993). Conforme essa autora, embora homens e mulheres estivessem sujeitos a sofrerem castigos pelos crimes cometidos, a mulher raramente era condenada na França ainda no final do século XIX. Um entendimento que é também corroborado por Baldoni (1997) no que se refere à cidade na qual ocorreu o fato, no início do século XX. Observa-se, desse modo, que não apenas I. S. foi absolvida, como também seu marido.
Fosse, portanto, essa uma situação passível de ser explicada apenas por uma questão de gênero e suas implicações penais, revelar-se-ia mais aceitável que B. fosse condenado, independentemente de sua mulher ser absolvida. Um laudo realizado em uma observação antecedente em quase um ano afirmava que os mesmos não eram alienados. Faz-se, então, necessário questionar os reais motivos da absolvição.
Nesses termos, cabe destacar que existia entre Medicina e o Direito uma área na qual os poderes constituintes desses dois campos entrecruzavam-se e muitas vezes acabavam confrontando-se. Essa mesma área envolvida a questão da doença mental e, nela, um crime praticado por um alienado não poderia então ser punido. Uma fronteira quase inescrutável que parece igualmente fazer parte do cotidiano de muitos psicólogos que trabalham nesse campo também na atualidade.
Outra questão não menos importante refere-se ao local para o qual deveriam ser encaminhados. Para o ambiente prisional se fossem culpados ou para o manicômio se fossem doentes mentais. Tendo então executado uma pessoa, para onde os mesmos deveriam ir? Nesse caso específico, observa-se, em contrapartida, que os envolvidos não foram para nenhum desses lugares. Os médicos alegaram que ambos não eram loucos. Por outro lado, os juristas consideraram os mesmos como sendo doentes mentais. Ambos foram, de uma forma tão curiosa quanto inadvertida, para casa.
Considerações Finais
Conforme destacam Lago, Amato, Teixeira, Rovinski e Bandeira (2009), o trabalho do psicólogo jurídico junto ao sistema penitenciário existe há mais de quarenta anos em alguns estados brasileiros. Conforme esses mesmos autores, a avaliação do criminoso quando se trata de doente mental delinquente é, de outro modo, bem anterior à década de 1960.
Seriam os indivíduos sobre os quais está fundamentada a presente análise verdadeiros insanos? Eram, de outro modo, simuladores cientes das implicações dos seus atos e, portanto, na linguagem atual, capazes de compreender a ilicitude das suas próprias ações? Talvez não se possa, na atualidade e considerando os dados disponíveis, encontrar respostas conclusivas para tão curioso e emblemático caso que data de mais de um século. No entanto, o fato da verdade real sobre a condição mental desses indivíduos revelar-se pouco sondável, não impede que se possa extrair, desse mesmo caso, reflexões pertinentes para pensar a própria interface entre a Psicologia, a Psiquiatria e o Direito Penal. Evidenciar lacunas no que se refere a essa mesma interface é, desse modo, fomentar diálogos igualmente necessários na atualidade. Se o binômio crime e loucura continua, de forma constante, perfazendo discussões e gerando impasses, nada mais elucidativo do que desvelar algumas das suas peculiares origens no que se refere à realidade brasileira.
Um melhor entendimento sobre os primórdios desses impasses é, nesse sentido, elucidativo para que possamos pensar a realidade atual. A análise histórica de um caso, com base em diferentes documentos produzidos na época, foi, nesses termos, o aspecto basilar para o trabalho realizado. Este estudo objetivou, portanto, destacar as principais nuances e os fervorosos embates teóricos que caracterizam um difícil diálogo entre diferentes áreas do conhecimento.
O presente artigo não se pautou por um maior aprofundamento crítico desses embates, ainda que tenha evidenciado que determinadas ideias não podem ser dissociadas de interesses e preconceitos vigentes. Pretende-se que o estudo desenvolvido possa gerar subsídios para outras análises que se mostrem capazes de melhor comparar essas práticas ontem e hoje. Além disso, considera-se que o próprio caso abordado demandou, para a sua real compreensão, uma contextualização histórica. Dessa forma, este estudo buscou tecer um diálogo profícuo entre História e Psicologia, destacando, para tanto, o contexto em que emergiu um caso cujas implicações para a compreensão de um cenário mais atual não se esgotam facilmente e, portanto, não se encerram com o presente artigo.
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Endereço para correspondência:
Cristiane Teresinha de Deus Virgili Vasconcellos
sjlvasconcellos@bol.com.br
Silvio José Lemos Vasconcellos
sjlvasconcellos@bol.com.br
Submetido em: 15/11/2014
Revisto em: 03/09/2015
Aceito em: 09/01/2016
i Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria.