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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.70 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2018
ARTIGOS
Paternidade afetivamente inscrita: modalidades de interação na relação pai-bebê
Fatherhood affectively imprinted: modalities of interaction in father-baby relations
Paternidad afectivamente inscrita: modalidades de interacción padre-bebé
Carine Valéria Mendes SantosI; Andrés Eduardo Aguirre AntúnezII
IDoutoranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Universidade de São Paulo (USP). São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Universidade de São Paulo (USP). São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil
RESUMO
Considerando a emergência de uma nova paternidade, caracterizada pela atuação do pai como um cuidador da criança, este artigo discute o contexto de interação na relação entre dois pais e seus respectivos filhos(as). Dessa forma, a análise apresentada se baseia: nos registros de observações realizadas na casa das famílias durantes os 3 primeiros meses de idade do bebê; e nas transcrições das entrevistas realizadas no último mês de gestação e no terceiro mês de idade da criança. Por meio da análise do material e considerando a perspectiva psicossocial do estudo, elaborou-se a categoria paternidade afetivamente inscrita que expressa a correlação entre os cuidados providos pelos pais diante das demandas de seus bebês e suas posições em diferentes modalidades de interação. Ressalta-se, a coexistência de referenciais arcaicos e atuais no exercício da paternidade contemporânea e a necessidade de aprofundamento dos estudos em torno da relação pai-bebê.
Palavras-chave: Paternidade; Bebês; Relações pai-criança.
ABSTRACT
Fatherhood has changed in contemporary families as fathers participate more actively as caregivers for their own children. This paper discusses interactions between fathers and their children in this context. Research data was gathered by observation records held in the family house over the first 3 months after birth and interviews held in the last month of pregnancy and third month of the child's life. Data analysis was based on a psychosocial perspective. Results show a new category of the fatherhood affectively imprinted, which expresses interrelations between different kinds of care provided by fathers according to their babies demands and their positions in different modalities of interaction. It should be noted that archaic and current reference in the performance of contemporary fatherhood coexist and there is a need to develop more studies about the father-baby relationship.
Keywords: Fatherhood; Infants; Father-child relations.
RESUMEN
Teniendo en cuenta la aparición de una nueva paternidad, que se caracteriza por el papel del padre como cuidador del niño, este artículo analiza el contexto de interacción en la relación entre dos padres y sus hijos (as). De esta forma, el análisis presentado se basa: en los registros de observaciones realizadas en la casa de las familias durante los 3 primeros meses de edad del bebé; y en las transcripciones de las entrevistas realizadas en el último mes de gestación y en el tercer mes de edad del niño. Por medio del análisis del material y considerando la perspectiva psicosocial del estudio, se elaboró la categoría paternidad afectivamente inscrita que expresa la correlación entre los cuidados proporcionados por los padres ante las demandas de sus bebés y sus posiciones en diferentes modalidades de interacción. Se resalta la coexistencia de referenciales arcaicos y actuales en el ejercicio de la paternidad contemporánea y la necesidad de profundizar los estudios en torno a la relación padre-bebé.
Palabras clave: Paternidad; Bebés; Relaciones padre-niño.
Introdução
Partindo de um contexto de predominância feminina e materna no que se refere ao cuidado de crianças no âmbito familiar, principalmente em idades precoces, reflete-se a partir dessa discussão acerca de um fenômeno cada vez mais presente no contexto contemporâneo da família nuclear heterossexual, a saber, a participação dos homens nos cuidados infantis.
Logo, o fenômeno de uma paternidade engajada com os cuidados da criança, até mesmo com as demandas do bebê, de uma forma mais afetiva, tem mobilizado estudos científicos que fomentam o início da construção de um campo de investigação voltado tanto para a tentativa de entender como os pais vêm se apropriando de um lugar de cuidado com qualidades e especificidades; como para problematizar as implicações da inserção do pai como um cuidador para a estruturação familiar, para a transmissão dos estereótipos de gênero e para o desenvolvimento infantil. Dentro desses estudos, este pai tem sido qualificado a partir das seguintes denominações: paternidade participativa, pai cuidador, pai participativo ou participante, novo pai ou nova paternidade, homem-pai, pai-mãe, pai grávido, pai nutridor, pai contemporâneo, paternidade andrógena, etc (Bornholdt, Wagner, & Staudt, 2007; Oliveira, & Silva, 2011; Sutter, & Bucher-Maluschke, 2008).
É justamente pensando nas implicações desse contexto para as relações entre pais e mães e entre pais e filhos(as) que este artigo tem como objetivo: discutir as interações afetivas observadas entre dois pais e seus respectivos bebês. Ao longo dessa exposição, as modalidades de interação encontradas serão postas em relevo no intuito de analisar características do exercício parental paterno, além disso, a categoria denominativa paternidade participativa, denominação predominante encontrada na literatura científica, será problematizada quanto a sua adequação para delimitar a complexidade do fenômeno da paternidade contemporânea.
Contraposições entre modelos de paternidade na família nuclear heterossexual
A família nuclear constituída pelo casal monogâmico/heterossexual e seus filhos(as) teve seu surgimento a partir do século XVIII com o advento do amor romântico, este responsável por possibilitar uniões matrimoniais baseadas no consentimento mútuo dos cônjuges e a adoção de uma nova atitude de proteção e cuidado diante da fragilidade e dependência reconhecidas no bebê e na criança. De acordo com Roudinesco (2002), a família que surge nesse momento é denominada família moderna e a que existia no período anterior é denominada família tradicional. Esta última era caracterizada como uma instituição predominantemente voltada para a transmissão de patrimônio, cuja união conjugal era firmada a partir de acordos por conveniência. Dessa forma, eram os pais dos cônjuges que decidiam quanto à viabilidade da união e a vida afetiva ou sexual do futuro casal não era levada em conta. Na família tradicional, a criança era criada em meio à família extensa e ainda não havia reconhecimento das necessidades e demandas infantis específicas.
Dentro do modelo da família tradicional, o pai possuía poderes ilimitados sobre os outros membros familiares, os quais deveriam se submeter à autoridade soberana do homem que estava assentada na ideologia patriarcal e na transposição das similaridades com o poder monárquico para o ambiente doméstico. No modelo de família moderna, reconhecia-se uma espécie de divisão de autoridade entre homens e mulheres, no entanto, a hierarquia de poderes permanecia arraigada à divisão de papéis e funções, fazendo do homem - antes senhor soberano - um chefe de família responsável pelo gerenciamento da ordem disciplinar, pela moralidade, pela proteção e pelo provimento financeiro familiar (Roudinesco, 2002).
Dessa maneira, ainda que o homem tenha perdido uma parte da autoridade que exercia, seus poderes ainda permaneciam preponderantes e a autoridade proveniente da mulher restringia-se ao controle e gerenciamento doméstico e aos cuidados e à educação das crianças. Essas atribuições paternas e maternas também produziam dicotomias relacionadas à expressão dos afetos, fazendo da mãe uma líder expressiva-afetiva dentro da família e do pai o líder autoritário e afetivamente distante cujas emoções não deveriam ser manifestadas (Manfroi, Macarini, & Vieira, 2011; Staudt, & Wagner, 2008).
A partir do ano de 1960 emerge no cenário social uma nova configuração de família denominada de família contemporânea ou pós-moderna. Esta caracteriza-se pela união relativamente duradoura entre indivíduos no intuito de estabelecer relações íntimas e alcançar a realização sexual. A paternidade vai deixando de ser associada intrinsecamente à função de autoridade e a afetividade torna-se uma premissa essencial na constituição das relações familiares (Roudinesco, 2002).
É necessário reconhecer que a influência do modelo patriarcal de paternidade ainda persiste até hoje, contudo, algumas mudanças socioculturais trouxeram para esse contexto fatores que vêm aos poucos estabelecendo um novo paradigma afetivo dentro do âmbito familiar. Entre essas mudanças destacam-se: a revolução feminista, a entrada da mulher no mercado de trabalho, a descoberta dos anticoncepcionais e a consequente mudança que isso trouxe para a sexualidade feminina (Falceto, Fernandes, Baratojo, & Giugliani, 2008; Freitas et al., 2009; Gabriel, & Dias, 2011).
Logo, este artigo traz à discussão um fenômeno que vem sendo compreendido como uma nova paternidade na família contemporânea. Trata-se de um possível reordenamento quanto a papéis e funções de homens e mulheres no que diz respeito ao cuidado com os(as) filhos(as). Dentro dessa conjuntura estereótipos provenientes da ideologia patriarcal têm sido desconstruídos e o homem tem se posicionado como cuidador ativo e afetivo no cotidiano familiar (Borsa, & Nunes, 2011; Jager, & Bottoli, 2011; Oliveira, & Silva, 2011; Zornig, 2010a).
Ainda assim, embora o interesse por parte dos homens em relação à participação nos cuidados e no cotidiano dos(as) filhos(as) esteja se manifestando de formas cada vez mais espontâneas, a mulher ainda permanece como a principal cuidadora. Esta predominância apresenta-se de forma contraditória em relação aos avanços conquistados pelas mulheres e se justifica em parte pela noção preconcebida de um amor materno "instintivamente" natural e incondicional, noção enraizada no imaginário cultural acerca dos lugares parentais de homens e mulheres transmitidos ao longo das gerações (Grisci, 1995).
O Brasil desde o início de sua colonização até a atualidade sofreu influências provenientes do modelo familiar tradicional regido pela ideologia patriarcal, é o que explica Priore (2009) ao problematizar, principalmente, a construção social do que ela denomina de santa-mãezinha para tratar da importância de estereótipos femininos que estão difundidos culturalmente no imaginário brasileiro, a exemplo do que se relaciona ao ideário da mãe "provedora, piedosa, dedicada e assexuada" (p. 16).
Alguns estudiosos, como Badinter (1980), vêm contestando de forma contundente e fundamentada a naturalização do binômio mulher-maternidade. Para a autora, o amor materno visto como sagrado e incondicional é uma construção social e cultural que se deu ao longo do tempo. Se a sacralidade do amor materno nem sempre foi algo enfatizado e até mesmo almejado em determinados períodos históricos e em determinadas sociedades, depreende-se desse fato que a vinculação entre a mãe e o bebê se constrói de forma contingencial a partir da relação estabelecida pela díade, dessa forma, o ser mulher não estaria necessariamente atrelado ao ser mãe (Badinter, 1980; 2011).
Enquanto a maternidade instintiva e natural começa a ser contestada, surgem também a partir do ano de 1960, por meio da Psicanálise Francesa, discussões em torno do conceito da parentalidade. Termo que se refere ao processo de construção do ser pai e do ser mãe a partir do exercício parental em concomitância com o processo de filiação. A ideia da constituição paterna e materna como um processo traz para a configuração familiar um sentido dinâmico e flexível, com isso, a tríade pai-mãe-bebê (e não só a díade mãe-bebê) ganha destaque e as relações familiares passam a ser pensadas como relações moduladas através de um processo contínuo no qual a parentalidade e a filiação estariam sendo construídas por meio das interações afetivas (Zornig, 2010a).
A noção de parentalidade abre espaço para discussões menos engessadas em relação às configurações familiares e acompanha os novos arranjos relacionais que surgem na contemporaneidade, a exemplo das famílias monoparentais, homoparentais, reconstituídas, coparentais, e de casais sem filhos. Além disso, a noção de parentalidade, que se contrapõe à rigidez de papéis e funções parentais pré-definidos, flexibiliza na família nuclear heterossexual as possibilidades de inserção dos pais de forma mais participativa ao longo do desenvolvimento infantil, inclusive durante os vários estágios do ciclo gravídico-puerperal (Piccinini, Levandowski, Gomes, Lindenmeyer, & Lopes, 2009). Esta inclusão paterna nesse período tem caracterizado um fenômeno contemporâneo que vem sendo denominado predominantemente de paternidade participativa (Sutter, & Bucher-Maluschke, 2008).
De acordo com Santos (2014), os pais que se inserem nessa nova paternidade desde a precocidade da constituição subjetiva da criança são descritos na literatura a partir de alguns parâmetros. Quanto à interação com a companheira frente ao exercício parental: valorização e facilitação pela mulher da participação paterna no ciclo gravídico-puerperal; trocas afetivas e demonstração das fragilidades pelo homem; relação igualitária e de confiança, além de maior divisão de tarefas entre o casal; identificação do homem com a gravidez da mulher, o ideário do casal grávido; engajamento do homem oferecendo suporte emocional à mulher durante o processo gestacional/parto/puerpério; e a paternidade vivida em consonância com a manutenção da masculinidade, sem anulá-la. Quanto à interação com o bebê e a criança: vinculação afetiva precoce com a prole (interações com o feto e com o recém-nascido); disponibilidade para aprender sobre os cuidados oferecidos ao bebê com a mulher, com a família extensa ou através de informações retiradas de fontes teóricas; inserção nos cuidados físicos e emocionais diários; frequente contato corporal com a criança; demonstração de sensibilidade em relação às necessidades infantis; e postura compreensiva, dialogante, descontraída e lúdica.
Esses parâmetros buscam apenas caracterizar as novas interações entre pai, mãe e bebê, discutidas de forma ainda incipiente na literatura científica. A descrição desses parâmetros poderia indicar a emergência de novos referenciais no exercício da paternidade contemporânea e nos remete à complexidade dessas novas relações (Santos, 2014). Observa-se, portanto, que embora o cuidado infantil ainda seja tradicionalmente associado e exercido como atribuição natural da mulher, o cotidiano do que se considera como tradicional vem sendo desconstruído em vista de uma postura paterna mais implicada afetivamente.
Método
De que maneira os pais estão interagindo com seus bebês? A atualidade dessa interação tem demandado a construção de novos conhecimentos acerca da experiência paterna, bem como dos significados e sentidos atribuídos pelos pais, mães e crianças à vivência de relações mais afetivas entre o homem-pai e os outros membros do grupo familiar.
A investigação do fenômeno de uma nova paternidade na família nuclear contemporânea apresentada aqui é proveniente do material de uma pesquisa de mestrado cujo objetivo foi investigar a relação pai-bebê destacando as formas de inserção do pai como um cuidador. Os pais selecionados para participar do estudo foram acompanhados durante o final da gestação de suas companheiras até o terceiro mês de idade da criança.
Para a construção de dados ao longo desse acompanhamento foram utilizados dois diários de campo, o primeiro referente às observações no ambulatório de pré-natal e o segundo referente às observações na casa das famílias acompanhadas, estas últimas se deram ao longo dos três primeiros meses de idade da criança. As visitas ocorreram na própria residência familiar e tiveram uma duração de 40 a 50 minutos em horários flexíveis e acordados com as famílias, totalizando quatro visitas à primeira família e cinco visitas à segunda. Também foram realizadas duas entrevistas semidirigidas com cada pai, a primeira no nono mês de gestação e a segunda no terceiro mês de idade do bebê. Ressalta-se que a pesquisa em questão obteve a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Divisão Obstétrica do Hospital no qual os pais foram selecionados e acompanhados, além disso, os participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A seleção dos pais deu-se mediante os seguintes critérios de inclusão: contribuição voluntária com a proposta de pesquisa; estar passando pela experiência parental pela primeira vez; gravidez e parto sem intercorrências; coabitar com as mães dos respectivos bebês; possuir vínculo biológico com a criança; e residir na cidade de São Paulo. Em vista desses critérios, no Quadro 1 serão apresentadas algumas informações sobre o contexto familiar dos dois participantes selecionados.
A análise do material construído por meio do acompanhamento dos pais foi realizada seguindo as orientações de uma particularização da técnica da Análise de Conteúdo desenvolvida a partir do Método Clínico-qualitativo (Turato, 2011), logo, foram realizadas leituras flutuantes e posteriores categorizações do material de pesquisa (anotações dos diários de campo e transcrições das entrevistas semidirigidas). Estas categorizações tentaram abarcar o fenômeno da relação pai-bebê em suas manifestações e os significados e sentidos atribuídos pelos pais participantes à experiência parental.
Portanto, este artigo irá discutir a análise do material a partir de um recorte psicossocial acerca da paternidade contemporânea, estabelecendo relações entre referenciais provenientes do modelo de paternidade patriarcal e os novos referenciais paternos construídos por meio da emergência de uma nova paternidade. Para tal finalidade, o recorte será apresentado por meio de aspectos que foram considerados relevantes para a construção parental de Bernardo e Maurício, a saber: histórico familiar dos participantes, dinâmica conjugal em função da parentalidade, experiências anteriores de cuidados dos pais com outras crianças e as interações afetivas observadas entre as díades pai-bebê (Bernardo-Benjamim e Maurício-Marília). A seguir seguem os fundamentos que justificaram o destaque para esses aspectos na exposição do material analisado.
Aspectos constitutivos no processo de construção parental
O que pode influenciar os diferentes posicionamentos adotados pelos pais frente aos cuidados com o recém-nascido? Para tentar elaborar essa questão pensou-se, por meio do material de análise, em quatro aspectos considerados fundamentais e determinantes para a constituição parento-filial dos dois pais participantes. O primeiro aspecto diz respeito aos referenciais familiares transmitidos aos pais e leva em consideração o processo de transmissão psíquica, desse modo, considera-se que os modelos parentais provenientes das gerações anteriores em uma mesma família influenciam as escolhas conscientes e inconscientes ao longo do exercício parental atual (Zornig, 2010b).
O segundo aspecto a ser destacado é a influência da dinâmica de papéis estabelecida pelo casal e que por sua vez interfere no exercício parental de homens e mulheres. Desse modo, a conjugalidade estaria intimamente relacionada ao tipo de paternidade exercida. Seguindo essa premissa, alguns casais se assemelhariam ao modelo de conjugalidade regido pela ideologia patriarcal e outros poderiam ser caracterizados a partir das configurações conjugais contemporâneas. O que se tem observado é que atualmente as dinâmicas conjugais cada vez mais se complexificam e, na construção do par conjugal, referenciais tradicionais e contemporâneos coexistem (RODRIGUES; GOMES, 2012).
O terceiro aspecto refere-se às competências e à disponibilidade para cuidar construídas pelos pais em situações anteriores à paternidade. Dentre essas situações está a experiência do próprio pai quando bebê, além de cuidados com irmãos e irmãs ou outras crianças com as quais os pais tiveram contato antes de iniciarem o exercício parental pela primeira vez. Considerou-se esse aspecto importante, pois essas situações anteriores poderiam influenciar significativamente a disponibilidade ou não do pai para exercer determinados tipos de cuidado.
O quarto aspecto relevante seria a própria interação com o bebê. Considera-se a existência de um processo contínuo de construção parento-filial, no qual o bebê não é um agente passivo que apenas está sujeito aos cuidados do adulto, logo, a presença real do bebê produz uma neoformação psíquica nos pais (Zornig, 2010b). Este aspecto é essencial se considerarmos que a criança precisa ser inserida em uma história familiar, mas essa inserção não é mera reprodução psíquica da história pregressa, ao reconhecer a singularidade e a alteridade dos(as) filhos(as) os pais permitem que a criança tanto assimile seus referenciais familiares quanto atualize-os de acordo com seu percurso de vida (Kaës, 1993/2001).
Esses quatro aspectos atuaram de forma simultânea no processo de construção e na atualização do exercício parental dos participantes, determinando o engajamento ou não do pai durante o ciclo gravídico-puerperal, ou estabelecendo diferentes modalidades de envolvimento afetivo com o bebê. Ressalta-se, no entanto, que o destaque para esses aspectos baseou-se no material de análise referente à pesquisa supracitada e que esta delimitação não impossibilita a influência de outros aspectos não mencionados ou de aspectos que possam ser observados em outros estudos e/ou contextos de construção parental. A apresentação do contexto familiar dos pais selecionados seguirá o detalhamento das interações e cuidados relatados e observados em função dos quatro aspectos expostos.
Resultados
Maurício e Marília
Maurício, proveniente de uma família que poderia ser qualificada como tradicional, cujos pais ainda eram casados na época da entrevista, demonstrou em várias ocasiões ter noções pré-determinadas e rígidas acerca das funções parentais. Ao relatar aspectos de seu contexto familiar de origem, o participante define o próprio pai como uma figura predominantemente de autoridade, nas palavras do participante "pai é mais durão", a relação é permeada pelo respeito à autoridade paterna e caracterizada como uma boa relação, apesar de existir um fluxo de comunicação restrito entre pai e filho. Já na relação entre o participante e a própria mãe, segue a seguinte descrição "minha mãe é pegajosa, mas ela é muito carinhosa. Então eu acho uma relação, assim, bem junto, né, bem comunicativa". Percebe-se em ambas as descrições uma relação de contraposição nas dinâmicas afetivas, o que situa a mãe no lugar tradicional de representante do afeto e da emocionalidade, enquanto o pai é situado numa posição em que a distância afetiva é característica comum e a função paterna está associada à transmissão da autoridade e da moral familiar.
Maurício e Milena haviam começado a morar juntos depois de dois anos de relacionamento e ambos contribuíam para o provimento financeiro do lar. A gravidez ocorreu pouco tempo depois de estabelecida a coabitação. De acordo com Cunha (2009), a coabitação juntamente com a contribuição compartilhada para a manutenção das despesas domésticas fazem parte do funcionamento conjugal característico de uma estrutura familiar mais contemporânea, cuja imposição pela união matrimonial não é mais determinante e em que a participação cada vez maior da mulher no mercado de trabalho faz com que as responsabilidades financeiras não sejam mais um apanágio masculino.
Perguntou-se ao participante se ele já havia tido experiências de cuidados anteriores com outras crianças e que tipo de cuidados foram exercidos. O participante dá o seguinte relato:
Já, a gente ficou com uma afilhada, uma menina, ela ficou com a gente, só tinha um ano, ela ficou quatro, cinco meses, inclusive ela era maior, ela já tinha um ano. Aí essa menina, eu levantava de manhã, trocava a fralda dela, fazia... dava mamar pra ela, que ela mamava mamadeira, aí eu já cuidei mais dela que da minha filha, por causa dela ser maior, ela já andava e tudo. Ela era criança ainda, mas eu já cuidava mais fácil dela, era mais fácil cuidar.
Maurício menciona uma experiência anterior com uma afilhada do casal, por meio da qual ele aprendeu a desempenhar de forma hábil os cuidados cotidianos necessários. No entanto, ao falar sobre os cuidados exercidos por ele no cotidiano da filha o relato se modifica:
Ah, os tipos de cuidado assim é mais a parte da mãe, né. De vez em quando eu faço, mas aí é a mulher que faz mais, né, de trocar fralda essas coisas assim. Mas, de vez em quando, eu tento trocar uma fralda, colocar a roupinha dela, né, procuro fazer alguma coisa, mas aí eu deixo mais pra mãe (risos). Até a fralda hoje eu troco dela, mas é meio difícil trocar a fralda dela, eu troco fralda, às vezes, eu troco ela, mas eu não vejo facilidade em nada, assim basicamente. Talvez em ficar com ela, brincar com ela, assim, tá presente eu sinto facilidade. Agora dá banho, essas coisas assim, eu fico meio... né. Ajudar nos afazeres dela assim, é difícil, eu tento, mas é difícil, acho que quando ela tiver maiorzinha eu posso até ajudar mais, ela é muito bebezinha ainda, eu tenho medo de machucar, de acontecer alguma coisa com ela, essas coisas.
Maurício mostrou-se um pai muito ativo durante o período gestacional de sua companheira, participando das consultas pré-natais e preparando-se psiquicamente para a chegada do bebê. No entanto, quando questionado sobre quem seria o principal cuidador da criança ele respondeu de imediato "ah, a mãe". Dessa maneira, quando a referência de cuidado principal foi situada como função da mãe, "aí é a mulher que faz mais, né", é possível pensar que para o participante a relação entre a mãe e o bebê é vista como um binômio indissociável no qual a criança subtende necessariamente uma mãe que cuida de forma naturalizada.
Destacamos a distinção feita pelo próprio participante entre os cuidados oferecidos a sua afilhada e os cuidados oferecidos a sua própria filha. No exercício parental desse pai os cuidados são delegados à Milena como "a parte da mãe". Assim, apesar de o participante ter desenvolvido competências para o cuidado prático com a criança em situações anteriores, na atualização desse cuidado com Marília ele responde a partir de outro lugar, descrevendo uma extrema dificuldade em realizar os mesmos cuidados mencionados anteriormente. O próprio participante tenta justificar esta distinção em seu comportamento dizendo:
Agora é difícil, na idade que ela tá, porque ela mama em uma e uma hora. Aí às vezes eu tô com ela no colo, ela gosta de ficar em pé, e tem que ficar em pé com ela, é difícil, eu conseguiria se ela ficasse quietinha, mas às vezes ela quer a mãe dela e não fica, eu acho que não daria. Ela só mama, só no peito. Nem chupeta ela pega, aí você pensa se ela começar a chorar eu fico sem saber o que fazer, né.
A justificativa para o distanciamento dos cuidados práticos, juntamente com a alegação de inabilidade, seria a necessidade constante pelo aleitamento por parte da criança. A primazia da amamentação pela mãe traz a contrapartida irrevogável da inutilidade paterna nesse momento. No caso de Maurício, o choro da criança atesta invariavelmente o apelo pela mãe enquanto o pai fica sem saber o que fazer, pois está situado no lugar daquele que não tem nada a oferecer, excetuando-se um alívio temporário dos encargos enquanto a mãe não vem. Este dado corrobora algo já exposto na literatura científica acerca da maior participação paterna proporcional ao avanço da idade da criança e à aquisição de competências cognitivas e comunicativas. O momento ao qual este artigo se dedica continua sendo predominantemente permeado pelo cuidado feminino, pois ainda existe a pré-concepção de que até mesmo uma outra mulher, que não a mãe do bebê, teria supostamente maiores capacidades de lidar com os tipos de cuidado demandados por um recém-nascido do que o pai da criança (Piccinini et al., 2009).
Ao longo dos três primeiros meses de Marília nas visitas de acompanhamento à casa do participante foram observadas as seguintes interações constantes no Quadro 2.
É possível perceber que, embora Maurício tenha participado ativamente durante o pré-natal, as interações afetivas observadas após o nascimento do bebê apresentaram discrepâncias em relação a esse período inicial. Na rotina de cuidados, o participante se definiu como "assistente da mãe", desempenhando funções secundárias e estabelecendo uma relação mais indireta com o bebê. Ao se posicionar como pai, o participante repete o modelo de paternidade tradicional transmitido que situa o homem como aquele que exerce a proteção e o provimento das condições materiais necessárias, enquanto os cuidados diretos oferecidos ao recém-nascido permanecem associados ao materno e ao feminino.
Ressalta-se que o lugar secundário de Maurício nesse momento é reforçado pelo comportamento de sua companheira que, ao deter a primazia do cuidado, situa este pai num lugar à margem. Maurício, mesmo tendo desenvolvido habilidades para o cuidado físico com o bebê em uma situação anterior à paternidade, não se autoriza a exercer esses cuidados chegando a desconsiderá-los como competências adquiridas. Na relação estabelecida pelo casal e que retoma os modelos parentais adquiridos pelo par conjugal, a relação entre o pai e a criança é primordialmente mediada pela mãe que é definida como a principal cuidadora. Acrescentando-se às funções delimitadas de pais e mães, em uma família regida pela ideologia patriarcal, é possível pensar no aleitamento materno e no imaginário construído em torno da fragilidade corporal do recém-nascido como aspectos reforçadores do monopólio da maternidade ao longo do ciclo gravídico-puerperal.
Nesse ínterim, ainda que houvesse investimento por parte de Maurício desde a gestação para exercer cuidados mais efetivos e assíduos em relação à Marília, o participante não se autorizou e/ou foi autorizado pela companheira ou pela rede familiar a desempenhar cuidados mais diretos. Isto não quer dizer que Maurício não deu continuidade ao processo de vinculação afetiva com a filha, porém, o exercício parental restringiu-se às funções de auxiliar a mãe em aspectos secundários e prover as condições materiais adequadas.
Bernardo e Benjamim
Em termos de histórico familiar, esse pai relatou algumas experiências de privações precoces em relação às figuras parentais. Sua mãe biológica o entregou a uma mulher que cuidou dele por um tempo, mas também acabou abandonando-o. Bernardo foi entregue a uma família formada por um ex-casal e seus dois filhos. Dessa forma, o participante cresceu em dois ambientes familiares com seus irmãos. Apesar de um início de vida atribulado, a inserção de Bernardo nessa família foi considerada como benéfica pelo participante, pois ele finalmente pôde ser acolhido, independentemente de suas figuras paterna e materna viverem em lares diferentes. É possível considerar a possibilidade de a migração cotidiana entre a casa da mãe e do pai adotivos ter estabelecido padrões menos rígidos no que diz respeito aos papéis e funções de homens e mulheres, já que, de acordo com Bernardo, tanto seu pai quanto sua mãe desempenhavam funções de autoridade e acolhimento.
Bernardo e Bianca descobriram a gravidez após 8 meses de relacionamento e este acontecimento precipitou tanto a coabitação do casal, quanto o casamento no civil. Bianca era estudante e, após a notícia da gravidez, Bernardo arranjou um emprego para ajudar nas despesas da casa e no sustento do bebê. É possível constatar que a chegada da criança mobilizou neste pai ações que trouxeram mudanças significativas para o funcionamento do casal que em pouco tempo transpôs a condição de namorados para casados. Desse modo, a paternidade trouxe como implicação a necessidade de uma legitimação legal do casal e a apropriação do lugar de provedor familiar assumida por Bernardo. Nesse sentido, é possível pensar que no período gestacional Bernardo apropriou-se de suas funções seguindo referenciais parentais de modelos familiares mais tradicionais.
Durante o pré-natal, Bernardo não pôde acompanhar com assiduidade as consultas de Bianca, pois estas sempre coincidiam com seu horário de trabalho, o que não impossibilitou o engajamento desse pai com o processo da gestação no ambiente do lar através de interações com a gestante e com o feto.
A flexibilidade de Bernardo em relação aos cuidados que seriam oferecidos a Benjamim pode ser exemplificada quando ao ser questionado sobre quem seria o principal cuidador da criança ele responde que seria Bianca, no entanto, justifica essa resposta com o seguinte comentário "Porque eu não vou estar. Eu estarei só no período da manhã. No caso que ela vai pra escola e quem cuida no período da manhã vai ser eu".
Para Bernardo, o que caracteriza Bianca como a principal cuidadora não é a associação pré-concebida entre gênero feminino e cuidado infantil, mas sim a disponibilidade de tempo junto à criança, pois a mãe, além de ter uma licença-maternidade mais estendida, ainda era estudante, enquanto Bernardo passava mais tempo no trabalho. Percebe-se também nessa fala que o participante não se exime dos cuidados diários, delimitando suas responsabilidades como cuidador ao horário que tem disponível. O participante também foi questionado sobre se havia tido experiências de cuidados anteriores com outras crianças, ao que ele responde:
Já, mas não assim nessa faixa etária. É, meu irmão é um pouco mais novo do que eu, mas quando a gente era pequeno eu que tomava conta dele. O mais novo, eu que tomava conta dele que o mais velho saia, às vezes, pra gandaia, ou ia trabalhar e eu ficava com ele em casa e a gente comia, brincava e aí vai...
Nesse trecho de fala, Bernardo se remete a uma experiência de cuidado em um momento em que ele ainda era criança e cuidava de seu irmão mais novo. Cuidado entendido por esse pai como uma capacidade de estar disponível "tomar conta", alimentar, brincar etc. A partir dessa informação, é possível pensar em como este pai, embora não tenha tido experiências concretas de interação com bebês, construiu a partir de cuidados exercidos no ambiente familiar de origem uma disponibilidade emocional para lidar com as demandas infantis. Na atualização da experiência de cuidado com o filho, Bernardo descreve a seguinte rotina:
Ah, agora que eu tô voltando a trabalhar a tarde, como ela tá em casa ainda, a gente acorda de manhã, aí dá banho nele, eu de preferência dou banho nele, a gente deixa ele limpo já, depois ela dá de mamar pra ele, aí eu vou tomar banho pra mim ir trabalhar, aí depois quando eu chego do trabalho eu só brinco com ele um pouquinho, a gente fica acordado até 2 horas da manhã, dá de mamar, eu mesmo faço mamadeira e dou a mamadeira pra ele aqui embaixo, subo de novo, fico brincando com ele lá pra cima, depois ele vai dormir.
Essa fala demonstra uma completa inserção na rotina de cuidados ao longo dos três primeiros meses de Benjamim e é possível perceber que o pai exerce variadas funções nessa rotina participando como um cuidador extremamente ativo. No Quadro 3 constam as interações afetivas observadas durante o acompanhamento de Bernardo e Benjamim.
Essas interações demonstram um processo de vinculação mais direto com o bebê, no qual o pai desenvolve uma relação íntima e afetiva. Ressalta-se, nesse processo de construção parento-filial, a importância do posicionamento de Bianca em relação aos cuidados paternos exercidos, essa mãe demonstrou capacidade de confiar em Bernardo como um cuidador, o que foi considerado um fator de incentivo para a consolidação desse pai como elemento essencial na rotina de cuidados oferecidos.
Discussão: Paternidade Afetivamente Inscrita
Estabelecendo correlações entre os posicionamentos adotados pelos dois pais em relação aos seus respectivos bebês, é possível desenvolver algumas elaborações acerca de que paternidade nos referimos ao expor estes breves recortes de experiência. Os pais apresentados participaram de forma engajada do ciclo gravídico-puerperal, resguardando as limitações de disponibilidade de cada caso, e conseguiram construir um processo de vinculação afetiva que se iniciou desde a notícia da gravidez.
No entanto, a partir das informações apresentadas neste artigo, percebe-se que a experiência parental para Maurício e Bernardo deu-se de forma diversa. Enquanto Maurício, apesar de ter demonstrado engajamento afetivo durante o período gestacional, exerceu a parentalidade como um assistente da mãe diante das demandas do bebê; Bernardo estabeleceu uma relação mais direta com seu filho, desempenhando suas funções de forma mais efetiva no que diz respeito às demandas imediatas por cuidado.
As questões que se estabelecem diante dessas modalidades de interação são: Esses pais poderiam ser qualificados dentro de uma paternidade participativa? Dizer que o pai participa é suficiente para abarcar o fenômeno da nova paternidade? Os pais que exercem a parentalidade a partir de referenciais da família tradicional ou moderna não estariam exercendo uma paternidade que "participa" ainda que sob o predomínio da função de autoridade?
Quando circunscrevemos o exercício parental como situado em um novo modelo de paternidade ou paternidade participativa, constata-se que qualificar as ações desses dois pais como participativa não é suficiente para caracterizar aquilo que fundamenta este novo modelo. Isso porque participar não implica necessariamente em uma participação sob a regência da afetividade, podendo estar a postura paterna assentada em outros valores centrais, como a anteriormente incontestada autoridade patriarcal.
Diante dessa problemática, é possível afirmar que a característica essencial da nova paternidade é, principalmente, a inserção paterna implicada afetivamente nos cuidados diários oferecidos à criança. Seguindo essa premissa, para além da denominação de pai participativo, é possível pensar nesse pai como aquele que se inscreve desde cedo na subjetividade da criança, imprimindo características específicas do cuidado paterno a partir da relação pai-bebê. Observou-se na relação dos dois pais acompanhados que essa inscrição pode se dar tanto de forma indireta (mediada pela mãe da criança) como de forma direta (não necessariamente mediada pela mãe). Estas modalidades de interação implicam em uma relação afetiva intrinsecamente atrelada aos cuidados corporais e emocionais demandados pelas necessidades imediatas do recém-nascido e na forma como os pais se posicionam diante desses cuidados.
Logo, propõe-se a partir do exposto, situar os dois pais em uma categoria que optamos por denominar de paternidade afetivamente inscrita, pois, ambos demonstraram processos de engajamento afetivo ao longo do ciclo gravídico-puerperal e pode se considerar que ambos deram início a processos de inscrição intersubjetiva sob a égide da afetividade como base de construção da relação pai-bebê. Destaca-se, no entanto, que, diante da presença real do bebê, estes pais apresentaram diferentes modalidades de interação. Dessa forma, nas relações afetivas estabelecidas entre o pai e o bebê, observou-se que ainda que a afetividade tenha pautado as ações dos dois pais, referenciais provenientes do modelo patriarcal de paternidade também foram encontrados, o que pode ter influenciado tanto a qualidade dos cuidados oferecidos, quanto a construção parental dos pais como cuidadores, exercendo interações diretas ou indiretas.
Essa convivência entre pai e bebê, pautada em ações e manifestações afetivas demandadas pelo contexto imediato, permitiria a esse pai mais envolvido nos cuidados diários perceber estados do bebê de forma mais acurada. Percepção esta denominada por Stern (1985) de sintonia afetiva, segundo esta noção a compreensão dos comportamentos tanto dos pais quanto do próprio bebê seria fundamentada nas trocas intersubjetivas e afetivas. Sobre essa troca comunicativa e afetiva Lebovici (1987) complementa:
A interação pai-bebê é um conjunto extremamente complexo que pode ser assim decomposto: a interação pai-bebê passa por um certo número de canais ou modalidades perceptivas e motoras (em particular o olhar, a audição, o contato e as sensações cinestésicas); ela é também caracterizada por certas variáveis temporais, notadamente sua duração e seu ritmo; implica processos de regulação mútua graças aos quais cada um dos parceiros influencia as mensagens do outro; enfim, ela é influenciada e se traduz por modificações efetivas de cada um dos parceiros. (Lebovici, 1987, p. 135).
A partir desse excerto é possível compreendermos o quanto as diferenças qualitativas entre a inserção de Maurício e Bernardo implicaram em diferentes modalidades de interação com a criança, bem como em diferentes relacionamentos entre pai e bebê. Elaborou-se, assim, a categoria paternidade afetivamente inscrita que se propõe a refletir as particularidades de um fenômeno observado e, a partir disso, instituir uma nomeação capaz de dar conta da complexidade psicoafetiva dessa nova relação, possibilitada pelo engajamento afetivo do pai na vida da criança desde o período gestacional. De acordo com Zambrano (2006), o uso de determinados termos pode dar visibilidade a um fenômeno ou contexto social, criar espaços discursivos para a problematização de demandas, além de formalizar um campo de luta política. Dessa forma, a associação mais representativa entre o termo e a realidade a qual ele se remete tem sua relevância na medida em que, no caso em questão, faz circular discursos e significados mais condizentes com as especificidades do novo relacionamento entre pai e bebê/criança.
Considerações finais
O intuito de estabelecer a denominação de paternidade afetivamente inscrita para o modelo de paternidade exercido pelos pais referidos foi o de tentar abarcar as complexidades apresentadas pelas novas interações pai-bebê. Dessa maneira, o pai contemporâneo - que se situa dentro do paradigma familiar construído em torno de relações balizadas pelo afeto e não só pela autoridade paterna - tem a seu dispor um modelo de paternidade que se apresenta em processo de construção e que ao mesmo tempo engloba referenciais patriarcais ainda muito presentes nas dinâmicas familiares.
Pensar em uma nova paternidade é necessariamente pensar em uma nova maternidade, pois, ainda que haja interesse masculino para atuar de formas mais ativas nos cuidados infantis, os estereótipos culturais que situam a mulher como cuidadora natural do bebê colocam os homens que se interessam em exercer funções de cuidadores numa posição excluída. Esta exclusão pode se dar tanto por posicionamentos da mulher-mãe, como pelos familiares e as instituições voltadas para a assistência ao pré-natal, parto e puerpério, já que a ênfase da atenção se concentra no binômio mãe-bebê.
Em que contextos esse engajamento paterno tem sido favorecido? Existem diferenças entre modalidades de interação na paternidade afetivamente inscrita quando se consideram fatores sócio-socioeconômico-demográficos? Que estratégias ou recursos os pais têm desenvolvido para exercer a parentalidade de formas mais afetivas desde o início do desenvolvimento infantil? São questões a serem exploradas dentro desse contexto familiar e que demandam investigações que deem visibilidade e um lugar de existência para esses novos pais.
Para que o pai tenha a possibilidade de ser legitimado como um cuidador, é necessário que novos posicionamentos sejam construídos e que estes reverberem no reconhecimento e na confiança em competências paternas para o cuidado infantil. Estas competências estão para além da disponibilidade de tempo junto à criança e referem-se à qualidade dos cuidados oferecidos. O processo de vinculação afetiva construída sobre as bases de uma relação mais íntima entre o pai e o bebê permitiria ao pai conhecer as singularidades da criança desde cedo, além de trazer para o processo de constituição psíquica da criança a possibilidade de uma vinculação afetiva menos estereotipada e dicotomizada no que diz respeito às relações entre gêneros.
Referências
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Endereço para correspondência:
Carine Valéria Mendes Santos
carinevmendes@gmail.com
Andrés Eduardo Aguirre Antúnez
antunez@usp.br
Submetido em: 04/01/2016
Revisto em: 26/10/2017
Aceito em: 30/11/2017
1 Os nomes dos participantes e seus familiares foram substituídos por nomes fictícios para preservar as identidades e resguardar o sigilo das informações.
2 Interações observadas a partir de quatro visitas à casa do participante.
3 Interações observadas a partir de cinco visitas à casa do participante.