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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.3 Rio de Janeiro sept./dic. 2018

 

ARTIGOS

 

A psicologia no SUAS: uma revisão de literatura

 

Psychology in SUAS: a literature review

 

La psicología en el SUAS: una revisión de literatura

 

 

Mariana Prioli Cordeiro

Docente do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho busca apresentar e discutir alguns dos argumentos, sobreposições, contraposições e lacunas que fizeram parte do debate acadêmico em torno da atuação da Psicologia no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), entre os anos de 2005 e 2015. Para isso, foi realizado um trabalho de revisão de literatura, tendo como foco as maneiras por meio das quais artigos científicos abordam o papel da Psicologia na política de Assistência Social, bem como o que fazem (ou deveriam fazer) as(os) psicólogas(os) que nela atuam. A partir da análise de 38 artigos científicos, foi possível concluir que, em 2015, o campo de estudos sobre a inserção da Psicologia no SUAS já havia superado uma primeira fase descritiva. Afinal, os textos já dialogavam com a literatura existente, fazendo contraposições de ideias e arrolando uma leitura mais ampla. Foi possível concluir, também, que esse campo de estudos não é homogêneo, mas cheio de controvérsias e disputas.

Palavras-chave: Psicologia; Assistência social; Revisão de literatura; Políticas públicas; Atuação profissional.


ABSTRACT

This paper seeks to present and discuss some of the arguments, overlaps, contrapositions and gaps that were part of the academic debate about the insertion of Psychology in the Unified Social Assistance System (SUAS) between 2005 and 2015. To achieve this goal, a literature review was carried out, focusing on the ways in which scientific articles deal with the "role" of Psychology in the Social Assistance policy, as well as on what psychologists do (or should do) on it. From the analysis of 38 scientific articles, it was possible to conclude that, by 2015, the field of study on the insertion of Psychology in SUAS had already surpassed a first descriptive phase. After all, the texts were already in dialogue with the existing literature, making oppositions of ideas and drawing a broader reading. It was also possible to conclude that this field of study is not homogeneous, but full of controversies and disputes.

Keywords: Psychology; Social assistance; Literature review; Public policy; Professional performance.


RESUMEN

Este trabajo busca presentar y discutir algunos de los argumentos, superposiciones, contraposiciones y brechas que formaron parte del debate académico en torno a la actuación de la Psicología en el Sistema Único de Asistencia Social (SUAS), entre los años 2005 y 2015. Para ello, se realizó un trabajo de revisión de literatura, teniendo como foco las maneras por las cuales artículos científicos abordan el "papel" de la Psicología en la política de Asistencia Social, así como lo que hacen (o deberían hacer) las (os) psicólogas (os) que actúan en ella. A partir del análisis de 38 artículos científicos, fue posible concluir que, en 2015, el campo de estudios sobre la inserción de la Psicología en el SUAS ya había superado una primera frase descriptiva. Al final, los textos ya dialogaban con la literatura existente, haciendo contraposiciones de ideas y arrollando una lectura más amplia. Fue posible concluir, también, que ese campo de estudios no es homogéneo, pero lleno de controversias y disputas.

Palabras clave: Psicología; Asistencia social; Revisión de literatura; Políticas públicas; Actuación profesional.


 

 

Introdução

A inserção de psicólogas e psicólogos na assistência social não é algo recente. Afinal, há décadas, essas(es) profissionais trabalham em comunidades, instituições de acolhimento, serviços voltados à inclusão de pessoas com deficiência etc. No entanto, a partir de 2005, com a implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o número de psicólogas(os) atuando na área aumentou enormemente - a ponto de, hoje, podermos dizer que ela constitui um importante campo de empregabilidade para a profissão.

Isso se deve, sobretudo, ao fato de uma das normativas da política - a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS (NOB-RH/SUAS) (Brasil, 2011a) - prever a contratação de psicólogas(os) para trabalhar nas equipes de referência de muitos serviços de assistência social, fazendo com que hoje empreguem mais de 23 mil profissionais - o que corresponde a aproximadamente 10% das(os) psicólogas(os) em atividade no Brasil (Cordeiro, & Curado, 2017).

O aumento no número de psicólogas(os) nesse campo foi seguido por um incremento no número de publicações sobre o tema. Apenas para citar um exemplo: ao digitarmos os descritores "psicologia" e "assistência social" na Scientific Electronic Library Online - SciELO (www.scielo.org), encontramos apenas três textos "pré-SUAS" que abordam, ainda que de forma transversal, a questão. Já entre 2005 e meados de 2017, as revistas indexadas pelo SciELO publicaram 60 artigos vinculados a esses descritores.

Se considerarmos que a produção de conhecimento não é um empreendimento isolado, mas "uma construção coletiva da comunidade científica, um processo continuado de busca, no qual cada nova investigação se insere, complementando ou contestando contribuições anteriormente dadas ao estudo do tema" (Alves, 1992, p. 54), faz-se mister debruçar-nos sobre essa produção. Desse modo, neste trabalho, busco apresentar e discutir alguns dos argumentos, sobreposições, contraposições e lacunas que fizeram parte do debate acadêmico em torno da atuação da Psicologia na Assistência Social, durante a primeira década de existência do SUAS. Mais especificamente, busco apresentar e discutir as diferentes maneiras por meio das quais artigos científicos abordam as contribuições (ou o "papel") da Psicologia na política de Assistência Social, bem como o que fazem (ou deveriam fazer) as(os) psicólogas(os) que nela atuam.

 

Método

Partindo de uma leitura construcionista, os artigos que fizeram parte do corpus desta pesquisa foram tratados como documentos de domínio público, ou seja, como produtos sociais que possuem ampla capacidade de circulação de sentidos e de reestruturação dos espaços de interação (Borges, & Ribeiro, 2014). Para selecioná-los, consultei duas bases de dados: a SciELO (http://www.scielo.br) e o Periódicos Eletrônicos em Psicologia - PePSIC (http://pepsic.bvsalud.org) - afinal, juntas, elas integram quase a totalidade da produção psicológica indexada no país (Zoltowski, Costa, Teixeira, & Koller, 2014). Nessa busca, utilizei os seguintes descritores: psicologia/psicólogos & assistência social; psicologia/psicólogos & CRAS; psicologia/psicólogos & CREAS (sendo que, na SciELO, apliquei os filtros: título, assunto, palavras-chave, resumo). Cabe destacar que não utilizei o descritor "SUAS", uma vez que os motores de busca utilizados o confundem com o pronome possessivo "suas", mostrando como resultado final da pesquisa uma quantidade muito grande de artigos sobre temas que nada têm a ver com a política de Assistência Social. Cabe destacar, ainda, que, a despeito de os textos que estão na SciELO estarem também no PePSIC, optei por realizar a busca nas duas bases pois utilizam motores de busca diferentes. A revisão de literatura envolveu, também, reticulações de bibliografia. Ou seja, busquei identificar, na lista de referências de cada texto, artigos que se referiam ao objeto deste estudo e que não apareciam nas buscas feitas na SciELO e no PePSIC.

Dentre todos os artigos apresentados pelos motores de busca e pela técnica de bibliografia reticulada, selecionei apenas aqueles publicados entre 2005 e 2015 e que abordavam diretamente a inserção da Psicologia no SUAS. Assim, foram excluídos os artigos de autoria de psicólogas(os) que apenas apresentavam relatos de experiência ou que usavam teorias ou técnicas psicológicas para refletir sobre temas relativos à política de assistência social, sem discutir diretamente as contribuições e os limites da Psicologia para esse campo de atuação. Seguindo esse critério, um texto que apenas apresentasse a análise do caso de uma família atendida em um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), usando o referencial teórico da Psicanálise, não seria incluído no corpus desta pesquisa. Mas se esse mesmo texto, além de apresentar o caso, discutisse as contribuições da Psicologia, como ciência e profissão, para o atendimento dessa família, passaria a obedecer a esse critério de inclusão. Para verificar se os textos pré-selecionados abordavam diretamente a atuação da Psicologia no SUAS, eles foram lidos na íntegra. Quanto à opção por não incluir livros e capítulos no corpus desta pesquisa, ela justifica-se pela maior facilidade de acesso - e, consequentemente, de circulação da informação - de artigos científicos. Ademais, estes passaram pelo crivo da avaliação dos pares, o que tende a indicar sua relevância para o campo.

Para organizar as informações apresentadas pelos 38 textos que obedeceram aos critérios de seleção, elaborei dois tipos de quadro. O primeiro deles foi feito no programa Microsoft Word e visou apresentar o(s) modo(s) como o trabalho de psicólogas(os) na Assistência Social é(são) abordado(s) em cada um dos artigos. Sendo assim, cada texto teve o seu "quadro de sistematização", no qual as linhas e colunas apresentavam as características centrais do documento, as temáticas de análise, bem como os trechos do artigo que faziam referência a essas temáticas. É importante ressaltar que iniciei o processo de análise "com uma imersão no conjunto das informações coletadas, procurando deixar aflorar os sentidos, sem encapsular os dados em categorias, classificações ou tematizações definidas a priori" (Spink, & Lima, 1999, p. 106). Desse modo, as temáticas que compuseram esses quadros de sistematização não foram previamente definidas, mas, sim, construídas a partir da leitura inicial dos materiais.

Cada quadro apresentava o(s) objetivo(s) do artigo, seu referencial teórico-metodológico, seus conceitos centrais, o tipo de equipamento ou serviço de assistência social a que se referia e como abordava os seguintes temas: o papel da Assistência Social; o papel da Psicologia na Assistência Social; críticas; o que fazem ou deveriam fazer as(os) psicólogas(os) que atuam na Assistência Social; interdisciplinaridade; desafios; dificuldades, conflitos e contradições; terceirização/precarização do trabalho; formação e informações complementares. Devido aos limites de um artigo científico, neste texto, enfocarei apenas duas dessas colunas: a que apresenta os trechos que versam sobre o papel da Psicologia na Assistência Social e a que aborda o que fazem ou deveriam fazer as(os) psicólogas(os) que atuam nessa política pública.

O segundo tipo de quadro foi elaborado no Microsoft Excel e teve como objetivo dar uma "visão geral" das diferentes questões que permeiam o debate sobre a atuação da Psicologia no SUAS, sendo que, para isso, apresentou, em um único quadro, uma síntese de todas as fichas de sistematização.

Foram, portanto, as informações apresentadas nesses dois tipos de quadro que orientaram a narrativa aqui apresentada. Narrativa que busca apresentar o debate acadêmico em torno da inserção da psicologia na Assistência Social sem fazer aquilo que Alves (1992) chamou de revisão de literatura estilo "patchwork" ou "ventríloquo". Ou seja, sem apresentar uma colagem de conceitos, afirmações e posicionamentos sem qualquer elaboração comparativa ou crítica1.

 

Caracterização geral dos textos selecionados

Dos 38 artigos que compuseram o corpus desta pesquisa, 12 são trabalhos teóricos (revisões de literatura ou ensaios); oito apresentam relatos de experiências (profissionais ou de estágio); 14 são relatos de pesquisas qualitativas, dois de estudos quantitativos, um de pesquisa quanti-qualitativa e um apresenta reflexões sobre um curso oferecido a trabalhadoras(es) de políticas sociais, entre elas, a Assistência Social, e sete foram publicados nos primeiros 5 anos da política (2005-2009) e 31 entre 2010 e 2015.

Vários desses trabalhos falam sobre o SUAS de modo geral (14), mas alguns discutem pesquisas ou experiências profissionais realizadas em estados específicos do país: Minas Gerais (cinco); Rio Grande do Norte (quatro); Goiás (três); Ceará (dois); Paraná (dois); Sergipe (dois); Paraíba (um); Pernambuco (um); Piauí (um); Rio Grande do Sul (um); Santa Catarina (um) e São Paulo (um).

Além da diversidade geográfica, há diversidade de níveis de proteção abordados nos textos selecionados: 20 discorrem sobre serviços e programas da Proteção Social Básica (PSB), sete sobre Proteção Social Especial (PSE) e 11 abordam a política de assistência social de uma forma mais ampla, sem especificar um nível de proteção.

É interessante apontarmos, também, que esses trabalhos estão embasados em uma grande variedade de referenciais teórico-metodológicos, tais como: Psicologia Comunitária/Psicologia Social Comunitária (seis); Materialismo Histórico-Dialético (dois); Análise Institucional (dois); Foucault (dois); Filosofia da Diferença/Esquizoanálise (um), Psicologia da Libertação (um); Psicanálise (um); Psicologia Social Crítica (um); Pesquisa Qualitativa de Tipo Fenomenológico-empírico (um); Construcionismo (um); Teoria das Representações Sociais (um); Modelo de Intervenção em Crise (um); Clínica Ampliada (três, sendo dois fundamentados no Modelo da Resiliência); Autoetnografia (um) e Psicologia Histórico-Cultural (um)2.

 

As contribuições (ou o papel) da Psicologia no SUAS

Vários desses textos ressaltam que falta clareza acerca do papel ou da especificidade da Psicologia no SUAS (Costa, & Cardoso, 2010; Koelzer, Backes, & Zanela, 2014; Macedo, Pessoa, & Alberto, 2015a; Piveta, & Mansano, 2015). Alguns atribuem essa fata de clareza à falta de informação - tanto por parte das(os) usuárias(os) quanto das(os) próprias(os) psicólogas(os) e demais categorias profissionais. Além disso, sustentam que essa falta de informação contribui para que a Psicologia permaneça sendo vista apenas como uma profissão liberal, responsável pelo diagnóstico e acompanhamento psicoterápico das(os) usuárias(os) (Costa, & Cardoso, 2010; Koelzer et al., 2014). Já no artigo de Andrade e Romagnoli (2010), tal falta de clareza é considerada uma decorrência do fato de a Psicologia ocupar um lugar na política que está em constante transformação. Desse modo, só seria possível defini-lo "como espaço de encontros e de acontecimentos singulares" (p. 616).

Talvez, essa falta de clareza seja, também, uma decorrência da proposta interdisciplinar que orienta o trabalho no SUAS. Afinal, nela, a questão central não é quem faz o quê, mas o que deve ser feito. Além disso, ela pressupõe uma permeabilidade das fronteiras disciplinares: a(o) psicóloga(o) precisa, por exemplo, aprender com a(o) assistente social a importância de perguntar em uma primeira entrevista se a família está cadastrada no Cadastro Único (CadÚnico) ou se possui algum benefício eventual, e a(o) assistente social precisa considerar a história da família e saber lidar com emoções. Intervir na fome ou no sofrimento não são funções privativas de nenhuma categoria profissional. Se assumimos essa postura, faz mais sentido falarmos não em papel, mas em contribuições da Psicologia para a política de Assistência Social.

Diversos textos defendem que essa contribuição reside, sobretudo, no arcabouço teórico e técnico que a Psicologia tem para compreender e intervir em questões subjetivas e/ou intersubjetivas (Afonso, Vieira-Silva, Abade, Abrantes, & Fadul, 2012; Costa, & Cardoso, 2010; Cruz, 2009; Flor, & Goto, 2015; Florentino, 2014; Motta, & Scarparo, 2013; Ribeiro, & Goto, 2012; Ribeiro, & Guzzo, 2014; Silva, & Cezar, 2013; Silva, Silva, Brustolin, & Pessini, 2011; Sobral, & Lima, 2013; Ximenes, Paula, & Barros, 2009). No geral, esses textos ressaltam a importância da interface entre os fatores psicológicos e sociais nas situações de risco e vulnerabilidade e destacam a necessidade de pensar a subjetividade sempre de forma contextualizada. Além disso, chamam nossa atenção para o fato de que tal postura não implica a defesa da preponderância dos fatores sociais sobre os subjetivos. Afinal, consideram que lugares são realidades profundamente humanas e simbólicas e que é, portanto, um erro pensá-los somente em termos sociológicos e econômicos (Ximenes et al., 2009).

Seguindo as reflexões de Costa e Cardoso (2010), tal erro poderia ser atribuído ao fato de a privação das necessidades básicas das pessoas atendidas no SUAS ter um caráter de urgência. Para evitá-lo, as autoras sugerem que deveríamos "atender às emergências, mas, também, valorizar os aspectos subjetivos e intersubjetivos dessas pessoas. À Psicologia, cabe uma intervenção que dê voz a essas dimensões" (p. 227).

Afonso et al. (2012) engrossam esse discurso ao defender que a noção de subjetividade deve sempre estar articulada à de cidadania. Afinal, consideram que a primeira é condição necessária para o exercício da segunda - o que não significa que trabalhar a noção subjetiva do direito implique abandonar sua dimensão objetiva. Desse modo, para as autoras, as(os) psicólogas(os):

devem contribuir para criar condições sociais para o exercício da cidadania (promoção dos direitos socioassistenciais) bem como favorecer as condições subjetivas para o seu exercício (circular informação, fortalecer participação, desenvolver potencialidades, facilitar processos decisórios, dentre outros). Transformações sociais têm impacto sobre identidades sociais, relações e valores (p. 197).

Mas o que significa "favorecer condições subjetivas pra o exercício da cidadania"? Ou ainda: o que é subjetividade? E como (ou por que) intervir em processos subjetivos e/ou intersubjetivos? Os textos analisados parecem nos oferecer respostas distintas a essas questões3. Costa e Cardoso (2010), por exemplo, sustentam que privilegiar as dimensões subjetiva e intersubjetiva no atendimento às famílias implica assumir o papel de facilitadora(r) "das expressões emocional, psicológica e relacional presentes nos processos de exclusão social." (p. 226). Já para Ribeiro e Guzzo (2014), implica olhar para como "o sujeito se organiza e se apropria das condições sociais que o cercam e como vivencia essa realidade" (p. 89). Enquanto que, para Florentino (2014), significa "alcançar as determinações subjetivas que reforçam [a reprodução dos danos emocionais] no tempo e no espaço" (p. 64). Motta e Scarparo (2013), por sua vez, sustentam que implica reconstruir a subjetividade por meio dos processos de conscientização.

Podemos, também, observar a falta de consenso acerca da definição de subjetivo ou de subjetividade quando nos atentamos aos diferentes verbos e substantivos associados a essas noções. Alguns textos falam em uma "dimensão subjetiva dos indivíduos" (Flor, & Goto, 2015; Ribeiro, & Guzzo, 2014; Sobral, & Lima, 2013); outros em "aspectos subjetivos dos fenômenos sociais" (Silva, & Cezar, 2013). Para uns, aspectos subjetivos determinam sofrimentos (Florentino, 2014); para outros, é algo que deve ser reconstruído (Motta, & Scarparo, 2013), olhado (Ribeiro & Guzzo, 2014), privilegiado (Costa, & Cardoso, 2010), enfocado (Flor & Goto, 2015), alcançado (Florentino, 2014) e transformado (Ribeiro, & Goto, 2012).

Subjetividade, portanto, parece ser um termo polissêmico, que assume diversas definições, funções e lugares dependendo do referencial teórico-metodológico de quem o utiliza: ora se refere a algo do indivíduo, ora a algo que depende de relações sociais; ora é determinado, ora é construído; ora pode ser alterado quando se modificam sentimentos; ora sua mudança depende de processos coletivos de conscientização... E é justamente por evocar tantos sentidos diferentes que é de suma importância explicitar o que queremos dizer quando usamos essa expressão. Mas, no geral, os textos que compuseram o corpus desta pesquisa não definem de forma explicita essa noção. Eles apenas dão algumas "dicas" de como a compreendem, por meio dos verbos e substantivos que utilizam, bem como dos objetivos das intervenções que mencionam.

Além de trabalhar aspectos subjetivos e/ou intersubjetivos, os artigos analisados mencionam diversas outras maneiras em que a Psicologia pode contribuir para o SUAS. Afirmam que pode, por exemplo, "propiciar a descoberta de possibilidades coletivas de ação" (Ansara, & Dantas, 2010); melhorar a qualidade de vida das(os) usuárias(os) da política (Almeida, & Goto, 2011; Reis, & Cabrera, 2013; Senra, & Guzzo, 2012); promover bem-estar social e psíquico (Ribeiro, & Goto, 2012); empoderar famílias (Romagnoli, 2012); trabalhar o fortalecimento e a conscientização das pessoas para reivindicarem seus direitos (Ribeiro, & Guzzo, 2014); auxiliar jovens a construir novos projetos de vida (Rossato, & Souza, 2014); contribuir para a redução das injustiças sociais que marcam a realidade brasileira (Sobral, & Lima, 2013); ampliar a compreensão dos fenômenos sociopsicológicos implicados na promoção da proteção social (Motta, & Sacarparo, 2013); "contribuir para que pessoas e grupos comunitários ampliem suas possibilidades de se construírem criativamente" (Ximenes et al., 2009, p. 697), facilitar relacionamentos (Costa, & Cardoso, 2010); intermediar a comunicação entre a instituição e a família (Koelzer et al., 2014); intervir nos processos de sofrimento instalados na comunidade e conectar as necessidades dos sujeitos, com ações de desnaturalização da violação de direitos (Flor, & Goto, 2015; Sobral, & Lima, 2013).

Alguns textos destacam os aspectos éticos e o caráter coletivo e político dessas práticas. Ansara e Dantas (2010), por exemplo, afirmam que, muitas vezes, as camadas populares não conseguem transformar suas condições de vida através de esforços individuais sendo que, nesses casos, cabe às(aos) psicólogas(os) propiciar a descoberta de possibilidades coletivas de ação. Na mesma direção, Andrade e Romagnoli (2010) sustentam que essas(es) profissionais devem estar atentas(os) não somente aos aspectos técnicos, mas, sobretudo, aos efeitos éticos, políticos e sociais que qualquer saber acarreta. Assim, a Psicologia "pode tornar-se uma prática libertária capaz de habitar lugares ainda desconhecidos, de se inserir em novos campos de forma crítica e inventiva" (p. 616). Já Rossato e Souza (2014) consideram que a Psicologia é chamada "a construir atuações éticas e de excelência, de modo que o compromisso social da profissão se materialize em práticas democráticas" (p. 120). Enquanto que Silva et al. (2011) argumentam que a atuação no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) é, sobretudo,

um posicionamento político, por isso torna-se necessário ao profissional à apropriação da política e uma reflexão crítica sobre o papel que por ele será desempenhado Já ao psicólogo cabe o compromisso ético-político de propor, por meio das intervenções, o atravessamento do cotidiano dessas populações nas desigualdades e violência, com o objetivo de enfrentamento e superação das vulnerabilidades e o investimento na autonomia por todos, e apropriação do lugar de protagonista na conquista e afirmação de direitos (p. 8, itálicos meus).

Fortalecer a autonomia e o protagonismo das(os) usuárias(os) do SUAS, assim como promover seu empoderamento e a melhora de sua qualidade de vida, são objetivos mencionados não apenas no artigo de Silva et al. (2011), mas pela ampla maioria dos textos analisados (apenas oito artigos não mencionaram, de forma direta, nenhum desses objetivos). Podemos dizer que a ênfase nesses objetivos - que não se restringem à Psicologia, mas se referem ao SUAS de uma maneira geral - reflete o que está posto nas normativas da política e nas referências técnicas do conselho de classe (Brasil, 2005, 2009, 2011b; Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2008, 2013). No entanto, nem os documentos oficiais nem os textos acadêmicos costumam deixar claro o que querem dizer com essas noções. Não especificam, por exemplo, o que significa exatamente "melhorar a qualidade de vida da população"; quem decide o que é uma "boa vida"; quais critérios e interesses orientam essa decisão. Tratar essa noção como se seu significado fosse natural, óbvio e compartilhado por todos pode levar à adoção de uma postura normalizadora (Foucault, 2002), que parte do pressuposto de que há um modelo ideal de vida e que, como psicólogas(os), é nosso compromisso aproximar as(os) "desviantes" desse ideal.

A noção de empoderamento pressupõe uma concepção de poder e de autonomia que também não costuma ser explicitada por aquelas(es) que a utilizam. Mas se entendemos essa noção como "aumento de poder e autonomia pessoal e coletiva de indivíduos e grupos sociais nas relações interpessoais e institucionais, principalmente daqueles submetidos a relações de opressão dominação e discriminação social" (Vasconcelos, 2003, p. 20), e se consideramos que as palavras "poder" e "autonomia" são polissêmicas, faz-se mister explicitar como definimos essas expressões, assim como os pressupostos ontológicos e políticos que embasam nossas definições.

De acordo com Tykanori-Kinoshita (1996/2001), a palavra "autonomia" costuma ser usada para indicar a capacidade de fazer algo sem depender da ajuda de terceiros - a(o) usuária(o) autônoma(o) seria, então, aquela(e) que não precisa da ajuda do Estado para se manter, que consegue tomar suas próprias decisões etc. Mas o autor discorda dessa concepção e propõe uma definição alternativa que, a despeito de não ter sido mencionada em nenhum dos textos analisados, a meu ver, é mais condizente com a proposta de uma rede de proteção social. Para ele, ser autônoma(o) não significa ser autossuficiente. Afinal, somos sempre dependentes de outras pessoas, coisas e relações: a questão das(os) usuárias(os)

é antes uma questão quantitativa: dependem excessivamente de apenas poucas relações/coisas. Esta situação de dependência restrita/restritiva é que diminui sua autonomia. Somos mais autônomos quanto mais dependentes de tantas mais coisas pudermos ser, pois isso amplia nossas possibilidades de estabelecer novas normas, novos ordenamentos para a vida. (p. 57).

Dentro dessa lógica, para desenvolver autonomia, é preciso criar relações com diferentes pessoas, grupos e instituições - objetivo este coerente com o que preconizam as normativas da política de Assistência Social (Brasil, 2005, 2009, 2011b).

Já a noção de protagonismo tem a vantagem de ressaltar o caráter ativo das(os) usuárias(os) da política, mas a metáfora teatral a que ela faz referência tem algumas limitações. Afinal, no teatro, uma cena é composta por personagens principais, mas também por coadjuvantes, por um cenário, por um roteiro... No entanto, quando falamos em protagonistas sociais, costumamos enfocar apenas uma "personagem", não deixando claro quem são as(os) coadjuvante(es), quem estabeleceu os graus de importância de cada atriz/ator que participa da cena, nem que critérios utilizou para isso... Nada dizemos sobre o cenário, sobre o roteiro, sobre a(o) contrarregra, sobre a iluminação... Assim, o uso do adjetivo "protagonista" para qualificar as(os) usuárias(os) do SUAS pode acarretar em uma descontextualização de suas ações - o que vai na contramão das diretrizes da política (Brasil, 2005, 2009, 2011b) e da preocupação com o contexto defendida em vários dos textos analisados (Afonso et al., 2012; Florentino, 2014; Leão, Oliveira, & Carvalho, 2014; Oliveira et al., 2014; Senra, & Guzzo, 2012; Silva, & Corgozinho, 2011; Silva et al., 2011).

 

O que fazem as(os) psicólogas(os) que atuam no SUAS

Os textos que compuseram o corpus desta pesquisa indicam uma grande variedade de atividades e técnicas desenvolvidas por psicólogas(os) nos serviços de proteção social básica e especial. Alguns são relatos de experiências profissionais ou de estágios e descrevem com detalhes o que é feito, como é feito e os objetivos daquilo que é feito. Outros fazem descrições mais breves, pautadas nos relatos das(os) psicólogas(os) que participaram das pesquisas por eles apresentadas ou em revisões de literatura.

Os Quadros 1 e 2 apresentam tais atividades e o número de textos que as mencionam. Cabe explicitar que algumas dessas atividades - como, por exemplo, vigilância social e busca ativa, ou acolhimento e entrevista/triagem - estão intimamente relacionadas, mas optei por não as agrupar, a fim respeitar a nomenclatura utilizada pelas(os) autoras(es).

Oliveira, Dantas, Solon e Amorin (2011) chamam nossa atenção para o fato de que, muitas vezes, essas ações não ocorrem de forma sistematizada, sequenciada e contínua, prejudicando a qualidade dos serviços ofertados. Sustentam que a falta de monitoramento dos encaminhamentos pode transformar o CRAS em "um mero balcão de informações" (p. 145). Além disso, ressaltam que das algumas atividades acima mencionadas, como busca ativa e vigilância social, são fundamentais para a efetivação da política, mas, nos serviços que pesquisaram, raramente contavam com a participação de psicólogas(os). Leão et al. (2014) alertam que a possível falta de conhecimento sobre o território gerada por essa não participação pode acarretar em distorções sobre as reais necessidades das famílias e, consequentemente, em intervenções pautadas nos valores e projetos de vida das(os) profissionais - e não das(os) usuárias(os) da política, tal como deveria ser.

As visitas domiciliares, por sua vez, costumam ser atividades frequentes de psicólogas(os) que atuam no SUAS. Um de seus objetivos é acompanhar as famílias em situação de descumprimento de condicionalidades de programas socioassistenciais, uma vez que essas são compreendidas como as famílias em situação de maior vulnerabilidade ou risco social (Brasil, 2009). No entanto, segundo Macedo e Dimenstein (2009), o que deveria ser tomado como uma ação de cuidado e promoção de direitos, muitas vezes, acaba se convertendo em uma ação de vigilância, fiscalização e controle. Afinal, é comum técnicas(os) do CRAS "procederem com o artifício de ameaçar as famílias com a perda do benefício caso não mudem seus comportamentos de negligência ou de falta de responsabilização sobre a saúde e a educação dos filhos" (p. 297).

Outro ponto que merece atenção é o fato de três textos relatarem que psicólogas(os) que atuam em CRAS têm como uma de suas atribuições o cadastramento em programas de assistência social. No entanto, segundo Oliveira, Dantas, Solon e Amorim (2011), essa atividade deveria ser realizada por profissionais do CadÚnico - e não pela equipe técnica dos centros de referência.

Em relação aos atendimentos individuais e grupais, vários textos afirmaram que frequentemente são pautados no modelo clínico e/ou psicoterapêutico (Afonso et al. 2012; Almeida, & Goto, 2011; Andrade, & Romagnoli, 2010; Cruz, 2009; Flor, & Goto, 2015; Florentino, 2014; Koelzer et al., 2014; Leão et al., 2014; Macêdo et al., 2015a; Macêdo, Pessoa, & Alberto, 2015b; Mota, & Goto, 2009; Murta, & Marinho, 2009; Oliveira et al., 2011, 2014; Ribeiro, & Goto, 2012; Ribeiro, & Guzzo, 2014; Sobral, & Lima, 2013). E é interessante notarmos a diversidade de posicionamentos acerca dessa prática. Podemos agrupar tais posicionamentos em três grandes grupos heterogêneos: o primeiro contrapõe-se a qualquer intervenção clínica no SUAS; o segundo defende uma clínica ampliada ou diferenciada e o terceiro não vê contradições entre os objetivos da política de assistência social e aqueles que caracterizam a clínica/psicoterapia tradicional.

Os textos que compõem o primeiro grupo, no geral, recorrem às diretrizes do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e do Conselho Federal de Psicologia (CFP) para sustentar que não cabe às(os) psicólogas(os) do SUAS oferecer psicoterapia, sendo que casos que necessitam de tal tipo de atendimento deveriam ser encaminhados a serviços de saúde. Dizem, ainda, que o setting terapêutico tradicional é incompatível com a realidade de trabalho nos equipamentos de assistência social (Piveta, & Mansano, 2014); que seus modelos teóricos favorecem análises individualizantes e descontextualizadas (Macêdo et al., 2015a); que as bases epistemológicas e políticas que embasam esses modelos estão "na contramão das demandas inerentes à classe trabalhadora pauperizada que configura o público-alvo dos serviços do CRAS" (Oliveira et al., 2014, p. 109). Argumentos que parecem ser, de certo modo, sintetizados pela afirmação de Orlando Macêdo et al. (2015a):

os desdobramentos de ações ligadas a tecnologias oriundas de um modelo clínico tradicional são intervenções cuja centralidade está no indivíduo, e não nas condições sociais dos usuários do CRAS, limitando-se a amenizar as sequelas decorrentes da condição de vulnerabilidade social dos usuários. Tal atuação pode ser caracterizada por aliviar o sofrimento psíquico, sem confrontá-lo com a realidade social que o gera (p. 820).

Diversas justificativas foram dadas para que a psicoterapia aconteça no SUAS, mesmo quando as normativas da política preconizam o contrário. Entre elas, a da formação profissional (Cruz, 2009; Freire, & Alberto, 2013; Macêdo et al., 2015a, 2015b; Oliveira et al., 2011; Sobral, & Lima, 2013). O argumento apresentado é que os currículos dos cursos de psicologia privilegiam as disciplinas voltadas para a prática clínica, não preparando suas(eus) alunas(os) para atuar em outros contextos, com outras demandas e objetivos. Assim, as(os) psicólogas(os) do SUAS fariam atendimentos clínicos pois é o que aprenderam a fazer em sala de aula.

Aliado à formação, está a identidade profissional. A partir da análise de entrevistas feitas com psicólogas(os) que atuam no SUAS, Oliveira et al. (2011) concluíram que o atendimento clínico, sobretudo a psicoterapia, ainda é o grande foco de interesse dessas(es) profissionais. É a atividade que lhes confere identidade, que as(os) diferencia das(os) demais técnicas(os), que garante "seu lugar" na equipe.

Outra justificativa - apresentada tanto pelas(os) interlocutoras de Oliveira et al. (2011), quanto pelas psicólogas(os) entrevistadas(os) em outras pesquisas (Macêdo et al., 2015a; Oliveira et al., 2014), é que se faz psicoterapia no SUAS, pois os serviços de saúde não dão conta de atender a grande demanda por esse tipo de atendimento. Ribeiro e Guzzo (2014), por outro lado, afirmam que o que explica essa prática é o fato de muitas(os) profissionais confundirem o que é fazer atendimentos individuais para acolhida (prática que compatível com as normativas da política) com fazer psicoterapia.

Os textos que compõem o segundo grupo, no geral, concordam que o modelo clínico tradicional não dá conta de atender as demandas do SUAS, mas consideram que é possível adaptar técnicas e saberes clínicos a esse "novo" contexto de intervenção. As clínicas que resultam dessa adaptação recebem diferentes nomes: "clínica ampliada" (Andrade, & Romagnoli, 2010; Almeida, & Goto, 2011; Leão et al., 2014; Murta, & Marinho, 2009; Ribeiro, & Goto, 2012), "clínica diferenciada" (Afonso et al., 2012), "clínica do social"/"clínica social" (Andrade, & Romagnoli, 2010; Koelzer et al., 2014), "intervenção em crise" (Ribeiro, & Goto, 2012), "terapia de apoio" (Almeida, & Goto, 2011; Flor, & Goto, 2015), "psicologia clínica na comunidade" (Murta, & Marinho, 2009), entre outros.

É interessante notarmos que um mesmo termo pode utilizado para se referir a práticas muito diferentes. "Clínica ampliada", por exemplo, é uma expressão utilizada por Andrade e Romagnoli (2010) para falar de uma clínica

que se faz e se refaz em vários territórios, rompendo paradigmas e deflagrando processos de subjetivação inventivos e deslocamentos micropolíticos que trazem o novo..., a clínica feita por vários profissionais, pautada na heterogeneidade - de locais de trabalho, de classes sociais, de espaços distintos, empregando teorias diversas, em encontros singulares (Andrade, & Romagnoli, 2010, p. 611).

Já nos textos em que Goto é coautor (Almeida, & Goto, 2011; Flor, & Goto, 2015; Ribeiro, & Goto, 2012), a clínica ampliada não é interdisciplinar, não acontece em locais diversos, nem se pauta em diferentes teorias. Mas se dá por meio de plantões psicológicos, voltados para uma "intervenção em crise", que visa "proporcionar uma ajuda aos que têm problemas urgentes, providenciando uma assistência imediata e suficiente para o restabelecimento do equilíbrio psicoemocional do usuário" (Ribeiro, & Goto, 2012, p. 192). Tal proposta de intervenção envolve, por exemplo, psicoterapia breve e focal, terapia de apoio, aconselhamento psicológico, grupos de encontros, grupos psicoeducativos e de orientação familiar e conjugal (Almeida, & Goto, 2011). Os autores afirmam que essa é uma modalidade de atendimento "clínico-social", uma vez que considera não somente o caso clínico e singular, mas busca compreendê-lo a partir de uma realidade social-universal. Para eles, as intervenções tradicionais, tanto da psicologia clínica (psicoterapia tradicional e psicodiagnóstico) quanto da psicologia social (grupos sociais e grupos comunitários), não dão conta de atender as demandas do SUAS, uma vez que não priorizam condições emergenciais e de urgência social.

Mas, se tomássemos a definição proposta por Murta e Marinho (2009), diríamos que o que fazem Goto e suas(eus) colaboradoras(es) não é clínica ampliada. Afinal, as autoras consideram que a clínica ampliada é ampliada em todos os sentidos:

quanto ao seu foco de intervenção (de indivíduos para coletividades), ao espaço físico (da sala privativa e confortável às instituições diversas), à população atendida (de pessoas de classe social abastada à pessoas de baixa renda), às suas estratégias (da psicoterapia individual à terapia comunitária e campanhas educativas), às suas teorias (das voltadas para o intrapessoal às ecológicas), aos agentes de execução do trabalho (do trabalho conduzido apenas pelo psicólogo ao conduzido por profissionais com diferentes saberes) e aos níveis de prevenção (do tratamento e reabilitação à prevenção e promoção de saúde (Murta, & Marinho, 2009, p. 59-60).

A diferença entre essa proposta de clínica ampliada e a defendida por Mota e Goto (2009) é discutida no artigo de Macêdo et al. (2015b): as(os) autoras(es) argumentam que o texto de Mota e Goto (2009) traz uma "visão mais individualista, voltada para uma ação direcionada ao singular" (p. 921); enquanto que o de Murta e Marinho (2009) fala de práticas que vão "além do setting terapêutico; há uma mobilidade nas possibilidades de ações dos psicólogos, não se restringindo ao espaço físico do CRAS" (Macêdo et al., 2015b, p. 921).

Esse modo de definir clínica ampliada parece estar em consonância com o debate que vem sendo feito, nas últimas décadas, no campo da Saúde Pública - debate que resultou, entre outras coisas, na Política Nacional de Humanização (PNH). Nela, a clínica ampliada envolve o "compromisso com o sujeito e seu coletivo e a co-responsabilidade de gestores, trabalhadores e usuários no processo de produção de saúde" (Brasil, 2004, p. 12).

Diferentemente da psicoterapia tradicional, essa clínica compromissada com o sujeito e com seu coletivo, que ressalta o caráter participativo de todas as pessoas envolvidas na intervenção, parece não ser incompatível com as normativas do SUAS e referências técnicas do CFP. Ela é, inclusive, defendida abertamente em alguns documentos, tal como naquele que visa orientar a atuação de psicólogas(os) no Serviço de Proteção Social a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência, Abuso e Exploração Sexual e suas Famílias (CFP, 2009).

Em relação ao terceiro grupo, apenas um texto defendeu explicitamente o oferecimento de atendimento clínico nos equipamentos do SUAS, sem mencionar a necessidade de modificar ou adaptar as teorias e técnicas psicológicas tradicionais para esse outro contexto. De autoria de Florentino (2014), o artigo sustenta que, no CREAS, a psicoterapia individual é "uma estratégia indispensável no momento de se intervir junto às crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, pois, ao mesmo tempo em que trabalha a confusão proveniente da situação abusiva, organiza o material inconsciente e as emoções 'encapsuladas'" (p. 64). Argumenta, ainda, que ela possibilita a elaboração das consequências traumáticas, diminuindo a intensidade da ansiedade e das emoções relativas ao trauma.

Além de indicar ou descrever práticas psicológicas no SUAS, os artigos analisados apresentam algumas posturas, cuidados e preocupações que devem pautar essas práticas. Dizem, por exemplo, que o trabalho de psicólogas(os) na Assistência Social deve sempre considerar o contexto de intervenção (Afonso et al., 2012; Ansara, & Dantas, 2010; Benelli, 2013; Eidelwein, 2007; Flor, & Goto, 2015; Florentino, 2014; Leão et al., 2014; Oliveira et al., 2014; Senra, & Guzzo, 2012; , Silva et al., 2011; Silva, & Corgozinho, 2011). Para Silva et al. (2011), isso implica "conhecer a comunidade com a qual se está lidando, compreender sua dinâmica, sua história e seus potenciais, respeitando os valores historicamente constituídos" (p. 8-9). Deve, também, permitir que a população participe ativamente da transformação desse contexto (Afonso et al., 2012; Andrade, & Romagnoli, 2010; Ansara, & Dantas, 2010; Benelli, 2014; Costa, & Cardoso, 2010; Cruz, Scarparo, & Guareschi, 2007; Silva et al. 2011). Nas palavras de Andrade e Romagnoli (2010): deve desenvolver "a capacidade de a comunidade descobrir suas demandas, de se organizar de forma a que ela própria construa os dispositivos necessários para a melhoria de suas vidas." (p. 614). Segundo Cruz et al. (2007), para que isso seja possível, é preciso que a(o) psicóloga(o) escute e aceite a verdade do sujeito, sem críticas ou juízos de valor.

Macêdo et al. (2015b) chamam nossa atenção para o fato de que nem sempre as(os) psicólogas(os) que atuam no SUAS agem de acordo com essa recomendação. Afinal, não raro, pautam suas ações em modos de vida hegemônicos, elitistas, que se aproximam mais de sua condição de vida do que daquela das(os) usuárias(os) da política. Reconhecem que essas(es) usuárias(os) têm direitos, mas buscam efetivá-los por meio de

prescrições, de informações, de receituários de Direitos embasados na legislação, e não na Psicologia. Reproduzem, assim, um fazer estritamente técnico, atuando como meros executores das políticas de Assistência Social, sem questionamentos ou proposições (p. 927).

Ao fazer isso, reduzem sua capacidade de contribuir para empoderar politicamente a sociedade civil e, consequentemente, estimular uma cidadania crítica e participativa.

Diversas(os) autoras(es) ressaltam que a atuação de psicólogas(os) no SUAS deve, também, ocorrer de modo interdisciplinar e intersetorial (Afonso et al., 2012; Ansara, & Dantas, 2010; Barreto, 2011; Flor, & Goto, 2015; Florentino, 2014; Almeida, & Goto, 2011; Leão et al., 2014; Macedo, & Dimenstein, 2009; Mota, & Scarparo, 2013; Murta, & Marinho, 2009; Oliveira et al., 2011; 2014; Ribeiro, Paiva, Seixas, & Oliveira, 2014; Silva et al., 2011). Leão et al. (2014) justificam essa afirmação ao dizer que a complexidade dos casos atendidos no SUAS exige uma "gama de ações integradas e contínuas, sendo que a falta dessa perspectiva gera atendimentos fragmentados e descontínuos" (p. 276).

Alguns textos enfatizam, também, a importância de se evitar práticas assistencialistas, individualizantes, patologizantes e normalizadoras (Benelli, 2013; Leão et al., 2014; Macedo, & Dimenstein, 2009; Macedo et al., 2011; Mota, & Goto, 2009; Ximenes et al., 2009), bem como de superar a ideia de que pessoas pobres só se preocupam com a sobrevivência e que, portanto, não é necessário trabalhar com emoções quando se trabalha com a fome (Leão et al., 2014).

 

Considerações finais

Entre os anos de 2005 e 2015, houve uma entrada maciça de psicólogas(os) na política de Assistência Social. Neste texto, busquei apresentar e discutir o debate acadêmico em torno desse fenômeno, enfocando dois eixos temáticos: as contribuições da Psicologia para o SUAS e as práticas das psicólogas(os) que nele atuam. Em relação ao primeiro eixo, sustentei que muitos artigos afirmam que falta clareza acerca do papel da Psicologia nessa política, enquanto outros ressaltam que ela contribui para intervir em questões subjetivas e/ou intersubjetivas, bem como para fortalecer a autonomia e o protagonismo das(os) usuárias(os), promover seu empoderamento e melhorar sua qualidade de vida. Em relação ao segundo eixo, destaquei que os textos citam uma grande variedade de atividades, muitas delas distintas daquelas que costumamos atribuir a essa categoria profissional.

A análise desses textos nos permite concluir que, a despeito de terem sido publicados durante os primeiros dez anos de existência do SUAS, os estudos sobre Psicologia na Assistência Social não constituíam um campo tão incipiente. Afinal, já superavam uma primeira fase descritiva, na medida em que dialogavam com a literatura existente, fazendo contraposições de ideias e arrolando uma leitura mais ampla. E, como todo campo de estudos, esse não era homogêneo, mas cheio de controvérsias, disputas e relações de poder. O debate em torno da (in)adequação das intervenções psicoterápicas nos serviços de assistência social constitui um bom exemplo disso.

Um dos argumentos que mais se aproximam de um consenso é a necessidade de pensarmos modelos de formação que atendam às reais necessidades das(os) profissionais que atuam na política de Assistência Social. Mas é interessante notarmos que, a despeito de muitos textos mencionarem essa necessidade, ainda são poucos os trabalhos que têm o tema como foco (Cordeiro, & Curado, 2017; Romagnoli, 2012).

Talvez, possamos dizer que as normativas e referências técnicas da política servem como uma espécie de fio que alinhava os vários argumentos apresentados - afinal, elas foram citadas por 34 dos 38 textos analisados. Mas é interessante notarmos que os usos que se faz desses materiais podem variar bastante. Um mesmo documento pode servir, por exemplo, para legitimar práticas psicoterápicas ou para condená-las. Portanto, constituem-se "fios", mas seu alinhavo possui linhas irregulares; pontos ora apertados, ora frouxos; que unem tecidos com texturas e estampas diferentes.

 

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Endereço para correspondência:
Mariana Prioli Cordeiro
mpriolicordeiro@gmail.com

Submetido em: 07/03/2018
Revisto em: 13/06/2018
Aceito em: 29/06/2018

 

 

1 Aqui, cabe destacar que, ao fazer essa elaboração crítica, me aprofundei naqueles pontos que ensejam mais controvérsias. Para isso, em alguns casos, recorri a obras que não fazem parte do corpus desta pesquisa. Afinal, a despeito de não abordarem diretamente a inserção da Psicologia no SUAS, elas me deram subsídios teóricos, analíticos e políticos para analisar a produção científica em questão.
2 Quinze textos não explicitaram seus referenciais teórico-metodológicos, o que não significa que as discussões feitas não sejam permeadas por valores, pressupostos e visão de mundo. Significa, apenas, que não indicaram, de maneira clara, a grade conceitual a partir da qual olharam e enquadraram as informações apresentadas. Já dois textos indicaram mais de uma abordagem: Ansara e Dantas (2010) afirmaram que suas análises foram baseadas nos pressupostos da Psicologia da Libertação e da Psicologia Comunitária; enquanto que Benelli (2014) relatou partir de uma perspectiva institucionalista e recorrer à Psicanálise de Freud e Lacan para pensar o processo de produção de subjetividade. Cabe destacar que essas articulações são frequentes na literatura científica e não constituem ecletismos teóricos, uma vez que envolvem abordagens que possuem solos epistêmicos semelhantes.
3 O que se justifica, entre outras coisas, pelo fato de as(os) autoras(es) partirem de referenciais teóricos distintos para pensar a noção de subjetividade: Costa e Cardoso (2010) atribuem a ênfase nas dimensões subjetiva e intersubjetiva aos trabalhos de Lúcia Afonso; já Ribeiro e Guzzo (2014) sustentam que suas análises são pautadas no Materialismo Histórico-Dialético; enquanto que Motta e Scarparo (2013) afirmam basearem-se no Construcionismo. Florentino (2014), por sua vez, não apresenta de forma clara seu referencial teórico, mas, ao falar sobre "determinações subjetivas", cita um livro organizado por Cunha, Silva e Giovanetti (2008). No entanto, como essa coletânea possui capítulos de autoria de profissionais de diversas áreas, com diferentes bagagens teóricas, não foi possível identificar o solo epistêmico/ontológico que fundamenta a compreensão do autor acerca da noção de subjetividade.

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