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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.72 no.spe Rio de Janeiro 2020
https://doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2020v72s1p.94-108
ARTIGOS
Racismo e psicologia na escola: diálogos entre Fanon e Freire
Racism and psychology at school: dialogues between Fanon and Freire
Racismo y psicología en la escuela: diálogos entre Fanon y Freire
Luiza Rodrigues de OliveiraI; Thais Bispo BalieiroII; Abrahão de Oliveira SantosIII
IDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia e de Ensino de Ciências da Natureza. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIMestre. Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIIDocente. Programa de Pós-Graduação em. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
RESUMO
Este artigo discute os modos de subjetivação e as práticas da psicologia na escola, a partir das relações entre as obras de Fanon e de Freire. Temos observado práticas psis nas escolas engendradas por operadores pautados no diagnóstico psicopatológico, na compensação e na adaptação, reveladores de uma psicologia colonialista, pois fundamentada em uma concepção de sujeito universal -representação do homem branco europeu. Mesmo com a entrada em cena da chamada psicologia social crítica, esse saber, em sua intersecção com a escola, continuou a desenvolver práticas que excluem a realidade das/os escolares, que, na escola pública brasileira, são jovens negras/os. Este artigo objetivou refletir acerca de outro modo possível para as relações entre a psicologia e a escola. Para tanto, discutimos as relações entre racismo, subjetividade e exclusão social a partir da análise dos conceitos de violência e de cultura nas obras de Freire e de Fanon.
Palavras-chave: Psicologia; Escola; Racismo; Violência; Cultura.
ABSTRACT
This paper discusses the modes of subjectivity and the practices of psychology at school, based on the relationships between the works of Fanon and Freire. We have observed psis practices in schools created by operators based on psychopathological diagnosis, compensation and adaptation, revealing a colonialist psychology, since it is based on a concept of universal subject - representation of the European white man. Even with the entry of the so-called critical social psychology, this knowledge, in its intersection with the school, continued to develop practices that exclude the reality of schoolchildren, who, in the Brazilian public school, are young black boys and girls. This paper aimed to reflect on another possible way for the relations between psychology and the school. For that, we discussed the relationship between racism, subjectivity and social exclusion based on the analysis of the concepts of violence and culture in the works of Freire and Fanon.
Keywords: Psychology; School; Racism; Violence; Culture.
RESUMEN
Este artículo analiza los modos de subjetividad y las prácticas de la psicología en la escuela, a partir de las relaciones entre las obras de Fanon y Freire. Hemos observado prácticas psis en las escuelas engendradas por operadores basados en el diagnóstico psicopatológico, en la compensación y en la adaptación, revelando una psicología colonialista, ya que se basa en un concepto del sujeto universal - representación del hombre blanco europeo. Incluso con la entrada en escena de la llamada psicología social crítica, este conocimiento, en su intersección con la escuela, siguió desarrollando prácticas que excluyen la realidad de los escolares, que en la escuela pública brasileña son jóvenes negras. Este artículo tuvo como objetivo reflexionar sobre otra posible vía de relación entre la psicología y la escuela. Para eso, discutimos la relación entre racismo, subjetividad y exclusión social a partir del análisis de los conceptos de violencia y cultura en las obras de Freire y Fanon.
Palabras clave: Psicología; Escuela; Racismo; Violencia; Cultura.
Introdução
O presente artigo desenvolve uma discussão sobre a prática da psicologia na instituição escolar. Esse tema se apresenta porque a psicologia vem produzindo, na sua interface com a educação, práticas excludentes e constitutivas de um sujeito apartado da vida (Bastos & Gomide, 1989; Patto, 1987; Medeiros & Aquino, 2011). Essa forma de entender o sujeito faz com que o campo psi desenvolva ações de intervenção marcadas pelo operador ético da modernidade - são ações pautadas em abordagens diagnósticas, compensatórias e adaptativas (Oliveira, 1997), que são instituidoras da tutela como responsabilidade social e como um "mercado do cuidado da infância" (Lemos, 2018, p. 200).
A psicologia, como campo de produção de conhecimento e de intervenção, é uma das racionalidades que, em nome dessa ética do saber sobre o outro, desenvolve e afirma ações de controle e vigilância (Foucault, 1987) da infância, a fim de que a "boa ordem social" seja mantida. "Boa ordem social" escrita assim entre aspas, pois, mesmo que anunciada como verdade universal, traz as marcas, na sociedade moderna, das relações de saber produzidas pela ciência normativa, das relações de poder do Estado controlador e das relações de produção capitalistas. E é em nome dessa tríade - Ciência, Estado e Capital - que a psicologia cria e articula saberes e técnicas de cuidado com a infância. Um dos espaços para a atualização dessas técnicas e saberes, talvez o mais importante, é a escola.
A interface entre a psicologia e a educação foi sendo engendrada com esses modos da "boa ordem social", que produzem ações de exclusão, pois se constitui pela diferenciação entre
[...] a liberação protegida das crianças nas famílias abastadas da repressão e controle corretivo das crianças advindas de famílias desfavorecidas economicamente. Gestão de afetos no cuidado com a vida por meio da definição liberal de limites para algumas e de política econômica disciplinar para outros (Lemos, 2018, p. 203).
No entanto, é fundamental entender essa questão para além da centralidade nas discussões de classe e/ou de ações de exclusão e/ou da micropolítica foucaultiana, pois não aterram a discussão. Mbembe (2018), ao contrário, nos alerta para quais corpos está direcionada a instrumentalização quando o Estado, com os braços da necropolítica, controla a mortalidade e define a vida. Segundo o filósofo camaronês (Mbembe, 2015; 2018), a sociedade branca ocidental produziu a desumanização dos corpos negros, com apelos à exclusão e mais ainda como política de extermínio. É o modo de vida que faz natural o que é racismo.
Aterrando a discussão em solo brasileiro, Moura (2019) nos diz:
Toda essa força de trabalho escrava, relativamente diversificada, integrada e estruturada em um sistema de produção, desarticulou-se, portanto, com a decomposição do modo de produção escravista [...] surge, concomitantemente, o mito da incapacidade do negro para o trabalho e, com isso, ao mesmo tempo em que proclama a existência da democracia racial, apregoa-se, por outro lado, a impossibilidade de se aproveitar esse enorme contingente de ex-escravos. O preconceito de cor é assim dinamizado no contexto capitalista, os elementos não brancos passam a ser estereotipados como indolentes, cachaceiros, não persistentes no trabalho e, em contrapartida, por extensão, apresenta-se o trabalhador branco como o modelo do perseverante, honesto, de hábitos morigerados e tendências à poupança e à estabilidade no emprego. (pp. 98-99)
Assim, o tema do negro livre torna-se a grande preocupação e, portanto, alvo das políticas de apagamento, desde os abolicionistas reformistas nas décadas de 1870 e 1880 (Azevedo, 1987), até os dias atuais, pois a pergunta sobre o que fazer com o negro após a ruptura da polaridade senhor-escravo vem sendo respondida com violência e desprezo, com a afirmação diária do racismo e da necropolítica.
Voltando à associação entre a psicologia e a educação e suas práticas excludentes, temos a psicologia a se afirmar como saber e prática de afirmação da necropolítica. Vejamos, por exemplo, a psicologia do desenvolvimento que, com seu aporte na teoria da epistemologia genética de Jean Piaget e o seu método de observação clínica, descreve as estruturas intelectuais do funcionamento mental universal em interação com o ambiente, negando, portanto, a singularidade e a concretude da vida, para a compreensão do funcionamento psicológico. Essa construção epistemológica abarcada pelo campo da psicologia afirma a subjetividade moderna, aquela que se propõe universal, mas que traz as marcas do homem branco europeu. É esse abstracionismo que insiste em habitar as diversas abordagens do campo da psicologia, que promove a adequação da criança à sociedade (Oliveira, 1997; Oliveira & Sbano, 2016), a subjetivação liberal, e busca os mecanismos universais do funcionamento psicológico humano; as contingências particulares da história não se fazem relevantes.
Trata-se, assim, de um sujeito datado e explicado a partir das pesquisas piagetianas com crianças da Europa de meados do século XX. É possível dizer que essa psicologia está ultrapassada. Mas a essa afirmação cabe uma pergunta: para quem?! Isso porque a prática e a ação desconhecem a concretude da vida de crianças, famílias e comunidades, em sua maioria afrodiaspóricas e descendentes indígenas, não integradas na estrutura econômica do capitalismo contemporâneo, que vêm compondo os saberes psi, que, mesmo não mais defendendo aquela concepção em suas produções acadêmicas, ainda a apresentam nas vivências do cotidiano escolar.
O que não dizer das salas de aula seriadas por idades cronológicas e do exercício dos métodos de ensino facilitadores do que o sujeito é "capaz" de saber, e de conteúdos de aprendizagem destinados aos jovens, sob a decisão de especialistas que desconhecem a cultura e a trajetória histórica de tais jovens?! O que não dizer da psicologia, que, ao adentrar o espaço escolar, capturada por esse modelo, desenvolve práticas em que a busca da universalidade desconsidera as marcas das subjetividades que se constituem pelas diferenças? Ou, como em 1977 denunciava Abdias Nascimento (2018): "onde está a memória africana [...] onde e quando a história da África, o desenvolvimento de suas culturas e civilizações, as características do seu povo, foram ensinadas nas escolas brasileiras" (pp. 3-11). Sabemos que o desenvolvimento do cidadão brasileiro vem se dando, nos planos da escola assimilada, na direção da memória da civilização dos colonizadores. E é sobre isso que interrogamos a psicologia em sua interface com a educação: em que momento ela encontra os povos constitutivos da sociedade brasileira, crianças e jovens negras/os e indígenas que habitam nossas escolas?
Mesmo quando a psicologia se propõe a criticar o seu próprio campo teórico-prático-epistemológico, o desencontro com crianças, famílias e comunidades, em sua maioria afrodiaspóricos e descendentes indígenas, não desaparece, tal como podemos ver nos movimentos que instituem o campo da psicologia escolar crítica (Patto, 1987; 1999) e da psicologia institucional (Fernandes, Rozenowicz, Freitas, & Ferreira, 2003; Guirado, 2009).
Essas são também racionalidades no campo da psicologia em que práticas que desconhecem a vida dos sujeitos são engendradas, pois, se uma traz o recorte de classe, a psicologia escolar crítica, e a outra, psicologia institucional, o recorte das relações de poder no microespaço escolar, ambas não se dirigem e nem reconhecem as marcas das lutas históricas das diversas comunidades e povos presentes da escola pública no Brasil.
É certo que as instituições de classe das/os psicólogas/os vêm sensibilizando a categoria para o sofrimento mental em decorrência do racismo, tanto em posicionamentos críticos, como propositivos (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2017), como a publicação da Resolução CFP n. 18 (2002), que estabelece normas de atuação para as(os) psicólogas(os) em relação ao preconceito e à discriminação racial (CFP, 2002); as referências técnicas para atuação de psicólogas/os, Relações raciais (CFP, 2017), e Povos tradicionais (CFP, 2019). Não obstante, a categoria não se apropriou da questão racial nem mostrou sensibilidade referente ao assunto.
Apesar de as Leis n. 10.639 (2003) e lei n. 11.645 (2008), as instituições formadoras das/os profissionais qualificadas/os, as universidades, muito menos assumiram sua responsabilidade, no sentido de incluir e desenvolver nos currículos dos cursos de graduação e pós-graduação em psicologia, os saberes que dizem respeito aos povos africanos da diáspora e aos povos indígenas. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e de Cultura Afro-brasileira e Africana (Brasil, 2004) apontam para a necessidade de formação, mas ainda não se traduziram em uma formação capaz de afirmar o reconhecimento do povo negro e pindorâmico na luta histórica por direitos e contra o racismo institucional. Pensando especificamente na formação de psicólogas/os, nos perguntamos como fazer para que a letra da lei ganhe formas e contornos de realidade na prática.
Essas perspectivas nos colocam diante do que faz o Brasil se constituir como nação em que o mito da democracia racial engendrou uma negação dos estudos raciais. A hierarquização de fenótipos humanos em que no ápice está o homem branco europeu, fruto dos deslocamentos do trânsito do Atlântico, forjou os conceitos de raça, de sujeito racial e de identidade "não como pertencimento mútuo (copertencimento) a um mesmo mundo, mas antes na relação do mesmo com o mesmo" (Mbembe, 2015, p. 11). Desde então, "negro e raça têm sido sinônimos, no imaginário das sociedades européias" (Mbembe, 2015, p.12). Invenção do mercantilismo, do capitalismo e da Ciência. Porém, findo o conceito de raça como verdade e seu entendimento como "grande delírio" (Lima, 2017), a associação entre negro e raça não se desfaz cotidianamente e no campo da Ciência ganha outros contornos - os estudos raciais passam a ser negados, afinal, raça não existe! (Santos & Oliveira, no prelo)
Segundo Santos e Oliveira (no prelo), há uma produção de conhecimento que é marcada pela racialização, mesmo com a desconstrução do conceito em sua perspectiva biológica, pois, apesar de o sentido de construção social se afirmar, é produzido, no campo acadêmico, com novo discurso, aquilo que a racialização havia operado em termos de divisão e manutenção da hierarquia social. Positivamente, não se trata apenas de produção de conhecimento, mas de intrincadas relações entre saber e poder, que promovem epistemicídio e a nega a diversidade de subjetivação dos povos negro e pindorâmicos. Não nos referimos ao fato de o povo preto ser, há décadas, objeto de estudo (negro tema, como nos diz Ramos, 1955) dos diversos campos de saber, como a psicologia, mas de um exercício de encontro "da identidade de homens negros e de mulheres negras como pertencimento, rompendo o bloqueio epistemológico que se faz pela relação do mesmo com o mesmo. Sem isso, a crítica à modernidade é inacabada" (Santos & Oliveira, no prelo).
Quando pensamos a função da educação nessa formação cognitiva das crianças e das/os jovens negras/os no Brasil, refletimos sobre a produção subjetiva promovida pela instituição escolar com o apagamento da história e da cultura do povo negro. Se o racismo bloqueia o desenvolvimento cognitivo, intelectual e emocional dos nossos jovens, se estamos de acordo com o movimento da Coalizão Negra por Direitos, "Enquanto houver racismo não haverá democracia" (Coalizão Negra por Direitos, 2020), precisamos de uma educação antirracista. Um país, uma sociedade democrática é, sem dúvida, um país e uma sociedade sem racismo. Aliás, é necessário compreender que não pode haver educação sem considerar a questão racial (Santos & Oliveira, no prelo).
É preciso, assim, ponderar acerca de outro modo possível para as relações entre a psicologia e a escola nessa luta antirracista, pois o silenciamento - dos saberes e das práticas - que habita a escola pública no Brasil vem promovendo a exclusão de meninas negras e meninos negros:
Na faixa dos 15 aos 17 anos, que corresponde ao período ideal em que o aluno deve cursar o ensino médio, pouco mais de 55% de pretos e pardos permaneciam na escola em 2014, contra 70,7% dos estudantes brancos (o que já é um índice bastante aquém da meta estabelecida pelo Plano Nacional de Educação para 2024, de ter 85% dos jovens entre 15 e 17 anos cursando a etapa). (Redação, 2017).
A escola vem sendo, como dissemos, a grande instituição de promoção da tutela para adequação da ordem social, como se continuasse seguindo as proposições de José Bonifácio de Andrade e Silva para "adaptação dos índios" (Maxime, 2005, p. 184), em 1823, e sua adaptação ao estilo de vida das sociedades europeias. À medida que avança para o fim do século XIX, o Estado brasileiro encampa a imigração de europeus com o propósito de branquear a nação e torná-la civilizada, ou seja, sem índios nem negros. No Brasil, a adaptação das populações indígenas e afrodiaspóricas passa, ainda hoje, pela política de embranquecimento, com o desenvolvimento de estereótipos e práticas de racismo, em que alunos negros e alunas negras não se reconhecem e não encontram suas referências no diversificado patrimônio brasileiro, o que produz um vazio tomado pela ideologia racial branqueadora. Sobre isso, Abdias Nascimento (2018) nos diz:
Desde os primeiros tempos da vida nacional até os dias de hoje, o privilégio de decidir tem ficado unicamente nas mãos dos propagadores e beneficiários do "mito da democracia racial". Uma "democracia" cuja artificiosidade se expõe para quem quiser ver; só um dos elementos que a constituíram detém todo o poder em todos os níveis político-econômico-sociais: o branco. Os brancos controlam os meios de disseminar as informações; o aparelho educacional; eles formulam os conceitos, as armas e os valores do país. Não está patente que neste exclusivismo se radica o domínio quase absoluto desfrutado por algo tão falso quanto essa espécie de "democracia racial?" (p. 54).
Os efeitos negativos são muitos, segundo Abdias Nascimento (2018), a estratégia é de genocídio e, pensando a educação formal, vemos o que o autor chama de "assimilação cultural", com a destruição da cultura do povo preto em sua estrutura, em um movimento de "bastardização" da cultura afrobrasileira. Assim, a educação formal se constituiu como um dos principais objetivos da luta do Movimento Negro, haja vista ser a escola uma das principais instituições na produção e na perpetuação do racismo que ocorre pelo apagamento da cultura não pertencente à identidade branca. Tal finalidade tem sido contemplada também no campo das políticas públicas. Podemos citar a Lei n. 10.639 (2003), a Lei n. 12.711 (2012) e a Portaria normativa n. 13 (2016), dentre outras, em que se propõe reparação tanto pela garantia do acesso quanto pela mudança das diretrizes curriculares, a fim de que, pela educação, haja promoção da consciência política e histórica da diversidade, bem como fortalecimento da identidade e de direitos e ações de combate ao racismo e à discriminação.
Adentrando especificamente ao campo de discussão deste artigo - psicologia na escola - e pensando a formação e a prática desse saber, que é um dos que mais se interseccionam com a educação na vida escolar, nos perguntamos como ele tem se constituído diante das ações de combate ao racismo. Um dos princípios fundamentais do Código de Ética do Psicólogo diz: "O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (CFP, 2005, p. 7). E mais, em um documento, o CFP (2017) afirma:
[…] a Psicologia brasileira se posicionou como cúmplice do racismo contra os povos indígenas e negros, tendo produzido conhecimento que o legitimasse, validando cientificamente estereótipos infundados por meio de teorias eurocêntricas discriminatórias, inclusive por tomar por padrão uma realidade que não contempla a diversidade brasileira (p. 75).
No entanto, sabemos que, entre a formulação, a promulgação e a implementação das leis e de documentos oficiais de combate à discriminação racial, há o sentido de como o racismo se estrutura em nosso país, discussão com a qual iniciamos este artigo e que agora fazemos por dentro da nomeada psicologia escolar. Assim, ao analisar as ações da psicologia na escola diante das questões raciais, cabe-nos a pergunta: o que a psicologia, cujas ações e conceitos de subjetivação universais trazem as marcas do embranquecimento no Brasil, pode fazer? É preciso desenvolver práticas de uma psicologia aterrada (Santos & Silva, 2018), que se constitui nas escolas públicas brasileiras, pela luta por uma escola antirracista, vale dizer uma "educação enquanto campo de atualização do conhecimento acerca de si mesmo, enquanto promoção do reconhecimento de si, de construção de identidade cultural, de pertencimento, de integração e solidariedade social" (Santos, 2017, p. 159), trabalhando, junto com as comunidades, na construção daquela memória referida por Abdias Nascimento (2018).
Fazendo referência à psicologia na escola e a sua busca pelos mecanismos comuns ao funcionamento mental, estamos diante de um impasse, que Fanon (2008, p. 37) anuncia como o drama das ciências humanas: "devemos postular uma realidade humana típica e descrever as suas modalidades psíquicas, levando em consideração apenas as ocorrências das imperfeições; ou, ao contrário, devemos tentar sem descanso uma compreensão concreta e sempre nova do homem?" O sentido de compreensão concreta e sempre nova do homem, trazido por Fanon, é o que não aparta conhecimento do vivido. O autor negro martinicano nos diz que os psicólogos, psicanalistas, os fenomenologistas, devem deixar as práticas violentas, de negação dos saberes e das lutas. Para tanto, precisam lidar com as diferenças, sem impor os valores e saberes do homem branco europeu a todos os povos e grupos sociais que encontram. É preciso romper com os abstracionismos no campo dos saberes psi, produzindo reflexões-ações frente à história concreta dos sujeitos e das relações sociais (Fanon, 2008, p. 71)
Escutando Fanon (2008; 2015), vamos, também, ao encontro de Paulo Freire (2002), autor confessadamente influenciado pela obra do psiquiatra martinicano e revolucionário (Freire, 2003). A escolha pela interface entre a psicologia que se pretende aterrada e as obras de Freire e Fanon se deu porque, esses autores, na fundamentação das suas obras, buscam a desnaturalização da vida na crítica à colonização do saber e buscam as lutas dos povos por liberdade. Além disso, Fanon é autor fundamental para entendermos as relações entre subjetividade e racismo e Freire para entendermos como a educação moderna contribui para com os aspectos colonialistas que fazem dos espaços de formação lugares promotores do racismo na sociedade brasileira. Além disso, em uma de suas últimas obras (2002), Freire é interrogado pela questão racial e outras lutas.
Apresentaremos, a seguir, a relação entre as obras dos dois autores, a fim de discutir raça e subjetivação na prática da psicologia na escola a partir de dois conceitos pelos quais os dois autores mais se aproximam: violência e cultura. Daremos destaque para os textos Pele negra, máscaras brancas (Fanon, 2008) e Os condenados da terra (Fanon, 2015) e Pedagogia do oprimido (Freire, 2015), Pedagogia da autonomia (Freire, 2002) e Pedagogia da esperança (Freire, 2003).
Antes, porém, apresentamos como vem se constituindo a atuação de psicólogas e psicólogos nas escolas. Essa necessidade de apresentar as práticas psi realizadas nas escolas se dá para que encontremos mulheres e homens no seu fazer cotidiano, como nos diz Freire (2002). Para que fundamentemos a nossa análise não sobre o teórico, mas sobre o vivido, como argumenta Fanon (2015).
A prática da psicologia nas escolas ao longo das diferentes décadas
A fim de falar da psicologia nas escolas a partir das experiências de psicólogas e psicólogos, afirmamos que estamos pensando ética a partir do teórico-vivido de Fanon e de Freire, pois não estamos em busca de um código de prescrições e proibições. Trata-se de tomar o operador ético como posição política diante das formas de convívio (Ribeiro, 2005), dos modos de relação. É nas vivências que o sujeito constrói a si e o mundo e vice-versa, em um processo de subjetivação em que a experiência é fundante, não como aquilo que imprime o sujeito, como diriam os empiristas, mas como o palco daquilo que não tem álibi, por exemplo, o racismo e as ações violentas de embranquecimento da população brasileira.
A profissão de psicóloga/o foi reconhecida no Brasil em 1962, no entanto, segundo dados do Conselho Federal de Psicologia, veiculados no artigo "O psicólogo brasileiro: sua atuação e formação profissional" (Bastos & Gomide, 1989), o número de graduados não acompanhou do número de inscritos nos Conselhos Regionais da profissão. Esse fato levou a constatação de que a profissionalização não era a meta de uma parcela significativa dos que buscavam a ciência psicológica, fatores como autoconhecimento e o intuito de ajuda aos outros se sobrepujavam aos profissionais. Assim, parte das razões que levam as pessoas a cursarem psicologia não necessariamente significaria a sua atuação como psicólogo.
Essa questão marca historicamente como vem se constituindo a profissão no Brasil (Bastos & Gomide,1989). Quando pensamos as condições de possibilidade que engendram esse quadro, é interessante destacarmos que a ciência psicológica teve como porta de entrada no Brasil, o seu ensino em outras áreas do conhecimento, sobretudo a educação, pelo ensino no curso de formação de professores. No Brasil, é assim que se inauguram as relações entre psicologia e educação.
Essa interface entre psicologia e educação se afirmou por diversas racionalidades e práticas que adentraram a escola em nome do saber psicológico. Uma delas é marcada pelo exercício da mensuração, da categorização e do diagnóstico das características psicológicas (Andaló, 1984; Tizzei, 2014), com a postulação de indivíduos e grupos como diferentes entre si a partir de dados prévios. É uma abordagem, de tendência inatista, em que a inteligência é entendida como aptidão intelectual e a psicologia foi responsável pelo desenvolvimento de testes para mensuração do desenvolvimento intelectual dos indivíduos. Há, também, nessa mesma abordagem a tendência de explicação não pautada em fatores endógenos, mas igualmente determinista, pois a cultura determinaria as condições de aprendizagem, em que a teoria da carência cultural é um exemplo. A interface entre educação e psicologia a partir dessas racionalidades deterministas engendra práticas compensatórias para desenvolvimento das aptidões que faltam aos estudantes, pautadas por uma política focal e compensatória, num imbricamento entre filantropia, condução humanitária, medicina higienista e saberes psis. Mas houve, ainda, outra consequência dessa abordagem, a qual não trata de práticas para suprir possíveis desajustes, mas sim para constituir ações diferenciadas para indivíduos e grupos não diagnosticados como "em condições", sejam inatas ou culturais, de aprender. Ambas as práticas promovem exclusão, assim como suas racionalidades, pois estão afinadas e respaldadas por um modelo eurocêntrico que em nada se afina com a população brasileira.
Outra abordagem da interface entre a psicologia e a educação é a que nega a diferença entre indivíduos e grupos em prol da universalidade, a partir da concepção de que a inteligência é determinada pelas estruturas mentais, que se desenvolvem a partir da interação do indivíduo com o meio, mas com prevalência dos processos mentais. Há, nessa abordagem, uma busca pelo que é comum a todos; trata-se de uma perspectiva que traz à cena a universalidade.
Se não nega explicitamente a existência de diferenças entre os indivíduos, essa abordagem, de certa forma, nega a relevância das diferenças para a compreensão do funcionamento psicológico. Isto é, se o objeto de estudo dessa psicologia é o sujeito universal, as contingências da história individual não são centrais para a investigação em psicologia (Oliveira, 1997, p. 51).
Trata-se, também, de uma psicologia a serviço da adaptação à sociedade, que se institui como instrumento de vigilância e controle, pois não reconhece a concretude da vida das diversas populações. E, quando pensamos o vínculo com a educação, essa psicologia evidencia práticas espontaneístas, que não considera nenhuma forma de intervenção, haja vista a necessidade de esperar o pleno desenvolvimento das estruturas mentais. A teoria que fundamenta tal abordagem é a epistemologia genética de Piaget, que, com o seu método da observação clínica, já nos fazia entender que a observação não necessita de intervenção, pois é preciso observar como as estruturas mentais estão se formando; a aprendizagem depende do desenvolvimento mental. É uma abordagem na qual a psicologia se baseou para continuar com suas práticas diagnósticas na escola: aplicar testes piagetianos para saber quem pode aprender e que conteúdo. Nessa ação, as contingências da sala de aula foram abarcadas pela lógica de funcionamento do sujeito considerado universal, o indivíduo branco europeu, por isso a consideramos excludente.
Observamos que na prática psi na escola, o uso do modelo individualista descontextualizado das relações concretas vem gerando práticas remediativas diante da elaboração de diagnósticos (Andaló, 1984; Medeiros & Aquino, 2011; Tizzei, 2014).
Nos anos 1970 e 1980, a psicologia na escola, assim como a sociedade, começou a viver a produção de críticas às suas abordagens conservadoras. Mesmo quando psicologia se propõe fazer análise crítica do seu próprio campo, o abstracionismo não desaparece, seja nos estudos acerca da chamada psicologia social crítica ou os estudos da psicologia institucional. Lidamos ora com as discussões sobre subjetivação e questão social, ora com discussões acerca de subjetivação e relações de poder. Mas a questão é que nenhuma dessas duas posições críticas nos faz encontrar a racialização que inaugura o país como nação e é afirmada pelo racismo institucional, em que a escola é um dos espaços de perpetuação.
Essas são também racionalidades no campo da psicologia nas quais práticas que desconhecem a concretude da vida dos sujeitos são engendradas, pois, se uma traz o recorte de classe - a psicologia escolar crítica - e a outra - psicologia institucional - o recorte das relações de poder no microespaço escolar, ambas não se dirigem e nem reconhecem as marcas do povo negro na escola pública no Brasil.
Assim, mesmo quando constitui a crítica as suas racionalidades e ao seu fazer na escola, a psicologia não dialoga com a história da população brasileira que, em números atuais, declara-se negra e, se pensarmos especificamente a escola, a psicologia, mesmo crítica, não reconhece o surgimento da escola pública no Brasil. A partir de Fanon e Freire, autores com os quais dialogamos neste artigo, podemos anunciar o não reconhecimento das questões referente à população negra como ação de violência, com a imposição da subjetividade branca e européia, com a assimilação de uma cultura que não é a nossa.
Por isso, a fim de propor uma psicologia aterrada, que dialogue com a nossa população, vamos pensar, a seguir, aproximações entre as racionalidades das obras dos dois autores acerca dos conceitos de violência e de cultura na escola.
Cultura, violência e a luta anticolonial na prática da psicologia na escola: contribuições de Freire e Fanon
Ponto de partida
A escolha de Freire e Fanon para mediar a discussão acerca de uma psicologia insurgente/aterrada na prática escolar ocorre devido à aposta feita pelos autores na luta contracolonial, ainda em meados do século XX, além do reconhecimento do lugar dos estudos raciais na obra de ambos. Para Fanon, como condição da sua escrita. Para Freire, como consequência dos seus estudos.
Frantz Fanon, médico psiquiatra martinicano, embora muito associado ao pensamento sociológico, traz também contribuições fundamentais para análises acerca do sofrimento psíquico da população negra diante da violência dos tempos coloniais e sobre como esse modo colonialista, com seu operador ético, oprime essa população até os tempos atuais. Sua formação e sua atuação no campo da psiquiatria possibilitaram
[...] perspectivas para que o pensamento psicológico se organize em várias frentes para compreender o processo de formação psíquica do individuo diante das formas de opressão e violência que foram típicas do século 20 e se mantém no século 21 a partir de dispositivos de controle mais sofisticados que no século anterior (Oliveira, 2017, p. 43).
É certo que Fanon (2008) tratava da colonização francesa em terras martinicanas, mas sua produção nos permite pensar outras agências e lutas coloniais. Em terras brasileiras, sua obra permite estudos acerca do sofrimento psíquico "diante da atrocidade e do terror da violência da dominação, exploração social e econômica e da violência racista" (Oliveira, 2017, p. 43).
Ao iniciarmos os estudos sobre esses conceitos na obra de Fanon, pensando em terras brasileiras, nos deparamos com as aproximações possíveis entre sua obra e a do brasileiro Paulo Freire, sobretudo em relação aos conceitos de violência e de cultura, notadamente em obras como Pedagogia do oprimido (Freire, 2015) e Pedagogia da esperança (Freire, 2003).
Na obra Pedagogia do Oprimido (Freire, 2015), publicada durante o período de exílio do educador no Chile, em 1968, devido às perseguições do governo da ditadura militar no Brasil, a atitude contracolonial é expressa pelo aporte marxista, também presente em Fanon. Porém, tal como na abordagem fanoniana, não se tratou da aproximação com o marxismo economicista, vale dizer, da análise da dominação como reflexo das relações econômicas, da divisão social de classes. Freire trouxe à cena a perspectiva dialógica da teoria marxista, na qual a análise está na dinâmica própria do processo de dominação. Em Pedagogia do Oprimido, Freire (2002) evidencia um posicionamento epistemológico contracolonialista, pois denuncia as racionalidades privilegiadas, forjadas em detrimento de outras culturas. Mais tarde, em Pedagogia da autonomia (Freire, 2002), publicado em 1996, Freire disse:
[...] a prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia. Quão longe dela nos achamos quando vivemos a impunidade dos que matam meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que lutam por seus direitos, dos que discriminam os negros, dos que inferiorizam as mulheres [...]. A mim me dá pena e não raiva, quando vejo a arrogância com que a branquitude de sociedades em que se faz isso, em que se queimam igrejas de negros, se apresenta ao mundo como pedagoga da democracia (p. 37).
Assim, Freire (2002) revela uma luta contracolonialista completamente aterrada ao tempo, ao modo e às relações brasileiras, dos países da América latina e dos países africanos pelos quais passou. E é essa luta aterrada que aproxima Freire e Fanon. Sobre isso, o autor de Pedagogia da esperança (Freire, 2003), publicado em 1992, disse, na obra:
Nas linhas e entrelinhas da Pedagogia do Oprimido discuto esse fenômeno. Fanon e Memmi também [...] o fizeram antes de mim. O medo do oprimido [...] que o impede de lutar. Mas o medo não é uma abstração nem a razão do medo tampouco. É muito concreto e causado por motivos concretos [...] (p. 125).
O medo é concreto porque a violência do sistema de opressão da cultura dominante é concreta também, o que, no Brasil, país cuja maioria da população se autodeclara negra, configura-se pelo racismo e pelos processos de embranquecimento. Trata-se da destruição diária das formas sociais das/os negras/os - aparência, vestimentas, formas de relação, e da proibição da livre circulação por, como disse Fanon (2015), "cidades proibidas".
Como a psicologia, como racionalidade e prática, vem se constituindo diante dessa concretude das relações diárias? Iniciamos este texto falando da abordagem datada e, portanto, conservadora da psicologia. Neste texto, fazemos o exercício de pensar novos modos para a psicologia diante da violência, do medo e do sofrimento psíquico no ambiente escolar.
Cultura e Violência na obra de Fanon e de Freire
Em Condenados da terra, Fanon (2015) apresenta o conceito de cultura como imanente às lutas e labutas dos povos, não como o que se constitui por uma estrutura que paira sobre a vida das pessoas, mas como a própria vida, que também não pode ser reduzida a "[...] um estoque de hábitos motores, de tradições vestimentares, de instituições fragmentadas" (p. 273). Mas, o que seria então a cultura dos povos colonizados, oprimidos? Referindo-se à cultura argelina, o autor nos diz:
A cultura nacional argelina toma corpo e consistência durante esses combates, na prisão, diante da guilhotina, nos postos militares franceses investidos e destruídos [...] a cultura nacional não é o folclore em que um populismo abstrato acreditou descobrir a verdade do povo. Ela não é uma massa sedimentada de gestos puros, isto é, cada vez menos correlatos à realidade presente do povo. A cultura nacional é um conjunto de esforços feitos por um povo no pleno do pensamento para descrever, justificar e cantar a ação através da qual o povo se constitui e se mantém. A cultura nacional, nos países subdesenvolvidos, deve pois situar-se no próprio centro da luta de libertação que esses países travam (p. 268).
Cultura, portanto, é a expressão de um povo, de seus interditos, de suas preferências, de seus modos, não aqueles tomados pelo discurso colonizador, mas os valores mais elementares, ou seja, aqueles construídos na concretude do dia a dia da luta para se constituir diante do lugar de clandestinidade que foi destinado pela violência do colonizador. É também a reconexão com as origens, para que se possa romper com o lugar de objeto em que o colonizado (o deserdado dos países pobres) foi colocado, para romper com um sistema colonial de opressão. Além disso, cultura é a transformação da violência sofrida em violência organizada como luta de libertação, de superação. O primeiro passo, e fundamental, é a descolonização do ser. "A descolonização é verdadeiramente a criação de homens novos. Mas essa criação não recebe a sua legitimidade de nenhuma potência sobrenatural: a 'coisa' colonizada se torna homem no processo mesmo pelo qual ele se liberta" (Fanon, 2015, p. 53).
O processo de colonização da vida, das relações de saber e de poder se dá pela violência do mundo compartimentado. A descolonização, porém, não se trata de uma integração entre modos de vida, pois como nos diz Fanon (2015),
a zona habitada pelos colonizados não é complementar à zona habitada pelos colonos [...] por isso não há conciliação possível, um dos termos é demais [...] a violência que presidiu ao arranjo do mundo colonial, que ritmou incansavelmente a destruição a destruição da formas sociais indígenas, demoliu sem restrições os sistemas de referências da economia, os modos de aparência, de indumentária, será reivindicada e assumida pelo colonizado no momento em que, decidindo ser a história em atos, a massa colonial irromperá nas cidades proibidas [...] desmantelar o mundo colonial não significa que depois da abolição das fronteiras, serão construídas vias de passagem entre as duas zonas (pp. 55-57).
Apesar do caráter sociológico das obras de Freire e de Fanon, neste artigo, afirmamos a inscrição de ambas no campo das racionalidades e das práticas do campo psicológico. No caso do autor martinicano, a formação em psiquiatria o habilita para isso, mas não é disso que se trata e, sim, da formação subjetiva de um povo a partir da violência da colonização. "Ele demonstra o constructo do pensamento psicológico pela dialética da violência do massacre da identidade do colonizado. Descreve como as condições subjetivas dos sujeitos são negadas diante das conveniências capitalistas de exploração comercial das pessoas, que são tornadas objetos" (Oliveira, 2017, p. 44). Trata-se, portanto, de uma crítica direta à psicologia, à psiquiatria, aos saberes do campo psi, que insistem em não considerar a violência do racismo e da colonização.
Pensando o adoecimento causado por esse processo colonizador e racista de embranquecimento da população negra no Brasil, Wade Nobles (2009), dialogando com o psicólogo Akbar (1981 citado por Nobles, 2009), afirma o que chama de terrorismo psicológico:
desordem do ego alienado, em que o indivíduo comporta-se de modo contrário à sua própria natureza sobrevivência [...] desordem do ser contra si mesmo, em que o indivíduo expressa hostilidade aberta ou disfarçada em relação ao próprio grupo, e, portanto, a si mesmo" (p. 289).
A psicologia na escola - perspectivas fanonianas e freirianas
As abordagens de Fanon e de Freire se constituem como uma luta contra racionalidades e práticas que universalizam corpos, subjetividades, culturas e histórias, em nome da afirmação da razão e do sujeito europeus (Faustino, 2015). É preciso, assim, aterrar a pergunta sobre as relações entre a psicologia e a escola (Oliveira, 2019) e encontrar corpos e subjetivações de meninas/os negras/os que frequentam a escola pública no Brasil.
A Psicologia vem sendo um dos campos de saber que engendram a desumanização de mulheres e homens negras/os, como recurso das práticas de exclusão e da política genocida e, como outros saberes, inventa como natural, como indizível, o que é racismo, a partir do anúncio daquelas/es que não se adéquam às normas (de uma racionalidade branca e europeia). Ou, quando se pretende crítica, reconhece apenas a classe ou as relações de poder-saber para nos apresentar a infância e a juventude localizadas no espaço escolar. No entanto, aqui também racismo é um léxico verbal que não pode ser pronunciado. São essas as grandes marcas de como a colonização produz e se deixa produzir na interface entre a escola e a psicologia.
Para descolonizar, segundo Fanon (2015) e Freire (2015), é preciso construir modos de reconexão com as comunidades, com os povos e com os grupos sociais oprimidos, para que se tenha uma apropriação da cultura dos povos e para romper com a assimilação cultural. A descolonização precisa da formação de homens novos. Assim, é possível romper com o que produz subjetividades adoecidas que são geradas pela lógica da violência, da negação de saberes e pela imposição e modos e estilos de vida da cultura assimilada. Desse modo, é possível romper com a escola que é adoecedora para crianças e jovens negras/os devido aos modos dissociados da cultura do povo preto.
Considerações
Neste artigo, tratamos de uma psicologia na escola interrogada pela questão racial. Para tanto, fomos ao encontro de Paulo Freire e de Frantz Fanon e suas propostas de descolonização. Entendemos que descolonização na escola brasileira não pode ocorrer apenas por novas metodologias de ensino, mas pela descolonização do ser e que a psicologia tem papel importante nessa tarefa. Porém, antes, é preciso pensar a formação de psicólogas/os.
Descolonizar exige que formemos conceitualmente, politicamente, epistemologicamente, subjetivamente os atores escolares que estão no lugar de educadores, tais como psicólogas/os na escola, que, também colonizados, vivem o adoecimento da impossibilidade de ser e acabam por reforçar a cultura assimilada. Assim, é preciso formar a/o psicóloga/o, a fim de que saia do lugar de intermediária/o da assimilação cultural, que "leva a violência para a casa e para o cérebro dos colonizados" (Fanon, 2015, p. 55) para o lugar de intelectuais, o que requer um processo de luta autoconsciente em favor da população oprimida, no caso da escola, meninas/os negras/os. E isso não é tarefa para psicóloga/o negra/o, é para todas/os nós!
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Endereço para correspondência:
Luiza Rodrigues de Oliveira
Luiza.oliveira@gmail.com
Submetido em: 24/09/2020
Revisto em: 31/10/2020
Aceito em: 31/10/2020