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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.74  Rio de Janeiro  2022  Epub 09-Set-2024

https://doi.org/10.36482/1809-5267.arbp-2022v74.15330 

ARTIGO ORIGINAL

DESAFIOS E POSSIBILIDADES DO VIVER SEM VER

CHALLENGES AND POSSIBILITIES OF TO LIVING WITHOUT SEEING

RETOS Y POSIBILIDADES DEL VIVIR SIN VER

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

IIUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Social. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo acompanhar o desenrolar de um dispositivo clínico, destinado às pessoas com deficiência visual do Instituto Benjamin Constant. Para tal empreendimento, partimos das formulações teórico-metodológicas da Teoria Ator-Rede (TAR) e dos termos Versão, Política Ontológica e PesquisarCOM. Estes são articulados de modo a propiciar uma reflexão acerca da concepção predominante da cegueira enquanto déficit, tal como os atores e as práticas que a sustentam. Lançamos luz sobre o nosso campo de atuação, a fim de fazer proliferar outras realidades que admitam a pessoa cega como aquela que pode ser eficiente. Assim, concluímos que é possível a construção de lugares propositivos em relação à deficiência visual que transportem a possibilidade de invenção e reinvenção de si.

Palavras-Chave: Deficiência visual; Teoria ator-rede; Versão; Política ontológica; pesquisarCOM

ABSTRACT

This present article aims to follow the development of a clinical device destined to assist people with visual impairments at Instituto Benjamin Constant. For this purpose, we start from the Actor-Network Theory (ANT) theoretical-methodological formulations and the terms “version”, “ontological policy”, and “researchWITH”, which are articulated in a way to promote a reflection on the predominant concept of blindness as a deficit, as the actors and practices that support it. We throw light on our field of action, in order to raise new realities that admit a blind person as someone who can be efficient. Therefore, we conclude that it is possible to construct propositional places for visual impairment where it is feasible to invent and reinvent ourselves

Key words: Visual impairment; Actor-network theory; Version; Ontological policy; ResearchWITH

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo seguir el desarrollo de un dispositivo clínico, dirigido a personas con discapacidad visual en el Instituto Benjamin Constant. Para este emprendimiento, partimos de las formulaciones teórico-metodológicas de la Teoría del Actor-Red (TAR) y de los términos Versión, Política Ontológica e InvestigarCOM. Estos se articulan con el fin de brindar una reflexión sobre la concepción predominante de la ceguera como déficit, así como los actores y prácticas que la sustentan. Iluminamos nuestro campo de acción para hacer proliferar otras realidades que admitan a la persona ciega como alguien que puede ser eficiente. Así, concluimos que es posible construir lugares propositivos en relación a la discapacidad visual, que conllevan la posibilidad de invención y reinvención de uno mismo.

Palabras-clave: Deficiencia visual; Teoría actor-red; Versión; Política ontológica; InvestigarCOM

INTRODUÇÃO

Fruto de uma experiência clínica e de pesquisa, este texto se propõe a acompanhar os desdobramentos de um dispositivo clínico (DC) constituído por pessoas inscritas no setor de reabilitação do Instituto Benjamin Constant (IBC) – centro de referência nacional no campo da deficiência visual, situado na cidade do Rio de Janeiro. Como dobras (Deleuze, 1991) dos encontros, vimos nascerem articulações que potencializaram o processo de invenção e reinvenção de si. Testemunhamos ainda a criação de distintas maneiras de dialogar com a cegueira, o que nos fez repensar o nosso fazer clínico e de pesquisa, assim como o processo de produção de conhecimento. No nosso campo de atuação, estes elementos são tratados como linhas que se entrelaçam e produzem redes – realidades.

Admitimos o DC como um espaço de troca e de escuta, onde as questões que atravessam a experiência do viver sem ver possam ser acolhidas. Deleuze (1990) define o dispositivo como “uma meada, um conjunto multilinear, composto por linhas de natureza diferente” (p. 83). Sendo assim, entendemos o DC como um lugar de conexões, de agenciamentos entre elementos díspares e heterogêneos. Enquanto pesquisadores, interessa-nos acompanhar o tecer das diversas formas possíveis de habitar o mundo, e nos debruçamos sobre esse campo certos de que também fazemos parte desse tecido, performando realidades, forjando modos de existir diante da deficiência visual.

Dessa maneira, caminhamos na contramão das pesquisas tradicionais em psicologia, nas quais o pesquisador é aquele que detém a verdade sobre os sujeitos, distribuindo as expertises de maneira assimétrica. Despret (2011) destaca que a “condescendência dos sujeitos não é uma qualidade inerente a eles, mas um produto do dispositivo” (p. 43). Nesse sentido, o DC de que falamos neste artigo fora pensado com base na proposição de que os participantes da pesquisa é que são os experts — são as pessoas cegas aquelas que podem nos ensinar alguma coisa sobre a deficiência visual.

A questão que Vinciane Despret nos instiga a pensar é se os participantes da pesquisa são de fato ingênuos. Ela argumenta:

Os psicólogos constroem os dispositivos que suscitam a complacência e devem fazer todo o possível para controlá-la. E como em toda situação de engodo eles são então obrigados a se perguntar sem cessar: “mas, meus sujeitos acreditam em mim verdadeiramente? Não teriam eles, ainda assim, compreendido o que eu buscava e respondido a esta questão sem meu conhecimento?” Também fazem questionários pós-teste para verificar se os sujeitos se deixaram enganar. No entanto, os sujeitos, nesses casos, sabendo que o fato de haver compreendido a hipótese vai invalidar sua performance, preferem nada dizer e continuam a fingir que responderam com toda ingenuidade – o que chamamos o pacto da dupla ignorância, uma vez que nenhum dos dois, nem o experimentador, nem o sujeito, têm verdadeiramente vontade de dizer ou de saber, o que está em jogo, pois de ambas as partes isso mandaria a experiência para o espaço (2004, p. 45).

Pensar os dispositivos experimentais de tal modo, ou seja, distribuindo a expertise entre todos os envolvidos, exige que nós, pesquisadores, sejamos capazes de ver nosso projeto de pesquisa se modificar. Tencionar a pesquisa no lugar de afirmação das nossas hipóteses anula qualquer possibilidade de recalcitrância. Esta, por sua vez, pode se manifestar naqueles dispositivos produtores de “sujeito expert”, isto é, sujeitos capazes de recolocar questões (Despret, 2004).

Lançamos mão da Teoria Ator-Rede (TAR) desenvolvida por Despret (2011), Latour (2002, 2005, 2006), Nathan (2001), Stengers (2002), dentre outros, para sustentar o nosso fazer nesse campo. Seguir os atores – ou como prefere Latour, os actantes – é ao que nos propomos, inspirados nesse referencial teórico-metodológico. O termo actante refere-se à simetria entre humanos e não humanos. É fundamental entender que os actantes acontecem no mundo e não é possível saber de antemão quais serão aqueles que estarão agindo em uma determinada situação. Para que um actante seja rastreável, ele precisa ter agência, isto é, um ator só pode ser definido com base naquilo que ele faz (Latour, 2001).

Mediante a rede e suas conexões híbridas e heterogêneas, é possível seguir os actantes e suas produções. Os vínculos e agenciamentos acontecem conforme estes se movimentam e se articulam. Vale ressaltar que, para Latour (2012), não basta ser heterogêneo ou estar conectado, “[...] o que temos que enfatizar é o trabalho, o movimento, o fluxo e as mudanças” (p. 207), ou seja, o foco está na ação e não nos vínculos em si. Importa o que esses vínculos fazem fazer (enact)1, que ações fabricam, que rastros deixam no mundo.

Dessa feita, questionamos: que mundo performamos quando temos a cegueira vinculada a adjetivos como imperfeito, defeituoso e deficitário? Que rastros esses actantes deixam no mundo? De modo predominante, os rastros de exclusão têm-se estendido, engendrando uma sociedade deficiente por sua intolerância com a diferença. Assim, é a ação exercida na rede, agenciada através dos vínculos firmados, que viabiliza a fabricação dos estereótipos, dos conceitos e dos preconceitos e, por que não dizer, da cegueira enquanto sinônimo de incapacidade.

Particularmente, adotaremos o termo versão, discutido por Vinciane Despret (1999, 2011) a fim de sublinhar que a realidade da deficiência visual atrelada à inferioridade não é a única, ou seja, outras realidades existem e novas podem ser criadas. Neste ponto, é possível uma associação com o termo política ontológica (Mol, 2007), o qual, em poucas palavras, destaca o caráter ativo dos atores na construção da realidade.

Articulando os conceitos, compreendemos que a versão da realidade que situa as pessoas com deficiência visual no lugar da falta é performada em certas práticas. Nesse sentido, a aposta política deste trabalho é afirmar a possibilidade de construção de outras realidades, de versões de como ser uma pessoa cega2, de forma a contrariar a visão predominante da cegueira atrelada ao ônus da inferioridade. Sendo assim, a pertinência deste estudo diz respeito à possibilidade de oportunizar uma reflexão acerca dessa concepção predominante de deficiência, assim como das práticas que criam e sustentam essa realidade.

Recorremos ainda ao termo PesquisarCOM (Moraes, 2010) para auxiliar na reflexão em torno do ato de pesquisar e da postura do pesquisador. Com isso, ensaiamos fazer pesquisa junto àqueles que dela participam. Nessa perspectiva, pesquisar é o ato de compor com os entes pesquisados os caminhos que valem a pena seguir, formulando questões que interessem aos envolvidos no campo (Despret, 1999).

Motivadas pela possibilidade de um “fazer com”, afirmamos a importância de uma pesquisa situada, na qual o pesquisador acompanha as diferentes formas de viver com a cegueira, reconhecendo que nenhum conhecimento a priori traduz o que seja essa experiência. Por isso, o objetivo não é criar uma clínica para as pessoas com deficiência visual, mas desenhar uma intervenção que possa acontecer no espaço “[...] entre cegos e videntes3, e não dos videntes para o cego” (Moraes, 2010, p. 28).

Antes de avançarmos em nossas considerações, cabe ressaltar a escassez de estudos dirigidos à temática da deficiência visual. Alguns autores contemporâneos como Sousa (2009, 2013), Kastrup (2008, 2015), Moraes (2004, 2007), dentre outros, vêm desenvolvendo pesquisas no campo da deficiência visual, apostando em uma pesquisa/intervenção articulada a discussões que sinalizam a urgência de novos saberes e práticas inclinados a problematizar esse tema. Ratificamos a relevância e a necessidade de estudos que retratem a concepção historicamente construída da deficiência atrelada à insuficiência, apontando para “[...] o peso dos preconceitos que irremediavelmente encerram as pessoas com deficiência nos estigmas da improdutividade” (Martins, 2004, p. 12), e que viabilizem a construção de lugares propositivos em relação à deficiência visual. Enfatizamos ainda a importância de pautar tal discussão nas práticas efetivas do dia a dia, pois são elas que constroem tal versão da deficiência.

DE ONDE VEM A DEFICIÊNCIA?

Ao fazer uma busca da palavra deficiente em um dicionário (Deficiência, 2009), encontramos o seguinte significado: “Insuficiência orgânica ou mental. / Defeito que uma coisa tem ou perda que experimenta na sua quantidade, qualidade ou valor”. Notamos ainda que as palavras “curteza, falta, falha e imperfeição” aparecem como sinônimos.

Entendemos que essa é uma construção histórica, tecida ao longo do tempo e que vem perpassando diversas culturas, mantendo-se de forma dominante na sociedade ocidental contemporânea. Segundo Martins (2010), a concepção dominante da deficiência enquanto tragédia pessoal consolidou-se no século XVI e não sofreu críticas até o final da década de 1960, quando passou a estar atrelada às formas de organização social e às experiências de profunda marginalização então vividas pelas pessoas descritas pelo idioma da deficiência. No final dessa década, inúmeros movimentos surgiram, reivindicando uma reestruturação das práticas e valores democráticos existentes. A partir disso, ocorre uma universalização dos sujeitos, pautada na noção de cidadania e sintetizada pelo princípio de igualdade de todos perante a lei.

Tais movimentos escamotearam as diferenças individuais – constituindo-se em um tom onde o pessoal se torna político –, favorecendo, assim, inúmeras lutas sociais. Estas objetivavam apresentar as diversas formas de opressão dirigidas aos grupos minoritários, inserindo na arena política as relações de poder marcadas na vida cotidiana. Surge então a possibilidade de um espaço de enunciação para a reiterada experiência de exclusão vivida pelas pessoas com deficiência, identificando as lógicas procriadoras de tal opressão. Entretanto, esse espaço é pouco ou raramente preenchido com lutas ou movimentos sociais, mas o é, predominantemente, por uma proposta de cuidado dirigida às pessoas com deficiência visual que descansa em uma abordagem reabilitacional.

Considerando as ações dirigidas às pessoas com deficiência visual, destacamos as que compõem o processo de reabilitação. Manso (2010) e Rodrigues (2013) ressaltam que a abordagem reabilitacional se pauta no princípio de normalização, ou seja, a pessoa cega é compreendida como aquela que precisa ter a sua normalidade restaurada. A oferta baseia-se na possibilidade de superar as dificuldades oriundas da ausência da visão e de promover uma interação social que destoe o mínimo possível dos modelos de conduta aceitáveis. (Com)viver com o inusitado torna-se cada vez mais laborioso e incerto quando admitimos apenas um único caminho a trilhar, desconsiderando os atalhos possíveis.

Reabilitar, nessa perspectiva, é escamotear o que nos faz diferente e único, em prol de um modo de ser e estar no mundo determinado de antemão. Assim, abdicamos “[...] da diferença em favor da homogeneidade, da normalidade, da padronização” (Sousa, 2009, p. 180). Como consequência, criamos um mundo onde as particularidades não são toleradas. Renunciamos a tudo aquilo que contraria os padrões de eficiência previamente estabelecidos.

Sousa (2013), Manso (2010) e Moraes (2009) ressaltam a inquestionável relação entre a concepção de deficiência dominante – que surgiu com a modernidade – e o modelo de políticas públicas vigente. Consequentemente, é de fulcral importância pensar a temática da deficiência visual em paralelo com as políticas públicas dirigidas a ela. “Como estudar e interferir na fabricação de políticas que possam dar conta da singularidade e localidade da deficiência? Como construir e executar políticas não pelo viés do universal e sim pelo víes do local?” (Manso, 2010, p. 122). Esses são alguns dos desafios que se impõem e que julgamos pertinentes para compor as discussões a respeito dessa temática.

Ao analisarmos as políticas públicas firmadas e direcionadas a esse público, cabe convocar para nossa discussão a questão da acessibilidade, uma vez que as vidas que convivem com a experiência da cegueira “[...] se encontram sobretudo marcadas pela ausência de estruturas para o desenvolvimento e realização das suas capacidades” (Martins, 2006, p. 16-17). Destacamos que, ao disporem de condições no espaço público – como os meios de locomoção e transporte, indicadores sonoros, bengala, piso tátil, dentre outros –, as pessoas com deficiência visual podem reorganizar sua realidade, isto é, inventar outras maneiras de viver sem ver.

A Associação Brasileira de Normas Técnicas (Associação Brasileira de Normas Técnicas [ABNT], 2004) define acessibilidade como “possibilidade e condições de alcance, percepção e entendimento para utilização com segurança e autonomia de edificações, espaço, mobiliário, equipamento urbano e elementos” (p. 2). Interessados em destacar os desafios vivenciados pelas pessoas com deficiência visual no que se refere à questão da acessibilidade – particularmente, à experimentação de obras de arte –, mencionamos a seguir um estudo produzido por Viard (2013).

O projeto possui dois eixos: o primeiro aborda, principalmente, a promoção de acessibilidade estética ao público com deficiência visual; o segundo visa expor a criação de condições a essa acessibilidade, a fim de que a experimentação de obras de arte seja possível para todas as pessoas, independentemente da condição visual. Formado por um público heterogêneo – pessoas cegas, com baixa visão e videntes – o projeto se propôs a promover um encontro no qual todos possam firmar um contato espontâneo com seus outros sentidos.

Ainda hoje o acesso às obras de arte através da percepção tátil é raro. A experienciação tem como único canal o visual. Esse contexto acaba por não só limitar a experimentação das pessoas cegas, mas também por restringir a possibilidade de os videntes conhecerem as obras de arte mediante outros sentidos. Nossa aposta é a de que há múltiplas formas de perceber, experimentar e conhecer o mundo no qual vivemos.

Destacamos ainda a importância da experimentação corporal no desabrochar de outras normas de vida (Rodrigues, 2013), isto é, de outras formas de ver que estão além da capacidade visual. Trata-se de ver com o corpo. Corpo que é fundamental na nossa discussão. Qual a sua importância? Como um corpo que não vê (com os olhos) pode experimentar o mundo? Que corpo é esse capaz de se articular de forma propositiva com a experiência do não ver? Compreendemos aqui que o corpo é construído, ou seja, é feito nas relações que travamos com o mundo e nas experiências de afetação.

Latour (2008) afirma que para se estar vivo é preciso ter um corpo e que é com esse corpo – com todo ele – que nos conectamos com o mundo. Coadunando com as reflexões de Despret (1999) ao apontar que o corpo é performado, Latour destaca que “[...] ter um corpo é aprender a ser afetado, ou seja, efetuado, movido, posto em movimento por outras entidades, humanas ou não-humanas” (p. 39). Assim, não se trata de um corpo qualquer, mas de um corpo que se articula, e cujo limite não está dado pela pele, mas pela ampliação dos sentidos ou pela multiplicação deles.

EFICIÊNCIA: UMA VERSÃO POSSÍVEL

Admitimos, no presente artigo, a letra (d) da palavra deficiência como um actante que gera e produz efeitos, sendo fundamental na construção e/ou desconstrução da realidade que reitera a pessoa com deficiência visual como aquela que precisa ser compensada devido à falta que possui. Destacamos que outros actantes podem se vincular a essa concepção dominante de deficiência, gerando, assim, um novo arranjo, uma nova versão da realidade. Que versão de deficiência se produz quando temos articulados ao actante (d) bengala, indicadores sonoros, braile, piso tátil, pedaços de madeira e uma porção de criatividade?

Consideramos que a forma como os atores de uma rede se articulam produz o encontro produtivo e o infértil, corpos eficientes e deficientes4. Por isso, esforçamo-nos na tarefa de observá-los em ação, em suas articulações com os diversos elementos – ou seja, nos disponibilizamos a observar as conexões entre humano e não humanos que se fazem presente no nosso campo de atuação, assim como os efeitos produzidos por tais associações.

Posto isso, convidamos o leitor a acompanhar fragmentos de alguns episódios de campo, narrados nas próximas linhas, que muito têm a acrescentar à nossa discussão, dando-lhe assim continuidade. Percorreremos agora os rastros deixados pelo encontro de José5 com um insistente cantor amador, com o desconforto causado por este, com pequenos pedaços de madeira, com as pessoas do ponto de ônibus, com a indignação, com a criatividade... a fim de sinalizar que a realidade da deficiência visual enquanto sinônimo de inabilidade não é a única.

José chegou ao DC em meados de 2012. Ele é um homem de estatura alta, pele morena, olhos escuros e cabelo crescido. Sua aparência era a de um homem de 40 anos, forte e saudável. Contou que tinha muitos filhos e que era casado com uma mulher que também era cega: “Sou casado há um bom tempo, mas nunca vi o rosto da minha esposa. Sabe o amor...? Ele não tem aparência!”.

Amor embalado na antiga arquitetura do IBC, que traz nas paredes a marca do tempo. Tempo que permitiu a José construir um IBC para si, pautado na experiência. Experiência singular. Modo singular de conhecer. Um conhecer através do tempo. É assim que José apreende o mundo à sua volta: através do tempo, vivencia o amor e as possibilidades de como existir sem ver.

Tempo que forjou em nós, pesquisadores, um corpo capaz de se afetar com e nesse espaço. Corpo construído no tempo e com o tempo. Corpo que aprendeu a se encontrar nos corredores longos e estreitos da unidade. Corpo que compreendeu a importância de não andar rente à parede fria e áspera, pois ela orienta o caminhar das pessoas cegas e com baixa visão pela instituição. Corpo que compartilhava o espaço da sala, onde ocorriam os atendimentos, com um lindo piano que lá fora deixado. Corpo que aprendeu a dialogar com uma bica que pingava lenta, porém insistentemente nos fundos da sala.

Conhecido e experienciado de maneiras distintas por aqueles que o frequentam, sua aparência extrapola os detalhes físicos de sua estrutura. Conhecer tem a ver com aquilo que afeta e em nós gera algum efeito. Fomos apresentados de muitas formas ao Instituto, pelos funcionários, usuários do serviço, amigos e familiares destes. Mas conhecer o IBC, neste texto, fala de uma experiência encarnada.

A deficiência visual compreendida enquanto déficit é produto de uma rede composta por conexões híbridas que se alastram e produzem o ser deficiente. Tal arranjo engendra uma versão da realidade que expõe as diferenças e ignora as possibilidades, constituindo um cenário desfavorável à pessoa com deficiência visual. Ao apontarmos a existência de “uma versão da realidade”, nos referenciamos ao que Despret (1999, 2011) compreende por versão.

Versão é um termo que nos permite pensar em possibilidades de existência ao invés de uma única forma de ser e estar no mundo. Tal conceito admite a coexistência de múltiplas realidades, o diálogo e a negociação entre as diversas formas de conhecimento, discursos e definições.

A versão não se impõe, ela se constrói. Ela não se define no registro da verdade ou da mentira e da ilusão, mas naquele do devir: devir de um texto incessantemente retrabalhado e revirado, devir de um mundo comum, devir das reviravoltas e das traduções. A versão não desvela o mundo nem o vê-la, ela o faz existir num modo possível. A versão não é o feito de um homem sozinho, ela é fonte e fruto da relação, ela é trabalho, no seio da relação, ela é negociação que se desvia, se transforma, se traduz (Despret, 1999, p. 44).

A autora apresenta, além do conceito de versão, o de visão, estabelecendo uma clara diferenciação entre eles. A visão admite apenas um único conhecimento sobre a realidade, acredita-se que esta é única e foi construída além e aquém de nós, ignorando a coautoria de todos os actantes envolvidos em tal criação. Desse modo, a visão não admite outros olhares sobre o mesmo objeto – ela encerra a possibilidade de se fazer existirem outras verdades, outras realidades, outras maneiras de se abordar a deficiência visual.

No decorrer dos atendimentos, José também se apresentou como um cidadão que abordava politicamente as questões que atravessam a temática da deficiência visual. Estava sempre presente em seus relatos a problematização do lugar que é designado às pessoas nessa condição visual: “As pessoas devem lutar pelos seus direitos, sair do lugar de coitadinhos, de vítimas, apesar de todos os desafios e dificuldades que enfrentamos diariamente”.

Aos poucos José mostrou também seu lado “esquentado” e impulsivo: “Não levo desaforo para casa”. Ele conta que sempre se envolvia em brigas. Certa vez, se desentendeu com um passageiro do ônibus e acabou agindo de maneira agressiva:

Era ao entardecer, fazia um lindo dia de verão e eu já estava atrasado para o meu compromisso. Peguei o ônibus errado, o que me atrasaria ainda mais. Às 18h, todos os ônibus no Rio de Janeiro estão cheios, pessoas voltando do trabalho, da escola, da academia... Passei por todos os passageiros até encontrar o último lugar vazio nos fundos do ônibus. Finalmente me sentei espremido em um banco não muito confortável. Abro a janela para ver se o calor diminuía, não adiantou muito, a brisa era quente.

Ao longo do trajeto, ele percebe um som, que no começo era baixo, quase inaudível, mas fora aumentando, o que o incomodou bastante: “Será o rádio do ônibus? Não, não... era um homem que cantava, insistentemente, sem se preocupar com as pessoas à sua volta. Nossa, como ele canta mal! Mas uma hora ele cansa”. Engano, o tal homem tinha fôlego; cantava uma música atrás da outra. Inicia-se então uma movimentação diferente no ônibus: um “burburinho”, algumas pessoas cochichando e indignadas, outras achando graça da situação... José, então, começa a ficar impaciente. Ameaça se levantar, hesita, e aí, sim, se levanta... Guiado pelo som, se aproxima do cantor amador. “De perto ele cantava ainda pior, era desafinado demais”, ressalta José. Já que ninguém se disponibilizou a fazer alguma coisa, ele resolve falar com o passageiro, expondo sua insatisfação. “Senhor, com licença... Senhor...” Ele fala alto, mas o tal homem nem se abala, estava tão perdido em seu mundo que parecia não perceber nada o que acontecia à sua volta.

Na tentativa de ser percebido, José toca o ombro do passageiro que está ao seu lado, pedindo que chame o tal cantor: “Ei, eeiiii, este homem aqui quer falar com você”, disse o passageiro ao homem que insistia em cantarolar. Por fim, após algumas tentativas, a cantoria foi interrompida, e José pôde falar: “O senhor poderia, por gentileza, cantar um pouco mais baixo, porque isso atrapalha a concentração necessária que eu preciso para seguir viagem. O senhor está cantando alto demais!”.

A concentração de que José precisa para seguir viagem tem a ver com o fato de as pessoas com deficiência visual usarem o próprio corpo para perceber o movimento do ônibus. As curvas, os quebra-molas os orientam quanto ao percurso e, com isso, compreendem onde estão e o momento certo de saltar.

O cantor entusiasta logo demonstra que não gostou de ser repreendido. Levanta, vai em direção a José como quem está indo para uma briga e grita: “Eu tenho o direito de cantar e canto a hora que eu quiser!”, esbravejou o tal cantor. “Mas você precisa respeitar as outras pessoas”, disse José, irritado. Instaura-se uma discussão, um bate-boca em que ninguém ouvia ninguém. Os outros passageiros, tentando apaziguar a confusão, diziam a José: “Deixar isso para lá, é melhor você se acalmar e sentar”. “Vocês acham que só porque eu sou cego tenho que ficar calado, suportando esse tipo de desaforo? Se vocês querem se calar, tudo bem, mas eu não vou”.

Em meio a toda aquela confusão, ouve-se um estalo: “Paah!” Era José recebendo uma bofetada do cantor... O barulho que tomava conta do ônibus foi suspenso por segundos de silêncio. Indignado, José não pensou duas vezes antes de retribuir a gentileza: levantou-se calmamente, apanhou sua bengala do bolso e a lançou na direção do som que saia da boca do passageiro que, para nossa surpresa, ainda cantava! José não previa, entretanto, que sua atitude causaria uma fratura na mão do tal homem. “Aí ele parou de cantar”, disse José, ainda irritado.

Ninguém sabe ao certo como isso ocorreu. Não vamos entrar na questão da violência presente nesse episódio, pois defendemos que outras possibilidades podem ser construídas e que a violência não é o melhor caminho.

Todos os participantes do grupo ouviam José relatar o ocorrido atentamente, mas sua atitude para com o cantor mobilizou o DC, gerando indignações, críticas e, principalmente, estranheza. Não podiam acreditar no que acontecera. Como um homem cego, aparentemente indefeso, pôde se envolver nessa algazarra. Diziam:

Já que havia tantos passageiros no ônibus, por que justamente você teve de ir resolver o problema? Você poderia ter-se machucado gravemente. Sendo cego e estando desacompanhado, você não poderia se arriscar dessa maneira [...] Só porque sou cego tenho que aguentar tudo, me fazer de morto diante de situações que me incomodam? Não! Nada vai me impedir de lutar pelos meus direitos, pelos meus ideais, nem mesmo a cegueira.

O que saltava aos olhos de todos no grupo após esse relato era a ousadia diante da cegueira. José afirma que não era a única pessoa insatisfeita no ônibus. Por um lado, o que nos inquieta é a apatia dos outros passageiros diante da situação que parecia ser incômoda para a maioria deles. Havia uma espécie de cegueira coletiva, que nada tem a ver com a falta da visão, mas com um não ver que é cômodo. Uma anulação de presença. Por outro lado, aprendemos com esse episódio sobre a possibilidade de contrariar as incapacidades que as pessoas cegas “ganham” quando perdem a visão.

AÇÕES QUE FABRICAM MUNDOS

Quando falamos em construção de mundos, em versões, estamos assumindo que a ação é aquela responsável por sustentar e organizar o mundo no qual vivemos e que a realidade nada mais é do que o efeito das práticas (Latour, 2001; Law, 2003; Mol, 2007). Em outras palavras, a criação de novas realidades torna-se possível devido ao caráter performativo das práticas. A realidade não é algo que se constrói à revelia das nossas ações, mas, antes, é feita agenciada em rede através das práticas cotidianas.

Diante disso, posicionamo-nos no campo de pesquisa com o desejo de romper com a figura do especialista geralmente atribuída ao pesquisador. Viégas e Tsallis (2011) nos convidam a revisitar nossa postura enquanto pesquisadores, uma vez que a nossa atuação interfere e reorganiza um campo, isto é, cria realidades. Desse modo, “tais proposições se mostram muito interessantes para o trabalho de um pesquisador que, ao refletir sobre sua prática, se situa nessa dimensão da responsabilidade por uma criação, por suas heranças e articulações com o mundo” (p. 301).

Atuar no campo da deficiência visual, ou em qualquer outro, requer um deslocamento do lugar daquele que tudo sabe para o daquele que se dispõe a produzir COM o outro, a habitar um mundo comum, onde todos caibam. Assim, apostamos em uma prática de pesquisa que considere o outro como um parceiro, um coautor na construção do conhecimento. “Trata-se de afirmar a pesquisa como uma prática performativa que se faz com o outro e não sobre o outro” (Moraes, 2010, p. 13, grifos da autora).

Compreendemos o campo como um híbrido de elementos díspares que não admite uma postura reducionista. É preciso permitir que o campo floresça, da maneira que lhe for possível, em vez de tentar purificá-lo, reduzindo-o às teorias criadas a priori ou aos nossos quadros de referência. “No encontro com o campo é preciso seguir as pistas daquilo que nele nos desestabiliza e produz em nós certo estranhamento” (Rodrigues, 2013, p. 39). Seguir as pistas significa estar disponível ao campo e ao que ele tem a oferecer, requer caminhar junto, construir COM. Impor uma questão ao campo que não se mostra interessante para as pessoas que o constituem cria uma versão da realidade que amarra o sujeito da pesquisa no lugar da passividade, desconsiderando-o como sujeito ativo, recalcitrante.

O que motivou José a buscar ajuda psicoterápica foram os desafios que estava enfrentando com relação à perda da sua visão. Diferente dos outros participantes do grupo (que tinham baixa visão), ele era o único cego.

Todos no grupo estavam atentos ao seu relato de como perdeu a visão. E não tinha como ser diferente! “Eu ainda enxergava quando apresentei alterações na visão. Decidi então que era hora de recorrer a um especialista para verificar o que estava acontecendo. O médico, já nas primeiras consultas me aconselhou a realizar um procedimento a laser que logo foi iniciado”. Foram necessárias mais de uma sessão, e a cada vez que o procedimento era realizado José sentia que a sua acuidade visual estava diminuindo, mas fora informado de que essa reação era perfeitamente normal e esperada.

“Continuei o tratamento esperando que, ao término, esse efeito causado pelo laser passasse, e minha visão voltasse ao normal”. Ele se emociona, respira fundo e diz, com voz embargada: “Só que, no fim, eu estava completamente cego”. Um silêncio se instaurou; silêncio que dizia a ele o que não conseguíamos falar naquele momento. Não havia palavras... Juntos revivemos essa experiência dolorosa, que se tornou inesquecível para todos nós!

Enquanto relatava a sua história, a expressão em seu rosto era de tristeza e de muita, muita raiva. Ele não compreendia como um profissional podia cometer tamanha imprudência. José iniciou um processo judicial contra o tal médico que indicou e realizou o procedimento em seus olhos.

Em meio a tudo o que já tínhamos ouvido de José, nos chama a atenção o fato de ele ter encontrado pacificidade para conduzir um processo judicial que envolvia o responsável pela sua cegueira. Já sabíamos que a impulsividade e a agressão (como no caso do ônibus) foram recursos por ele utilizados para sair do desconforto, o que não aconteceu nesse caso. José nos intrigava! Como esses dois José(s) conviviam? Que outro(s) José(s) ainda poderíamos conhecer?

Neste momento, gostaríamos de propor uma tímida discussão sobre a assimétrica relação entre a primazia do saber médico sobre o corpo e como este pode ser capturado pela lógica da insuficiência e da incapacidade e, por consequência, da reabilitação. Mesmo José tendo avisado ao médico sobre o procedimento a laser estar piorando sua acuidade visual, a medicina insistiu que aquele era o procedimento adequado em casos como o dele. A universalidade da ciência, do saber médico sobre o corpo dito “doente”, não foi capaz de acolher a individualidade de um órgão que não respondia à intervenção.

Resgatamos o modelo médico e social da deficiência para nos ajudar a pensar essa problemática. Em poucas palavras, para o modelo médico da deficiência, o que qualifica uma pessoa enquanto deficiente é o fato de ela possuir uma lesão corporal. Nessa perspectiva, a causa da deficiência reside exclusivamente no indivíduo, como destaca Diniz (2003). Em contrapartida, o modelo social da deficiência, forjado no seio de um movimento conhecido como Disability Studies (em nossa língua, “Estudos sobre Deficiência”), se apresenta enquanto mecanismo que subverte a lógica da deficiência atrelada estritamente ao corporal, um modelo que exige que a deficiência seja discutida em outros termos, naquele de uma sociedade incapaz de acolher a diversidade corporal (Oliver, 1990).

Passaram-se 50 anos desde a proposta do modelo social da deficiência e, de fato, temos avançado no que tange às discussões sobre a racionalidade médica, porém seus discursos e práticas ainda são evidentes, performam pessoas normais e deficientes, capazes e incapazes... Nesse contexto, pensar as práticas que engendram a deficiência é fundamental. Convidamos o leitor a se dedicar às práticas menores, cotidianas, exercidas por nós enquanto indivíduos. Resgatamos o que José nos contou sobre sua reação no ônibus e o quanto os passageiros ficaram surpresos ao ver uma pessoa cega se posicionar daquele jeito! Aqui faz se necessário pensar a nossa participação na produção e na reprodução de relações assimétricas e subjetividades subjugadas.

Como já fora dito ao longo do texto, compreendemos que a realidade é construída. Dessa forma, assumimos o caráter político impresso nessa afirmação. Caráter político? Sim, uma vez que nossas ações fabricam mundos. É o que fazemos, mas também o que não fazemos. Não há como evitar, de uma forma ou de outra, somos os autores do mundo no qual vivemos. Aqui falamos de uma política ontológica, expressão que se reporta ao fato de o real e o político estarem sempre imbricados na feitura de uma determinada realidade. Logo, ela não nos é dada a priori, antes é performada por práticas que perpassam certo contexto histórico-cultural. Nas palavras de Mol (2007):

Política ontológica é um termo composto. Refere-se a ontologia – que na linguagem filosófica comum define o que pertence ao real, as condições de possibilidades com que vivemos. A combinação dos termos “ontologia” e “política” sugere-nos que as condições de possibilidade não são dadas à partida. Que a realidade não precede as práticas banais nas quais interagimos com ela, antes sendo modelada por essas práticas. O termo política, portanto, permite sublinhar este modo activo, este processo de modelação, bem como o seu carácter aberto e contestado (p. 2).

Inspirados nesse cenário, melhor do que falar em ontologia, no singular, seria falar em ontologias. “A palavra tem agora que vir no plural. Porque, e trata-se de um passo fundamental, se a realidade é feita, se é localizada histórica, cultural e materialmente, também é múltipla. As realidades tornaram-se múltiplas” (Mol, 2007, p. 3). Alegar que as realidades são múltiplas não é o mesmo que dizer que elas são plurais. As palavras múltiplas e plurais adquirem aqui significados distintos. Se, por um lado, afirmamos que as realidades são plurais, não fazemos mais do que dizer que existe apenas uma única realidade vista de formas diferentes por pessoas diferentes. Por outro lado, “falar de multiplicidade implica, para Mol, um outro conjunto de metáforas. É preciso falar em intervenção e fazer existir (enact). Estas duas metáforas permitem falar de uma realidade que é feita, e não observada de longe” (Moraes, 2010, p. 36).

Estamos agora em outro encontro e, diga-se de passagem, foi bem animado. Fazia muito calor; os participantes que voltavam do almoço fizeram um verdadeiro alvoroço na sala, falavam alto, bagunçavam as cadeiras... É sempre bom vê-los animados desse jeito, mas precisávamos iniciar o atendimento. Sentamos e tentamos entender o motivo daquela agitação. Bom, o assunto em pauta era a dificuldade de locomoção que experienciavam na cidade do Rio de Janeiro. Todos tinham histórias para contar, algumas trágicas, outras cômicas... Iam de um pé quebrado (fruto de uma queda no vão entre o metrô e a plataforma) até a inusitada história, encharcada de criatividade, potência e ousadia relatada por José.

Todos no grupo concordavam que, para uma pessoa com deficiência visual, embarcar em um ônibus é uma tarefa, no mínimo, complicada. Mencionaram que, muitas vezes, ao pedirem ajuda às outras pessoas, não recebiam nenhum tipo de auxílio. “Sabe o que acontece? As pessoas que estão no ponto de ônibus fingem que não escutam o nosso pedido de ajuda. O que elas não sabem é que, mesmo não vendo, eu percebo a presença delas. Isso me deixa muito chateado”, disse José, em um tom melancólico. A sala experimentou o silêncio por alguns segundos.

Ficou evidente que essa situação se repetia com muita frequência. José afirma que cansou de solicitar ajuda e de não obter nenhuma resposta: “Já estava cansado de depender dos outros até para pegar um ônibus, tinha que aprender a ser mais independente”. Foi aí, então, que ele decidiu que não seria mais dependente da ajuda das pessoas para se locomover na cidade, arregaçou as mangas e tratou de inventar...

Ele construiu pequenas placas de madeira, em formato quadrado, com os números dos ônibus que costumava utilizar. Nesse momento, uma agitação tomou conta do grupo: “Cadê? Como você fez isso? Podemos ver?”, diziam os outros participantes. E, claro, nós, da equipe de atendimento, também estávamos muito curiosos! Todos queriam entender o que ele fizera. Então, ele pega sua mochila desbotada, quem sabe pelo tempo de uso e pelas suas viagens por aí, e retira as placas de dentro dela.

As placas não eram tão grandes, talvez seu tamanho fosse de 15 cm2, sua espessura parecia ser de 5 mm, não mais do que isso; mas era suficiente e eficiente para o que ele precisava: ser visto pelos motoristas dos coletivos. Os números impressos nas placas ocupavam quase todo o espaço e foram desenhados com uma caneta preta. Havia várias delas em sua bolsa. As placas circularam por toda a sala, foram apalpadas e apreciadas por todos nós.

Sua invenção deu o que falar. Tal como um artista, ele respondeu inúmeras perguntas, deu dicas de como fazê-las e até se ofereceu para confeccioná-las, caso alguém as quisesse. Estávamos todos maravilhados com tamanha eficiência. “Agora, ao sair de casa, coloco as placas dentro da mochila e vou rumo ao ponto de ônibus, ou a qualquer lugar aonde eu queira ir”.

“Mas como no meio de tantas placas você sabe qual delas pegar?”, pergunta uma integrante do grupo. Ele responde: “Ah! É simples. Eu faço uma marcação diferente no verso de cada placa: fissuras ou desenhos em alto relevo produzidos com cola ou coisa assim. Desse jeito, eu nunca me confundo”.

Assim, antes de sair de casa, ele já escolhe a placa que tem gravada o número do ônibus que vai precisar para aquele dia. Chegando ao ponto de ônibus, retira a placa da bolsa e fica com ela à frente do seu corpo. “Os motoristas geralmente entendem o recado, param no ponto, e eu sigo viagem...”.

Acompanhamos e nos encantamos com José, com seu jeito cego de ser, que nada tem de deficiente. Seu desembaraço diante do incômodo põe em xeque a imagem que temos do cego vitimado tanto quanto uma normalidade não marcada, se usarmos os termos de Mol (2010). Articulado a um coletivo, repleto de elementos heterogêneos – humanos e não humanos –, criou um modo inusitado de se reinventar em seu processo de cegar. Engendrou uma realidade ímpar ao inventar uma versão eficiente de como existir sem ver. Assim, na realidade que ele fabrica para si, a normalidade e a eficiência atribuídas aos videntes estão encarnadas no seu modo articulado de dialogar com o mundo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Martins (2006) aponta que a dificuldade que circunda a deficiência visual está além do não ver. A questão refere-se a valores, representações, preconceitos e estereótipos que apreendemos e, muitas vezes, perpetuamos. Esses valores materializam-se nas práticas banais que retêm as pessoas cegas nos estigmas da improdutividade. Nesse sentido, vamos ao encontro das reflexões de Sousa (2013), ao destacar que o caminho trilhado pela deficiência visual é construído por práticas que acabam por explicar e determinar a realidade vivida pelas pessoas nessa condição visual. Nas palavras da autora:

O empoderamento das pessoas com deficiência vem se dando de forma lenta e gradual, na medida em que, social e culturalmente, lhes foi legada uma trajetória de estigmatização que por muito tempo as localizou nas bordas da cultura, ali onde por muito tempo eram vistas como não pessoas (Sousa, 2013, p. 24).

Decerto são necessárias novas ações, engendradas politicamente, para uma transformação cultural, histórica, social e subjetiva acerca da deficiência visual. Somente assim será possível vislumbrar uma transformação sociopolítica fundamental para uma sociedade verdadeiramente inclusiva, isto é, para um mundo onde possamos conviver com as diferenças que agregam e não que subtraem. À vista disso, reconhecer e celebrar a diferença não basta, “[...] o imperativo de igualdade de oportunidades se cumpre pela capacitação dos sujeitos marginalizados e pelo derrubar de múltiplas barreiras que desqualificam as suas diferenças” (Martins, 2010, p. 261).

Se por um lado, caminhamos vagarosamente em direção a um mundo comum; por outro, temos testemunhado o tecer de inúmeras versões da realidade. Tais versões contrariam a visão predominante da cegueira enquanto uma perda que precisa ser compensada, adequada ao paradigma visuocêntrico6 no qual vivemos, e denunciam “[...] que o outro que interrogamos é um expert, ele pode fazer existir outras coisas, no caso, outros modos de ordenar a deficiência visual” (Moraes, 2010, p. 29). Desse modo, compreendemos a criação de cada versão como um movimento de resistência, isto é, de existir dentro das suas possibilidades.

Posto isso, seguimos convictos de que a deficiência visual não repousa na ausência da visão. A noção de deficiência só pode ser entendida considerando-se a relação, ou seja, o encontro entre a pessoa cega e o meio onde ela vive (Viard, 2013). Não há estritamente algo no ambiente que interfira na competência ou na incompetência. Da mesma forma, não há nada intrínseco no indivíduo que o determine como eficiente ou incapaz. Desse modo, tal como defende o modelo social, a deficiência deixa de pertencer a um sujeito e distribui-se entre todos os actantes envolvidos em cena. Em outras palavras, a deficiência e a eficiência não dependem de um órgão sensorial, mas da forma como determinado coletivo se engendra.

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1 Termo em inglês, utilizado por Mol (2002), para referir-se ao caráter performativo das práticas.

2 No presente artigo, utilizaremos as palavras cego/cegueira, pois são expressões comumente utilizadas pelas pessoas com deficiência visual no nosso campo de atuação. Entretanto, consideramos de capital importância as discussões sobre os termos designados para se referir às pessoas nessa condição visual.

3 O termo vidente é utilizado para designar aqueles que veem.

4 Alguns estudiosos, ao problematizarem o termo deficiência, propõem o termo capacitismo, uma vez que as pessoas com deficiência são avaliadas segundo aquilo que são capazes de fazer. Ver Star (1996).

5 Identidade fictícia a fim de garantir o anonimato ao participante da pesquisa.

6 Segundo Kastrup, Carijó e Almeida (2009), o termo “visuocêntrico” refere-se ao fato de o mundo percebido pelo vidente converter-se em “O Mundo”. Esse mundo é considerado como modelo e uma norma, enquanto a representação produzida pelos cegos seria bastante incompleta e limitada.

Recebido: 11 de Março de 2018; Recebido: 15 de Setembro de 2019; Aceito: 11 de Fevereiro de 2020

Correspondência: Keyth Vianna. keythvianna@hotmail.com

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