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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. v.13 n.2 Goiânia dez. 2007

 

ARTIGOS

 

Fenomenologia: de volta ao mundo-da-vida1

 

Phenomenology: back to life-world

 

Fenomenología: de vuelta al mundo de la vida

 

 

Cinthia Dutra Struchiner

Núcleo Dialógico de Gestalt-Terapia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Há mais de setenta anos, a fenomenologia, inicialmente pela voz de Edmund Husserl, vem denunciando o crescente distanciamento entre o mundo da ciência e o mundo-da-vida. O mundo da ciência não apenas distanciou-se do mundo-da-vida: esqueceu-se dele. Um esquecimento trágico, pois o mundo expresso no modelo científico é um mundo em pedaços, é um empobrecimento da realidade rica do mundo vivido. A Fenomenologia, na contra-mão dessa tendência contemporânea, nos conclama a “voltar às coisas mesmas”, o que significa voltar ao “mundo-da-vida” (Lebenswelt), ao mundo da experiência. Para isso, é necessário resgatar tanto a inocência quanto o rigor do olhar fenomenológico: olhar não apenas com os olhos, mas com os ouvidos, as mãos, com todos os sentidos – e também com o coração. O presente artigo visa, a partir de uma perspectiva fenomenológica, a promover uma discussão sobre a necessidade e o significado de percorrer esse caminho de volta ao mundo-da-vida.

Palavras-chave: Fenomenologia, Mundo-da-vida, Atitude Fenomenológica.


ABSTRACT

For over seventy years, phenomenology, initially through Edmund Husserl’s voice, has been reporting the growing distance between the scientific world and the life-world. The world of science not only has distanced itself from the life-world: it has forgotten the life-world. A tragic forgetting, since the world expressed by the model of science is a world in pieces, it is an impoverishment of the rich reality of the lived world. Against this contemporary tendency, phenomenology calls upon us to “get back to the things themselves”, which means get back to the “life-world” (Lebenswelt) or to the world of experience. In order to achieve that, it is necessary to regard both the innocence and the rigor of the phenomenological eye, yet looking not only with the eyes, but also with the ears, hands and all senses – and also with the heart. The present article aims to raise a discussion about the need and the meaning of taking this way back to the life-world, from a phenomenological point of view.

Keywords: Phenomenology, Life-world, Phenomenological Attitude.


RESUMEN

Hace más de setenta años, que la fenomenología, viene denunciando inicialmente en la voz de Edmund Husserl, el creciente distanciamiento entre el mundo de la ciencia y el mundo de la vida. El mundo de la ciencia, no sólo se distanció del mundo de la vida: también lo olvidó. Un olvido trágico, pues, el mundo expreso en el modelo científico es un mundo en pedazos, es un empobrecimiento de la rica realidad del mundo vivido. La Fenomenología, en contra mano de esa tendencia contemporánea, nos llama a “volver a las cosas mismas”, eso significa volver al mundo de la vida (Lebenswelt), al mundo de la experiencia. Por eso, es necesario rescatar tanto la inocencia como el rigor de la mirada fenomenológica: mirar no apenas con los ojos, también con los oídos, con las manos, con todos los sentidos – y también con el corazón. El presente artículo pretende promover dentro de una perspectiva fenomenológica una discusión sobre la necesidad y el significado de recorrer el camino de vuelta al mundo de la vida.

Palabras clave: Fenomenologia, Mundo de la Vida, Actitud Fenomenológica.


 

 

Que pensará isto de aquilo?

Nada pensa nada.

Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?

Se ela a tiver, que a tenha...

Que me importa isso a mim?

Se eu pensasse nessas cousas,

Deixaria de ver as árvores e as plantas

E deixava de ver a Terra,

Para ver só os meus pensamentos...

Entristecia e ficava às escuras.

E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu.

Fernando Pessoa (Alberto Caeiro), “O Guardador de Rebanhos”.

 

A Fenomenologia é comumente vista no âmbito da Psicologia como um instrumento, uma ferramenta metodológica. Isso se deve ao fato de que a Gestalt-Terapia, a Daseinanálise e outras psicoterapias de base humanista-existencial confessam abertamente sua adesão ao método fenomenológico como forma de abordar os fenômenos humanos, de tal forma que há uma gama de psicólogos, adeptos destes enfoques, já bastante familiarizados com expressões como: redução (epoché), intencionalidade, descrição fenomenológica etc2. Mas a fenomenologia não é simplesmente um método, uma ferramenta. Ela é bem mais do que isso. Tratá-la como mero instrumento é permanecer no paradigma instrumentalista e tecnicista das ciências da natureza. Em outras palavras: é deixar de lado a própria atitude fenomenológica.

É bem verdade que se formos resgatar a origem da palavra “método”, veremos que significa muito mais do que mera ferramenta, como costumamos utilizá-la. Metá significa “através de”, “por meio de” e hódos significa “caminho”, “direção”, portanto o termo “método” designa um certo caminho que permite chegar a um fim. Isto posto, o objetivo deste artigo se define como uma tentativa de transcender o mero “falar sobre” o método fenomenológico enquanto ferramenta, buscando percorrer este “caminho fenomenológico” aludido pela etimologia da palavra “método”. Trata-se de privilegiar a atitude, a postura, a perspectiva ou, em suma: o olhar fenomenológico. Quando se fala de fenomenologia, fala-se exatamente disto: da forma como olhamos para o mundo. Acreditamos que compreender fenomenologia apenas explicitando seus conceitos básicos sem se dispor a mudar a forma de olhar o mundo, sem de fato praticá-la, seja tão difícil quanto conhecer o sabor de um bolo a partir das informações contidas na receita, a respeito dos seus ingredientes e da forma de misturá-los. Definir epoché, explicitar os passos da redução fenomenológica, os conceitos de intencionalidade, intuição e evidência, tudo isso pode ser apenas “falar sobre” o método. É obviamente muito importante entender todos esses conceitos, mas de pouco adianta saber tudo isso, e não compreender de fato o que significa viver fenomenologicamente. De nenhuma forma isso significa que o método não seja importante, mas ao contrário: isso significa que ele é importante demais para nos contentarmos em descrevê-lo em vez de praticá-lo.

 

O Mundo da Ciência e o Mundo-da-Vida

Então, dizíamos que método é uma direção, um certo caminho que permite chegar a um fim. Que fim é este? Aonde a fenomenologia pretende nos levar? Trata-se, na verdade, de um “retorno”, um caminho de volta, em que o “fim” nada mais é do que o começo: “de volta às coisas mesmas”, para citar a tão famosa expressão husserliana. A fenomenologia é, portanto, o caminho de volta às coisas mesmas, ao mundo da experiência vivida ou Lebenswelt (mundo-da-vida).

O que existe, o que é real, é aquilo que eu experiencio, aquilo que eu vivo. Todas as coisas são percebidas de um ponto de vista subjetivo, porém as necessidades cotidianas e o desenvolvimento das sociedades exigem que se convencionem parâmetros intersubjetivos que levem a um acordo, uma linguagem comum. O exemplo mais clássico é o sistema de medidas. Escolhendo uma “medida” e fixando-a a corpos empíricos constantes e disponíveis, chega-se a um grau relativo de objetivação das aparências (que são percebidas de forma subjetiva – e, portanto, muito possivelmente discrepante – por diferentes sujeitos). As exigências de rigor nessa padronização são cada vez maiores e, ao longo dos tempos, mudanças vão sendo feitas numa tentativa de aumentar a precisão e a objetivação da realidade. Inicialmente, as unidades de medida eram imprecisas e subjetivas: antes do sistema métrico, a medida mais usada, a polegada, era uma referência à medida do polegar de um homem (entre a dobra e a ponta do dedo). Para dar outro exemplo, podemos pensar na jarda, unidade de medida usada até hoje nos jogos de futebol americano, que era originalmente a medida do cinturão masculino, que recebia exatamente esse nome. Numa tentativa (bastante peculiar) de melhor padronização da medida, o rei Henrique I, da Inglaterra, no século XII, fixou a jarda como a distância entre seu nariz e o polegar de seu braço estendido.

Foi apenas em 1789, para resolver o problema da imprecisão, que o Governo Republicano Francês pediu à Academia de Ciências da França que criasse um sistema de medidas baseado numa “constante natural”. Assim, os cientistas franceses convencionaram que a unidade-padrão de comprimento seria a décima milionésima parte da distância entre o Pólo Norte e o Equador, passando por Paris. Uma equipe de astrônomos dedicou-se por sete anos à tarefa de definir essa medida, e finalmente o metro foi definido como um padrão constante e universal. Materialmente, ele foi representado como a distância entre dois pontos em uma barra de platina-irídio. Entretanto, essa medida materializada, datada de 1799, conhecida como o “metro do arquivo” não é mais utilizada como padrão internacional desde a nova definição do metro feita em 1983 pela 17ª Conferência Geral de Pesos e Medidas. Desde então, o metro é o comprimento do trajeto percorrido pela luz no vácuo, durante um intervalo de tempo de 1/299 792 458 (um duzentos e noventa e nove milhões setecentos e noventa e dois mil quatrocentos e cinqüenta e oito avos) de segundo3.

É assim que surge o mundo objetivo: a partir de vivências subjetivas, são definidos padrões objetivos cuja determinação deve valer para todas as pessoas, pelo menos durante um determinado período de tempo. O problema é que nós nos esquecemos disso. Esquecemos que o mundo objetivo, científico, é uma representação – um ajustamento criativo do qual a humanidade lançou mão com a finalidade de se promover um solo comum, um modo de compreensão intersubjetivo da realidade. Esquecemo-nos, enfim, de que o mundo objetivo é uma possibilidade, um modo de compreensão, e vivemos, agimos no mundo como se ele fosse a realidade primeira, anterior à nossa experiência mesma, à nossa vivência do mundo. Segundo Husserl, passou-se a tomar como ser verdadeiro o que é método (Ferraz, 2004).

A supervalorização do mundo científico (objetivo) leva ao que Husserl (1997) chamou de Crise das Ciências Européias, tema de sua última obra publicada em vida: Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie: Eine Einleitung in die phänomenologische Philosophie (1936). Trata-se não de uma crise das ciências enquanto tais (é bastante óbvio que as ciências continuam progredindo e produzindo conhecimento), mas trata-se basicamente de uma crise de sentido. A neutralidade do mundo da ciência deixa de fora questões humanas fundamentais (valores, cultura, ética...), de modo que entre o mundo da ciência e o mundo-da-vida vai se instaurando gradualmente um processo de distanciamento. O ponto de Husserl é que a ciência, assim constituída, tem muito pouco a nos oferecer no que se refere às questões mais fundamentais para a humanidade: seus valores, sua cultura e o sentido da existência individual e coletiva (Husserl, 1997).

O que Husserl critica não é a atividade científica propriamente dita ou os resultados desta atividade (isso seria mesmo um ato de insanidade). A ele interessa denunciar o desvio objetivista da razão: é preciso recuperar o sentido do humanismo e a dimensão ética da vida. Vale lembrar que Husserl desenvolve essas críticas no período pós-Primeira Guerra Mundial (na qual ele perdeu um filho em combate), quando o mundo se depara, pela primeira vez de forma tão ostensiva, com a utilização do saber tecnológico para a destruição e a morte, ficando bastante clara a separação entre o mundo científico e o mundo ético. Quando passamos a falar de vidas humanas em termos de números, de estatísticas, facilmente deixamos de usar as inovações tecnológicas para o bem da humanidade e passamos a nos preocupar em fabricar mais e mais armas de destruição em massa. Passamos a lidar com as pessoas como simples objetos – como números, como máquinas – ou como alvos.

Mas é preciso resgatar a noção de que o mundo científico é secundário – ele é produzido a partir de impressões e vivências subjetivas dos próprios cientistas. O que é primeiro é o mundo-da-vida (Lebenswelt), o mundo espaço-temporal que serve de palco, horizonte ou fundo para todas as nossas vivências – inclusive para a ciência, que é uma das vivências humanas. Portanto, é o mundo-da-vida que dá sentido à própria ciência. Acontece que o mundo-da-vida está oculto pela “contaminação” dos resultados científicos. Ou seja, mesmo se desconhecemos os incontáveis resultados de experimentos científicos, há quase sempre uma pré-concepção básica que media a nossa experiência das coisas: a idéia de que tudo é passível de explicação científica. E, mais do que isso: é quase como se as coisas só passassem a existir a partir do momento que se submetem e são aprovadas pelo crivo da ciência. É como se houvesse sempre uma verdade última sobre as coisas, que não me é dada na minha experiência e que apenas a ciência pode me oferecer. Assim, nos escondemos atrás do discurso frio e objetivo da ciência, e gradativamente desautorizamos nossas experiências vividas, e nos dessensibilizamos para a dor e o sofrimento dos nossos semelhantes. O esquecimento do mundo-da-vida é um processo que, para usar a linguagem gestáltica, assemelha-se a uma “fisiologia secundária” (Perls, Hefferline e Goodman, 1997): lidamos com a realidade empobrecida do mundo científico e assim nos distanciamos do ser, evitamos o contato, a tal ponto que já nem nos lembramos mais disso – assim como o neurótico desenvolve seus ajustamentos criativos como formas de evitação de contato, e já não se dá conta do que faz.

 

A Atitude Fenomenológica

Na contramão do cientificismo, a proposta da fenomenologia é reaprender a ver o mundo. Como? Desenvolvendo a atitude fenomenológica, o olhar fenomenológico. Segundo Heidegger, a análise etimológica da palavra fenomenologia revela o seu sentido mais íntimo: “deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo” (Heidegger, 2002, p. 65). Fenomenologia é, então, o estudo das coisas conforme elas se manifestam. Portanto, ver e observar atentamente o aspecto manifesto das coisas é o melhor modo de acessar a realidade das coisas mesmas. Esse é o primeiro mandamento da fenomenologia: desenvolver uma atitude atenta e observadora.

Diz-se, desde os gregos, que o filósofo é “todo olhos”. Mas “ver” as coisas, para a fenomenologia, tem um sentido amplo, que vale para todas as modalidades de percepção, para todos os modos de “dar-se conta de algo”. Assim, ser “todo olhos”, não quer dizer ser “só visão”, ou intelecto puro. Em fenomenologia, se “vê” também com os ouvidos e com todos os demais sentidos, com as mãos, com toda a carne, com o intelecto e, naturalmente, com o coração, através do que sentimos o valor de coisas, pessoas, situações, percebemos emoções, sentimentos alheios etc. (Monticelli, 2002, p. 15). Aliás, essa é uma das grandes contribuições da fenomenologia: ter trazido à luz a pluralidade dos modos de evidência.

“Ver com clareza”, como dizia Husserl, implica que não haja obscuridade – ou seja, é preciso que “o interlocutor sempre possa verificar por sua própria conta se também ‘vê’ aquilo que o fenomenólogo está afirmando como verdadeiro” (Monticelli, 2002, p. 15). É sempre um diálogo, onde é fundamental a possibilidade de verificação. É importante, também, que haja certa inocência descritiva, sem muito medo de dizer obviedades. E trabalhar de mãos vazias, sem instrumentos nem parâmetros: nada, nenhuma teoria, nenhuma técnica lógica ou científica que não possa ser traduzida em “ver aqui e agora” pode nos servir neste ato de verificação intuitiva. O fenômeno se mostra a partir de si mesmo.

Existe uma convicção básica que traduz o espírito da fenomenologia: nada aparece em vão; tudo o que aparece tem um fundamento real (embora nem tudo o que é real apareça). Também podemos chamar esta tese de princípio da fidelidade ou “tese da veracidade da percepção” (percepção num sentido amplo, englobando todos os seus modos: visual, auditivo, tátil etc.). A tese da veracidade da percepção não exclui a possibilidade do erro, ao contrário, pois é precisamente onde há a possibilidade do erro que pode existir a possibilidade de verificar e corrigir – e esta é a definição mesma de experiência, e a partir do quê pode se dar a aprendizagem (Monticelli, 2002, p. 16).

Vejamos um exemplo ilustrativo desse argumento. Não faz muito tempo, meu filho de dois anos estava na sua cadeirinha, no banco de trás do carro que eu dirigia, e o sol forte, incidindo diretamente sobre seu rosto, o incomodava. Evidentemente, o real (nesse caso, o sol) não se mostra para ele em toda a complexidade que se mostra para mim, mas, fenomenologicamente falando, o que aparece para ele tem também um fundamento real, embora ainda parcial (aliás, é sempre parcial!), mas que só a partir da própria experiência poderá ser ampliado e re-significado. Primeiro ele me pergunta: “Mãe, por que o sol ‘tᒠno meu olho?”. Tentando me esquivar de uma explicação mais complexa, respondi que era porque o carro estava sem o tapa-sol no vidro traseiro, que ele mesmo havia rasgado algumas semanas antes. Evidentemente insatisfeito com a minha resposta, ele insistiu:

– Mãe, tira o sol do céu?

– Não posso, filho.

– Então desliga ele?

Não podemos dizer que a percepção do meu filho não tem um fundamento real. Se não, vejamos. O sol é alguma coisa que aparece para ele como irradiando uma luz intensa, mas que neste momento é indesejada. Como, com base em suas experiências anteriores, ele sabe que o sol nem sempre está no céu, ele supõe que é possível que um adulto (que em geral consegue fazer coisas que ele não consegue) “o tire do céu” ou “o desligue”, numa analogia com outros objetos que, assim como o sol, irradiam luminosidade, mas nem sempre estão acesos (lâmpadas).

Segundo o princípio da veracidade da percepção, conforme acabamos de exemplificar, tudo o que se vê tem um fundamento real, e segundo o princípio da transcendência, outra tese fundamental da fenomenologia, nunca Ase vê tudo. Isso significa simplesmente que nada se mostra em todos os seus aspectos ao mesmo tempo. Embora eu saiba muito mais a respeito do sol do que o meu filho de dois anos, o que eu sei do sol é apenas aquilo que se mostra a mim na minha vivência subjetiva do sol (incluídas aí não só as minhas experiências “diretas”, mas também as informações que eu venha a adquirir enquanto descobertas científicas). Ou seja: o “objetivo” nunca é tão objetivo assim – tudo é um ponto de vista.

Bem, mas se tudo é real, mas nada se mostra por completo, como eu posso dizer que conheço alguma coisa? Como fica a questão do rigor na fenomenologia? O rigor fenomenológico é bastante diferente do rigor da objetividade científica. A ciência não estuda as coisas em sua totalidade, mas as fragmenta, num processo contínuo de análise, levando a uma necessária dissociação entre este pensamento científico-analítico e a experiência vivida das coisas, uma vez que a experiência não é fragmentada: percebemos totalidades. O rigor que se espera do fenomenólogo é outro: as coisas são tomadas em sua totalidade, e a totalidade revela sua extraordinária riqueza e complexidade de constituição, mas não tolera (sem desaparecer enquanto totalidade) uma ruptura entre o pensamento que a descreve e a evidência que a anuncia, ou seu modo de presença (fenômeno). Há, portanto, uma exigência de que o método seja sempre adequado à natureza do objeto em questão, e não o contrário. Um olhar matemático é adequado apenas para os objetos matemáticos. Para dar conta da experiência humana, é necessário um olhar que respeite as peculiaridades e a forma de dar-se deste fenômeno.

Para desenvolver este olhar, o olhar fenomenológico, é fundamental estar atento para alguns aspectos que Monticelli (2002) chamou de “virtudes da atitude fenomenológica”. Em primeiro lugar, é preciso despertar a capacidade de admirar-se e maravilhar-se com as coisas, com os outros e com a natureza, numa conseqüente abertura para encontrar-se com o mundo. Como na poesia de Fernando Pessoa (sob o pseudônimo de Alberto Caeiro em O Guardador de Rebanhos):

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo...

(Pessoa, 2006, p. 34)

Monticelli (2002) enfatiza ainda o papel da humildade na postura fenomenológica. Humildade significa, aqui, fé nas coisas mesmas, a silenciosa disponibilidade de deixar que elas falem primeiro, de deixar que o fenômeno se anuncie, antes de impor-lhe o nome e a teoria. É a capacidade de escuta verdadeira e a disponibilidade para se reconfigurar diante do “novo” que se apresenta a cada momento. Outro aspecto fundamental da atitude fenomenológica, segundo a mesma autora, é o respeito pela experiência, a confiança de que as coisas se mostram como são. Ainda nas palavras do poeta:

Creio no mundo como num malmequer,

Porque o vejo. Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Isso significa, como já mencionado, que não precisamos duvidar dos nossos sentidos, embora saibamos que as coisas não se mostram por completo: confiança no que se vê não exclui um sentimento de profundidade e riqueza daquilo que não se vê.

Por fim, para Monticelli (2002), a virtude que precisamos aprender a exercitar acima de tudo é a atenção: a fenomenologia é uma filosofia da atenção. É preciso que todos os nossos sentidos se mobilizem atentamente para intuirmos a totalidade da experiência vivida. Por exemplo: para que estas palavras façam sentido, para que o leitor possa “ver” a essência daquilo que está escrito nestas páginas, e que foi minha intenção transmitir, é preciso que isto tudo seja mais do que um conjunto de símbolos gráficos dispostos em tinta num papel. É preciso bem mais do que isso: é preciso atenção. É preciso que o leitor seja “todo olhos”, mas que também intelecto, audição, olfato, sensações corporais estejam polarizados naquilo que acontece aqui neste momento. Todo o resto é fundo.

Portanto, para “ver” fenomenologicamente, precisamos primeiramente operar esta mudança de atitude sobre nós mesmos. É a isto o que se chama de abandonar a atitude natural e adotar a atitude fenomenológica. Trata-se de uma modificação de comportamento que leva a uma modificação da experiência que temos das coisas e, conseqüentemente, a uma modificação do modo como vivemos (Monticelli, 2002). É neste sentido que, conforme temos afirmado desde o início deste texto, a fenomenologia vai muito além de sua simples aplicação como um recurso ou instrumento metodológico para a psicologia. Quando falamos de fenomenologia, estamos necessariamente falando de vida, de vivência. E a vivência de alguma coisa é sempre também uma experiência de si mesmo.

 

Conclusão

A visão cientificista do mundo desvitaliza e empobrece o contato, a experiência vivida e, portanto, o crescimento. No contexto da nossa sociedade atual, presenciamos uma busca insaciável por informação e conhecimento, e gradualmente corremos o risco de nos dedicarmos mais a pensar e a falar sobre a vida, do que a vivê-la. A fenomenologia busca reverter esta tendência, desenvolvendo uma espécie de elogio da experiência, nos lembrando de que

Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo, da qual ela é expressão segunda. A ciência não tem e jamais terá o mesmo sentido de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma determinação ou uma explicação dele (Merleau-Ponty, 1999, p. 3).

O que a fenomenologia propõe, quando clama por “voltar ao mundo-da-vida” não é que se vire as costas e abandone displicentemente as descobertas científicas, ou ainda que nos contentemos em viver num mundo inocente e irracional. A idéia é despir o mundo das vestimentas teórico-científicas, para que não tomemos a roupa pelo próprio corpo.

É importante lembrar ainda que o mundo-da-vida é anterior, é pré-científico, mas nem por isso é um mundo caótico ou anti-lógico. Ao contrário: os fenômenos se dão à nossa percepção numa rede de relações. Toda figura percebida está imersa num fundo co-visado, que nos remete a outros aspectos daquela vivência, formando uma teia de experiências que obedece a uma organização tácita (mesmo no caso da percepção ingênua das crianças). É sobre essa organização inerente à experiência sensível que depois se constrói a reflexão e o conhecimento científico. Trata-se, em última análise, de lembrar à ciência de onde ela vem e do que, afinal, ela está falando.

 

Referências Bibliográficas

Ferraz, M.S.A. (2004). Lições do Mundo-da-Vida: o último Husserl e a crítica ao objetivismo. Scientiae Studia, São Paulo, v. 2, n. 3, pp. 355-72.

Heidegger, M. (2002). Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes.        [ Links ]

Husserl, E. (1997). The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology. Evanston: Northwerstern University Press.

Merleau-Ponty, M. (1999). Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes.

Monticelli, R. (2002). El Futuro de la Fenomenología. Meditaciones sobre el conocimiento personal. Madrid: Ediciones Cátedra.

Perls, F.; Hefferline, R. & Goodman, p. (1997). Gestalt-terapia. São Paulo: Summus.

Pessoa, F. (2006). Poemas de Alberto Caeiro: Obra Poética II”. Porto Alegre: L&PM.

Zilles, U. (2001). Os Conceitos Husserlianos de ‘Lebenswelt’ e Teleologia. In: Souza, R.E.; Oliveira, N. Fenomenologia Hoje: existência, ser e sentido no alvorecer do século XXI. Porto Alegre: EDIPUCRS.

 

 

Endereço para correspondência
Cinthia Dutra Struchiner
E-mail: cinthiastruchiner@dialogico.com.br.

Recebido em 30.10.07
Aceito em 24.11.07

 

 

Cinthia Dutra Struchiner - Psicoterapeuta, Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e aluna do Curso de Capacitação e Treinamento em Gestalt-Terapia no Núcleo Dialógico de Gestalt-Terapia.

1Este trabalho foi apresentado no ciclo de palestras “Diálogos no Dialógico”, no Núcleo Dialógico de Gestalt-Terapia, na cidade do Rio de Janeiro, em 10 de agosto de 2007.
2Não será por acaso, portanto, que tais conceitos estarão ausentes do resto da discussão aqui proposta.
3Fontes: Instituto de Pesos e Medidas do Estado de São Paulo [www.ipem.sp.gov.br] e Revista Super Interessante, março/2003, “Medidas Extremas”, p. 43-46.

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