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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. v.15 n.2 Goiânia dez. 2009

 

TEXTOS CLÁSSICOS

 

La religion dans son essence et ses manifestations1. (Études phénoménologiques et psychopathologiques)

 

A religião em sua essência e suas manifestações. Fenomenologia da religião, 1933, Epílogo

 

 

Gerardus Van der Leeuw (1933)

 

 

§ 109 - Fenômeno e Fenomenologia

I. A fenomenologia busca o fenômeno. O que é o fenômeno? É o que se mostra. Isto comporta uma tripla afirmação: 1º Há qualquer coisa; 2º esta coisa se mostra; 3º é um fenômeno pelo fato mesmo que se mostra. Ora, o fato de se mostrar diz respeito tanto ao que se mostra, quanto àquele a quem isto se mostra. O fenômeno, por conseguinte, não é um simples objeto; ele não é nem mesmo o objeto, a realidade verdadeira, cuja essência seria somente recoberta pela aparência das coisas vistas. Isto ressalta uma certa metafísica. Por "fenômeno" não se entende mais qualquer coisa de puramente subjetivo, uma "vida" do sujeito2, que estuda uma parte distinta da psicologia - por mais que haja a possibilidade. Mas o fenômeno é, ao mesmo tempo, um objeto que se reporta ao sujeito e um sujeito que se refere ao objeto. Não se entende através disto que o sujeito sofreria uma usurpação por parte do objeto, ou vice-versa. O fenômeno não é produzido pelo sujeito; ainda menos corroborado ou provado por ele. Toda sua essência consiste em se mostrar, se mostrar a "alguém". Tão logo esse "alguém" comece a falar do que se mostra, faz-se a fenomenologia.

Consequentemente, em relação ao "alguém" a quem ele se mostra, o fenômeno comporta três características fenomenais superpostas: 1º ele é (relativamente) oculto ; 2º ele se revela progressivamente ; 3º ele é (relativamente) transparente. Essas etapas superpostas não são iguais, mas correlativas àquelas da vida: 1º experiência experimentada, vivida ; 2º compreensão, 3º testemunho. Os dois últimos tópicos, cientificamente tratados, constituem o trabalho da fenomenologia.

Por experiência vivida, entendemos uma vida presente que, após a sua significação, forma uma unidade (DILTHEY, VII, 194). Não é, pois, "vida" pura e simples; em princípio condicionada objetivamente (cf. o termo alemã: er -lebt)3 , a experiência vivida, em segundo lugar, está inseparavelmente associada a sua interpretação como tal. A "vida", ela mesma, não é tomada. "O que o jovem de Saïs desvela, é a figura, não é a vida" ( Ibidem, 195). A "experiência vivida primordial", sobre a qual se fundam as que experimentamos, sempre desapareceu irrevogavelmente no passado, no instante em que nossa atenção se volta para ela. Minha vida, que eu faço a experiência vivendo-a ( er -lebte), enquanto eu escrevo as duas ou três linhas da frase precedente, está já tão longe de mim quanto a "vida" das linhas escritas por mim há trinta ou quarenta anos nos bancos escolares; eu não a posso lembrar, ela está revolvida. O que quero dizer? A experiência vivida das linhas acima não está mais próxima de mim do que aquela do escriba egípcio que escreveu qualquer letra sobre o papiro há aproximadamente quatro mil anos. Que ele tenha sido "um outro" que eu, não importa, já que o jovem que fizera seus exercícios escolares trinta ou quarenta anos antes desse dia é, ele mesmo, um "outro" quando o considero, e ele me faz me objetivar a mim-mesmo na minha experiência vivida desse tempo. Nunca e em nenhum lugar, o dado é imediato; nós nos obrigamos a reconstruí-lo4 . Nós não temos nenhum acesso a "nós-mesmos", quer dizer, à nossa vida mais íntima, àquela que nos é própria no sentido integral do termo. Nossa "vida" não é a casa onde residimos; ela não é igualmente o corpo com o qual podemos ao menos fazer alguma coisa. Diante dela, somos desprovidos de socorro. O que dá a impressão da maior diferença e da maior distância, diferença entre nós-mesmos e o "outro", o vizinho, ao lado ou na China, ontem ou há quatro mil anos - é coisa imperceptível se se mede à imensa "aporia" onde nós nos encontramos desde que quisemos alcançar a vida como tal. Mesmo que a reduzíssemos à sua manifestação histórica, permaneceríamos desconcertados. A porta mantém-se fechada, a de ontem tanto quanto a de mais longínquas origens. Todo historiador sabe bem que ele começa provavelmente por qualquer parte, mas que em todo caso ele termina finalmente em si-mesmo, o que quer dizer que ele reconstrói.5 Mas então, o que significa tal reconstrução?

Podemos descrevê-la como o traçado de um plano na confusão das linhas caóticas do que nomeamos a realidade. Esse plano se chama estrutura. A estrutura é uma coesão que não é nem unicamente experimentada, nem unicamente abstraída pela via lógica ou causal, mas que é compreendida. É um todo orgânico, que não se deixa decompor mas se faz compreender pelas suas partes. É um tecido de elementos de detalhe, que não pode combinar adicionando ou deduzindo-as umas às outras, mas o conjunto só, o todo, outra vez, se deixa compreender como tal6 . Em outras palavras, a estrutura é experimentada, mas não imediatamente; ela é construída, mas ela não é abstrata, segundo a lógica causal. A estrutura, é a realidade significativamente organizada. Mas a significação pertence, em parte, à realidade mesma, em parte a "alguém" que procura compreendê-la. É sempre antes a compreensão do que a compreensibilidade. E isto, numa coesão indivisível, vivida. Não saberíamos jamais dizer com certeza o que é a minha compreensão, o que é compreensibilidade da coisa compreendida. Eis o que propriamente pensamos quando declaramos que a compreensão de uma relação, de uma pessoa, de um dado abre-se a nós.7 O domínio da significação é um terceiro domínio, situado para além da pura subjetividade como da pura objetividade (SPRANGER, 436). A porta de entrada para a realidade da experiência vivida primordial, realidade em si inacessível, é a significação, o sentido, o meu e o seu, tornados irrevogavelmente um no ato da compreensão.

A conexão do sentido, a estrutura, eu a faço experiência vivida compreendendo-a em princípio no instante. O sentido se abre a mim. Mas não é a verdade inteira. Já que a compreensão não está jamais limitada à experiência vivida instantânea. Ela se estende sobre múltiplas unidades experimentadas simultaneamente, provindo mesmo da compreensão dessas unidades experimentadas. Mas há entre essas outras experiências vividas, compreendidas ao mesmo tempo e participando à compreensão, têm com o que é instantaneamente compreendido uma semelhança, a qual se prova precisamente pela compreensão como comunhão de essência. A experiência vivida, compreendida, é incorporada na compreensão e, por ela, numa conexão objetiva maior. Toda experiência de detalhe é já uma conexão ; toda conexão é ainda experiência vivida. Eis o que queremos dizer quando, ao lado das estruturas, falamos de tipos.8

O que se mostra, se mostra em imagem. Isto comporta os planos de fundo e adjacentes; isto "se comporta", em relação a outras entidades que se mostram, seja por semelhança, seja por contraste, seja sob numerosas outras nuances possíveis: condição, posição periférica ou central, concorrência, distância, etc. Mas essas relações são sempre perceptíveis, compreensíveis.9 Não são jamais relações de fato, relações causais. Deve-se dizer que não excluem estas últimas, mas não exprimem nada. Só valem como conexões compreensíveis. É uma tal conexão que chamamos tipo ou tipo ideal,10 que se aplica a uma pessoa, a uma situação histórica, a uma religião, não importa.

O tipo não tem uma realidade. Ele não é, uma fotografia da realidade. Como a estrutura, ele está fora do tempo e não tem que se apresentar na realidade histórica (SPRANGER, 115; BINSWANGER, 296; VAN DER LEEUW, passim ).11 Mas ele possui uma vida, um sentido próprio, uma lei própria. - A "alma", como tal, não aparece jamais e em nenhum lugar. Não é senão uma sorte de alma determinada, que é crua; ela é única em sua determinação. Diria mesmo que as representações da alma que se fazem dois indivíduos, fazem-se no mesmo meio cultural e religioso, não são jamais totalmente idênticos. Mas há um tipo de alma, uma conexão compreensível entre diversas estruturas de almas. Esse tipo está fora do tempo. Ele não é real. Entretanto, ele é vivo e se mostra a nós. Que fazemos para vê-lo realmente?

2. Nós fazemos fenomenologia. A expressão é clara em si. Devemos falar do que se mostra a nós.12 O que estamos dizendo contém os seguintes elementos, que enumeraremos sucessivamente, ainda que a prática da palavra comporte justaposição e interpenetração mais do que sucessão.

A. Ao que se torna visível, nós damos um nome. Toda palavra é em princípio dom de um nome. "O simples uso do nome constitui uma forma de pensamento intermediário entre a percepção e a figuração13 ". Ao darmos nomes, nós separamos os fenômenos e os reunimos. Em outras palavras, nós classificamos. Nós inserimos, ou nós separamos. Chamamos um tal fenômeno de "sacrifício", tal outro de "purificação". Depois que Adão nomeou os animais, todos aqueles que falam vêm sempre fazendo o mesmo. Entretanto, nós nos arriscamos a nos deixar hipnotizar pelo nome, ou ao menos de nos contentarmos, de ali permanecer. É o risco que descrevera GOETHE: "transformar as visões em noções, as noções em palavras" e empregar essas palavras "como se se tratassem de objetos" ( Doctrine des couleurs, em BINSWANGER, 31). Nós procuramos evitar este perigo, pela

B. inserção do fenômeno na nossa vida própria.14 Esta inserção não é um ato arbitrário. Não podemos de outro modo. A "realidade" é sempre a minha realidade, a história minha história, "a projeção, o prolongamento para trás do homem atualmente vivo" ( Spranger, 430). Mas é-nos devido saber o que fazemos quando nos colocamos a falar do que se-nos mostra e do que nomeamos. Com efeito, devemos nos representar que tudo que se apresenta a nós, não se dá imediatamente, mas somente como signo de um sentido a interpretar, como qualquer coisa que queira que nós a interpretemos. Ora, esta interpretação é impossível se nós não tivermos vivido o que se mostra, e vivido não apenas involuntariamente e meio consciente, mas experimentado, vivido ( er-leben ) com assiduidade e método. Eu colocaria aqui ainda as belas palavras de USENER, que não sabia nada de fenomenologia, mas compreendia o que o termo implica: "Somente mergulhando com abandono nos traços espirituais de um tempo dissipado...15 , que podemos conseguir partilhar os sentimentos; então, cordas aparentadas podem pouco a pouco vibrar em nós e ressoar ao uníssono com ele, e descobrimos em nossa própria consciência, os fios que juntam o antigo ao novo".16 É o que DILTHEY chama "a experiência vivida de uma conexão de estrutura". Certamente esta experiência é mais uma arte do que uma ciência (BINSWANGER, 246; VAN DER LEEUW, 14 s.). É a arte primordial, essencialmente humana, do ator, a arte indispensável a todas as outras artes, mas também às ciências do espírito: inserir sua vida na experiência vivida de outrem (e igualmente na sua própria, a de ontem, já tornada estrangeira!). Desnecessário dizer que esta inserção se põe limites. Mas estes, talvez numa medida ainda mais forte, são também assinadas à nossa compreensão de nós-mesmos. A célebre expressão: homo sum, humani nil a me alienum puto, não abre nenhuma porta à compreensão mais profunda da experiência vivida mais distante, mas ela afirma, entretanto, e vitoriosamente, que o que é essencialmente humano permanece sempre como tal, e como tal, compreensível. A menos que aquele que compreende tenha adquirido muito de professor, e pouco de humano. "Quando o bárbaro conta ao professor que outrora ele não tinha nada além de uma grande serpente emplumada, o sábio não compreende nada dessas matérias se ele não se sente sobressaltado interiormente e não esteja tentado a desejar que o bárbaro tenha razão"17 . Somente a colocação em atos, durável, energicamente perseguida, desta inserção na vida de outrem, somente o estudo ininterrupto do papel habilita o fenomenólogo a interpretar o que se mostra. Como bem o diz JASPERS, "todo psicólogo realiza assim, em si-mesmo, que a vida de sua alma se aclare de mais a mais, que o imperceptível lhe advém consciente, e que ele não alcança jamais o derradeiro limite".18

C. O "derradeiro limite" não é apenas inacessível no sentido que o entende Jaspers. Ele designa também o que a existência tem de inacessível. A fenomenologia não é uma metafísica, e ela não estreita mais a realidade empírica. Ela observa a reserva, a époché, e sua compreensão do que se dá depende sempre de uma "colocação entre parênteses". A fenomenologia se ocupa somente dos fenômenos, ou seja, do que se mostra; para ela, não há nada por "detrás" do fenômeno. Esta reserva não é simplesmente um procedimento metódico, uma medida de prudência; é a qualidade própria a todo comportamento humano em face da realidade. SCHELER formulou remarcavelmente: "Ser homem, escreve, significa que nos opomos, de lançamos a este gênero de realidade um rigoroso 'não'. Buda sabia disso, quando dizia que era magnífico contemplar cada coisa, terrível de ser. Platão sabia disso, quando ele ligou a visão das idéias ao movimento da alma que se desloca do conteúdo sensível das coisas, e à entrada da alma nela mesma para descobrir as 'origens' das coisas. E E.Husserl não pensa diferente, quando associa o conhecimento das idéias a uma 'redução fenomenológica', ou seja, a uma 'radiação' ou 'inserção entre parênteses' do coeficiente de existência (fortuito) das coisas do mundo, pelo obtido de sua 'essentia'".19 Inútil sublinhar que aqui nenhuma sorte de "idealismo" é preferível qualquer um "realismo". Ao contrário, afirma-se apenas que o homem só pode ser positivo se ele se desloca das coisas tais como lhe são dadas, caóticas e disformes, e lhes dá uma forma e um sentido. A fenomenologia não é um método elaborado sutilmente, mas ela é a viva atividade autenticamente humana que consiste a não se perder nem nas coisas, nem no ego, a nem mesmo pairar sobre as coisas como um Deus ou passar sob elas como um animal, mas a fazer o que não é dado nem ao animal nem a Deus: se colocar com compreensão ao lado do que se mostra e olhá-lo.20

D. A visão do que se mostra implica uma elucidação, uma clarificação do que se vê: devemos reunir o que é solidário, separar o que não é da mesma natureza. Somente a elucidação deve proceder de conexões causais: A resulta de B, mas C possui sua gênese própria que o reúne a D. - Ela se conformará unicamente à maneira das conexões compreensíveis, um pouco como o paisagista reúne entre elas suas "partes" ou as separa uma da outra. A justaposição não deve se tornar uma dedução, mas uma solidariedade compreensível (BINSWANGER, 302).21 Em outras palavras, nós buscamos a conexão típica ideal. Depois, a seu turno, nos esforçamos a incorporá-la a um conjunto mais amplo, etc. (SPRANGER, Lebensformen, II).

E. Todos esses atos, tomados em conjunto e ao mesmo tempo, formam o ato de compreender propriamente dito. De sorte que, a realidade caótica, inerte, se torna uma comunicação trazida ao nosso conhecimento, uma revelação. O factum empírico, ontológico, metafísico, se torna um datum, a coisa, uma palavra viva, a firmeza inerte, a expressão (HEIDEGGER, 37; DILTHEY, VII, 71, 86). "As ciências do espírito repousam sobre a relação da experiência vivida, da expressão e da compreensão". (DILTHEY, VII, 131). Eis como nós a explicamos: se a experiência vivida, impalpável, não se deixa pois nem tomar nem dominar, ela nos mostra entretanto qualquer coisa, uma visada, e ela diz qualquer coisa, uma palavra. Esse logos, se trata de compreendê-lo. A ciência é uma hermenêutica (cf. também BINSWANGER, 244, 288).

Se, como no nosso caso, a ciência em questão é histórica, parece que é aqui o lugar onde o ceticismo ameaçador se ingere na nossa proposição e nos torna impossível toda compreensão de tempo e de zonas distantes. A isto, eis o que seria possível de responder: nós somos perfeitamente dispostos a reconhecer que não podemos nada saber, e que talvez possamos pouco compreender - mas a compreensão dos Egípcios da primeira dinastia não é em si muito mais difícil que aquela de meu mais próximo vizinho. Os monumentos da primeira dinastia são arduamente inteligíveis, mas como expressão, como dizer humano, eles nada têm de mais árduo que as cartas de um de meus colegas. Com respeito a isto, o historiador pode se instruir ao lado do psiquiatra. "Logo que nós nos mantemos igualmente maravilhados diante de um velho mito ou diante de um busto egípcio, e que nós os abordamos com a convicção que há ali qualquer coisa de compreensível sobre o terreno da experiência vivida, mas de infinitamente distante de nós, de inacessível, ao mesmo tempo em que consideramos com surpresa um processo psicopatológico ou um caráter anormal - a possibilidade, ao mesmo, nos é dada de dar uma nova visada compreensível, mais profunda, e talvez de resgatar uma exposição viva".22

F. Se a fenomenologia quiser realizar sua tarefa a bom termo, é-lhe extremamente necessária receber a perpétua retificação que ela encontrará nas investigações filosóficas e arqueológicas as mais conscienciosas. Deve-se estar sempre pronto a se confrontar com os documentos, com os fatos. Não que a elaboração objetiva desses materiais possa se dar sem interpretação, ou seja, sem fenomenologia. Toda exegese, toda tradução, toda leitura mesmo é uma hermenêutica. Mas esta hermenêutica puramente filológica tem objetivos menos vastos do que a que é puramente fenomenológica. Se trata de início do vocabulário, em seguida da coisa no sentido do que é concretamente pensado, dito de outro modo, traduzível. Naturalmente isto exige uma significação, mas menos profunda e menos estendida que a compreensão fenomenológica.23 Todavia, esta degenera em uma arte, nem mais nem menos, ou, em uma fantasia creuse, no momento em que ela se recusa ao controle da interpretação filológico-arqueológica (WACH, 117; VAN DER LEEUW, passim ).

G. O conjunto desses passos, em aparência complicados, não tem por objetivo outra coisa que a pura objetividade. A fenomenologia não emana coisas, ainda menos de seu condicionamento mútuo, e infinitamente menos ainda da "coisa em si". Ela deseja encontrar o acesso às coisas mesmas (HEIDEGGER, 34). Para este efeito, ela necessita de uma significação, porque ela não pode fazer ao seu arbítrio, a experiência viva das coisas. Mas esta significação é puramente objetiva; toda espécie de violência, empírica, lógica ou metafísica, está excluída. Como RANKE estimava de cada época, a fenomenologia pensa que cada devir é "imediato a Deus" e que "o valor não repousa sobre o que se emana, mas na sua existência mesma, no seu próprio si-mesmo".24 Ela se afasta do pensamento moderno, logo que este deseja nos ensinar a "tomar o mundo por um tecido sem forma que nós devemos formar, nos erigindo como os mestres do mundo".25 Ela só quer uma coisa: testemunhar do que é mostrado a ela.26 Ela somente pode vir indiretamente, através de uma segunda experiência vivida do que chega, através de uma reconstrução. Nesta via, deve-se afastar muitos obstáculos. Ver face a face lhe é refutado. Mas mesmo no espelho, o que se deixa olhar não é grande coisa. E do que se pôde ver, pode-se falar.

 

§ 110 - Religião

I. Podemos tentar compreender a religião sobre uma superfície plana, partindo de nós. Podemos ainda representar como que a essência da religião só se deixa compreender como descendo do alto, de Deus. Em outros termos, podemos considerar a religião como experiência vivida compreensível - da maneira indicada acima; ou fazê-la valer como revelação não-compreensível. A experiência vivida (na sua "reconstrução") é um fenômeno. A revelação não o é; mas a resposta que o homem dá à revelação, o que ele diz do que é revelado, isto também é um fenômeno, permitindo concluir indiretamente que há a revelação ( per viam negationis ).

Considerado a seguir os dois métodos, a religião implica que o homem não se limita a aceitar simplesmente a vida que lhe é dada. Na vida, ele procura pelo poder.27* Se ele não o encontra, ou se o encontra numa medida que lhe é insuficiente, ele procura fazer penetrar na vida o poder ao qual ele crê. Ele busca elevar a sua vida, engrandecê-la, alcançar um sentido mais profundo e mais amplo. Nós nos encontramos agora na linha horizontal: a religião é o alargamento da vida até seu limite extremo. O homem religioso deseja ter uma vida mais rica, mais profunda, mais ampla; ele se deseja o poder28 . Dito de outro modo, o homem busca na sua vida e através dela, uma superioridade, seja a que aspira se servir, seja a que deseja invocar.

O homem que não aceita simplesmente a vida, mas demanda dela alguma coisa - o poder - tenta encontrar, na vida, um sentido. Ele organiza a vida em vistas de um conjunto significativo: assim nasce a cultura.

 

 

Tradução: Adriano Holanda

Nota Biográfica
Gerardus Vander Leeuw
(1890-1950), historiador e filósofo da religião, nascido em The Hague, Holanda. Conhecido por ter desenvolvido uma abordagem fenomenológica da religião, a partir de sua obra mais conhecida: Phänomenologie der Religion, publicada em 1933.
1 Tradução do epílogo do livro " La Religion dans son essence et ses manifestations. Phénoménologie de la Religion ", versão francesa, publicada em 1948, Payot (Paris), p. 654-679 [Original em holandês de 1933]. Foi mantida a formatação original da versão francesa (N.T.).
2 Já a expressão "experiência vivida" é objetivamente orientada (fazemos a experiência de qualquer coisa) e designa uma "estrutura".
3 A partícula er marca uma aquisição (Nota do tradutor francês).
4 Cf. E. Spranger, Die Einheit der Psychologie. Sitzungber d. preuss. Akad d. Wiss., 24, 1926, 188, 191. - F. Krüger, Ber. Über den VII. Kongress für experim. Psych., 33.
5 Cf. em outro domínio do saber, P.Bekker, Musikgeschichte, 1926, 2.
6 É o que chamamos de círculo hermenêutico; G. Wobbermin foi o primeiro a nos chamar a atenção; cf. J.Wach, Religionswissenschaften, 49.
7 Cf. A.A.Grünbaum, Herrschen und Lieben, 1925, 17. - Spranger, 6 ss.
8 SPRANGER, Einheit der Psychologie, 177. Cf. o assinalamento de Wach: a estreita conexão entre a doutrina dos tipos e a teoria da hermenêutica não foi até aqui suficientemente sublinhada, Religionswissenschaften, 149.
9 "Relações compreensíveis", esta expressão é atribuída a Karl Jaspers.
10 Sobre a história dessa noção, cf. B. Pfister, Die Entwiklung zum Idealtypus, 1928.
11 Ver também P. Hoffman, Das religiöse Erlebnis, 1925, 8.
12 O que entendemos por "fenomenologia da religião", Hackmann chama "a ciência geral das religiões". Outros nomes foram apresentados (mas não se mantiveram): "psicologia transcendental", "eidologia", "doutrina (ciência) das formas ( Formenlehre ) das representações religiosas" (Usener).
13 W.Mc.Dougall, An outline of psychology, 1926, 284.
14 A expressão usual, Einfühlung, se apóia fortemente sobre a parte, legítima, da sensibilidade nesta inserção.
15 Trata-se do mesmo que chamamos de "presente".
16 H.Usener, Götternamen, 1896, VII.
17 G .K.Chesterton, The everlasting man, 116. - DILTHEY "possuía um curioso instinto do método fenomenológico tal qual o praticava HUSSERL. Mas este não podia compreender DILTHEY, porque ele interpretava a sua própria descoberta de um modo racional"; H.Plessner, Die Stufen des Organischen und der Mensch. Einleitung in die philosophische Anthropologie, 1928, 28 s. - Cf. Hofmann, Religiöses Erlebnis, 4 s.
18 K.Jaspers, Allgemeine Psychopathologie, 1923, 204.
19 Max Scheler, Die Stellung des Menschen in Kosmos, 1928, 63. - Cf. M.Heidegger, 38; - Ulrich Eyser, Phänomenologie, Das Werk Edmund Husserls, em Mass und Werk, Zurich, 1938; - E.Fink, Die phänomenologische Philosophie Husserls in der gegenwärtigen Kritik, em Kantstudien, 38, 1933.
20 Cf. Van der Leeuw, Der Mensch und die Religion. - Scheler, Nachlass, I, 267: a fenomenologia pressupõe um comércio dos mais intensos e dos mais diretos, uma quase-simbiose com o mundo; ela é o empirismo o mais radical, porque por todas as teses e fórmulas, aí compreendidas as da lógica pura, nós precisamos de uma prova no seu conteúdo vivido ( eine Deckung im Er-lebensgehalt ).
21 Cf. Jaspers, Psychopathologie, 18, 35.
22 Jaspers, Psychopathologie, 404. - Cf. Usener, Götternamen, 62.
23 Spranger dá um belo exemplo, comparando entre eles diversos "sentidos" de um texto bíblico, sentidos sempre mais amplos e mais profundos, Einheit der Psychologie, 180 ss.
24 L .von Ranke, Weltgeschichte, VIII, 1921, 177.
25 E.Brunner, Gott und Mensch, 1930, 40.
26 Cf. W.J. Aalders, Wetenschap als Getuigenis, 1930.
27 "Puissance" no francês, que poderia ser traduzido igualmente por "virtude", "capacidade" (N.T.)
28 É aí que se encontra a essencial unidade da religião e da cultura. Toda cultura é, em última análise, religiosa. E toda religião (sobre a linha horizontal) é uma cultura.

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