Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista da Abordagem Gestáltica
versão impressa ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. vol.16 no.2 Goiânia dez. 2010
TEXTOS CLÁSSICOS
A concepção de homem na filosofia existencial1
Paul Tillich (1939)
O ser humano2 é uma unidade e uma totalidade. Portanto é inadequado se desenvolver doutrinas diversas sobre o ser humano: uma científica e uma filosófica, uma secular e uma religiosa, uma psicológica e uma sociológica. O ser humano é uma unidade indivisível. Todos os métodos contribuem para uma e mesma imagem do ser humano. Existem, entretanto, muitos elementos e estratos3 na natureza humana; e cada um destes requer uma abordagem especial - um método especial. A unidade do ser humano não implica que só se possa investigá-lo de uma única forma. Uma vez que o ser humano compreende todos os elementos da realidade, cada estrato4 do ser, fazse necessário usar todos os métodos a fim de lidar com ele adequadamente. Ele é o microcosmo, cuja descrição não deve negligenciar nenhuma ferramenta utilizada na descrição do macrocosmo. Desta forma é errado tomar um método de abordagem do ser humano como o único válido ou subordinar todos os outros métodos a uma única abordagem, seja o método teológico dos tempos antigos, o método racionalista dos tempos modernos ou o método empírico da atualidade. Por outro lado, devemos evitar qualquer atomismo de métodos. Deve ser mostrado que em cada método encontram-se elementos que nos dirigem para outros métodos; que a abordagem empírica não pode ser utilizada sem os elementos descobertos pelo método racionalista; e que este último, por sua vez, pressupõe certos elementos fornecidos pela teologia. Os métodos de estudo da natureza humana não devem ser exclusivos, nem meramente atomísticos e cumulativos, mas dialéticos e mutuamente interdependentes.
Existem três principais grupos de métodos: primeiro, o método experimental-calculativo que se refere às coisas como completamente objetivas, sem nenhum elemento de subjetividade nas mesmas - o método das ciências matemáticas, aplicável na medida em que as relações quantitativas e calculáveis alcançam. Em segundo lugar está o método intuitivo-descritivo que se refere às coisas na medida em que elas têm subjetividade, individualidade, espontaneidade - o método da chamada história natural, assim como da história do ser humano. E em terceiro lugar está o método da "compreensão responsável" que se refere à subjetividade como tal, às normas, valores, criações e ao sentido da vida pessoal. No entendimento da vida pessoal e de seus conteúdos, a distância entre sujeito e objeto é superada. Existe conhecimento naquilo em que nós mesmos estamos envolvidos; existe conhecimento naquilo que nos preocupa5 infinitamente. O conhecimento neste caso necessariamente tem um caráter existencial ou de responsabilidade.
A natureza humana deve então ser abordada por estes três métodos, visto que o ser humano pertence aos três domínios correspondentes a eles. Ele pertence ao mundo físico e está sujeito às leis e estruturas deste mundo, e em cada momento da vida humana muito da atividade do ser humano é calculável, tal como as reações químicas, biológicas, psicológicas e sociológicas, bem como a sua existência como um corpo em movimento no espaço físico. Não é somente justificável, mas necessário que a fim de governar o corpo e a alma humanos o conhecimento destes elementos calculáveis deve ser tão extenso quanto for possível.
Mas há um limite para esse método. O ser humano é um sujeito vivo, uma Gestalt, uma totalidade de relações interdependentes na qual nenhuma parte pode ser isolada enquanto o processo vivo continua. Portanto, qualquer reação normal (não isolada artificialmente) é uma reação de totalidade e possui esse caráter criativo que admiramos nos seres vivos e que, diferentemente da dependência mecânica, aparece como "espontaneidade". No ser humano essa espontaneidade assume o caráter de liberdade. Dado que a liberdade é a característica que distingue o ser humano de todos os outros seres e que todas as características humanas decorrem da mesma, a doutrina da natureza humana tem o seu centro na doutrina da liberdade humana (a doutrina da natureza essencial do ser humano). Nesta última os resultados de todas as abordagens anteriores estão unidos e com ela surgem as perguntas quanto ao conteúdo da liberdade humana e da auto-realização da liberdade humana na individualidade e na comunidade. As respostas para estas questões conduzem para além do alcance do segundo método, o intuitivo-descritivo, até o método da compreensão responsável. Normas e valores não podem ser apreendidos através de uma simples descrição. Há uma decisão implícita, enraizada na liberdade e que ratifica a liberdade. Mas liberdade não significa arbitrariedade, e decisão não significa escolha sem qualquer critério. Existe uma relação essencial entre liberdade e razão. A liberdade desaba se se decide em oposição à razão; isto é, em oposição ao seu conteúdo essencial. A liberdade ou confirma a si mesma ou destrói a si mesma, o que é a possibilidade para o bem ou para o mal. Esse caráter ambíguo da liberdade humana compele a doutrina do ser humano para além da doutrina da liberdade humana.
Chamamos a doutrina do ser humano, do ponto de vista da ambigüidade da liberdade, de doutrina da servidão humana (a doutrina da natureza existencial do ser humano). Esta etapa não constitui um novo método. A doutrina da existência humana deve utilizar todos os métodos anteriormente referidos. A abordagem teológica do ser humano é, por assim dizer, transmetodológica. Ela está inserida nos métodos e está para além destes ao mesmo tempo. Ao lidar com a existência humana nós devemos mostrar a ambigüidade desta existência no domínio das reações calculáveis, assim como no domínio da vida e da espontaneidade; no domínio das normas e valores bem como na sua realização criativa na cultura; e na individualidade assim como na comunidade. Aqui precisamos da compreensão responsável assim como da descrição intuitiva e do cálculo experimental. Mas nós precisamos deles em um ponto de vista especial ou, mais precisamente, em um ponto de vista todo-abrangente6. A teologia pergunta: o que esses fatos, estruturas, valores, significam para a existência própria do ser humano? O que eles significam para o ser humano em sua posição entre a liberdade e a servidão, entre o finito e o infinito, entre a culpa e a salvação? A doutrina teológica do ser humano lida com as questões de movimento físico, de estímulo e resposta, do complexo e da repressão da sociologia das massas; ela lida com o sistema de normas éticas e estéticas e com a sua realização na história da cultura humana. Entretanto a doutrina teológica lida com tudo isso não em termos de sua relação com a estrutura essencial do ser, mas no que diz respeito à existência humana. A teologia não tem um método próprio, mas tem um ponto de vista para todos os métodos e em todos os domínios.
A doutrina teológica do ser humano possui, então, duas partes principais: a doutrina da liberdade humana e a doutrina da servidão humana; ou, em outras palavras, as doutrinas da natureza essencial e da natureza existencial do ser humano. A razão para a dualidade da doutrina do ser humano está fundada na possibilidade de que a liberdade humana possa negar ela mesma a sua própria natureza essencial. E esta possibilidade é real.
I
Voltamo-nos, então, para a doutrina da liberdade humana - que é a da natureza essencial do ser humano. Esta é a primeira tarefa da antropologia teológica; e o fato de ser frequentemente negligenciada é a razão por muitas confusões na teologia tradicional. Utilizar palavras como "ser humano"7, "liberdade", "necessidade", "escolha", etc., sem dar uma exata descrição fenomenológica de seus sentidos, de suas pressuposições e de suas implicações, é uma fonte perpétua de equívocos, questões erradas e controvérsias desencaminhadas. Uma distinção clara, por exemplo, da liberdade essencial e da servidão existencial do ser humano e uma descrição precisa da servidão como pressupondo a liberdade e da liberdade como rendendo a si mesma na servidão teria feito o debate acerca da predestinação muito mais proveitoso. Erasmus está tão correto no domínio essencial quanto Lutero estava no domínio existencial e a situação humana não pode ser corretamente descrita se qualquer um destes domínios é omitido.
Isso é válido na discussão a respeito do determinismo e do indeterminismo. A doutrina tradicional sobre a liberdade humana é limitada à doutrina do chamado "livre-arbítrio" e o ser humano é considerado como "uma coisa com qualidades". Sua característica especial é negada antes da discussão começar, e, consequentemente, nesta discussão o determinismo é sempre correto a partir de um ponto de vista lógico enquanto o indeterminismo representa uma experiência legítima expressa, entretanto, em termos absurdos. O erro de toda esta discussão é que a natureza do ser humano é considerada como garantida sem a liberdade e só depois, muito tarde na seqüência lógica, a questão da liberdade é levantada. Contudo, é impossível dar uma descrição da essência da natureza humana sem dar uma descrição da liberdade em todas as suas implicações, dentre as quais a "liberdade de escolha" é somente uma [destas] e de forma alguma uma fundamental. Finalmente, a teologia precisa de uma doutrina da liberdade humana a fim de tornar inteligível, em termos concretos, conceitos como "inocência", "tentação", "pecado", "culpa", etc. A falta de tal doutrina privou tais conceitos de seus significados atuais na experiência da vida diária e fez-lhes expressões de uma ideologia abstrata.
A liberdade humana é idêntica ao fato de que o ser humano tem um mundo que é ao mesmo tempo unitário e infinito, colocado frente a ele, do qual ele é separado e ao qual ele pertence ao mesmo tempo; ou considerado a partir de outro lado, que o ser humano é um "eu" definido, centrado em si mesmo e é o centro de seu mundo. Estando entre ele mesmo e seu mundo, o homem é livre em relação a ambos, embora também seja limitado por ambos. Esta situação com toda a sua ambiguidade é a situação da liberdade humana. Nenhum ser está livre [da condição] de que o mundo e o "eu" não estejam estritamente distintos. Um ser como um animal, por exemplo, tem um mundo limitado para ser chamado de "ambiente" e um "eu" indefinido para ser chamado de "auto-consciência". A relação entre o "eu" e o seu mundo só é possível se o mundo é uma unidade estrutural e o homem é capaz de compreender estas estruturas e, através delas, o seu mundo. E o homem é capaz de fazê-lo porque a unidade estrutural de seu "eu" e de seu mundo correspondem um ao outro, seja como essa correspondência for explicada (em termos idealistas, monistas ou realistas). Ter um mundo, portanto, significa ter as formas estruturais de uma unidade significativa, na qual os elementos infinitos estão relacionados uns aos outros e ao todo. Estas formas estruturais são universais, tais como categorias, conceitos, leis e princípios, que fazem toda a experiência isolada inteligível como "pertencente ao nosso mundo" ou como "sendo um possível conteúdo de nossa auto-consciência".
O ser humano é um "eu" definido, colocado frente a este mundo, embora pertença a ele. Para ser um "eu" ele deve ser um indivíduo, uma parte separada da realidade em última instância8, realizando-se no tempo e no espaço, incorporando em si mesmo certo "poder de ser", certo espaço corporal e certa duração e singularidade que o fazem ser diferente de qualquer outro indivíduo. O ser humano é mais individual do que qualquer outro ser. Ele é o indivíduo completo porque, por outro lado, ele é um "eu" definido. Isolado ele não pode ser considerado como um mero exemplar de uma espécie. Como um "eu" individual ele está para além do contraste de espécie e exemplar - ele é "espírito". O ser humano é espírito: isto significa que ele é a unidade dinâmica da razão e do poder, da universalidade mental e da individualidade vital. A liberdade humana é idêntica ao fato de que o ser humano é espírito. O ser humano não é somente mente, estaticamente relacionada com os universais, mas ele é espírito, criando de forma dinâmica um mundo para além do próprio mundo que ele encontra. E o ser humano não é somente individualidade vital, realizando-se dinamicamente em um processo natural, mas ele é espírito, criando em unidade com as formas eternas e padrões de ser. Ele tem a liberdade de criação, que é a primeira e fundamental característica da liberdade. A liberdade criativa do ser humano se manifesta em quatro níveis: O primeiro é a liberdade de transcender qualquer situação dada e de imaginar e realizar algo novo. O ser humano não está limitado à realidade e às necessidades de uma determinada situação como um animal qualquer está. Ele pode transcender qualquer situação dada infinitamente. Sua liberdade é uma liberdade técnica. Ele nunca deixou e nunca deixará de esboçar o mundo de amanhã. A liberdade criativa do ser humano é, em segundo lugar, a liberdade de transcender a si mesmo na direção da unidade completa da universalidade e individualidade. O ser humano é capaz de se tornar individualidade e comunidade. A sua liberdade é liberdade moral. A liberdade moral é real apenas na chamada relação "Eu-Tu". O ego é libertado de sua natural auto-realização pelo encontro com outro ego que exige ser respeitado incondicionalmente como tal e não ser tratado inadequadamente como uma mera coisa. Neste ponto, a gravidade da liberdade humana se manifesta. O outro "eu" representa a demanda inevitável vinda da unidade do nosso mundo e nós mesmos. Liberdade é a liberdade de receber demandas incondicionais. O terceiro nível de liberdade criativa do ser humano é a liberdade de criação com um propósito. Esta é a liberdade cultural. Ela tem elementos dos dois níveis anteriores. Ela transcende o mundo dado e transcende o "eu" dado. Mas ela os transcende a fim de ter o significado infinito do nosso mundo e nós mesmos representados em símbolos temporais. Na linguagem e na música, na poesia e na arte, na ciência e na filosofia, o ser humano expressa sua liberdade ao elevar o ser ao sentido. O ser humano é livre para ser na medida em que ele vive em significado. O espírito cria símbolos significativos - coisas que expressam mais do que elas são em si mesmas. A liberdade de criação cultural pressupõe um ser que transcende o seu próprio ser - isso pressupõe o espírito. Isso leva a um quarto nível de liberdade que, em uma frase paradoxal, poderia ser chamado de liberdade-de-sua-própria-liberdade9 ou a liberdade de jogar com seu mundo e consigo mesmo. Esta é a contrapartida da gravidade da liberdade moral. No entanto, pertence à estrutura da liberdade de criação humana, uma vez que impede o ser humano de ser escravizado por sua própria liberdade. O significado do romantismo estético reside no fato de que ele salienta este elemento em oposição ao moralismo puritano. A liberdade que não é capaz de jogar é lei e não criação.
Em todos estes graus de liberdade criativa a liberdade de escolha está pressuposta. A criatividade requer diferentes possibilidades; o espírito demanda a capacidade de decidir. A liberdade de escolha é o fato a partir do qual os debates tradicionais sobre a liberdade e necessidade começaram. Em vez de se envolver nesta controvérsia que é por princípio insolúvel, podemos descrever a liberdade de escolha em termos tais como: o ser humano assim como todos os seres recebe estímulos e produz respostas; entretanto, a linha entre os estímulos e as respostas passa através da totalidade do ser humano, de seu "eu", e, conseqüentemente, de seu mundo. O ser humano age livremente, pois ele age como um "eu" definido e não meramente como uma seção do mundo do qual ele pertence. O problema da liberdade de escolha é respondido pela descrição do ser humano como possuindo um mundo e sendo um "eu".
A liberdade humana é o risco humano. A capacidade de transcender qualquer situação implica a possibilidade de perder a si mesmo no infinito de transcender a si mesmo. A liberdade técnica pode se tornar servidão técnica se os meios tornam-se um fim em si mesmos. A liberdade moral pode tornar-se servidão moral se o "eu" individual, a fim de preservar- se, resiste à demanda advinda de outro "eu" e perde tanto individualidade quanto comunidade. A liberdade cultural pode se tornar servidão cultural se encontra expressão na vontade de poder ou vontade de atrair a totalidade do seu mundo para as limitações do próprio "eu" individual. A liberdade de jogar [com o mundo] pode se tornar a rendição de sua própria liberdade, e assim perder a si mesmo e seu mundo. Tudo isso pode acontecer porque a liberdade implica a liberdade de escolha. Podemos decidir contra o nosso ser essencial, portanto, pervertendo a nossa liberdade em servidão. Isso acontece porque a liberdade pode se manter apenas na medida em que ela escolhe o conteúdo, as normas e os valores a partir dos quais a nossa natureza essencial, incluindo a nossa liberdade, se expressa. A liberdade pode agir contra a liberdade, entregando- se à servidão. E a liberdade é sempre tentada a fazê-lo. As possibilidades infinitas causam Angst - medo, horror, angústia10: a Angst por não efetivar todas as possibilidades e a Angst de arremessar-se da possibilidade à realidade. O ser humano tem medo de não usar essa liberdade e ainda tem medo de usá-la. A possibilidade humana é a tentação humana. Neste ponto a tentação é essencialmente de caráter espiritual. A tentação sensual somente é possível após o vínculo entre a mente e a vida ter sido rompido - depois de o espírito ter sido dividido. E a tentação, sendo espiritual, é uma tentação real. É uma questão de livre escolha. A inocência não pode ser perdida por um processo natural, mas somente por uma decisão espiritual. Se tal decisão for tomada, a existência humana, conforme determinado por esta decisão, contradiz sua natureza essencial. A liberdade do ser humano é entregue à servidão; mas a servidão não é necessidade. É servidão somente porque é a servidão de quem é livre em sua natureza essencial. O ser humano não deixa de ser humano. É ainda a existência humana que devemos examinar.
II
Consideremos, portanto, a doutrina da servidão humana ou da natureza existencial humana.
Quando a liberdade entrega a si própria ela se torna servidão. Mas uma vez que mesmo no ato de sua rendição a liberdade permanece ativa, a liberdade e a servidão não são simplesmente contradições. Isto se manifesta na descrição exata da natureza existencial do homem. A criatividade, que é a principal característica do ser humano em sua liberdade, não desaparece na sua servidão, mas se transforma - ela torna-se trágica e pecaminosa. A doutrina da natureza existencial do ser humano deve, portanto, lidar primeiro com a criatividade humana sob a lei da servidão trágica e, em seguida, com a criatividade humana sob a lei da servidão pecaminosa. As duas fases são interdependentes e em ambos um elemento de liberdade está lutando com um elemento de servidão. Mas a servidão é predominante.
A liberdade criativa humana é a participação do ser humano na criatividade fundamental da qual ele e seu mundo dependem. Essa criatividade é fundamental porque tudo depende dela e é incondicional porque ela mesma não depende de nada. Criar é alcançar algo novo. Mas o novo que é criado pelo ser humano é dependente daquilo que lhe é dado - em si mesmo assim como em seu mundo. Nem o ser humano nem o seu mundo existem por si mesmos. Ambos são dependentes da criação original em relação aos quais ele e seu mundo são "criaturas". Por outro lado, ele, a criatura, está criando; através de sua liberdade criativa ele participa do processo criativo. O ser humano é uma criatura criativa. Ele tem o infinito finito. Ele tem o Logos eterno nas limitações temporais e individuais. Na medida em que o ser humano é essencialmente livre, sua finitude, sua temporalidade e sua condição de criatura estão unidos com sua infinitude, sua eternidade e sua criatividade. Na medida em que o ser humano existencialmente está em servidão, a unidade está perdida e o ser humano está sujeito à lei da tragédia. Podemos imaginar uma finitude que é continuamente superada e conservada pela nossa infinitude. Temos experiências de uma transitoriedade que não desafia a nossa eternidade, mas é um elemento da mesma. Conhecemos um sentimento de que o fato mesmo de sermos capazes de enfrentar a nossa insignificância inclui a certeza de que estamos para além dela. Não é a nossa finitude a nossa tragédia, mas a nossa finitude, na medida em que tenta elevar-se até o infinito. Essa tentativa é a possibilidade implicada na liberdade e a conseqüência desta tentativa é a servidão. A fim de se tornar um ser livre ou definido, o ser humano deve ser um indivíduo. Sua finitude é expressa em sua individualidade, que, ao mesmo tempo, é o pressuposto de sua infinitude, de ser capaz de se tornar individualidade e comunidade, criador técnico e cultural. O indivíduo pretendendo fazer de si mesmo universal em vez de submeter-se ao universal é o indivíduo trágico. A servidão a que ele é submetido é a lei da tragédia. A criatividade humana quando acompanhada da determinação de que o indivíduo é o fundamento de si mesmo (ou em termos clássicos "de ser como Deus") é a servidão trágica do ser humano. É servidão em um duplo ponto de vista: ela dirige o ser humano infinitamente de uma finitude para outra em [um] desejo inesgotável, e nesta direção dinâmica destrói a própria estrutura do indivíduo em um conflito trágico com outros indivíduos. É um crime inevitável e um castigo inevitável ao mesmo tempo. É importante perceber que esta descrição da existência humana é semelhante ao que é encontrado na Bíblia (Gênesis, 3) e nas primeiras palavras conhecidas da filosofia grega no fragmento de Anaximandro.
A servidão trágica do homem encontra muitas expressões em sua natureza existencial. A Angst que descrevemos em relação com a tentação como Angst de inocência, se torna Angst trágica na existência humana contraditória. A Angst é a situação do indivíduo isolado frente ao abismo da insignificância e da ameaça de aniquilação ao seu redor. O ser humano tenta fugir desta visão horrível através da coragem criativa, através da civilização cultural ou técnica, através da moralidade ou através do divertimento. O ser humano está sempre fugindo da sua própria Angst. Ao fazer isso, ele é conduzido a partir de uma ação corajosa para outra, transformando Angst em medo e superando o medo através da coragem. Não existe nenhum ser mais corajoso do que o ser humano, pois mesmo em sua condição de servidão ele não perdeu a sua liberdade. No entanto, nenhuma coragem pode libertálo de sua Angst - a experiência horrível de enfrentar sua própria finitude sem ser capaz de conquistá-la através de sua infinitude. Os animais são limitados, mas eles não são nem finitos nem infinitos. Consequentemente, eles não têm nem a coragem humana nem a Angst.
A Angst, que é a expressão da finitude humana separada da infinitude humana, manifesta-se de muitas formas. A teoria da existência humana precisaria lidar com todas essas formas. Algumas delas podem ser mencionadas. Existe o sentimento de solidão, que é tão forte no meio de multidões ou amigos ou membros da família como ela é na solidão física completa. Pois é o sentimento do "eu" individual que está separado infinitamente da unidade essencial da qual ele pertence. A tragédia da solidão é que o ser humano tenta superá-la através da fuga em direção a uma outra pessoa sem ser capaz de superar a clivagem, da fuga em direção à multidão a fim de esquecer sua solidão como um entre muitos ou pela adesão em um grupo a fim de perder a sua existência como um indivíduo num .nós-eu"11 do grupo. Entretanto, visto que ele não pode perder seu "eu" individual e desde que ele está separado da unidade essencial a que pertence, ele não pode perder a sua solidão. A solidão da vida torna-se manifesta na solidão da morte.
O mesmo pode ser dito com relação à melancolia de ter que morrer. O fato de que os seres humanos chamam a si mesmos de mortais mostra que há algo neles que se rebela contra a mortalidade e tenta tornar a vida infinita através de uma memória gloriosa, perpetuando a sua vida em seus descendentes [e] por meio de argumentos racionais acerca da imortalidade da alma. Nestas formas, a coragem humana tenta superar a tragédia de se ter que morrer. Contudo, ela não tem esse poder, e quanto maior o poder do ser humano e a sua coragem, mais profunda a tragédia, como os grandes autores de tragédias têm demonstrado.
Outra evidência da servidão humana é o fato da inquietude do ser humano, a que se refere Jesus no Sermão da Montanha. O indivíduo separado é ameaçado pelas vicissitudes que vêm do mundo do qual ele faz parte. Na liberdade criativa ele luta pela segurança ou no risco heróico ele cria segurança de sua insegurança. Uma grande parte das criações da civilização humana pode ser compreendida em termos de "busca de segurança", e uma grande parte do heroísmo criativo - e destrutivo - pode ser compreendido em termos de fuga de uma segurança, que é sentida como superficial e, por fim, traiçoeira. Esta lei trágica de insegurança chegou ao primeiro plano da consciência em nosso tempo por causa da insegurança política e econômica, por um lado; e a falta de sentido na vida, por outro.
A servidão trágica existe em mútua dependência com a servidão do pecado. O pecado é o ato no qual o "eu" livre afasta-se de seu ser essencial e se rende à servidão. A servidão trágica que está implicada em nossa finitude (na medida em que é separada de nosso infinitude) é dependente do pecado, pois é no ato do pecado que esta separação ocorre, em que o "eu" finito reivindica para si próprio a infinitude. Pecado, portanto, é a arrogância do finito, tornado possível pelo fato do homem ter um mundo colocado frente a ele. O pecado é possível através do bem essencial que torna o ser humano um humano. Assim, o pecado não pode extinguir a bondade humana essencial. O pecado é dependente dela. O ser humano nunca pode perder a sua infinitude e espiritualidade. Ele nunca pode se tornar "pedra e tronco"; e por isso ele nunca pode deixar de ser a "imagem de Deus". Negar isto a fim de enfatizar a gravidade do pecado significa destruir o próprio pressuposto do pecado.
O ser humano mantém a sua bondade essencial; mas a situação é que essa bondade condena ao invés de determinar a sua existência. Esta é uma situação que Paulo e Lutero chamaram lei. A lei - por exemplo, os Dez Mandamentos - não é a norma de algum tirano transcendental. É a nossa própria bondade fundamental colocada contra nós como uma ameaça, como um critério e como uma condenação. Isso consequentemente desperta a revolta do "eu" individual contra a lei, embora, ao mesmo tempo, ele deva reconhecer que a lei é boa, pois é a sua própria bondade colocada contra si mesmo. A lei - não como a norma essencial da realidade, mas como ordem acima e contra a realidade - expressa mais do que qualquer outra coisa a clivagem [existente] no interior da existência individual e social do ser humano.
A lei gera o desespero. A descrição completa da servidão do pecado poderia ser feita em termos de desespero (como fez Kierkegaard). Desespero - uma palavra que é menos expressiva do que a palavra alemã Verzweiflung (dividida em duas partes) - é a liberdade consciente de sua servidão ou finitude, que é separada de sua infinitude. Em termos religiosos o homem é separado de Deus. Desespero é o conflito entre a vontade de manter a si mesmo e de perder a si mesmo; [a vontade] de manter a si mesmo obtendo o mundo completo, reconhecendo assim através do seu desejo infinito a unidade e a totalidade a que pertence, e [a vontade] de perder a si mesmo retornando à servidão natural de vida abaixo do nível de liberdade, reconhecendo assim que a liberdade é o pressuposto inescapável de desespero. O conflito entre a coragem e o desespero se manifesta de muitas formas. Uma descrição completa [deste conflito] teria de abranger áreas vastas do comportamento humano psicológico e sociológico. Teria que lidar com a consciência, com o subconsciente e o consciente, com a vontade de morte e a insignificação, e com a dúvida e a culpa. Mas tudo isso é uma expressão de servidão humana - da distorção pessoal e social do espírito humano.
A servidão do pecado é universal. Somente porque este é o caso é que [se trata] de servidão. Caso contrário, cada indivíduo teria a chance de escapar da servidão em todas as suas formas. No entanto isso é impossível. Ninguém pode escapar, porque a situação existencial é uma situação universal. A idéia do pecado original não tem outro significado do que isso: abraçar a universalidade da servidão, que é ao mesmo tempo um evento individual e cósmico.
A própria existência está sob a lei de culpa. Assim, o pecado tem uma inevitabilidade trágica. Os dois lados de nossa descrição estão unidos: o pecado está enraizado na tragédia e a tragédia está enraizada no pecado. A visão não trágica do pecado, como encontramos no moralismo e no Pelagianismo, perde a conexão entre a finitude humana e a culpa humana. O pecado torna a nossa finitude trágica e a finitude faz com que o nosso pecado seja trágico. Desta forma, a liberdade humana é a servidão humana.
III
Assim como a doutrina da liberdade humana nos leva à doutrina de servidão humana, do mesmo modo a doutrina da servidão humana nos obriga a considerar a doutrina da libertação humana. E como a transição da servidão humana não segue a necessidade, mas tem o caráter de um salto, então a transição da escravidão para a libertação não pode ser derivada da servidão. É algo novo, vindo além da existência humana. A descrição disto implicaria todo o sistema de teologia e, portanto, está além do escopo deste artigo.
A imagem completa da natureza humana pode ser desenvolvida somente se for abordada a partir dos três pontos de vista a que nos referimos. Não apenas a natureza essencial do ser humano, mas também a sua natureza existencial e escatológica devem ser aludidas. A doutrina do ser humano, que fala apenas da sua natureza existencial leva necessariamente ao pessimismo destrutivo sem critérios e sem esperança. A doutrina do ser humano que ignora a sua natureza existencial leva a um otimismo superficial sem revelação e sem graça. Somente a tríplice doutrina da natureza humana que nós sugerimos aqui pode ser a fundação de uma teologia cristã.
Union Theological Seminary
Tradução: Gustavo Vieira
Revisão Técnica: Adriano Holanda
Nota Biográfica
Paul Tillich (1886-1965) foi um dos mais importantes teólogos do século XX, contribuindo para o diálogo da teologia com diferentes áreas das ciências humanas. Expulso da carreira docente na Alemanha por se opor aos ideais do regime nazista, Tillich exilou-se nos Estados Unidos em 1933, lecionando no Union Theological Seminary de New York, na Universidade de Colúmbia e na Universidade de Harvard. Em New York foi um dos organizadores do New York Psychological Group, estabelecendo um profícuo diálogo com prestigiados psicólogos da época, como Carl Rogers e Erich Fromm. Possui diversas obras traduzidas para o português, como A Coragem de Ser (Paz e Terra), Teologia Sistemática (Sinodal), Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX (Aste), dentre outros.
1 Título original: "The Conception of Man in Existential Philosophy". Publicado no The Journal of Religion, Chicago, v. 19, n. 3, pp. 201- 215. Disponível em: http://www.jstor.org/pss/1198504. Este artigo foi publicado poucos anos após a chegada de Paul Tillich nos Estados Unidos. Escrito antes das suas obras de maior repercussão, este artigo antecipa temas que seriam desenvolvidos nos anos seguintes, como a angústia e a coragem (em 1951, na obra A Coragem de Ser), e a diferença entre a condição essencial e existencial do ser humano (em 1957, no volume II da Teologia Sistemática) [Nota do Tradutor].
2 Seguindo uma tendência inclusivista de tradução, a partir de agora utilizaremos a expressão "ser humano" como tradução para o termo inglês "man" (NT).
3 O autor utiliza a palavra latina "strata" (NT).
4 No original stratum (NT).
5 Tradução para o termo inglês concern. Em várias de suas obras, Tillich utiliza a expressão "ultimate concern" - traduzida para o português como "preocupação última" - para se referir àquilo que preocupa o sujeito de forma incondicional e que, tendo o não um conteúdo religioso, pode ser considerado como o objeto de sua fé. (NT).
6 Tradução para a expressão inglesa "all-embracing point of view" (NT).
7 No original, "man" (NT).
8 Tradução para o termo inglês "ultimately" (NT).
9 Tradução para a expressão inglesa "freedom-from-one's-ownfreedom" (NT).
10 Aqui o autor utiliza o termo alemão Angst e apresenta três termos que compõe o seu campo semântico, dentre eles anxiety, que optamos por traduzir por "angústia". (NT).
11 No original, "we-self" of the group (NT).