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Revista da Abordagem Gestáltica
versão impressa ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. vol.24 no.2 Goiânia maio/go. 2018
https://doi.org/10.18065/RAG.2018v24n2.3
ARTIGOS: RELATOS DE PESQUISA
Elaborando tradições na contemporaneidade: Ausier e a preservação do chorinho
Elaborating traditions in contemporaneity: Ausier and the preservation of chorinho
Elaborando tradiciones en la contemporaneidad: Ausier y la preservación del chorinho
Roberta Vasconcelos LeiteI; Miguel MahfoudII
IGraduada, Mestre e Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, com estágio doutoral na Università di Bologna (Italia). Atualmente é Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Endereço Institucional: Departamento de Ciências Aplicadas à Educação - Gabinete 1622. Faculdade de Educação - Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha - Cep.: 31.270-901. Belo Horizonte - Minas Gerais. E-mail: vasconcelosroberta@yahoo.com.br
IIGraduação em Psicologia (1980), Mestrado em Psicologia (1990) e Doutorado em Psicologia Social (1996), todos pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Pós-doutorado na Pontifícia Universidade Lateranense de Roma (2004). Professor Associado pela Universidade Federal de Minas Gerais de 1996 a 2016. Atualmente é membro do GT Psicologia e Fenomenologia da ANPEPP, editor da revista Memorandum: memória e história em psicologia, membro-fundador do Laboratório de Análise de Processos em Subjetividade (LAPS UFMG) e membro do Conselho Consultivo da Sociedade de Estudos e Pesquisa Qualitativos (SE&PQ). E-mail: mmahfoud@fafich.ufmg.br
RESUMO
Objetivamos investigar o modo como a tradição é elaborada por um guardião de memórias contemporâneo: Ausier Vinícius dos Santos, fundador do bar musical Pedacinhos do Céu (Belo Horizonte - MG). Realizamos entrevista semiestruturada, analisada fenomenologicamente. Respondendo ao chamado a constituir uma obra de preservação, o sujeito elabora o passado e a alteridade como presenças a partir das quais se dá conta do próprio ser. Aceitar sacrifícios para dedicar-se ao que vem do outro significa para ele ser fiel à própria experiência, abrindo caminho para a atualização da tradição num processo pessoal de buscar contribuir para a constituição do mundo. Concluímos que para dar continuidade de modo próprio ao que lhe foi transmitido, Ausier reafirma a centralidade dos valores que convergem num ideal que a tradição suscita em si. Dando-se conta de que seu ideal lhe foi dado e o supera, vive sua obra como gratidão e doação de si a algo que lhe dá um lugar no mundo e realiza o próprio ser.
Palavras-chave: Tradição; Guardiões de memórias; Fenomenologia
ABSTRACT
We aim to investigate how the tradition is elaborated by a contemporary guardian of memories: Ausier dos Santos, founder of the musical bar Pedacinhos do Céu (Belo Horizonte - MG). We conducted a semi-structured interview, analyzed phenomenologically. Responding to the call to constitute a work of preservation, he elaborates the past and otherness as presences from what he realizes his own being. Accepting sacrifices to dedicate oneself to what comes from another means that he is faithful to his own experience, opening the way for the update of the tradition in a personal process of seeking to contribute to the constitution of the world. We conclude that to give continuity in his own way what has been transmitted to him, Ausier reaffirms the centrality of the values that converge in an ideal that tradition provokes in itself. Realizing that his ideal was given to him and overcomes himself, he lives his work as gratitude and given himself to something that gives a place in the world and realizes his own self.
Keywords: Tradition; Guardians of memories; Phenomenology
RESUMEN
Objetivamos investigar cómo la tradición es elaborada por un guardián de memorias contemporáneo: Ausier dos Santos, fundador del bar musical Pedacinhos do Céu (Belo Horizonte - MG). Realizamos una entrevista semiestructurada, analizada fenomenológicamente. Respondiendo al llamado a constituir una obra de preservación, el sujeto elabora el pasado y la alteridad como presencias a partir de las cuales se da cuenta del propio ser. Aceptar sacrificios para dedicarse a lo que viene del otro significa para él ser fiel a la propia experiencia, de modo que la tradición se actualiza en un proceso personal de buscar contribuir a la constitución del mundo. Concluimos que para dar continuidad de modo propio lo que le fue transmitido, Ausier reafirma la centralidad de los valores que convergen en un ideal que la tradición suscita en sí. Dándose cuenta de que su ideal le fue dado y lo supera, vive su obra como gratitud y donación de sí a algo que le da un lugar en el mundo y realiza el propio ser.
Palabras clave: Tradición; Guardianes de recuerdos; Fenomenología
Introdução
Um menino que aprendia a tocar cavaquinho é apresentado ao choro e à obra do músico considerado como o maior expoente naquele instrumento1. Cresce dedicando-se à pesquisa de sua vida e obra, cria um bar musical em homenagem a ele, torna-se amigo de sua viúva e filha, faz o que estiver ao seu alcance para divulgar as composições do mestre que não chegou a conhecer. Destaca-se no cenário artístico da cidade e segue concebendo o próprio trabalho como tributo àquele que se tornou sua grande referência e inspiração musical.
Em experiências como esta, vemos que algo precioso não se conserva por si: é preciso que alguém reconheça como valor e lhe dedique cuidados. Nos dias atuais, a vinculação com o passado é problematizada como algo a ser superado e as expressões mais características do sujeito tendem a ser lidas como processos de invenção da própria subjetividade. Nesse cenário, produções em ciências humanas que se ocupam de temas como a percepção do sujeito sobre ele mesmo ou a tradição tendem a tomá-los como processos antagônicos, tornando-se difícil compreender o caso dos guardiões de memórias contemporâneos2: sujeitos que num movimento pessoal decidem se dedicar a algo que vem do passado, estruturando obras de cuidado de memórias. Imersos em verdadeiras "sociedades do esquecimento" (Simson, 2003), perguntamo-nos como entender a preservação quando o novo dita o ritmo e a volta ao antigo pode até ser moda, mas dificilmente constitui-se efetivamente como critério de orientação. Como compreender vivências de reconhecimento de si mobilizadas pelo empenho em registrar memórias empoeiradas, em cuidar de tradições esquecidas, em dar vez a personagens que o discurso oficial não tornou protagonistas para o senso comum?
Diante de tantos questionamentos possíveis, interessa-nos compreender como o ato de se dedicar à causa da memória pode unir o que é mais profundamente individual ao patrimônio de gerações pretéritas. Para muitos esses polos seriam irreconciliáveis: a inserção nos quadros sociais amplos, como as tradições de um povo, sempre significariam subjugamento da expressão pessoal. Nessa vertente, a tradição tende a ser associada a contextos sociais retrógrados e herméticos que impediriam o florescimento da subjetividade individual (Calligaris, 1998). Por outro lado, identificamos também o risco de que a subjetividade seja tomada tão somente como chave de acesso a tensões, representações e discursos que atravessam a trajetória pessoal. Nessa perspectiva, a ênfase nos processos amplos inscritos nas experiências pessoais pode resultar na subjugação da individualidade aos contextos socioculturais (Manica, 2010).
Esse cenário remete ao ainda recorrente antagonismo entre psicologismo e sociologismo em teorias das ciências humanas. Nesse contexto, enquanto o centramento em processos intrapsíquicos introduz o risco do esquecimento ingênuo das tensões sociais que atravessam o sujeito, a ênfase em processos macroestruturais pode conduzir ao achatamento da subjetividade, inviabilizando a compreensão da pessoa como elemento criativo e dinamizador das matrizes sociais (Gonzalez-Rey, 2001; Moreno Márquez, 1988). Percebemos que esta polarização tem sido problematizada em diferentes frentes, como - a título de exemplo - o faz Paiva (2013) no campo dos estudos literários ao perguntar-se "como a tradição cultural faz-se contemporânea ao nosso tempo, ou no modo como nós a reatualizamos incessantemente" (p. 45). Inserindo-nos nesta vertente, objetivamos nessa pesquisa investigar o modo como a tradição é elaborada na contemporaneidade por um guardião de memórias, isto é, uma pessoa que se dedica à preservação cultural.
Demarcando o campo: que é a tradição?
Como referencial teórico-metodológico, adotamos a Fenomenologia Clássica3 de Husserl (1913/2006, 1954/2012) e seguidores (Stein, 19179/2005, 1936/2007; van der Leeuw, 1933/1964; Ales Bello, 1997/1998). Nessa vertente, a compreensão do que venha a ser a tradição articula-se intimamenteà noção de mundo-da-vida. É vinculada à reflexão sobre a radicalidade do contexto intersubjetivo de significação para a constituição da realidade experimentada pelo homem que Husserl (1954/2012) tematiza a noção de mundo-da-vida, mundo sociohistórico concreto com seus usos e costumes, saberes e valores (Zilles, 1997). Por referir-se ao que é habitual e estável, o mundo-da-vida constitui-se como base da experiência cotidiana, oferecendo respostas, recortes que permitem ao sujeito lidar com o real apartir de perspectiva compartilhada e integrada. Âmbito originário das formações de sentido, ele ancora as experiências particulares, permitindo juízos de certeza e conferindo segurança à ação, já que o sujeito não precisa reinventar continuamente o mundo: existem soluções disponíveis que abrem caminho para que ele elabore o real - inclusive em seu aspecto desconhecido - de modo situado. Embora seja pré-reflexivo, o mundo-da-vida pode se tornar objeto de reflexão, e é justamente por isso que o sujeito pode se posicionar diante do que recebeu das mais diferentes formas: aderindo, reformulando, refutando, contemplando possibilidades outras.
É no bojo da conceitualização do mundo-da-vida que se situa a compreensão husserliana do conceito de tradição4. Segundo Ales Bello (1997/1998), o fenomenólogo correlaciona tradição à "vida natural", entendida como
terreno a partir do qual expressamos os nossos juízos e construímos as nossas crenças; ela é a vida ligada a uma normalidade "estável", e por "normal" deve-se entender aquilo que é aceito pelos indivíduos pertencentes a um determinado grupo. (...) Ter experiências do ponto de vista da vida natural significa "receber"; nela todos os interesses teóricos, os interesses de verdades, estão ligados à simples experiência, aos hábitos presentes no âmbito do horizonte do mundo-da-vida. Por conseguinte, o mundo-da-vida natural é o mundo da tradição (p. 46).
Enquanto mundo-da-vida natural, o mundo da tradição se apresenta como solo compartilhado coletivamente em que nossas elaborações se enraízam cotidiana e estavelmente. Na formulação de Husserl, entendemos que tradição pode ser tomada como forma particular de cultura, em que as crenças, costumes e valores de determinado grupo inserem-se num horizonte global de significado e carregam necessariamente um caráter de normatividade e continuidade. No processo de atualização da tradição, o "receber" a totalidade dos recortes de mundo se faz possível a partir da reapresentação e aceitação coletiva e contínua de certos hábitos como sendo naturais, óbvios. Por isso a normatividade se faz presente na dinâmica da tradição como dado da "simples experiência", a princípio transmitido de modo não problematizado, mas passível de questionamento, reformulação e mesmo rejeição, como é próprio de toda dinâmica cultural humana.
Para melhor a compreender esta descrição do dinamismo da tradição colhida na análise do mundo-da-vida empreendida por Husserl, buscaremos o concurso de outros autores que em graus diversos se aproximam da corrente fenomenológica: Arendt (1954/2005), Gadamer (1960/2008, 2002) e Giussani (1995/2004, 2008, 1986/2009).
De modo similar a Husserl, Arendt (1954/2005) ressalta o valor da tradição enquanto fio condutor que conecta passado, presente e futuro e avança analisando sua deterioração no mundo moderno. Reelaborando a provocação lançada por René Char de que não há testamento que nos guie na apropriação da herança que nos foi deixada, a filósofa identifica na tradição a possibilidade de compreendermos aquilo que nos foi legado e o seu respectivo valor, tal como um testamento que indica ao herdeiro o que lhe cabe daquela herança. Nesse sentido, a tradição se refere a um processo - e não a um conteúdo estático - que tem a função de selecionar, nomear, transmitir, preservar e indicar o que é significativo, o que é valor a ser cultivado no tempo.
Entendemos que, para afirmar alguns pontos significativos à coletividade desde suas raízes, a tradição instaura a tensão entre a elaboração pessoal e alguns valores que precisam ser repassados por meio de formas determinadas. Na ênfase da forma por si mesma, frequentemente se incorre no risco de desmerecer a elaboração pessoal - e este parece ser o grande entrave que a contemporaneidade apreende na dinâmica da tradição. Por outro lado, na ênfase da expressão individual abstraída da tradição, há o risco de que a pessoa se torne incapaz de reconhecer e afirmar valor, chegando a alienar-se de si mesma pela dificuldade em perceber o terreno em que seus posicionamentos se ancoram e os problemas comuns que suas propostas tencionam responder.
Encontramos também em Gadamer (1960/2008, 1986/2002) a elaboração do que seja a tradição a partir da perspectiva da autoridade e da continuidade. Conhecido tanto por sua contribuição à hermenêutica quanto por seu empenho em reabilitar este controverso conceito em pleno século XX, o filósofo dedicou-se a demonstrar como a crítica a tudo aquilo que é estabelecido pela autoridade e pela tradição não passa de "preconceito iluminista", isto é, "preconceito contra os preconceitos".
Avançando em relação ao que fora proposto por Heidegger, Gadamer (1960/2008, 1986/2002) afirma que nossos preconceitos não são abstratos, ou de tipo existencial ou ontológico: eles surgem em nós como produtos do verdadeiro horizonte histórico que é a tradição. Trata-se, portanto, de admitir a inevitabilidade dos preconceitos, da autoridade, da tradição, sem propor, contudo, uma submissão cega a eles. Como seres históricos e finitos, somos determinados pelo que nos foi transmitido - ainda que não o aceitemos racionalmente - porém não subjugados: podemos perguntar quais seriam os "preconceitos legítimos" que favorecem a aproximação à alteridade; podemos aceitar a primazia da autoridade não por sua força de opressão, mas a partir do reconhecimento da verdade de seu juízo e perspectiva; podemos acolher a tradição como dado que não nos retira a possibilidade de conhecer, mas antes a torna possível ao inserir-nos num horizonte de pré-compreensão do mundo (Bonfim, 2010).
Identificamos então a urgência de retomar uma compreensão de tradição que contemple a tensão entre o pessoal e o coletivamente transmitido, sem tentar eliminá-la, considerando a possibilidade de relacionamento entre ambas as dimensões como facetas constitutivas do nosso ser no mundo. Nesse sentido, encontramos em Giussani5 (1995/2004, 2008, 1986/2009) a ênfase no processo pessoal de recepção, avaliação, reconfiguração e possível transmissão da tradição, de modo que podemos identificar como característico da elaboração da tradição o movimento de reenvio à origem constitutiva da coletividade, bem como a recepção intergeracional de valores, apreendidos como dados na experiência e que podem ser retransmitidos às novas gerações na medida em que forem apropriados ou transformados pela elaboração pessoal. Com este autor, reconhecemos ainda como marca distintiva da elaboração da tradição a referência à totalidade por meio da afirmação de um significado exauriente da realidade, referência que pode ser apreendida nos processos em que, partindo de percepções finitas, chega-se a compreensões globais sobre o horizonte total da experiência.
Procedimentos Metodológicos
Realizamos a pesquisa situando-nos no campo da psicologia da cultura de orientação fenomenológica (Augras, 1995; Mahfoud, 2003), a qual se empenha por acolher a convocação de Husserl (1954/2012) à reconstrução do fazer científico a partir dos aportes da fenomenologia (Leite & Mahfoud, 2010). Com Mahfoud (2003) entendemos a pertinência de realizar investigações em psicologia da cultura analisando as elaborações dos sujeitos da experiência. Trata-se de uma via de acesso privilegiado porque, ao elaborar o que vive, a pessoa expressa sua pessoalidade enquanto ressignifica práticas e crenças de sua coletividade, reconstruindo a experiência em constante diálogo com os problemas e tensões próprios de sua realidade social.
O participante da presente pesquisa foi selecionado pelo procedimento da amostragem intencional: formulamos critérios para o reconhecimento de figura emblemática para a temática estudada e buscamos, considerando a possibilidade de acesso, identificar pessoas que atendessem a esses critérios (Gil, 2008). Os critérios adotados foram: 1) adequação ao perfil de guardião de memórias contemporâneo (pessoa que, não sendo membro de comunidade tradicional, toma iniciativa e se dedica à preservação cultural de algo que toma do passado); 2) incidência social da atuação do sujeito, com vistas a favorecer a compreensão dos modos como a elaboração pessoal contribui para a constituição do mundo; 3) possibilidade de privilegiar um sujeito cuja formação profissional a princípio não implicaria na dedicação a atividades dessa natureza, mas que, por diferentes motivos, tomou para si esta tarefa de preservação.
Com este procedimento, identificamos quatro guardiões de memórias6, tendo escolhido desenvolver no presente trabalho a análise da experiência de Ausier Vinícius dos Santos, proprietário do bar musical Pedacinhos do Céu, especializado em choro e concebido como homenagem ao cavaquinista e compositor Waldir Azevedo. Possui também, em sua casa, um extenso acervo relativo à história da música, particularmente do choro, que conta com algumas obras raras e mais de mil e quinhentos discos de vinil. Por sua atuação no cenário musical, recebeu o título de cidadão honorário de Belo Horizonte e é reconhecido nacionalmente como um dos principais intérpretes da obra de Waldir Azevedo no cavaquinho. Natural da cidade de Peçanha/MG, há anos reside em Belo Horizonte, capital do mesmo Estado.
A estratégia de coleta de dados adotada foi a entrevista semiestruturada de orientação fenomenológica, inteiramente gravada em áudio e realizada em julho de 2014, no Pedacinhos do Céu. Entendendo a importância de que em nossa pesquisa não fosse mantido sigilo quanto à identidade do participante, além da assinatura do Termo de Consentimento Esclarecido, recebemos autorização para manter os nomes próprios de todas as pessoas e instituições citadas. Como indicam Barreira e Ranieri (2013), ao longo da entrevista buscamos favorecer a descrição das vivências por meio de uma pergunta norteadora que provocasse o participante a retomar sua trajetória evidenciando como elabora seu envolvimento com atividades de preservação cultural. A pergunta proposta foi: como você chegou a se envolver neste trabalho dedicado à memória? Não seguimos um roteiro com outras questões elaboradas previamente, de modo a apreender os caminhos que o participante escolheria para tematizar sua experiência. Quando necessário, pedimos esclarecimentos ou buscamos auxiliá-lo a retomar a descrição do modo como vivencia os temas abordados (Bosi, 1979/2005).
Para favorecer a análise das vivências comunicadas, realizamos transcrição integral da entrevista audiogravada, que posteriormente foi textualizada com reordenação dos trechos quando se fez necessário, de modo que o conjunto se configurasse como narrativa. Para respeitar estilos de linguagem do entrevistado, buscamos nos aproximar ao máximo da forma como o próprio sujeito escreveria aquilo que fala (Mahfoud, 2003).
Para empreender a análise dos dados, seguimos as diretrizes de van der Leeuw7 (1933/1964). Partimos da atenção à experiência relatada para chegar a compreender as vivências e suas conexões de sentido. Buscamos colecionar diversas formas de posicionamento do sujeito para chegar a uma síntese complexa característica da elaboração da experiência. O fenomenólogo designa o composto vivo que ordena as vivências em relação a um conjunto objetivo maior como "experiência-tipo", cuja delimitação busca descrever em termos experienciais os elementos constitutivos do fenômeno investigado. Ao nos empenharmos na identificação da experiência-tipo, não nos limitamos a analisar reflexões, sentimentos ou atitudes idealmente isentas de influências, mas buscamos compreender justamente o modo próprio da pessoa lidar com suas relações e contexto sociocultural (Stein, 1917-9/2005).
A seguir, apresentamos nossa análise da experiência de Ausier, permeada por algumas imagens de seu bar Pedacinhos do Céu por nós registradas. Para favorecer a dinâmica da leitura e o acesso à experiência, optamos por grafar em itálico todas as expressões retiradas da transcrição, intercalando-as com nossas sínteses e compreensões8. Por fim, na discussão dos resultados, buscamos confrontá-los com marcos teóricos de modo a ampliar e retificar as análises.
Resultados
O Pedacinhos do Céu é um bar musical, de choro, criado em 1996 em homenagem a Waldir Azevedo9. Preservação tem a ver comigo porque, na realidade, o meu espírito é um espírito velho, é um espírito que gosta de coisas velhas, sabe? (...) Quer dizer: a gente quando preserva, no meu entendimento, é uma forma simples de agradecer a alguém que fez alguma coisa boa para a humanidade, que prestou um serviço. No caso do Waldir Azevedo: música, alegrou corações. Eu acho que é importante preservar.
Uma forma simples de agradecer a alguém que fez alguma coisa boa. Assim Ausier define o seu bar musical, o Pedacinhos do Céu: como uma homenagem a Waldir Azevedo. Tendo se afeiçoado ao cavaquinho ainda menino, ele se apaixonou ao encontrar a grande obra desse instrumento na produção de Waldir. E, mesmo não tendo chegado a conhecê-lo pessoalmente, se apegou de tal forma que concebe todo o seu trabalho como tributo a esse mestre do choro que alegrou corações com sua música. Homenagem que quer fiel aos primórdios do choro ao unir comida simples e música de qualidade.
No Pedacinhos do Céu impera o que para Ausier faz sentido, a decoração é bem do seu jeito. Nos quadros que preenchem todas as paredes, além do registro das visitas ilustres, ele nos indica que está estampado o melhor do choro em fotos e caricaturas.
A simplicidade para Ausier é um imperativo: tudo o que é considerado frescura é por ele rechaçado, como trocar as cadeiras de lata por outras de madeira. Ao mesmo tempo, certos cuidados são anunciados como fundamentais: o som é modulado para estar num volume agradável; como atual cozinheiro do bar (além de músico), ele serve somente a comida que passa pelo seu crivo pessoal.
Para que as pessoas gostem e tenham vontade de voltar, Ausier afirma lhes proporcionar o que reconhece ser o melhor: o que é do seu gosto e que é oferecido com gosto, com satisfação. E o que ele oferece é antes de tudo o choro, estilo de música que tanto ama e deseja preservar.
Eu vejo assim: o choro é importantíssimo, é abase da música brasileira. É uma música que o mundo baba, tá? Outro dia um cara perguntou: "mas o choro é o jazz brasileiro?". "Não! Choro é choro! Choro é muito melhor que jazz!"
Desde o início, o bar visa à divulgação dessa que, para Ausier, é a primeira10, a mais importante, a base da música brasileira, seja por ser especializado em choro, seja pelo constante envio de partituras para o mundo inteiro. Ao longo dos anos, Ausier compreende que o Pedacinhos do Céu virou uma coisa cultural, um buteco conhecido e reconhecido nacional e internacionalmente por ser espaço de choro. Um espaço que ele faz questão de manter simples, para que todo mundo que chega possa tocar o que sabe. Espaço de encontro em que, apresentando-se como mineiro da roça, ele faz o que gosta, conversa com o mundo todo pelo idioma universal que é a música e recebe vultos que jamais pensou que fosse ver um dia de perto.
Acompanhando sua narrativa, fica-nos evidente como, para Ausier, no Pedacinhos do Céu impera tudo o que é típico do choro em seus primórdios: comida simples; caras reunidos para tocar; flexibilidade para incluir visitantes, instrumentos e estilos novos, desde que não se perca a sua característica própria. A fidelidade para com a origem emerge como ponto importante em sua vivência, expressando-se tanto nesse apego ao modo original do choro, quanto no gosto em desvelar insuspeitos precursores dos ritmos musicais:
Na realidade, o que Altamiro Carrilho11 falava com toda a propriedade? O pai do choro é Bach12! Tudo do Bach que você pegar e colocar um grupo de choro, é choro! (...) Na época do Callado13, que era muito bom flautista, o que se tocava era o erudito mesmo. De onde ele tirou o choro? Naquela época era Bach mesmo, era o erudito. Ao que tudo indica, veio realmente de Bach.
Essa relação com a origem é relevante para Ausier não como mero saudosismo por algo que se passou, mas como reconhecimento da potência atual de algo que começou no passado. Assim, por exemplo, quando ele afirma que as coisas de Bach realmente têm gosto de choro, entendemos que não se trata apenas de enaltecer o choro modulando evidências que liguem seu nascimento ao grande expoente do erudito, mas da satisfação em descobrir uma identidade com as próprias raízes, em evidenciar uma continuidade ao longo do tempo.
Continuidade que identificamos também quando Ausier discorre sobre seu acervo, afirmando deter a história na mão:
Acho que é importante preservar, sempre! Tudo! Tudo. Em casa tenho o meu acervo, tenho as minhas correspondências com a Dona Olinda Azevedo14, tudo em pasta! Sou muito organizadinho nisso. Tenho os discos velhos, as pessoas podem ver como são, como funcionam. Essa é outra vantagem da preservação. Esses discos velhos que comprei desde os quinze anos de idade, que compro o tempo todo, muitos desses as gravadoras não existem mais. Não tem nem como relançar, não existe, mas eu tenho lá. É uma matriz que nós podemos fazer um CD, já parou para pensar? Isso é importante, nós temos a história na mão, é importante ter a história na mão!
Para ele, a história pode ser possuída quando preservamos artefatos - como, no caso da música, os LPs - que permanecem carregando um sentido atual, desafiando a máxima de que tudo acaba no correr inexorável do tempo. Entendemos que sua atenção não está lançada no objeto por ele mesmo, mas no tipo de experiência que ele pode solicitar. Por isso ele elabora que seu esforço abre caminho para que os jovens possam ter acesso ao tipo de experiência que marcou gerações no passado e continua o provocando pessoalmente, já que até o chiado do vinil para ele é música! Daí seu entusiasmo em contar sobre o acervo e instigar visitas e pesquisas, reconhecendo que seu esforço já concentrou preciosidades, facilitando o trabalho de quem se interessar depois e possibilitando até mesmo eventuais relançamentos.
Cuidando pessoalmente do que tem na mão, Ausier opta por narrar a história do choro enfatizando a contribuição própria de cada pessoa que foi marcante nesse percurso. Seu modo de elaborar a tradição que chega até ele lança luzes sobre os protagonistas que a constituíram. Até mesmo Jacob do Bandolim15, ícone que ele não cultua e não toca16, tem exaltada sua importância no desenvolvimento do choro. O mesmo se dá ao discorrer sobre música popular brasileira, sobre música internacional, sobre quaisquer temáticas: a narração é ditada pela peculiaridade de certos personagens e seus respectivos legados.
Em sua narrativa, Ausier é categórico ao afirmar que saber o que foi o país, as coisas boas, implica em saber quem as fez e quem as preserva. Assertiva que nos indica que, para ele, não basta preservar o objeto, a obra material: é importante enaltecer seu autor e a potência do gesto de criação de algo que continua nos provocando ao longo do tempo. Por isso, não obstante ele perceba que seu trabalho teve reconhecimentos que lhe trazem alegrias, entende que este tipo de retorno é raro neste nosso país em que, para ele, sequer a consciência da urgência da preservação é compartilhada: Ausier acha que o Brasil não se preocupa, pois as pessoas se comportam como se a coisa fosse para sempre. Mas se você não lembrar, perde mesmo: em sua elaboração, percebe que não há continuidade sem empenho, e a evidência da finitude e do valor que está em jogo o mobilizam a cuidar.
Assim fazendo, ao se dedicar a preservar a obra de Waldir Azevedo como forma de agradecimento, Ausier cuida também do choro de modo mais amplo. E insiste que o que ele segue é o sentimento que Waldir e outros músicos colocaram:
Já hoje querem até modernizar demais [o choro]. Hoje tem a cultura de dar muita nota. Quer dizer, se a pessoa ganhasse por nota ficava rico! Mas não é, ainda acho que é osentimento. É o sentimento que foi colocado pelo Waldir Azevedo, pelo Jacob do Bandolim,é isso que a gente segue. É por isso que tenho lá em casa um acervo de mais de mil e quinhentos vinis de choro. Volta e meia estou escutando um lá para trás.
Ausier enfatiza o sentimento, mas para ele não se trata de algo intimista: o sentimento é colocado por alguém na música e pode ser apreendido e retransmitido por aqueles que se dispõem a escutar o que está lá para trás. Há algo que crava no coração, algo fascinante que os grandes ícones imprimem em sua obra e que merece ser seguido: não se pode atualizar o choro deixando isso de lado. Daí sua crítica aos músicos que fazem da interpretação das obras um ato auto-centrado na capacidade de dar muita nota, tocando apenas como ocasião de demonstrar a própria técnica. Para Ausier, é primordial ser fiel àquilo que permite com que uma música desafie o tempo emocionando diferentes gerações.
Assim, vemos que a questão afetiva é central e apresenta contornos muito próprios em sua experiência. Para melhor delineá-los, tomemos a narrativa da primeira vez em que ouviu o disco de Waldir Azevedo:
Até o dia em que um cara falou assim comigo: "você gosta de cavaquinho, eu vou te mostrar um que toca: Waldir Azevedo!" Esse cara, que era escrivão do Fórum, me levou para sua casa - eu, menino pobre, tinha uns nove, dez anos, bem menino mesmo. Passei a ouvir o disco do Waldir e fiquei doido: "que negócio bacana!" E comecei a tentar tirar aquelas coisas. (...) A identificação com o Waldir Azevedo foi assim, quer dizer, foi uma questão mesmo de emoção: mexeu comigo e resolvi realmente cultuar.
Chama-nos atenção a certeza com que ele atribui o ato de cultuar Waldir à potência da emoção despertada naquele encontro: o elemento afetivo é descrito como o fundamento de seu posicionamento. Esse modo de tematizar a própria experiência aparece outras vezes em sua narrativa, e se faz presente também quando ele justifica seu empenho incomum de preservação asseverando que seu espírito gosta de coisas velhas.
Instigados por seu modo de elaboração, vemos que quando Ausier usa termos como paixão, gosto, emoção, sentimento ele não está se referindo apenas a ressonâncias internas, mas afirmando que a intensidade de uma vivência afetiva sinaliza o reconhecimento de algo ao qual vale a pena se dedicar por inteiro. Entendemos que esta é a compreensão que ele formula sobre o próprio dinamismo: o que mexe consigo revela o que é valor para si. E seu modo de responder ao valor é tomando-o como critério de ação, mesmo que isso implique em sacrifícios. Ao longo da entrevista, ele enumera diversas situações em que abriu mão de outras coisas para seguir fazendo o que lhe dá tanto prazer: chegou a passar a cheeseburger para poder comprar discos; se desdobra para lidar com a dor de cabeça que são as contas; tornou-se o cozinheiro do bar e assume todo o trabalho com a ajuda da esposa enquanto tiver saúde.
Nesse sentido, Ausier percebe a si mesmo como alguém que aceita sacrifícios para afirmar o que gosta, do modo como reconhece ser justo. De modo correlato, apreendemos como ele abraça certa tradição na música, que prioriza o sentimento que pode ser transmitido e que se diferencia daquelas que valorizam a técnica musical por si mesma ou a reprodução sem preocupação com a qualidade, a qual ele rechaça veementemente. Aliás, em sua concepção, se fala palavrão e deseduca o filho da gente nem música é: afinal, música verdadeira tem sentido e atualiza algo que os mestres colocaram, despertando emoção genuína. Como corolário, Ausier não tolera a compreensão difundida de que, se a pessoa gosta de música de má qualidade, não há saída se não continuar reproduzindo o que é do meio em que ela vive:
Não, eu não concordo, não concordo! Temos é que melhorar o meio em que o menino vive! Não é não? Precisa implantar o Brasil na coisa. Eu sou brasileiro! Vamos colocar então Pixinguinha, Tom Jobim, para o menino saber disso!
Para ele, o desafio é justamente transformar esse meio, implantando o que há de melhor na música, dando prioridade ao que é nacional, o que não significa rechaçar o estrangeiro, mas saber reconhecer quando a aproximação enriquece e quando não favorece o crescimento da pessoa. Por isso sua opção é por apresentar algo próximo e ao mesmo tempo excepcional: um horizonte possível muito além daqueles limites estreitos em que algumas visões de mundo podem nos encarcerar.
E, para isto, o caminho que ele adota é o de construir pontes: para o jovem que pergunta o que é chorinho?, por exemplo, propõe a aproximação a partir de músicas famosas que podem ser transformadas em choro, para só então começar a apresentar figuras menos conhecidas. Para quem conhece música e quer aprender a tocar choro - como vários estrangeiros que o procuram - fornece partituras, intermedia a confecção de instrumentos, se dispõe a ficar tocando para mostrar como é que se faz. Já para aqueles que conhecem e querem seguir por essas veredas, seu método é priorizar os grandes mestres de cada instrumento: para quem toca cavaquinho sempre recomenda Waldir Azevedo, porque não tem nada melhor.
Ainda que valorize muito a audácia do pioneirismo - é o que eu falo: se não tivesse doido, ninguém andava de avião! - Ausier sabe que a continuidade se concretiza pelo trabalho de muitas mãos. Apreendemos o valor do esforço conjunto no modo como ele enfatiza o apoio que recebe de sua atual esposa; como se pergunta quem irá cuidar da obra dos ícones do choro que faleceram, cujos filhos não se mostram tão ligados; como aponta a importância dos laços de amizade para a constituição de suas coleções. E, em se tratando de uma tradição que promove vínculos, apreendemos como a importância do coletivo se expressa também em seu gosto por destacar os amigos maravilhosos que fez aqui e no mundo inteiro graças à sua trajetória musical no choro.
Em suma, Ausier nos apresenta o empenho de preservar como seu modo de expressar gratidão por quem lhe abriu caminho. E preservar, para ele, é cuidar da tradição tomando o que encontrou explicitando sua a vitalidade atual, trazendo para o presente a presença dos mestres e do que eles comunicam. Esse encontro ressoa afetivamente nele, convocando-o à apreensão do que é valor para si, ao cuidado e à avaliação crítica de outras perspectivas que permeiam o mundo da música. Tendo clareza do que vale a pena afirmar e dos vínculos propiciados pela experiência da música verdadeira, Ausier se dedica à transmissão de sua tradição oferecendo aos jovens a possibilidade de, como ele, se fascinarem com o que há de melhor na música brasileira.
Discussão dos resultados
Tendo nos empenhado em reapresentar a experiência de Ausier, a proposta agora é explicitar como as compreensões alcançadas dialogam com o dinamismo da experiência humana e da elaboração da tradição descritos tanto pelos autores de nosso referencial teórico, quanto por outros que se mostraram pertinentes. Buscamos assim a retificação da análise preconizada por van der Leeuw (1933/1964), de modo que nossas conclusões possam se constituir como provocações para a compreensão da temática pesquisada em contextos diversos (Leite & Mahfoud, 2010).
Ao elaborar a própria experiência, Ausier nos indica como busca se posicionar no mundo tomando a emoção como bússola que lhe permite orientar-se em direção ao que realmente faz sentido e o satisfaz pessoalmente. Stein (1917-9/2005) nos auxilia a compreender este dinamismo ao clarificar que "o sentir é sinônimo de estimar valores" (p. 801) e que se pode definir um sentimento como racional na medida em que ele é capaz de mobilizar atos de vontade orientados à realização do valor apreendido. Com este aporte, podemos superar uma visão simplista que dissocia as vivências afetivas e racionais, contemplando com maior claridade a unidade da experiência que Ausier nos anuncia.
Também Giussani (1986/2009), ao descrever como podemos nos posicionar afirmando e exaltando todos os elementos que compõem nossa relação com o mundo, evidencia uma unidade orgânica entre razão e sentimento. Metaforicamente, o sentimento é descrito como uma lente que nos aproxima do objeto, permitindo que a razão o veja em sua especificidade. Ou seja, é pelo sentimento que nos aproximamos e interessamos pelo objeto do conhecimento, abrindo caminho para que possamos apreender o valor do que se mostra a nós. O desafio é que o sentimento esteja em seu justo lugar e para isto cabe ao sujeito se posicionar para ajustar o foco das lentes, priorizando a atenção ao que se apresenta em detrimento das imagens pré-concebidas. Em suma, cabe afirmar o "amor à verdade do objeto mais do que o apego às opiniões que já formamos sobre ele" (p. 55).
Comentando estas contribuições de Giussani, Mahfoud (2012) explicita como não é razoável nem tentar eliminar o sentimento em virtude de um projeto abstrato que concebe o conhecimento imparcial como ideal, nem exaltá-lo como única expressão genuína da condição humana, pois "a experiência aponta para alguma coisa não somente para o eu" (p. 161). Isso significa que tomar a experiência apenas pelo caráter reativo do sentimento é uma redução, pois o próprio sentimento nos conduz a algo que nos transcende, não sendo razoável fixar a atenção apenas na ressonância interior.
Apropriando-nos dessas contribuições, compreendemos que o sentimento emerge para Ausier como borbulhar que tem como fonte experiências de maravilhamento17 nas quais ele vivencia profunda satisfação pessoal. A complexidade de sua experiência não pode ser reduzida à ressonância afetiva porque, na paixão que tantas vezes enfatiza, ele traz questões relativas à busca por sentido e à possibilidade de realização pessoal ao se posicionar afirmando valores reconhecidos e aceitando sacrifícios para isto quando necessário. Em suma, tocado afetivamente, ele apreende um sentido razoável pelo qual vale a pena se dedicar por inteiro e, mesmo diante das adversidades, pode continuar se dedicando e realizando: saio sapecado, saio queimado, mas saio feliz.
Voltando ao diálogo com Stein (1936/2007), entendemos que o conceito de núcleo pessoal pode nos ajudar a melhor compreender como Ausier discorre sobre seu modo particular de guiar sua vida a partir do que reconhece como constitutivo para si. Segundo a fenomenóloga, o núcleo é o coração, o aspecto mais íntimo, o centro da vida. Quando o eu passa a viver a partir de seu centro, esta abertura para dentro de si se irradia também como abertura para fora,passando a orientar o posicionamento no mundo. É a partir de seu núcleo que a pessoa pode efetivamente assumir a própria singularidade e agir com liberdade nas relações e contextos onde está inserida. Nestes termos, ao afirmar e cuidar do choro, podemos dizer que Ausier se posiciona a partir do próprio centro que "imprime seu selo sobre cada característica e cada atitude do homem, e constitui a chave da estrutura de seu caráter" (Stein, 1936/2007, p. 1087).
No tocante à elaboração da tradição, vimos como Ausier se empenha para sintonizar-se às origens do choro, evidenciando uma busca por identidade com as próprias raízes. Seu modo de concretizar essa busca passa por reapresentar a obra de Waldir como excepcional, referência incontestável para todos os cavaquinistas assim como ele reconheceu ser para si. Nesta naturalidade com que ele assevera essa figura de autoridade, identificamos o caráter de estabilidade e normalidade que Husserl18 atribui à tradição, tal como evidenciado por Ales Bello (1998).
Acolhendo essa autoridade como correspondente a si, Ausier elabora ligar-se à música de modo diverso daqueles que absorvem influências de má qualidade sem juízo crítico. Gadamer (1960/2008, 2002) compartilha essa compreensão de que, sem consciência da tradição que abraçamos, o que nos resta é a submissão não problematizada. Para o filósofo, a pertença consciente à tradição, ao invés, pode sedimentar encontros com tradições diferentes marcados pelo entendimento mútuo e pela expansão de horizontes. E é algo assim que apreendemos na experiência de Ausier: ele adere à direção que seus mestres anunciam tendo como norte a emoção, a realização pessoal e os vínculos que esse caminho é capaz de gerar. E assim, tendo clareza das raízes que afirma e porque se liga a elas, ele expressa inúmeras vezes o quanto valoriza a relação com estrangeiros e com a música internacional. Nesse movimento, tanto exalta com entusiasmo o que tem qualidade e é genuinamente brasileiro quanto reconhece o que há de bom em outras terras que merece ser implantado no país. Como corolário, apreendemos como Ausier apresenta com sua experiência a possibilidade de um intercâmbio fecundo entre tradições, sem sobreposição, em que o critério permanece sendo o cultivo do que é apreendido como valor.
Valor que ele nomeia como o sentimento que os mestres colocaram em suas músicas. Já afirmamos que a complexidade do que ele entende por sentimento nos indica que o que ele quer preservar é mais que a ressonância afetiva: há algo de precioso que emana do autor e pode de algum modo se imprimir na obra artística. Assim, a presença dos mestres - mesmo daqueles que não se tornaram referência para o grande público - pode permanecer no tempo, desde que alguém se disponha a cuidar.
Para aprofundar essa compreensão, tomaremos a discussão de Walter Benjamin (1940/2012) acerca do dinamismo da memória como reconhecimento de que somos tributários do que se passou antes de nós. Reconhecimento que problematiza a tendência moderna de nos comprometermos apenas com as gerações vindouras, convocando-nos a sermos solidariamente responsáveis especialmente com o nosso passado oprimido. Para que um processo assim seja possível, a história precisa ser concebida não como um passado factual, imóvel, mas como uma dinâmica marcada por dramas, conquistas, dominações, rupturas, silenciamentos, possibilidades. Uma dinâmica que traz à tona não só as experiências vividas que permaneceram no tempo, mas sobretudo as expectativas não realizadasdas gerações precedentes. É nesse sentido que para ele o trabalho de memória deve focar não somente o que permaneceu como legado, mas também os projetos não concretizados e as esperanças que foram de algum modo oprimidas. Neste processo de reconstrução, erros podem ser corrigidos, injustiças reparadas, feridas cicatrizadas: Benjamin (1940/2012) reconhece no trabalho da memória a possibilidade da redenção. Embora a maioria daqueles que foram injustiçados ao longo do tempo não possa receber diretamente a reparação no curso social dos acontecimentos - já que a história é irreversível - a redenção possível situa-se na reelaboração dos significados do passado e na abertura de novos horizontes para o presente e para as gerações futuras.
Entendemos que em seu esforço por preservar o choro e especialmente a obra de Waldir Azevedo, Ausier em certo sentido dedica-se a esta redenção de que fala Benjamin (1940/2012). Entretanto, colhemos nas assertivas do filósofo o risco de que essa redenção seja concebida como um retorno às feridas do passado, de tal modo que confirmá-las e deixá-las sangrando seja entendido como a melhor motivação para a mobilização no presente. Na análise da experiência de Ausier, ao invés, vimos que ele não se ocupa prioritariamente em explicitar a injustiça do pouco reconhecimento dos mestres do choro, mas sim em difundir a potência do sentimento que eles colocaram na música, de tal modo que possa se alastrar a admiração e a valorização que ele experimenta em primeira pessoa. Nesse sentido, compreendemos que, dedicando-se integralmente a esta difusão, Ausier nos mostra que seu foco está na certeza quanto ao valor reconhecido e que precisa ser continuamente afirmado. Assim, acreditamos que experiências como a de Ausier nos ajudam a avançar no entendimento de como a proposta de Benjamin (1940/1994) pode se constituir como um projeto vitalizado de transformação histórica a partir do compromisso entre gerações. Com esta perspectiva, vislumbramos uma nova luz sobre o desafio por ele anunciado de que cada geração tanto escreva a história de modo próprio quanto revisite, recupere, reelabore e redima o passado afirmando sua fecundidade presente e futura.
Ainda no que concerne à elaboração da tradição por Ausier, vimos que ele concebe toda sua obra como homenagem ao mestre Waldir Azevedo, que ele sequer chegou a conhecer pessoalmente. Para avançar em nossa aproximação a esta complexidade, buscamos as contribuições de Giussani (1992) acerca do significado da doação de si à obra de um outro. Para o autor, na vivência de um acontecimento19 correspondente, a pessoa pode se posicionar afirmando a pertença ao ideal ali anunciado e à autoridade que anuncia e favorece a retomada do ideal como presença. Uma possibilidade concreta de afirmação dessa pertença é "dar a vida pela obra de um outro": doação de si em que, quanto mais se reconhece pertencente a algo maior que si mesma, mais a pessoa vive letícia20 e se dá conta de quem é, do sentido da própria vida, do ideal que a realiza e mobiliza sua ação.
Podemos afirmar que Ausier reconhece dar a vida pela obra de Waldir Azevedo? Entendemos que sim e que ele traduz essa doação de si ao mestre com uma expressão particularmente interessante: cultuar. Em sua narrativa, compreendemos que cultuar sintetiza admirar e afirmar, reconhecer valor e preservar, divulgar a excepcionalidade e se submeter a ela porque se trata de algo pessoalmente correspondente. Cultuando seu mestre, Ausier mostra ser evidente para ele que dá tudo de si a uma obra que não é sua e, ao mesmo tempo, é tão profundamente sua. Sua porque ele se identifica inteiramente com a experiência de maravilhamento vivida por meio dela e por isso entendemos que Ausier pertence ao ideal de vida pautado nesse maravilhamento e à autoridade que Waldir é para ele. E, como vimos em sua experiência, os vários sacrifícios que ele mesmo reconhece assumir e o fato de optar por um caminho que não dá dinheiro - contrariando o que é socialmente esperado - exaltam ainda mais para ele essa realização vivida como vinculação a esse mestre.
De fato, Giussani (1992) esclarece que "dar a vida" não significa morrer pelo ideal, mas sim afirmá-lo continua e diariamente em cada experiência. "Dar a vida" significa oferecer tudo de si a partir do próprio centro em função de algo reconhecido como plenamente correspondente. Significa formular a vida em função do ideal apreendido e se dispor à presença reconhecida. Num certo sentido, essa disponibilidade implica em obediência e sacrifício, mas não coincide com abrir mão de si mesmo em função do outro. Pelo contrário, trata-se de uma disponibilidade vivida como gesto de amor, isto é, de afirmação do ser do outro que coincide com a afirmação mais radical de si.
Essa experiência de amor é também evidente para Ausier: em seus termos, ele é apaixonado realmente pela obra de Waldir. Uma paixão nascida no maravilhamento vivido quando ainda era menino e constantemente atualizado ao longo de sua vida. Uma paixão alimentada pela amizade com Dona Olinda e pela satisfação em materializar seu reconhecimento ao mestre mantendo um bar em sua homenagem. Por isso afirmar exaustivamente a obra e a pessoa de Waldir como presença não é algo que se sobrepõe à pessoa de Ausier: ao invés, é justamente uma grande expressão de sua pessoalidade. Agradecendo contínua e diariamente a quem lhe abriu o caminho que tanto o realiza, Ausier afirma o próprio ser.
Por fim, destacamos que para Giussani (1992) a doação de si não é afirmação de um ideal abstrato justamente por ser empenho com uma obra concreta,existencialmente presente, histórica. É dedicando-se ao legado de um outro que a pessoa se dedica a ele, afirma a sua presença no mundo. E assim são geradas novas obras, novos caminhos, novas possibilidades para si e para o mundo. Portanto, na perspectiva do autor, "dar a vida pela obra de um outro" carrega um caráter criativo: a pessoa se dedica de modo próprio, original, o que inclusive pode solicitar outros a também se dedicarem, cada um a seu modo, dando a sua contribuição.
Com Ausier, apreendemos como a criatividade na adesão à obra de um outro pode se expressar por meio da recriação: o Pedacinhos do Céu, ao mesmo tempo que é totalmente forjado do seu jeito, nos é apresentado como uma espécie de microcosmo, que re-edita a tradição original do choro e divulga os grandes chorões. Nesse espaço, tocando em seu cavaquinho a música com que se identifica, é a autoridade de Waldir Azevedo que Ausier está buscando repropor e ofertar àqueles que se dispõem a ouvir. Ciente de que poucos se interessam por se dedicar assim integralmente a um valor reconhecido num encontro, Ausier exalta seu pioneirismo e segue elaborando o quão correspondente é ser agradecido e materializar essa gratidão numa homenagem àquele que, tocando cavaquinho de modo excepcional, tocou indelevelmente o seu ser.
Considerações Finais
Como o que aprendemos sobre a elaboração da tradição por um guardião de memórias pode nos capacitar a problematizar os desafios contemporâneos à atualização da tradição de modo pessoalizado?
Em primeiro lugar, ressaltamos como nossos resultados apontam para a centralidade da apropriação pessoal da tradição para que a pessoa possa acolher sua herança e se dedicar à promoção de sua continuidade. Vimos que com um trabalho pessoal de identificação do que lhe corresponde a partir da atenção à própria experiência e ao que lhe foi legado, a pessoa pode fundamentar sua resposta positiva ao chamado de preservar valores de uma certa tradição. E sobre essa mesma base, ela pode elaborar sua crítica a tradições que não se revelam propícias à concretização do ideal que apreende em seu ser.
Como estratégia para a promoção e difusão do valor que reconhece, Ausier nos mostrou que cuida de um certo modo de registros, documentos, obras e equipamentos que anunciam esses valores apreendidos na tradição. O ponto fundamental que emergiu é que a descoberta do valor que os registros materiais querem comunicar se dá numa experiência de maravilhamento, que abre caminho para a conexão entre passado, presente e futuro. Assim, para ele, não se trata de colecionar artefatos como curiosidade histórica ou de defender moralisticamente o retorno a algo pretérito, mas de atualizar a correspondência vivida tanto na percepção de um ideal anunciado pela tradição, quanto na adesão a ele. É por meio desse acontecimento presente que o passado pode fecundar o futuro, que a pessoa pode reconhecer que seu posicionamento incide no mundo gerando novidade a partir da atualização da tradição.
Assim, enquanto como sociedade nos voltamos para o futuro tentando direcionar nosso destino sem atinar para como o que vem do passado modula nossa experiência atual, a experiência de um guardião de memórias contemporâneo nos anuncia outras possibilidades de articulação entre os três tempos. Advertimos o delineamento de um caminho para a compreensão de como a tradição pode ser elaborada e cultivada de forma vitalizada na contemporaneidade, o que não significa que este seja um processo fácil. Justamente por não ser favorecida pela cultura que prevalece atualmente, a valorização da tradição abre um campo de tensões a serem continuamente enfrentadas num percurso que pode ser vivido de forma não alienada se contemplar o reconhecimento de que algo que vem do passado tem a ver consigo, desperta em si maravilhamento e convoca a cuidar como gesto de gratidão.
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Recebido em 22.07.2017
Primeira Decisão Editorial em 17.11.2017
Aceito em 04.12.2017
1 O presente artigo apresenta resultados parciais da pesquisa de doutorado Experiência ontológica e tradição na experiência de guardiões de memórias (Leite, 2015) desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, com bolsa CAPES.
2 Simson (2005) indica que o papel social de guardiões de memórias cabe aos idosos em "sociedades da memória", função que foi sendo gradativamente obliterada na história ocidental. Entendemos ser interessante tomar a mesma expressão para designar pessoas que tomam iniciativa de se dedicarem ao cultivo da memória em contextos contemporâneos justamente como forma de explicitar a peculiaridade de experiências desse tipo.
3 O termo "fenomenologia clássica" foi consagrado por Ales Bello (1997/1998) para designar os trabalhos de Husserl e de discípulos que se mantiveram fieis às proposições do mestre, como Edith Stein. No Brasil, esta corrente tem sido desenvolvida nas ciências humanas especialmente por meio de "aprofundamentos compreensivos da fenomenologia enquanto método para investigação de fenômenos culturais em psicologia" (Valério & Barreira, 2015, p. 430).
4 Husserl dedicou-se à reflexão sobre o tema no manuscrito AV 11, Begriff der Tradition (Conceito de tradição), de 1930-1, comentado por Ales Bello (1997/1998).
5 Educador, filósofo e teólogo italiano, cuja proximidade à corrente fenomenológica tem sido explicitada por Mahfoud (2016) e Di Martino (2010), com destaque para o reconhecimento do doar-se do fenômeno como condição de possibilidade da experiência e para o modo como descreve o dinamismo mais propriamente humano, em grande sintonia aos aportes de Stein (1917-9/2005, 1936/2007) sobre o núcleo da pessoa (Mahfoud, 2012).
6 Considerando os critérios definidos para seleção e a viabilidade de acesso aos sujeitos para realização das entrevistas, os quatro guardiões de memórias identificados foram: Ausier Vinícius dos Santos, Anette Hoffmann, Olga Regina Frugoli Sodré e José Eduardo Ferreira Santos. Os dados relativos às entrevistas e análises dos demais sujeitos estão disponíveis em Leite (2015).
7 Buscamos seguir a proposta metodológica desenvolvida pelo fenomenólogo no capítulo Fenômeno e fenomenologia, que se encontra traduzido para o português: confira van der Leeuw (1933/2009).
8 A nomeação e organização dos conjuntos de vivências de modo a torna-las inteligíveis é uma das diretrizes propostas por van der Leeuw (1933/1964) no percurso de análise dos dados com vistas à delimitação da experiência-tipo
9 Waldir Azevedo (1923-1980). Compositor e músico brasileiro. Considerado o maior mestre do cavaquinho, teve grande influência no desenvolvimento do choro no país (Bernardo, 2004).
10 A tese que Ausier defende é polêmica na história da música brasileira, em que comumente se afirma que o samba é mais antigo por ter surgido a partir de manifestações musicais de escravos africanos. A esse respeito, cf. Lopes, 2003.
11 Altamiro Carrilho (1924-2012). Músico, compositor e flautista brasileiro, grande difusor do choro no país e no exterior. É considerado por muitos um dos maiores flautistas do mundo.
12 Johann Sebastian Bach (1685-1750). Compositor, cantor, cravista, maestro, organista, professor, violinista e violista alemão, considerado o maior nome da música barroca e um dos melhores compositores da história.
13 Joaquim Antônio da Silva Callado Júnior (1848-1880). Flautista brasileiro considerado criador do choro, Callado formou o grupo "Choro Carioca" por volta de 1870, em que sua flauta era acompanhada por dois violões e um cavaquinho. Os três instrumentistas de cordas tinham boa capacidade de improvisar sobre o acompanhamento harmônico, que é a base do choro.
14 Viúva de Waldir Azevedo, que Ausier conheceu após a morte do mestre e de quem se tornou muito amigo: ela me passou quase tudo, acho que ninguém conhece a obra de Waldir Azevedo como eu conheço. Realmente ela me abriu a porta da casa dela como a um filho.
15 Jacob Pick Bittencourt (1918-1969). Músico, compositor e bandolinista brasileiro de choro. Alcançou popularidade ao montar o conjunto Época de Ouro no início da década de 1960.
16 A notória rixa entre Jacob e Waldir Azevedo, mestre de Ausier, é atribuída por muitos ao fato de Waldir ter sucedido Jacob na gravadora Continental, e por ter rapidamente emplacado sucessos que alcançaram uma vendagem de discos muito superior à de Jacob. Cf. Paz, 1997.
17 Com Bersanelli e Gargantini (2003/2006), entendemos que a vivência de maravilhamento refere-se a admirar-se com a existência do que se apresenta a nós. Para os autores, maravilhar-se é condição fundamental para o conhecimento, tanto porque a atração pelos fenômenos nos instiga a buscar compreendê-los, quando porque viabiliza o rigor ao mobilizar atenção, abertura, dedicação.
18 Manuscrito AV 11, Begriff der Tradition (Conceito de tradição), de 1930-1.
19 Para Giussani (1992/2000), "acontecimento é 'algo' que repentinamente se introduz: não-previsível, não-previsto, não-conseqüência de fatores antecedentes (...) é tal justamente enquanto não pode ser dominado, tem algo que escapa" (p. 12). Ainda segundo o autor "só um acontecimento pode iniciar o processo através do qual o eu chega à consciência ou conhecimento de si. A categoria de 'acontecimento' é, portanto, capital, tanto para o conhecimento do eu como para qualquer tipo de conhecimento" (p. 13).
20 Segundo Giussani (1996), a experiência de letícia emerge da união entre gratidão, certeza de felicidade e confiança no fundamento da existência. Trata-se de modalidade de alegria que não se enraíza na dimensão psíquica, mas na dimensão espiritual da pessoa, podendo portanto ter estabilidade no tempo e ser vivida concomitantemente ao extremo sofrimento.