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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.26 no.2 Goiânia maio/ago. 2020

https://doi.org/10.18065/2020v26n2.1 

RELATOS DE PESQUISA

 

Fenomenologia da qualidade de vida de mães de crianças autistas

 

Phenomenology of the quality of life of autistic children

 

Fenomenología de la calidad de vida de las madres de los niños autistas

 

 

Maria P. M ChaimI; Sebastião B. C. NetoII; Aminn y F. PereiraIII; Virgínia E. S. M. CostaIV

IPsicóloga; Mestre em Psicologia pela PUC-GO. Endereço Institucional: Rua 9 A; Q. H-1 Lt. 7/62, número 164, apto 1104, Residencial Constellation Life Style - Setor Oeste; CEP 74.110-110 Goiânia-GO / (https://orcid.org/0000-0001-8872-7172) / mpchaim@gmail.com
IIProfessor Adjunto II, orientador de mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás) / (http://orcid.org/0000-0001-8160-3476)
IIIGraduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC GO) / (https://orcid.org/0000-0002-9761-1582)
IVDoutora em Ciências da Saúde pela UnB/UFG, Mestre em Educação pela PUC-GO e Psicóloga formada na Universidade de São Paulo - USP / (https://orcid.org/0000-0002-3348-9442)

 

 


RESUMO

A qualidade de vida (QV) das mães de crianças com transtorno do espectro autista (TEA) está relacionada com características sintomáticas e idiopáticas da condição existencial da criança e é determinada pelas compreensões subjetivas atribuídas de acordo com a experiência individual. O objetivo primário deste artigo é descrever e compreender as construções subjetivas sobre a QV autorreferenciada de mães de crianças com TEA. Trata-se de um estudo empírico, qualitativo e fundamentado na leitura da psicopatologia fenomenológica. Participaram 10 mães de crianças com TEA, usuárias dos serviços públicos de saúde de Goiânia. Utilizou-se como instrumentos: questionário de dados sociodemográficos e clínicos e roteiro de entrevista semiestruturada sobre QV. As entrevistas foram submetidas à construção de categorias temáticas, segundo a metodologia de Giorgi (1985), e posteriormente foram correlacionadas com as categorias existenciais de Augras (2004). Observou-se que ainda que se busque padrão para compreender a QV, cada mãe dispõe de fatores subjetivos que refletem sua forma de experienciar a condição de ser mãe de uma criança com necessidades especiais. Conclui-se que cabe a ciência, ao buscar compreender a qualidade de vida de pessoas com características similares, considerar a relevância dos aspectos subjetivos e o significado que cada mãe constrói de sua própria realidade.

Palavras-chaves: Qualidade de Vida; Mãe; Transtorno do Espectro Autista; Psicopatologia. Fenomenológica.


ABSTRACT

The quality of life (QOL) of mothers of children with autism spectrum disorder (ASD) is related to the symptomatic and idiopathic characteristics of the existential condition of the child and is determined by the subjective understandings attributed according to the individual experience. The primary objective of this article is to describe and understand the subjective constructs about the self-referenced QOL of mothers of children with ASD. It is an empirical study, qualitative and based on a reading of phenomenological psychopathology. Participated 10 mothers of children with ASD, users of public health services in Goiânia. The following instruments were used: a sociodemographic and clinical data questionnaire and a semi-structured interview script about QOL. The interviews were submitted to the construction of thematic categories, according to the methodology of Giorgi (1985), and later were correlated with the existential categories of Augras (2004). It was observed that although a standard is sought to understand QOL, each mother has subjective factors that reflect in her way of experiencing the condition of being a mother of a child with special needs. It is concluded that it is the science, when seeking to understand the quality of life of people with similar characteristics, to consider the relevance of the subjective aspects and the meaning that each mother constructs of its own reality.

Keywords: Quality of Life; Mother; Autism Spectrum Disorder; Phenomenological Psychopathology.


RESUMEN

La calidad de vida (QV) de las madres de niños con trastorno del espectro autista (TEA) está relacionada con características sintomáticas e idiopáticas de la condición existencial del niño y está determinada por las comprensiones subjetivas atribuidas de acuerdo con la experiencia individual. El objetivo primario de este artículo es describir y comprender las construcciones subjetivas sobre la QV autorreferenciada de madres de niños con TEA. Se trata de un estudio empírico, cualitativo y fundamentado en la lectura de la psicopatología fenomenológica. Participaron 10 madres de niños con TEA, usuarias de los servicios públicos de salud de Goiânia. Se utilizó como instrumentos: cuestionario de datos sociodemográficos y clínicos y guión de entrevista semiestructurada sobre QV. Las entrevistas fueron sometidas a la construcción de categorías temáticas, según la metodología de Giorgi (1985), y posteriormente fueron correlacionadas con las categorías existenciales de Augras (2004). Se observó que aunque se busca patrón para comprender la CV, cada madre dispone de factores subjetivos que reflejan su forma de experimentar la condición de ser madre de un niño con necesidades especiales. Se concluye que cabe la ciencia, al buscar comprender la calidad de vida de personas con características similares, considerar la relevancia de los aspectos subjetivos y el significado que cada madre construye de su propia realidad.

Palabras claves: Calidad de Vida; Madre; Trastorno del Espectro Autista; Psicopatología Fenomenológica.


 

 

Introdução

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) segundo a Associação Americana de Psiquiatria (APA), por meio do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM-5 (2014), é considerado um transtorno do neurodesenvolvimento, que abrange os termos descritos anteriormente como: Transtorno Desintegrativo, Transtorno Global do Desenvolvimento, Autismo e Síndrome de Asperger (DSM-5, 2014). Ainda alicerçado neste manual, o TEA é explicado como manifestações sintomáticas, até os três anos de idade, de déficits na comunicação e interação social e padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesse e atividades.

Para além das compreensões sintomatológicas, de acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Aurélio, o termo "transtorno" significa uma perturbação e/ou um desarranjo mental. Já a palavra "espectro" faz menção a obscuridade e fantasia de algo ameaçador; e, por fim, a palavra "autismo": representa um fenômeno patológico caracterizado pelo desligamento da realidade exterior e criação mental de um mundo autônomo (Ferreira, 2007).

Em interface às características sintomatológicas e a definição da nomenclatura, ainda que o TEA possua uma definição e um conjunto de sintomas para realização diagnóstica, não se tem uma causa etiológica e epidemiológica unificada definida para o transtorno, o que evidencia a necessidade de investigações idiopáticas para a sua compreensão (DMS-5, 2014).

Uma das abordagens capazes de repensar o TEA a partir das investigações idiopáticas é a Psicopatologia Fenomenológica, que se configura a partir de uma tentativa de reconsiderar os fundamentos da psiquiatria e também os conceitos gerais das patologias e dos aspectos gerais da vida, assim como de saúde e doença (Rovaletti, 2015). Para Petrelli (2017) o TEA deve ser compreendido em duas categorizações fenomenológicas do fenômeno, sendo elas: sintomática - déficit estruturais do funcionamento do sistema nervoso central; e idiopática - efeito da complexa síndrome do isolamento afetivo-social-contativo. Ainda na perspectiva deste autor, a abordagem Fenomenológica garante com relativa segurança a compreensão da complexidade do problema no circuito metodológico: corpo-mente-espírito. Como afirma Binswanger (1977) e Minkowski (1973), a psicologia é a ciência da mente e do espírito e a psicopatologia é um saber amplo que abrange dos dramas da vida aos mistérios da existência humana. Psicopatologia se define, para Moreira (2011), como patologia dos transtornos mentais, ou como o estudo das causas e natureza dos transtornos mentais. Ainda de acordo com a autora, a psicopatologia como disciplina nasceu na França no início do século XX, e após a publicação de Psicopatologia Geral de Karl Jasper, em 1913, a psicopatologia fenomenológica começou a se desenvolver. O estudo da psicopatologia numa perspectiva fenomenológica possibilita reflexões essenciais sobre aspectos da ontologia, permitindo intervenções mais precisas ligadas ao cotidiano do ser, que dialogam com a insegurança e provisoriedade da própria existência humana, apresenta Karwowski (2015).

Direcionando para a compreensão dos fenômenos psicopatológicos, Laplanche e Pontalis (1992) enfatizam entre diversas definições de transtorno, a incapacidade de adaptação social, a gravidade dos sintomas, a dificuldade de comunicação, a ausência de insight da condição mórbida vivida, a perda do contato com o real, o determinismo orgânico ou psicogenético e as alterações profundas do funcionamento do ego. Ainda nesta perspectiva, Antony (2012) descreve o autismo como um adoecer gerado pelo isolamento afetivo, que consequentemente afeta as introjeções daquilo que é ensinado, levando a criança a bloquear a comunicação do organismo com o ambiente, diminuindo sua capacidade de estabelecer relações.

Ademais, de acordo com os referenciais fenomenológicos, toda condição humana precisa ser compreendida sob a ótica dos fenômenos psicopatológicos, suspendendo parcimoniosamente dos dados clínicos oriundos da atividade científica tradicional, para tornar-se possível conhecê-lo a partir do campo existencial do sujeito (Foucault, 1975; Smith, Flowers & Larkin, 2009). Como assinala Araújo (2010), a pessoa deve ser reconhecida em sua singularidade independente de sua condição patológica.

Ainda nesta perspectiva, Petrelli (2008) afirma que a fenomenologia se preocupa mais em desvelar o segredo das coisas, já que a ciência não é explicativa, mas sim descritiva, onde o objetivo não é a descoberta de causalidades, mas sim a possibilidade de compreensões das condições humanas. No entanto, o descobrimento de alterações do neurodesenvolvimento de uma criança, um dos momentos de maiores tensões vivenciados pela família, vem acompanhado do sentimento de culpa e da ânsia em explicar e identificar possíveis causas; e modificar os fenômenos psicopatológicos (Fávero & Santo, 2005; Franco, 2016; Rehfeld, 2000).

De acordo com Petrelli (2008), o comportamento alheio não deve ser controlado ou mudado, mas sim compreendido, respeitado e acolhido em sua análise fenomênico-existencial, com seus significados e valores. Todavia, algumas famílias enfrentam dificuldades em assumir essa postura, pois como afirma Tinoco (2012) a frustração existencial, ainda que não seja considerada patológica, em muitas ocasiões não garante saúde mental.

Além disso, diante da condição de um diagnóstico do(a) filho(a) os pais se veem obrigados a abandonar as expectativas projetadas para a criança, criando novas, que possam incluí-la e comumente se colocam intensamente a serviço do desenvolvimento do filho, abdicando-se de sua própria história, em um movimento de viver a história da criança, alterando a qualidade de vida geral da família (Banach, Iudice, Conway & Couse, 2010; Gadamer, 1993).

Dentre os impactos vividos pelas famílias que possuem crianças com TEA, os principais apontados pela literatura são: mudanças nos quesitos profissionais, diários, emocionais e pessoais (Kobasa, Hilkler & Maddi, 1979). Os quais poderão mobilizar e até desorganizar as organizações das relações familiares, gerando estresse e alterações dos padrões de qualidade de vida (Sivberg, 2002).

Em consequência a esta condição, a QV dos pais sofre alterações, uma vez que ela está diretamente relacionada aos fatores psicológicos, físicos, sociais e ambientais que esta família está vivenciando. Como afirma Bom Sucesso (1997) e Minayo, Hartz e Buss (2000), QV é compreendida como resultado de percepções individuais, que variam de acordo com as experiências pessoais, os contextos e as áreas da saúde. Nesta perspectiva, pode-se afirmar que a QV é compreendida de acordo com a clarificação da obscuridade da existência de cada ser, pois o indivíduo só terá consciência de sua QV uma vez que estiver em contato e atribuir significados as situações que estiver exposto. Portanto, QV não é um estado, mas sim um processo que pode variar de acordo com as relações e vivências experienciadas de forma individual (Augras, 2004).

Nesse sentido, a QV das mães só poderá ser compreendida a partir da descrição da realidade, dos objetos e dos fatos, daquilo que emerge em suas consciências como significantes para compreensão de suas realidades (Petrelli, 2008). Portanto, as motivações e os déficits que o TEA poderá causar para a criança e para a família estão para além dos sintomas descritos, mas sim a serviço da subjetividade individual daqueles que estarão envolvidos em prol de um desenvolvimento, de uma aceitação e de uma busca de um equilíbrio holístico para a criança a para a família de forma geral.

Petrelli (2017) considera a maternidade como um evento social gerador de saúde. Uma vez que esse padrão é quebrado, torna-se fundamental a compreensão existencial que estas mães estão ofertando para si perante as suas realidades. Augras (2004) salienta que para a compreensão existencial necessita-se do encontro com a intersubjetividade, aprofundando o conhecimento sobre si próprio, não apenas para controlar os limites das atuações, mas também como possibilidade para o conhecimento e compreensão do outro.

Nesta vertente, Augras (2004) elege seis categorias existenciais a serem analisadas com a finalidade de auxiliar na compreensão da existência humana: a situação na qual a pessoa se encontra, seu campo existencial; a forma como lida com o tempo, tanto cronológico quanto vivido; a espacialidade como forma de experienciar a realidade do mundo; o outro visto tanto em si mesmo quanto naqueles com quem se relaciona; a linguagem que possibilita o contato; e a obra, ou seja, aquilo que o ser produz, não só materialmente, mas enquanto ser vivente.

Considerando o princípio da fenomenologia, este trabalho tem como objetivo primário descrever e compreender as construções subjetivs sobre a QV autorreferenciada de mães de crianças com TEA e como objetivo secundário realizar uma leitura fenomenológica sob a ótica das seguintes categorias existenciais: a situação, o tempo, a espacialidade, o outro, a linguagem e a obra.

 

Método

Delineamento do estudo

Artigo empírico, descritivo, exploratório, com utilização do método qualitativo, especificamente do método fenomenológico de Giorgi (1985) e fundamentado a partir de uma leitura da psicopatologia fenomenológica (Augras, 2004).

Local do estudo

Este estudo foi desenvolvido no Centro de Atenção Psicossocial Água Viva e no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás-Goiânia. A aplicação do questionário sociodemográfico e clínico e a realização das entrevistas semiestruturadas ocorreu em salas reservadas e consultórios dentro das instituições citadas.

Participantes

Trata-se de uma amostra de conveniência, constituída por 10 mães de crianças diagnosticadas TEA (apresentadas com nomes fictícios), usuárias dos serviços de saúde. Foram utilizados como critérios de inclusão, pessoas com filho (a) diagnosticado com TEA, entre dois a 12 anos de idade, que tivesse realizado acompanhamento nas instituições beneficiárias nos últimos 12 meses (2016/2017) e que aceitassem e assinassem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), aprovado previamente pelo Comitê de Ética de Pesquisa da PUC-GO. Como critérios de exclusão adotaram-se participantes diagnosticados com Transtornos Mentais e/ou que não respondessem adequadamente a todos os itens dos instrumentos utilizados pela pesquisa.

Instrumentos

Foram utilizados questionários de dados sociodemográficos e clínicos, composto por dezoito questões relativas à: nome, idade, estado civil, escolaridade, situação profissional, renda familiar do participante e aspectos clínicos sobre a criança (ano de diagnóstico, tipos de tratamentos, indicadores de comorbidades, medicamentos, dentre outros); Entrevista Semiestruturada sobre a Qualidade de Vida de Pais de Crianças com Transtorno do Espectro Autista composta por nove perguntas disparadoras, que abordaram temáticas tais como: qualidade de vida, diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista e a relação entre elas.

Procedimentos

Primeiramente, a pesquisadora solicitou a permissão junto a Secretaria Municipal de Saúde - Superintendência de Administração e Gestão de Pessoas - responsável pelos serviços oferecidos no Centro de Atenção Psicossocial Água Viva e com o coordenador do Núcleo de Pesquisa - HC/UFG responsável pelos estudos realizados no Hospital das Clínicas da UFG. Após a permissão, solicitou-se a aprovação do Projeto de Pesquisa pelo Comitê de Ética de Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (número CAAE: 58240116.4.0000.0037). Ambas as instituições beneficiadas disponibilizaram uma relação dos pacientes que utilizavam os serviços para apuração dos possíveis participantes para o estudo. A lista de mães que aparentemente se encaixavam dentro dos critérios de inclusão da pesquisa foi fornecida pela coordenadora do CAPS Água Viva.

Concluída esta etapa, a pesquisadora realizou contato, via telefone, para as pessoas que preencheram os critérios de inclusão elucidando sobre o objetivo do trabalho e indagando a respeito do interesse e disponibilidade para participar do estudo. O encontro com cada participante ocorreu individualmente, em salas reservadas, com duração média de 40 minutos, onde realizou-se a acolhida da participante e a leitura detalhada do TCLE reservando tempo para que a participante esclarecesse quaisquer dúvidas sobre a pesquisa e assinasse o termo. Em seguida, para o estudo qualitativo, a participante foi submetida ao questionário sociodemográfico e clínico e à entrevista semiestruturada baseada na metodologia de Giorgi (1985), que ocorreu por meio de nove perguntas disparadoras, sendo elas: 1) Para a senhora o que é ter uma vida com qualidade? 2) Como a senhora compreende a sua qualidade de vida? 3) Quais os principais fatores que tem favorecido a sua qualidade de vida? 4) Quais os principais fatores que tem desfavorecido a sua qualidade de vida? 5) Como a senhora percebe o diagnóstico do (a) seu/sua filho (a)? 6) Qual o impacto que a senhora percebe que o diagnóstico de seu/sua filho(a) teve para sua família? 7) Qual a percepção da senhora sobre os tratamentos oferecidos ao seu/sua filho (a) pela instituição? 8) Como a senhora percebe sua qualidade de vida (QV) após o diagnóstico do (a) seu/sua filho (a) vivenciados até o momento? 9) Como a senhora percebe a sua qualidade de vida (QV) após os tratamentos do (a) seu/sua filho(a) vivenciados até o momento na instituição?

Concluída a etapa da coleta de dados, as entrevistas foram transcritas integralmente, garantindo o sigilo das participantes, analisadas segundo o método de pesquisa fenomenológica de Giorgi (1985) que segue os quatro passos de reduções fenomenológicas.

O primeiro passo proposto por Giorgi corresponde à leitura de toda a descrição, com o objetivo de alcançar o sentido do todo. Portanto, é necessário compreender a linguagem de quem fala, sem qualquer tentativa de identificar as unidades significativas. O segundo passo prevê a discriminação das unidades significativas, baseada na fenomenologia e focada no fenômeno. O pesquisador faz a releitura da transcrição na íntegra com o objetivo de discriminar as unidades de significado na perspectiva psicológica, focando no fenômeno pesquisado. Nesse passo, a linguagem do sujeito não é modificada, pois é essencial para o método que as discriminações ocorram antes e que sejam feitas espontaneamente, para depois serem interrogadas. No terceiro passo, transforma-se a fala do sujeito em uma linguagem psicológica, modificando a linguagem cotidiana do participante em linguagem psicológica apropriada com ênfase no problema estudado. No quarto e último passo, realiza-se a síntese das unidades significativas na qual o pesquisador sintetiza todas as unidades significativas em uma declaração consistente da significação psicológica dos fenômenos observados em relação à experiência do sujeito.

O método de Giorgi tem o intuito de identificar as unidades de significado que expressam o conteúdo temático dos depoimentos e, no presente artigo, as unidades identificadas foram correlacionadas com as categorias existenciais de Augras (2004).

 

Resultado e Discussão

Na Tabela 1 são apresentados os perfis de cada mãe participante e, na Tabela 2, as sínteses das entrevistas evidenciando-se as unidades de significado emergentes dos discursos ao desvelarem o fenômeno da qualidade de vida na condição de mães de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Os dados são articulados, ainda, em sua interface com seis categorias existenciais, quais sejam: a situação, o tempo, a espacialidade, o outro, a linguagem e a obra (Augras 2004).

A Tabela 1 ilustra os perfis das mães participantes do estudo e também o quadro clínico do (a) filho (a) diagnosticado (a) com TEA. A partir desta descrição, torna-se possível identificar a singularidade vivenciada por cada mãe em relação às suas condições amorosas, educacionais, profissionais e financeiras.

Iniciando com as características descritas por cada mãe, a maioria são casadas. Nos quesitos educacionais, metade das participantes possuem ensino médio, enquanto a outra metade apresenta ensino superior, sejam eles incompletos ou completos. Este dado, pode estar relacionado com as condições profissionais e financeiras apontadas pelas mães participantes, onde a maioria delas relataram exercer um trabalho regular e possuir uma renda familiar de três a quatro salários mínimos.

Essas condições amorosas, educacionais, profissionais e financeiras, podem ser interrelacionadas para favorecer uma totalidade existencial das mães participantes do estudo. A condição de ter uma vida amorosa estável foi descrita pela maioria das mães participantes como uma condição para um melhor suporte emocional, físico e social, perante a realidade de ter um filho portador de TEA. O que está de acordo com a teoria proposta por Fávero e Santos (2005) que considera a união conjugal como uma possibilidade de construção de novas formas de perceber e vivenciar as limitações e as possibilidades da vida humana.

Ainda em relação com a condição amorosa, pode-se dizer que a situação educacional, profissional e financeira também está interligada. Uma vez que, ainda que algumas mães apresentem condições de trabalho, a maior parte da renda familiar é construída em conjunto com o parceiro, visto que algumas participantes relataram trabalhar com cargas horárias inferiores, pois para além do trabalho profissional, existem aqueles relacionados aos cuidados do lar e também do(a) filho(a). Direcionando para a oportunidade de trabalhar, é válido ressaltar que a capacidade para exercer essa função, pode ser um favorecedor da QV das mães participantes do estudo. Como afirmam Stoner e Stoner (2016) o trabalho pode ser compreendido como parte da própria identidade e como espaço de desenvolvimento do adulto. Uma vez que a pessoa se sente impossibilitada de exercer essa função, podem ser intensificados os níveis de estresse, desfavorecido as condições financeiras e até mesmo impactos nas relações amorosas (Yeargin-Allsopp, Rice, Karapurkar & Doemberg, 2003).

Além destas condições humanas e singulares descritas por cada participante, os aspectos relacionados ao tempo de diagnóstico do(a) filho(a), os tratamentos terapêuticos e medicamentosos e a presença de comorbidades, também foram abordados. Uma vez que estes podem estar diretamente relacionados com a QV vivenciada por cada mãe participante deste estudo. De acordo com as mães participantes do estudo, a maioria delas relatam conviver com a condição de ter um filho diagnosticado com TEA a mais de três anos. Ainda que o TEA não seja considerado uma doença, mas sim um transtorno, na perspectiva da psicopatologia fenomenológica ele pode ser compreendido tanto a partir dos fenômenos sintomáticos como idiopáticos, todavia, resultante em uma diminuição da capacidade de estabelecer relações (Antony, 2012; Petrelli, 2017). Uma vez que esta realidade se faz presente, a necessidade de receber suporte terapêutico é necessária para auxiliar a criança e, também, a família a ter uma QV favorável. Todavia, as mães do estudo, frequentemente relatam que os suportes terapêuticos, na maioria das vezes, são direcionados para as crianças, com a ideia de favorecer as modificações dos comportamentos e amenizar os sintomas, considerados problemas.

Supõe-se que existe um olhar atentivo das políticas públicas para o desenvolvimento da criança, todavia ainda com ideias dicotomizadas e com intervenções que consideram apenas a criança como membro que necessita de intervenções terapêuticas, sem considerar usualmente, a QV das mães que necessitam levar a criança para as terapias e, muitas vezes, não recebem as orientações e o suporte adequado para expandir os cuidados decorrentes dos centros terapêuticos.

Como afirma a teoria de Kobasa et al. (1979) e Sivberg (2002) o diagnóstico de TEA pode trazer diversos impactos na QV das famílias, sejam eles físicos, psicológicos, ambientais e/ou sociais, gerando estresses, variações das experiências pessoais e alterações dos padrões de vida. Em interface com a fenomenologia, torna-se evidente que o TEA não é uma psicopatologia individual da criança, mas sim familiar, necessitando, portanto, ser compreendida sob essa ótica maior. Essa concepção do TEA ainda é acrescentada por Petrelli (2017) como uma condição para além do âmbito familiar, e sim cultural.

Baseado nos dados obtidos neste estudo, percebe-se que a maioria das mães descrevem que os filhos estão em terapia ou fazendo o uso de medicamentos. Todavia, nenhuma cita estar em terapia e tão pouco estar recebendo o suporte terapêutico adequado para favorecer uma melhor QV para si e para sua família de forma geral, embora ainda algumas citam, que quando necessário a equipe multidisciplinar do serviço oferece suporte. Neste contexto, observa-se ainda uma visão individualizada para a criança, onde a leitura de seu transtorno ainda é realizada de forma isolada, sem considerar os possíveis impactos que ele pode estar causando no ambiente familiar.

Nesta perspectiva, comprova-se que as objetividades dos tratamentos das crianças são mais valorizadas do que a subjetividade atribuída por cada perante as suas próprias necessidades e sua QV. Até mesmo no discurso da maioria das mães é possível observar o quanto a necessidades delas olharem para elas mesmas se tornam inferiores a partir da necessidade de oferecer um tratamento para o filho. Um dos exemplos que elucida a prioridade atribuída às necessidades da criança é o discurso da participante P8 - Tatiana: "Num tem como eu me dedicar a outra coisa, a estudar ou até mesmo trabalhar, não tem como. O período da tarde é todo pra ele. (...)".

Em contrapartida, existem também aquelas mães que fazem uma leitura favorável perante as estimulações terapêuticas do filho, pois, ainda que a rotina seja árdua e o estresse seja intenso devido a exaustão, o tratamento pode trazer para as mães a oportunidade de terem um tempo para si, a esperança do desenvolvimento do filho e consequentemente uma melhor QV, uma vez que ver as dificuldades do filho traga impactos significativos. Divina, participante P2 demonstra essa afirmação quando expõem:

No começo das terapias era muito difícil, (...) ele não ficava (...) era quinze minutos e o profissional me chamava. (...) hoje ele fica quarenta minutos (...) consigo ter um tempo para mim, (...) enquanto ele está sendo atendido. (...) porque tem hora que cansa (...) mais ele tá aprendendo a concentrar (...) está muito melhor (...).

De acordo com o pensamento de Banach et al. (2010) e Gadamer (1993) é compreensível que mães se coloquem intensamente a serviço do desenvolvimento do filho. Entretanto, ainda que essa seja uma escolha da mãe, não assegura um não impacto na QV, uma vez que ela está relacionada aos aspectos subjetivos e intimamente relacionada com o significado atribuído individualmente.

Direcionando para uma síntese das entrevistas das participantes, a Tabela 2 elucida as seis categoriais existenciais propostas por Augras (2004). Quanto a categoria existencial "a situação", Augras (2004) a descreve como a maneira individual que cada pessoa encontra para estar em contato com o mundo humano, próprio e circundante, como afirma a teoria existencialista de Binswanger (1977). De acordo com Holanda (2014) compreender o homem perpassa pela sua contextualização existencial, como um ser de relações mundanas e transcendentes. Em concordância, Petrelli (2008) explica que a existência humana precisa ser compreendida a partir da realidade individual, pois o fenômeno possui uma singularidade inesgotável de criatividade. Portanto, ainda que ter um(a) filho(a) diagnosticado(a) com TEA seja comum entre as participantes, o significado desta realidade e a influência em suas QV são vivenciados de maneira particular.

As participantes Luciana (P4) e Raquel (P9) ilustram isso com clareza quando apresentam compreensões diferentes perante a condição existencial do filho. Luciana (P4) diz:

é um choque. (...) Eu não sabia o que seria o autismo. Hoje (...) que eu saiba é um transtorno que afeta os neuro da criança. (...) na verdade eu sei muito pouco de autismo para uma mãe de autista. Na verdade, eu não sei nada. A gente não tem acompanhamento (...).

Em contrapartida, o significado e a criatividade de Raquel (P9) percorreu caminhos diferentes. A participante diz:

Por muito tempo foi como impossibilidade (...) eu transformei isso em possibilidade. O diagnostico dela me levou a querer fazer uma faculdade. (...) o diagnostico dela ao mesmo tempo que é chocante e é uma coisa muito ruim pra gente e pra família, (...). Minha filha precisa de mim, (...) a base é ela. E é isso que me dá força. Uma frase pra definir o diagnostico é a possibilidade que eu tive de buscar, de ir atrás de conhecimento, (...).

Para além destes trechos relacionados à compreensão individual do diagnóstico, as subjetividades expressadas por cada mãe participante do estudo, também se fizeram presentes na compreensão da QV assim como ilustra a Tabela 2.

De acordo com a Tabela 2, é possível identificar e compreender que cada mãe apresenta aquilo que mais emerge em si quando o tópico de investigação é a QV em interface com a condição de ter um(a) filho(a) com TEA. Dentre as categorias existenciais propostas por Augras (2004) como a situação se refere a condição existencial que cada pessoa se encontra, ela foi identificada e considerada emergente em todos os discursos. Seguido desta categoria, as duas outras que mais emergiram nas falas das mães foram: a obra e o outro, e a menos citada foi o tempo.

Traduzindo para uma leitura fenomenológica, pode-se compreender que cada mãe apresenta sua intencionalidade, ainda que as variáveis disparadoras sejam as mesmas. Ribeiro (1985) considera a intencionalidade como um movimento transcendente de atribuir sentido e significado as coisas.

Neste estudo, identificou-se que as intencionalidades das mães, de uma forma geral, podem ser compreendidas a partir das categoriais existenciais apresentadas com maiores frequências, sendo elas: "obra" e "outro". Iniciando com a categoria " a obra", Augras (2004) a define como além de produções materiais; trata-se de uma obra implícita de um fazer contínuo do processo da vida. Nesta perspectiva o homem é sua própria obra e sua própria construção. Relacionando com a realidade contextual das mães participantes do estudo, ter um(a) filho(a) com TEA faz parte de seus campos existenciais, todavia, todas elas são livres e responsáveis pelas construções e significados que este diagnóstico terá em sua QV de forma geral.

Portanto, a partir de uma leitura fundamentada na psicopatologia fenomenológica, ainda que o TEA possua uma compreensão sintomatológica, sua real compreensão se dá após a clarificação do significado obscurecido da cada família que está vivenciando tal condição existencial e identificar as possibilidades de cada pessoa encontra para construir suas próprias obras.

Jaqueline (P7) exemplifica sua obra frente o diagnóstico do filho e a forma como conseguiu ressignificá-lo, substituindo possíveis sentimentos de culpas, que impactariam sua QV para sentimentos de oportunidades, que favorecem a leveza de caminhar adiante ao relatar:

(...) quando surgiu o diagnóstico, tudo mundo ficava tipo: nossa, porque? (...) de onde vem, porque ele é especial (...) você é culpada. E foi mesmo impactante (...) hoje não (...) então assim, eu não sinto culpa, eu sinto escolhida, eu não me sinto culpada (...) o diagnóstico veio tirar uma dúvida da minha cabeça (...) sabia que meu filho não era igual minha outra filha (...) assim, eu fui escolhida para ter uma criança especial (...).

Em relação com a capacidade de estar em processo de vida, buscando sempre uma forma mais saudável e equilibrada para favorecer a QV, está a categoria existencial - "outro", que também foi transmitida por boa parte das participantes, e está em relação com a necessidade de cuidar de si, do outro, neste caso o filho, e receber suporte social. Todavia, boa parte das mães expõem a incapacidade destes cuidados serem prioritários para si, uma vez que a condição existencial do filho, gera mudanças significativas nas prioridades e nas funções maternas.

Ainda nesta perspectiva de estar em relação com o outro, muitas mães queixam da dificuldade encontrada nos suportes sociais, uma vez que as ajudas e as compreensões não acontecem de acordo com as expectativas delas. Vanessa, P3, demonstra que sua QV é afetada nesta dimensão ao dizer:

(...) eu não tenho com quem deixar ele pra sair pra trabalhar, (...) passei em concurso público, depois que ele nasceu eu fui chamada e não teve como eu ir, (...) desde que ele nasceu tudo desfavorece minha qualidade de vida. Tudo porque eu não tenho quem olha ele (...).

No discurso de Vanessa fica evidenciado o peso das construções sociais perante a construção de uma QV saudável. O que também fica claro na categoria existencial "o outro" postulado como o mundo da coexistência e não da oposição ou da complementaridade, Augras (2004), ainda, afirma que o outro não é aquilo que eu não sou, pelo contrário, os outros são aqueles dos quais a gente não se distingue, mas se encontra. Em união a esta categoria, existe a "linguagem", definida por Augras (2004) como criação e organização do mundo a partir das compreensões individuais e essenciais do existir humano.

Adotando tal perspectiva, admite-se que o ser humano é visto como um ser integrado e em formação, o que remete a compreensão filosófica apontada por Sartre (2012) "a existência precede a essência", significando que o homem surge no mundo como um ser particular, sem possibilidades de definição prévia, podendo vir a ser, por meio das relações estabelecidas, um ser livre para fazer escolhas, consumando seu projeto de vida de ser-no-mundo (Ginger & Ginger, 1995; Ribeiro, 1985; Yontef, 1998).

Rosangela (P5) descreve a significância de estar em contato com seu filho diagnosticado com TEA para a construção, formação e transformação, não apenas de sua qualidade de vida, mas também do seu ser de forma total, pois, diariamente aprende com seu filho e desenvolve percepções que até então não tinha sentido em sua vida.

(...) os pais ficam um pouco autistas também, cê vive tanto isso, que pra você é natural (...) cê vai desenvolvendo outros sentidos. (...) Eu comecei a ouvir mais as pessoas, ouvir os sons, (...) ele gosta muito de fenômeno da natureza, (...) ele não conseguia entender como que podia chover e ter sol ao mesmo tempo. (...) você vai entrando nesse pensamento e você vê que é um pensamento bem profundo das coisas, porque a gente fica tão no automático (...) ele tem me mostrado que o que importa é ser feliz. (...) Igual, esse natal ele pediu nas cartinhas, seis reis. (...) Comprei mais umas coisas como se fosse o papai Noel tentando fazer com que ele entendesse a simbologia da coisa, aí eu falei "olha meu filho e tal... que bom que o papai Noel te trouxe umas coisas, aí ele falou: "pois é mãe, ele enganou porque eu só pedi isso". (...) foi mais uma necessidade minha (...).

A partir da relação entre os aspectos teóricos e a ilustração do trecho da entrevista de Rosângela, identifica-se que ainda que o mundo aparenta se apresentar de forma igualitária a todos, a sensibilidade para apreciá-lo é individual. E também que, ainda que estar em relação diária com uma criança diagnosticada com TEA possa ser desafiador, Rosangela atribui a esse contato uma possibilidade para se transformar e consequentemente favorecer sua qualidade de vida em outras dimensões.

Para além das compreensões dos processos de vida, das relações sociais, existe também duas categoriais imprescindíveis para favorecer que a QV seja desenvolvida nestas dimensões, sendo elas: a espacialidade e a temporalidade, além de estarem em constante sintonia, estão também em harmonia com o outro, pois as relações se dão em suas totalidades e apenas neste eixo torna-se possível a compreensão da existência humana.

A "espacialidade" (Augras, 2004), a qual é constituída a partir das extensões do corpo e inclui o mundo - compreendido como sítio humano que é orientado e dimensionado pelo homem, não como uma ordem, mas como um processo de construção - como forma de experienciar a realidade. Ainda nesta perspectiva, Costa (2008) considera a espacialidade como modos da pessoa estar no espaço. Todavia, a autora afirma que o espaço não se caracteriza como um recipiente, mas como espacialidade que se estende conforme as ações são efetuadas e de acordo com a tomada de consciência e do sentido atribuído individualmente e também socialmente. Assim, para Raquel (P19):

(...) sem a medicação a gente já passou noite terríveis assim, de terror mesmo de ir polícia na nossa casa, achando que a gente tava matando alguém de tanto que ela ficou agressiva e violenta, e ela tinha bem menos idade, ela tinha oito anos, agora ela já tá com doze, então ela melhorou muito a questão do comportamento, não mudou na questão da aprendizagem, eu não digo ela tem aprendido porque ela continua muito dependente, mas na questão de ficar mais calma, de dormir pelo menos, que a gente não dormia.

Ainda na intenção de compreender o sentido e o significado que as mães apresentam em relação a suas QV, Augras (2004) define a categoria existencial "o tempo" não como uma dimensão do mundo, mas como uma orientação significativa do ser. Portanto, analisar o tempo é observar o homem em sua contradição entre a permanência e a transitoriedade; poder e impotência; vida e morte. Holanda (2014) aponta que o tempo, no caso da fenomenologia, a temporalidade, desempenha uma função crucial para a compreensão da consciência, por ser o elemento unificador das estruturas vivenciais. Em concordância, Costa (2008) descreve que o tempo não significa o tempo em si, mas os modos que as pessoas vivem temporalmente, construindo espacialidades e temporalidades.

Portanto, compreende-se que o tempo não é imutável, ele é alterado e transformado de acordo com os significados e as experiências vivenciadas por cada pessoa. Juliana, participante P10, elucida sua forma de vivenciar o tempo quando diz:

(...) o tempo pra mim mesmo eu ainda não tenho, e eu uso a palavra ainda porque eu sei que eu vou ter, (...) precisa melhorar meu tempo, mas é tudo questão de tempo, (...) eu preocupo muito, foco muito na criança, as vezes eu percebo que assim, é como se eu vivesse só ele (...) mas como ser diferente né? (choro) Desculpa. (...) eu gosto muito de tá cuidando de mim, ter tempo pra mim, ir em uma academia, dançar, tava com o peso controlado, essas coisas de questão pessoal mesmo né, mas tudo tem um tempo, (...) mas não fico prostrada não, porque a vida tá aí, a gente tem que correr atrás(....) falo para o meu esposo, o que a gente tiver que fazer pelo Rodrigo nós dois, tem que fazer agora, porque a gente tem mais disposição, mais tempo, mais saúde, e vai ser melhor pra ele, porque ele vai crescer e vai ter uma qualidade de vida, e o dia que a gente não tiver aqui ele vai ser mais independente, então eu acredito que daqui uns três anos a rotina nossa vai tá mais aliviada, eu sempre vivo nessa expectativa assim de que as coisas vão tá melhor.

É possível identificar que para Juliana, ainda que sua qualidade de vida seja prejudicada pela falta de tempo para cuidar de si; o cuidar do outro, em especial o filho com TEA lhe gera uma esperança de um futuro de qualidade para o filho. Segundo Banach et al. (2010) e Gadamer (1993) é comum que as mães se coloquem intensamente a serviço do desenvolvimento do filho, ainda que necessita abdicar de fatores importantes para si, neste caso, o tempo e modificar suas prioridades de vida no presente.

Correlacionando o exemplo com a fenomenologia, Minkowski (1973) considera que o tempo é vivido de forma individual, ainda que existe o tempo cronológico, universal para todos. Considerando a vivência do tempo, o autor afirma que todo indivíduo tem a possibilidade de experienciar, transcender, mensurar, quantificar e prever o tempo de acordo com as suas subjetividades, individualidades e necessidades. Portanto, torna-se compreensível, quando investigado a partir da ótica de Juliana, a necessidade que ela tem hoje de escolher oferecer seu tempo, ainda que transmita a ideia de uma perda de sua QV, em detrimento da QV do filho.

 

Conclusão

Ainda que se busque um padrão para compreensão da QV e dos principais prejuízos vivenciados pelas mães de crianças com TEA, cada uma dispõe de fatores subjetivos que refletem em sua forma de experienciar a condição de ser mãe de uma criança com necessidades especiais. Encontrou-se na fenomenologia, a possibilidade de atribuir valor aquilo que é sentido, pensado e atribuído significado para cada mãe, em detrimento daquilo que é quantitativamente esperado.

Na perspectiva da psicopatologia fenomenológica, o TEA é vivenciado em uma dimensão maior do que apenas as características sintomatológicas apresentadas pela criança. O cerne da compreensão do TEA está no olhar atentivo as características idiopáticas; as escolhas, liberdades e responsabilidades que cada mãe que está na condição de exercer a maternidade de um(a) filho(a) nestas condições existenciais fazem de suas QV nas dimensões físicas, psicológicas, sociais e ambientais.

Para além da compreensão do significado do diagnóstico e dos quadros comportamentais da criança, a mãe precisa ser acolhida e considerada em sua forma de vivenciar esse encontro com seu/sua filho(a), sendo adequado uma leitura compreensiva e descritiva, em oposição a uma leitura interpretativa e assertiva em busca de padrões de respostas. Por isso, encontrou-se nas categoriais existenciais propostas por Augras (2004) a possibilidade de atribuir voz aos sentimentos e significados descritos pelas mães. As categorias existenciais escolhidas apontam para formas de ser e estar no mundo, porém, respeitando as possibilidades e as limitações individuais.

Portanto, a leitura baseada a partir da fenomenologia psicopatológica, demonstra que a ciência ao buscar compreender a QV de pessoas com características similares, também considera a relevância dos aspectos subjetivos e o significado que cada mãe constrói de sua própria realidade, pois, nesta perspectiva, é aceitando a pessoa com suas dores e alegrias, seus pesadelos e sonhos, suas limitações e potencialidades, que torna-se acessível auxiliá-la na tomada de consciência para favorecer sua qualidade de vida.

 

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Recebido em 14.08.2018
Primeira Decisão Editorial 05.12.2018
Aceito em 24.04.2019

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