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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.3 São João del-Rei set./dez. 2016
A rede de proteção e cuidado a crianças e adolescentes do município de Betim/MG e os desafios do enfrentamento ao uso abusivo de crack, álcool e outras drogas1
The children and adolescents protection and care network of Betim/MG and the challenges in coping with abuse of crack, alcohol and other drugs
La red de protección y cuidado a niños y adolescentes de Betim/MG y los retos del enfrentamiento del abuso de crack, alcohol y otras drogas
Izabel Christina Friche PassosI; Amanda Márcia dos Santos ReinaldoII; Maria Aline Gomes BarbozaIII; Gilsiane Aparecida Ribeiro BragaIV; Kamila Emanuelle LadeiraV
IDoutora em Psicologia. Professora Associada do Departamento de Psicologia da Fafich/UFMG. E-mail: izabelfrichepassos@gmail.com
IIDoutora em Enfermagem Psiquiátrica. Professora Associada do Departamento de Enfermagem Aplicada da Escola de Enfermagem/UFMG. E-mail: amandamsreinaldo@gmail.com
IIIDoutoranda em Psicologia pela UFMG. Analista de Políticas Públicas da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte/MG. E-mail: linepur@gmail.com
IVMestre em Psicologia pela UFMG e Psicóloga da Secretaria Municipal de Saúde de Betim/MG. E-mail: gilsianearb@hotmail.com
VPsicóloga e Residente em Saúde Mental do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde do Hospital Odilon Behrens - Secretaria de Saúde de Belo Horizonte. E-mail: emanuelle.mila@gmail.com
RESUMO
O objetivo do estudo foi contribuir para o desenvolvimento do trabalho em rede intersetorial e interdisciplinar por meio da realização de um diagnóstico situacional de uma rede de cuidados e da aplicação da Formação Cruzada como estratégia para ampliar o conhecimento dos atores dessa rede em relação ao seu fazer quotidiano e possível fortalecimento da rede. O método empregado foi a pesquisa-ação. Constatou-se falta de articulação da rede e pouca expertise na abordagem da problemática, tendo na intersetorialidade um de seus principais desafios. A Formação Cruzada apresenta-se como uma ferramenta estratégica no compartilhamento de informações sobre o cuidado da criança e do adolescente na rede de atenção. Aponta-se que a construção de estratégias para o manejo de impasses em relação à demanda do município estudado se faz necessária, considerando a participação dos atores envolvidos.
Palavras-chave: Abuso de drogas; Criança; Adolescente; Intersetorialidade; Educação continuada
ABSTRACT
The aim of the study was to contribute to the development of the work in intersectorial and interdisciplinary network by conducting a situational diagnosis of a care network and applying the Cross Training as a strategy to increase knowledge of the actors of this network regarding their daily job and possible strengthening of the network. The method used was the action research. A lack of network articulation and little expertise in the approach of the problem were verified, being the intersectoriality one of its main challenges. The Cross Training appears as a strategic tool in sharing information about the attention of children and adolescents in the care network. It is necessary to construct strategies for handling the impasses regarding the demand of the studied city considering the participation of the actors involved.
Keywords: Drug abuse; Child; Adolescent; Intersectorial action; Continuing education
RESUMEN
El objetivo del estudio fue contribuir al desarrollo del trabajo en red intersectorial e interdisciplinario mediante la realización de un diagnóstico situacional de una red de atención, bien como la aplicación de la Formación Cruzada como una estrategia para aumentar el conocimiento de los actores de la red, en relación a su actuación cotidiana y posible fortalecimiento de la red. El método utilizado fue la investigación-acción. Se encontró una falta de coordinación de la red y poca experticia en el tratamiento del tema, siendo la intersectorialidad uno de sus principales retos. La Formación Cruzada se presenta como una herramienta estratégica en el intercambio de información sobre el cuidado de los niños y adolescentes en la red de atención. Se señala que la construcción de estrategias para el manejo de las dificultades en relación con la demanda de la ciudad estudiada es necesaria teniendo en cuenta la participación de los actores involucrados.
Palabras claves: Abuso de drogas; Niño; Adolescente; Acción intersectorial; Educación continua.
Introdução
A reorientação da política de saúde mental em direção ao trabalho intersetorial em rede constitui, juntamente com outras diretrizes da Reforma Psiquiátrica Brasileira em curso, uma estratégia fundamental para a ampliação do acesso a ações em saúde mental a toda a população, incluindo os usuários de álcool e outras drogas. A partir da reformulação político-jurídica e assistencial promovida pela Reforma, fica patente a necessidade de estreitamento de laços entre os dispositivos de saúde e de inclusão social de modo a favorecer estratégias de ação em rede, especialmente na prevenção e tratamento do uso abusivo e da dependência de substâncias psicoativas (Brasil, 2001a). Tal diretriz foi reforçada pela Portaria/GM nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, que formaliza a Rede de Atenção Psicossocial - RAPS (Brasil, 2011a).
A criação de dispositivos para abordagem de problemas relacionados ao álcool e outras drogas, que auxiliem na conformação e no estabelecimento dessa rede, que se quer complexa, múltipla, democrática e territorial, demonstra a preocupação das políticas de saúde com o fenômeno das drogas, em especial com o emergente problema da expansão do crack. O recente e abrangente estudo epidemiológico sobre o uso de crack no país (Bastos &Bertoni, 2014) traz dados importantíssimos sobre faixa etária, cor/raça, escolaridade e estado civil dos usuários, moradia, formas de obtenção de dinheiro, consumo de crack associado a outras drogas, motivação subjacente ao consumo, tempo médio de uso, padrões de uso, intoxicação aguda/overdose, comportamento sexual, dentre outros. Malgrado ações recentes de caráter repressivo e higienista, tais como a internação compulsória, adotadas por alguns governos estaduais e municipais, visando especialmente às camadas pobres e aos moradores em situação de rua, esse fenômeno não está circunscrito às chamadas classes sociais desfavorecidas, afetando a sociedade como um todo, independentemente da faixa etária e exigindo a migração para modalidades de intervenção rápidas, eficientes e, sobretudo, humanizadas e respeitosas das singularidades dos usuários.
Ainda que o Ministério da Saúde estabeleça diretrizes de tratamento para os usuários de crack, álcool e outras drogas no âmbito público, e que a amplitude das discussões sobre o tema tenha crescido na última década, algumas pesquisas constatam que essa temática é ainda pouco explorada ou cercada de estereótipos entre os profissionais da área (Araújo, Gontiés& Nunes, 2007; Castanha & Araújo, 2006; Gomide et al., 2010) e que os serviços de saúde mental têm encontrado dificuldade em apresentar propostas resolutivas para esses casos, cuja demanda de atendimento está aumentando expressivamente (Corradi-Webster, 2013; Ribeiro, 2004). O aumento da demanda para o setor público se relaciona fortemente com um fator histórico: ser recente a oferta de cuidados aos usuários de álcool e outras drogas em serviços substitutivos de saúde mental. Em relação à oferta de tratamento para crianças e adolescentes, especificamente, observa-se escassez de propostas substanciais e experiências relevantes de longa duração.
Tal panorama tem convocado governo e sociedade civil para a criação de estratégias de intervenção que visem à prevenção, à promoção da saúde e à redução de danos sociais e individuais no tocante à saúde de crianças e adolescentes envolvidos com abuso de álcool e outras drogas. Diante desse cenário, o Ministério da Saúde recentemente elegeu como uma das suas áreas técnicas de atuação a saúde do adolescente e do jovem, tendo como eixos a promoção, proteção e recuperação da saúde.
O objetivo do presente estudo foi contribuir para o desenvolvimento do trabalho em rede intersetorial e interdisciplinar por meio da realização de um diagnóstico situacional de uma rede de cuidados e da aplicação da Formação Cruzada como estratégia para ampliar o conhecimento dos atores dessa rede em relação ao seu fazer quotidiano. A partir desse conhecimento, pretendeu-se colaborar com a rede de atenção para o manejo das situações de vulnerabilidade psicossocial de crianças e adolescentes, especialmente em relação ao uso prejudicial de drogas. A pesquisa foi realizada no período de fevereiro de 2012 a agosto de 2014 e obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG, sob nº CAAE-08071712.6.0000.5149, tendo todos os participantes assinado o(s) Termo(s) de Consentimento Livre e Esclarecido correspondente(s) ao(s) procedimento(s) de pesquisa do qual participou (entrevista individual, oficinas e resposta ao Inventário de crenças e atitudes).
Breve histórico das políticas públicas sobre drogas no Brasil
O Ministério da Saúde lançou, em 2003, o documento "A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas", cuja edição foi revista e ampliada (Brasil, 2004a), com o objetivo de apresentar diretrizes para o desenvolvimento de ações de caráter terapêutico, preventivo, educativo e reabilitador, direcionadas a pessoas que fazem uso de substância psicoativa e indicar que essas ações sejam realizadas na comunidade por meio dos dispositivos de atenção primária. Outro importante passo no sentido da remodelagem das ações de saúde para a área álcool e drogas foi a Portaria nº 2.197/GM, de 14 de outubro de 2004, que redefiniu e ampliou a atenção integral para usuários de álcool e outras drogas, no âmbito do SUS, e deu outras providências, considerando as determinações do documento anterior (Brasil, 2004b). Em junho de 2009, o "Plano Emergencial de Ampliação de Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas - PEAD" (Brasil, 2009) apontou prioritariamente o desenvolvimento de ações de prevenção, promoção e tratamento dos riscos e danos associados ao consumo prejudicial de substâncias psicoativas para crianças, adolescentes e jovens em situação de grave vulnerabilidade social.
As diretrizes das políticas para a juventude no Brasil (Brasil, 2010) se concretizam por meio de intervenções educativas e de inclusão social, com a participação efetiva dos adolescentes na elaboração, implementação e avaliação das ações. Ressalta-se que a atenção aos jovens depende de ações articuladas entre os programas de saúde, educação e proteção social, tais como a saúde mental, a política de atenção básica, a assistência social e a defesa social.
A Norma Operacional da Assistência à Saúde, editada pelo Ministério da Saúde em janeiro de 2001, já determinava que o cidadão deveria ter acesso, em território o mais próximo possível de sua residência, "a um conjunto de ações e serviços vinculados às responsabilidades mínimas entre os quais o tratamento dos distúrbios mentais e psicossociais mais frequentes" (Brasil, 2001b). O Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada aos Usuários de Álcool e outras Drogas (Brasil, 2002) propõe um novo olhar perante a diversidade sociodemográfica da população brasileira e da variação da incidência de transtornos causados pelo uso abusivo e/ou dependência de álcool e outras drogas. Esse programa organiza as ações de promoção, prevenção e proteção à saúde e educação das pessoas que fazem uso dessas substâncias. Estabelece ainda uma rede estratégica de serviços extra-hospitalares para a população afetada, articulada à rede de atenção psicossocial e fundada na abordagem de redução de danos (Brasil, 2004c).
Trata-se de um momento histórico, em que observamos, nas duas últimas décadas, um esforço concentrado das agências públicas no sentido de elaboração de políticas capazes de dar respostas mais condizentes com as necessidades reais da população e com os princípios de uma atenção psicossocial integral, interdisciplinar e comunitária.
De uma forma geral, podemos desenhar a rede de atenção psicossocial (RAPS) para pessoas com sofrimento mental ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso prejudicial de crack, álcool e outras drogas a partir da articulação de pontos de atenção à saúde presentes no âmbito do SUS. Conforme orientações da portaria que cria a RAPS (Brasil, 2011a), a rede deve ser constituída pelos seguintes componentes: atenção básica em saúde; atenção psicossocial especializada; atenção de urgência e emergência; atenção residencial de caráter transitório; atenção hospitalar; estratégias de desinstitucionalização; e reabilitação psicossocial. Cada um desses componentes deve ser formado por pontos de atenção que promovam o acesso das pessoas em diversas situações de vulnerabilidade ao acolhimento, acompanhamento contínuo e atenção às urgências.
Dentre esses pontos de atenção destacam-se alguns dispositivos estratégicos na atenção à população infantojuvenil. São eles: Equipe de Consultório de Rua, Equipes de saúde da família (PSF), Equipes dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), Centros de Atenção Psicossocial-Álcool e Drogas (CAPSad), Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi) e Unidades de Acolhimento Infantojuvenil.
Trata-se de uma política em fase de implantação que implica na necessidade de estudos sobre as características dos serviços, sua configuração e cobertura do território. Em relação à formação para atuação na área, a fragmentação no conteúdo dos cursos de graduação em saúde, responsáveis por formar os profissionais para a rede, é patente, embora haja experiências (Barros &Pillon, 2006; Gomide et al., 2010; Lemos, Pena, Cordeiro, Lima & Lopes, 2007; Pillon, 2005; Pillon& Laranjeira, 2005) que podem ser compartilhadas com setores acadêmicos e de serviço, tanto em conteúdos formais quanto em práticas acadêmicas extensionistas e comunitárias.
A compreensão da necessidade de uma política coesa, que envolva e garanta o acesso a serviços e medicamentos, que ofereça educação, treinamento e capacitação para profissionais de saúde, envolvendo comunidade/famílias/usuários, foi um grande passo para o estabelecimento de políticas realistas que considerem as razões, os contextos e as circunstâncias que permeiam o uso e o abuso de substâncias psicoativas. Constitui também um avanço a indicação da saúde criar vínculos com outros setores e fortalecer parcerias, inclusive com instituições de ensino.
Entretanto, apesar de todas essas diretrizes políticas, visando a uma assistência digna e democrática ao cidadão-usuário, estamos presenciando uma série de ações contraditórias por parte dos governos, em todos os níveis: federal, estaduais e locais, que têm adotado medidas repressivas que reeditam ações higienistas e eugenistas de tempos passados. Referimo-nos especialmente à internação compulsória de crianças, adolescentes e jovens em situação de rua e uso de crack, contrariando frontalmente a Lei nº 10.216 - que já prevê o tratamento involuntário -, o Estatuto da Criança e do Adolescente, e mesmo pactuações internacionais. Não há aqui espaço para aprofundamento da discussão sobre a situação concreta atual, muito conflituosa e complexa, caracterizada por embates entre forças sociais e políticas progressistas e conservadoras (ver, a propósito, Passos & Lima, 2013). Deixamos apenas indicada a necessidade de um permanente cotejamento das determinações políticas com as práticas efetivamente adotadas.
Metodologia
A proposta metodológica adotada visou a uma articulação entre pesquisa, intervenção e formação de trabalhadores para o fortalecimento do trabalho em rede intersetorial na atenção psicossocial de crianças e adolescentes em situação de uso prejudicial de álcool e outras drogas. Optamos pela utilização do método da pesquisa-ação (Thiollent, 1987 e 1996).
A pesquisa-ação remete a uma estratégia de produção de conhecimento associada à produção imediata de mudanças de concepção, comportamento e da própria realidade social na qual se inserem aqueles que são sua população-alvo ou objeto de investigação (Barbier, 1985; Haguette, 1987; Thiollent, 1987). Inaugurada por Kurt Lewin, nos idos de 1940, a pesquisa-ação possibilita o diálogo entre pesquisadores e sujeitos de pesquisa, na expectativa de produção de saberes que tenham impacto local e que sejam apropriados como ferramenta de vida e de trabalho, rompendo com a mítica do conhecimento neutro e unidirecional (Lewin, 1947 e 1951). Segundo Thiollent (1996), a pesquisa-ação supõe uma forma de ação planejada de caráter social, educacional e técnico. Para esse autor, um dos seus principais objetivos consiste em promover os meios para a construção de diretrizes sociopolíticas transformadoras. A pesquisa-ação permite explicar, aprofundar e elaborar questões relacionadas ao objeto da reflexão, ao crescimento intelectual do grupo de participantes e à possibilidade de ação imediata voltada para o interesse coletivo.
A Portaria GM/MS nº 1.996, de 20 de agosto de 2007, que define novas diretrizes e estratégias para a implantação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, traz uma definição importante para o conceito: "A Educação Permanente é aprendizagem no trabalho, onde o aprender e o ensinar se incorporam ao cotidiano das organizações e ao trabalho. A educação permanente se baseia na aprendizagem significativa e na possibilidade de transformar as práticas profissionais" (Brasil, 2007). Podemos pensar na metodologia apresentada como uma proposta de Educação Permanente em Saúde, pois pretende "alcançar o desenvolvimento dos sistemas de saúde na região, com reconhecimento de que os serviços de saúde são organizações complexas em que somente a aprendizagem significativa será capaz da adesão dos trabalhadores aos processos de mudança no cotidiano" (Ceccim, 2005a, p. 161). Como afirma Ceccim (2005b, p. 976), fazer da rede de cuidados "uma rede de ensino-aprendizagem no exercício do trabalho" é uma das grandes metas formuladas pelo campo da saúde coletiva no Brasil.
A pesquisa se desdobrou em dois momentos. Um primeiro de diagnóstico exploratório sobre a rede de atenção à criança e ao adolescente em situação de uso prejudicial de álcool e outras drogas do Município de Betim/MG, e um segundo no qual foi experimentada uma metodologia participativa, conhecida como Formação Cruzada2, em um grupo piloto de uma das regionais administrativas da cidade. A fase de diagnóstico foi realizada por meio de entrevistas semiestruturadas, gravadas e transcritas, com 12 profissionais, representantes de diferentes serviços das redes de saúde, saúde mental e de proteção e garantia de direitos de crianças e adolescentes do município, diretamente relacionados à problemática investigada, a saber: Secretaria Municipal de Assistência Social, Superintendência de Políticas sobre Drogas (SUMAD), CREAS; CERSAMi3, CAPSad, Fórum Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, a ONG Árvore da Vida, Conselhos Tutelares, Unidades básicas de saúde (UBS).
Utilizamos dois roteiros de entrevistas: um para trabalhadores da rede de saúde infantojuvenil, e outro para profissionais da rede de proteção e defesa de direitos de crianças e adolescentes, de modo a nos permitir identificar os fluxos entre essas redes. Por meio dos instrumentos de pesquisa, buscamos descrever: os recursos existentes no território concernido, as formas de encaminhamento e de atendimento às demandas do público infantojuvenil, os tipos de ações desenvolvidas pelos dispositivos e equipamentos existentes e as conexões feitas entre os serviços a partir da ação dos trabalhadores. As respostas foram categorizadas a partir de uma análise exploratória de conteúdo. No processo de análise, privilegiamos as respostas dadas às questões que tratavam mais diretamente do funcionamento e dos fluxos das redes e das práticas de atenção e cuidado a crianças e adolescentes, gerando, assim, as três principais categorias: fluxos de rede; práticas de acolhimento; formas de acompanhamento e compartilhamento de casos. Com isso, foi possível destacar os principais entraves e lacunas do cotidiano da atenção a crianças e adolescentes em situação de uso abusivo de álcool e outras drogas.
A Formação Cruzada, do inglês Cross Trainning, surgiu a partir de pesquisas no campo militar que visavam ao desenvolvimento de programas de treinamento a fim de melhorar a dinâmica do trabalho em equipe. Beaubien, Baker &Holtzman(2003) sugeriram a possibilidade de a metodologia ser utilizada em outros setores não militares cujo trabalho envolva situações de risco. O autor relata exemplos de estudos iniciados na Marinha e na área de saúde. No campo das políticas de atenção à saúde, um grupo de pesquisa ligado à Universidade de Montreal, no Quebec, Canadá, utilizou a Formação Cruzada como metodologia de educação permanente para profissionais da rede de atenção a usuários de álcool e drogas com transtornos psiquiátricos concomitantes. Nesse contexto, a Formação Cruzada é entendida como uma estratégia de aprendizado composta por uma série de técnicas interligadas que favorecem o conhecimento dos papéis ocupados por cada membro da equipe, contribuindo para a melhora da comunicação entre os profissionais e entre os equipamentos envolvidos no atendimento a esse público. Segundo Perreault, Bonin, Brown e Fleury(2008), a justificativa para a utilização da metodologia se deveu ao processo de desinstitucionalização no âmbito das políticas de saúde mental e à reestruturação dos serviços. O atendimento, que anteriormente era concentrado no hospital psiquiátrico, passa a ser ofertado de forma articulada em diversos equipamentos de saúde e organizações comunitárias, segundo um modelo de integração horizontal. Esses equipamentos possuem formas de organização e culturas clínicas muitas vezes divergentes, o que impede a prestação de serviços de forma unificada e harmônica. A dinâmica se agrava no caso de pessoas com transtornos concomitantes, uma vez que necessitam de atenção integral em redes de atendimento diferentes, o que pode ocasionar uma quebra de continuidade no tratamento. Dessa forma, há uma necessidade de integração entre os serviços oferecidos pela política de saúde mental, que poderia ser trabalhado e aprimorado pela capacitação dos profissionais da rede por meio da metodologia de Formação Cruzada.
A metodologia de Formação Cruzada é composta de três etapas: a clarificação posicional, a observação posicional e a rotação posicional. Todo o processo é desenvolvido com oficinas. O processo se inicia a partir da composição de grupos de profissionais de diferentes serviços da rede para a realização da clarificação posicional, que consiste na troca de informações a respeito do trabalho e da rotina de cada serviço com o objetivo de esclarecer os papéis e a função de cada equipamento na rede. Na observação posicional, os participantes são convidados a se inserirem em outro serviço a fim de observar o trabalho desenvolvido e o papel desempenhado pelos profissionais que nele atuam. Após essa experiência de ambientação ou "estágio" em um equipamento diferente do seu local de trabalho, os participantes são convidados a realizarem a rotação posicional, que consiste na permuta ou troca de posições entre profissionais de serviços diferentes durante um turno ou meio turno de trabalho. Por exemplo, um psicólogo referenciado em um hospital de urgência psiquiátrica troca de posição com um colega assistente social que trabalha na rede de proteção e garantia de direitos. Essa experiência permite aos participantes vivenciarem a rotina de outros serviços, bem como as dificuldades presentes no atendimento, no encaminhamento e no recebimento de casos. Ocorre que muitas vezes dois ou mais equipamentos estão envolvidos no atendimento de um mesmo caso, mas não compartilham informações ou não conhecem o fluxo de encaminhamento da rede (Lima & Passos, 2012; Perrault, Perrault, Withaeuper & Malai, 2009).
Na pesquisa, optamos pela realização de um projeto piloto com um grupo formado por trabalhadores dos serviços que atendem a uma das regionais administrativas do município, a regional Teresópolis. A escolha dessa regional, feita em conjunto com os gestores da área da saúde, se deveu ao alto índice de vulnerabilidade psicossocial presente nas condições e modos de vida da população residente no território concernido.
Nesse projeto piloto, tivemos a participação de cerca de 30 participantes por oficina, além da equipe de pesquisa. O grupo foi constituído de trabalhadores, gestores, usuários, representantes de instituições de ensino e instituições sociais e comunitárias, mediante convites e indicações dos próprios serviços, observado o critério de representatividade dos pontos da rede territorial. Os participantes foram distribuídos em quatro subgrupos. Na formação de cada subgrupo tentamos manter o critério da heterogeneidade de serviços e de setores presentes. Cada subgrupo contou com um moderador e um relator da equipe de pesquisa. O trabalho em pequenos grupos foi proposto especialmente para o desenvolvimento de duas atividades prático-teóricas, a saber: a clarificação posicional e a rotação posicional, etapas fundamentais da metodologia. Foi também proposta a construção compartilhada de relatos sobre a condução de um caso, escolhido pelo próprio subgrupo, envolvendo criança e/ou adolescente expostos a situações de uso prejudicial de drogas e violação de direitos. Ao fim das oficinas, foi realizado um seminário aberto de devolução dos resultados da pesquisa-ação, com distribuição gratuita de dois materiais impressos para todos os participantes, e os pontos da rede: o Caderno de Pesquisa (Passos et al., 2014), contendo o relatório final e o CRIA -Catálogo da Rede para a Infância e Adolescência: recursos assistenciais e socioculturais (Moura, Freitas & Passos, 2014), contendo descrição, endereços e contatos de todos os serviços, programas e ações existentes em Betim.
O cenário da pesquisa
Betim está localizada a 30 km da capital mineira e é um dos principais polos industriais do estado, com um PIB total de 28 milhões de reais e de 75 mil per capita, segundo o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010)4. Segundo o mesmo censo, possuía em 2010 uma população de 378.089 habitantes, com estimativa de 388 mil para 2012, sendo 34,7% constituídos por crianças e jovens entre 6 e 24 anos.
A industrialização crescente, o crescimento demográfico desordenado, a especulação imobiliária, as desigualdades sociais, e o fato de se localizar no entroncamento viário entre Belo Horizonte e São Paulo, fazem de Betim uma cidade suscetível à circulação de drogas, seja como local de venda e potencial consumo, seja como ponto importante na rota do tráfico.
Na busca de estratégias para o enfrentamento do aumento do consumo prejudicial de drogas, Betim tem intensificado a política de saúde mental, tendo realizado o "Curso de Aperfeiçoamento em Crack e outras Drogas para Profissionais do Poder Judiciário, Ministério Público e entidades que atuam no atendimento/apoio aos adolescentes em cumprimento de medidas sócio-educativas, com privação de liberdade", proposto pelo Centro Regional de Referência para álcool e outras drogas da Escola de Enfermagem da UFMG.
A rede de saúde de Betim trabalha com a perspectiva da referência e contrarreferência. A rede de saúde mental e os seus serviços se orientam pelos princípios e diretrizes do SUS, da Reforma Psiquiátrica Brasileira e do Movimento da Luta Antimanicomial. À época da pesquisa, Betim contava com uma significativa rede de serviços substitutivos, composta pelos seguintes dispositivos de atenção à saúde mental: 1 Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) III; 1 CAPS II, que na prática funcionava como III; 1 CAPS I; 1 CAPSi; 2 Serviços Residenciais Terapêuticos; 1 Centro de Convivência; 4 equipes de saúde mental lotadas na atenção básica; 1 CAPSad; e 1 Casa de Acolhimento Transitório. Além desses dispositivos, o município buscava trabalhar em rede com a SUMAD e com serviços do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), bem como articulava parcerias no enfrentamento ao uso de drogas com os poderes judiciário, executivo e legislativo e com representações e projetos sociais diversos. Possuía Residência em Psiquiatria e Residência Multiprofissional em Saúde Mental, sendo essa última a primeira implantada no estado.
O município se destaca por uma tradição de trabalho com o público infantojuvenil. Criou o primeiro CAPSi de Minas Gerais, em 1994, e foi escolhido, em 1982, entre outros quatro municípios brasileiros, para compor a amostra de um estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) voltado para meninos e meninas em situação de rua (Oliveira, 2004).
Resultados e Discussão
Diagnóstico exploratório
No diagnóstico exploratório feito, foram identificados aspectos retomados e trabalhados na etapa de Formação Cruzada, com o objetivo de potencializar o trabalho territorial e em rede no município. Por ser muito recente a transferência da problemática do uso de álcool e outras drogas para a área da Saúde Mental, a principal referência da rede local de Betim, em termos de assistência a crianças e adolescentes em situação de uso prejudicial de álcool e outras drogas, continuava sendo a SUMAD, ligada à Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (SENAD), do Ministério da Justiça. Na atual definição da política nacional, na forma da Lei nº 11.343/06, parece haver certa ambiguidade ou sobreposição nas atribuições quando define a disciplinarização da política, das atividades e dos serviços de atenção como sendo da competência do Ministério da Saúde, e atribui à SENAD, ligada ao Ministério da Justiça, a função de "articular e coordenar as atividades de prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e dependentes de drogas" (Brasil, 2011b, p. 50-51). A SUMAD desenvolvia atividades de prevenção com adultos, grupos de adolescentes e atendimentos a famílias. Durante o diagnóstico, ela estava em processo de desativação com a perspectiva de mudança de gestão.
Em geral, os entrevistados disseram só encaminhar os casos referentes a crianças e adolescentes para o CERSAMi quando observavam algum transtorno mental associado ao uso de drogas. Às vezes encaminham para o CAPSad, porém esse dispositivo tem dificuldade de incluir o público adolescente, principalmente na permanência-dia. É importante lembrar as determinações do Estatuto da Criança e do Adolescente quanto à interdição de permanência de crianças e adolescentes em espaços voltados para o atendimento de adultos. Tal situação reforçava os encaminhamentos para a SUMAD.
Foi identificada falta de articulação entre as equipes de saúde mental com a SUMAD, esta se relacionando mais com algumas comunidades terapêuticas que se encontravam regularizadas no Ministério da Saúde, não tendo, entretanto, aproximação com todas as existentes na região, que são muitas. Foi perceptível um acúmulo de experiência e de competência por parte dos profissionais entrevistados da SUMAD em lidar com o usuário e com seus familiares, o que nos pareceu ter importância, especialmente pelo papel de proteção desempenhado com jovens ameaçados pelo tráfico.
Vários entrevistados apontaram a inexistência de um fluxo sistematizado ou com procedimentos definidos para a atenção a crianças e adolescentes em situação de uso abusivo de álcool e outras drogas, tal como recentemente feito para os casos de violência sexual infantojuvenil, que dispõe de um Protocolo de Assistência a Crianças e Adolescentes em Situação de Violência Sexual (Betim, 2010). O documento foi resultado de um processo de mobilização de agentes de diferentes setores que participaram de uma comissão intersetorial com tal finalidade.
Na época da implantação do CAPSad, em fevereiro de 2012, houve uma tentativa semelhante de criação de um comitê gestor para políticas de álcool e drogas no município, formado por trabalhadores de diferentes setores e com reuniões mensais. Porém, as representações nas reuniões mudavam continuamente e o grupo se desmotivou a partir da percepção de uma não priorização da questão de álcool e drogas pelo município e por haver conflitos ideológicos entre seus participantes.
Em relação à Saúde Mental, é relatada uma carência de equipamentos para a atenção aos casos considerados "leves" ou "pouco graves", como os portadores de queixas escolares ou de aprendizagem, sendo a escola o dispositivo que mais encaminha casos para o CERSAMi, seguido dos serviços de saúde. Tais casos são atendidos pelo CERSAMi, mas a demanda é grande e compromete a qualidade do serviço. Segundo uma entrevistada, o CERSAMi ainda está funcionando em sistema de porta "superaberta", o que o sobrecarrega.
Os profissionais disseram haver um "buraco" na rede assistencial em se tratando de drogas, especialmente para crianças e adolescentes. Segundo uma entrevistada, os casos de crianças e adolescentes usuárias de álcool e outras drogas não chegavam a 5% dos casos recebidos em um ano pelo CERSAMi. O serviço reconhecia que "estavam engatinhando" no atendimento a esses casos, pois ao longo do tempo se dedicou ao atendimento de autistas e psicóticos. As crianças e adolescentes envolvidas com drogas têm reivindicações e demandas específicas e representam um desafio para os profissionais. A fala de uma profissional desse serviço, com muitos anos de trabalho na rede, ilustra bem este aspecto.5
[...] o CERSAMi tem assim um certo lugar construído no imaginário da cidade. Eu acho que, talvez até por isso, esses casos que a problemática central é o uso de álcool e outras drogas não chegam tanto para gente. Talvez cheguem esses que têm uma intercorrência com um distúrbio psíquico grave, e chega porque a gente está muito ligado a esse imaginário do doido, do autista, da crise, da agitação psicomotora, então eu acho que é um pouco a identidade que a gente tem. Porque esses casos existem. Lógico que eles existem! Eles estão indo para algum lugar? (Entrevista de pesquisa)
O CERSAMi e o CREAS (Centro de Referência Especializado da Assistência Social) apresentavam um bom diálogo e compreensão dos papéis mútuos no atendimento compartilhado. O atendimento compartilhado era pouco realizado com os demais serviços da rede. O CREAS parecia estar bem estruturado como dispositivo e com boa inserção no território. O matriciamento da saúde mental na Atenção Básica de Saúde estava se fortalecendo nos últimos anos. Na regional Teresópolis, onde foram realizadas as oficinas piloto da segunda etapa da pesquisa, existiam duas equipes especializadas em saúde mental lotadas na atenção básica e estabelecendo ações de matriciamento em saúde mental infantojuvenil. Uma era a equipe da Unidade Básica de Saúde (UBS) do distrito PTB, que trabalhava há alguns anos com o matriciamento em saúde mental para adultos e, há menos tempo, com crianças e adolescentes, e a outra a equipe da UBS Imbiruçu, que mais recentemente apoiava a atenção básica nos casos de saúde mental infantojuvenil.
Atividades de prevenção ao uso prejudicial de álcool e outras drogas eram muito pontuais, locais e nem sempre sistematizadas. Eram desenvolvidas por derivação de outras atividades; um exemplo foi a demanda feita por familiares assistidos pela Secretaria Municipal de Assistência Social (SEMAS) para se trabalhar o tema álcool e drogas em grupos. Também havia pouca procura espontânea de casos de crianças e adolescentes em situação de uso prejudicial de álcool e outras drogas. A maior demanda nos serviços da Assistência Social era o uso de álcool e drogas por familiares. O uso de drogas por adolescentes aparece em casos de cumprimento de medidas socioeducativas em que há envolvimento com o tráfico. Faltam levantamentos epidemiológicos no município de casos de crianças e adolescentes que fazem uso de álcool e outras drogas, e também de familiares. A situação de violação de direitos de crianças e adolescentes está geralmente associada ao uso abusivo de álcool ou outras drogas por adultos próximos. Esse dado nos faz pensar que não é possível se trabalhar de forma isolada, sendo necessário um acompanhamento orquestrado entre os serviços destinados a adultos e a crianças/adolescentes. O município também carece de equipamentos de acolhimento temporário.
Como não há articulação ou um fluxo de rede instituído, cada equipamento fica circunscrito a uma definição estrita de sua função, o que se agrava com o fato de haver poucos espaços de diálogo para definição de ações conjuntas. Uma profissional da atenção básica em saúde assevera: "[...] a gente tem bons profissionais, mas eu penso que a gente fica muito fragmentado. Se a gente pudesse fazer mais capacitações, mais reuniões, partilhar os saberes, eu penso que cresceria mais, que enriqueceria mais" (Entrevista de pesquisa).
De acordo com dados de entrevistas, a atenção básica em saúde não costuma receber demandas claras de atendimento a casos de uso/abuso de álcool ou outras drogas por crianças e adolescentes, mesmo levados por familiares. As demandas costumam surgir a partir de outras queixas: escola encaminhando crianças com comportamentos agressivos, situação de vulnerabilidade social, dificuldades no processo de ensino-aprendizagem, dentre outros. O preconceito social que envolve a questão das drogas dificulta o acompanhamento do usuário na atenção básica territorial. Para os entrevistados, o grande desafio é o trabalho com as famílias.
Existe uma riqueza de equipamentos não governamentais em Betim, o que certamente tem reflexo nas situações de enfrentamento à violação de direitos, embora abrangendo regiões específicas da cidade. Bons exemplos são o Programa Árvore da Vida e as Oficinas do Serviço Nacional de Apoio à Indústria (SENAI), de preparação do jovem para inserção no mercado de trabalho.
Para um conhecimento mais aprofundado da rede, além dos serviços abordados pelo diagnóstico, foram envolvidos na etapa das oficinas de Formação Cruzada outros setores fundamentais para o trabalho territorial articulado, tais como: Urgência e Emergência Hospitalar, Justiça e Promotoria, Polícia Militar e Civil, Associação de Usuários da Saúde Mental, Clínica-escola da universidade local, dentre outros.
Formação Cruzada
As oficinas foram planejadas a partir do diagnóstico exploratório realizado, mas antes de iniciarmos as atividades, fizemos a aplicação coletiva de um Inventário de Crenças e Atitudes sobre uso de drogas, tanto no grupo de participantes quanto na própria equipe de pesquisa, então com nove integrantes. O objetivo era aferirmos as ideias, atitudes e preconceitos prevalentes nos dois grupos e verificarmos se a posição de pesquisadores e de profissionais práticos implicava em alguma diferença em termos dessas posturas e crenças.6 Na última oficina, os resultados desse inventário foram compartilhados e discutidos com o grupo.
Nas quatro oficinas realizadas, os participantes compartilharam experiências de trabalho e de participação na rede, participaram da produção coletiva de textos e de debates motivados por especialistas da área, visando à reflexão crítica sobre as ações em rede para o enfrentamento de situações de vulnerabilidade psicossocial de crianças e adolescentes, especialmente ligadas ao uso prejudicial de drogas e violação de direitos.
A construção compartilhada dos relatos sobre a condução de cada caso escolhido por cada subgrupo possibilitou aos trabalhadores momentos ricos de troca de informações, de diálogo, de conhecimento a respeito dos recursos territoriais e de criação de vínculos com profissionais que trabalham em diferentes pontos da rede. Observamos que a rede carecia de espaços intersetoriais de discussão de casos e de ações de compartilhamento, em corresponsabilidade, da atenção a crianças e adolescentes em uso prejudicial de drogas e violação de direitos. Não existia um ponto da rede que conseguisse fazer a convergência de ações voltadas para diferentes públicos envolvidos na problemática, como o atendimento ao adolescente e à sua família, por exemplo. Observamos a fragmentação do cuidado em rede, o que coloca a integralidade do cuidado como um desafio para toda a rede. A partir da discussão do caso, uma questão emergiu como essencial para discussões futuras: como realizar a abordagem de crianças e adolescentes em situação de uso abusivo de álcool e outras drogas? Foi dado destaque para o debate sobre conceitos e condutas a serem adotadas pelos agentes públicos com relação a esse público.
No momento da clarificação posicional, momento no qual os participantes foram motivados a compartilhar com os demais integrantes dos subgrupos informações detalhadas sobre o seu trabalho, observamos que havia pouco investimento e atuação efetiva em ações de prevenção ao uso abusivo de álcool e outras drogas. Os serviços foram apresentados a partir de informações muito burocráticas, referentes à estrutura organizacional pré-definida para cada dispositivo e aos fluxos de encaminhamento considerados "padrão" entre os serviços. Esses fluxos, assim como o público-alvo de cada dispositivo, foram apresentados de forma estanque, a partir de critérios seletivos de idade e sexo dos usuários, comorbidade do quadro primário com transtorno mental e localização territorial do domicílio do usuário e do serviço. Representava um grande desafio para o grupo a discussão do caso quando este não se encaixava nos padrões de atendimentos e de encaminhamentos preestabelecidos, situações que se mostraram muito mais frequentes do que se imaginava.
Não foi possível realizar nenhuma rotação posicional completa (troca real de lugar entre profissionais de diferentes serviços para desempenho da função do colega), por várias razões, mas principalmente pelo receio de experimentar uma situação incomum e desconhecida. Havia o receio do profissional de assumir funções completamente diferentes das suas (aquelas do colega); dificuldades do colega de passar suas atribuições para o outro; dificuldade das gerências em criar condições para a realização da atividade, uma vez que a precária cultura de "formação em serviço" leva à predisposição de não se considerar as ações de capacitação como "trabalho", sendo a liberação do trabalhador vista como impactante e responsável pela diminuição do número de atendimentos previstos e cobrados do serviço. A proposta de rotação posicional, quando intersetorial como esta, torna o processo ainda mais complexo visto que diferentes lógicas de funcionamento dos serviços e de organização dos processos de trabalho são confrontadas.
Alguns participantes puderam, entretanto, ter a experiência da observação posicional, que se deu pela observação direta e mútua do trabalho desenvolvido por um colega pertencente a um serviço diferente do seu próprio (por exemplo, um profissional do CERSAMi com um do Conselho Tutelar). Essa experiência permitiu aos profissionais familiarizarem-se com o trabalho desenvolvido em outros pontos da rede.
Na apresentação e discussão das experiências de observação posicional, pudemos destacar os seguintes temas emergentes: dificuldades de acesso ao serviço por parte do usuário por não haver estabilidade na concessão de transporte público; distanciamento dos gerentes do cotidiano da atenção e dos próprios usuários; uso abusivo de drogas por familiares e pessoas próximas às crianças e adolescentes, o que sugere a importância de abordagens indiretas e mais amplas desse público; falta de qualificação dos técnicos para atender à demanda de uso abusivo de álcool e outras drogas; alta rotatividade de profissionais no serviço público; falta de acesso aos serviços pelo usuário em uso abusivo de álcool e outras drogas em razão de outras demandas sociais e de saúde priorizadas nas rotinas dos serviços.
Outra questão importante que emergiu em todos os momentos das oficinas, corroborando um dos resultados do diagnóstico, foi a falta de clareza por parte dos dispositivos da rede sobre os objetivos, as ações e o público-alvo da SUMAD. No entanto, esse serviço foi citado por diferentes setores como uma instituição preferencial para o encaminhamento de casos de crianças e adolescentes em uso prejudicial de drogas em função de seu papel de referência para tais casos, desempenhado em anos anteriores às recentes mudanças na legislação nacional, que passou a atribuir esse papel à área da saúde. O dado aponta para a necessidade de maior clareza na definição dos papéis e atribuições das áreas da saúde e da justiça.
A metodologia de Formação Cruzada mostrou ser uma inovação fecunda para potencializar a integração da rede. Como resultado final, o grupo elaborou sugestões de ações concretas para o município que constam do Caderno de Pesquisa publicado (Passos et al., 2014). A mesma metodologia está sendo experimentada no município de Ouro Preto e tem alcançado ainda maior penetração e ressonância na rede local.
Conclusão
As políticas públicas implantadas no país para a atenção a usuários de drogas consideram historicamente a necessidade de o Estado formular e propor ações que possam dar conta do aumento nos índices de consumo de drogas pela população, em especial, no contexto desta pesquisa, da população infantojuvenil.
Os desdobramentos do aumento do consumo de drogas, entre eles a violência, exigem respostas rápidas e contundentes do poder público à sociedade. Respostas que se refletem na elaboração de políticas públicas, que em alguns casos consideram cenários alarmistas e deixam de lado dados epidemiológicos que sustentam que, na área da dependência química, ainda não conseguimos avançar nas questões sociais, econômicas e de saúde implicadas no uso do álcool e tabaco, e enfrentamos com dificuldades o crack e seu apelo social contundente, gerando descompasso entre o que já existia e o que está sendo criado em termos de legislação, políticas e ações.
Em relação à política atual para crianças e adolescentes, existem vazios de diferentes ordens. Serviços desarticulados, profissionais carentes de formação, viés ideológico no entendimento da dinâmica do uso e abuso de substâncias e do seu tratamento, legislação que ora protege e ora responsabiliza sem considerar os aspectos psicossociais das famílias desassistidas e, principalmente, falta de espaços específicos e articulados de cuidado para essa clientela que guarda especificidades em seu manejo clínico e psicossocial.
Observa-se, no caso do município de Betim, uma vocação histórica para fazer com que as diferentes orientações das políticas para a área sejam cumpridas considerando seus melhores aspectos. O município também apresenta em sua trajetória avanços socioestruturais e de saúde que consideram a infância e adolescência em sua agenda de trabalho, embora apresente dificuldades de diferentes ordens, discutidos anteriormente.
De acordo com os resultados da pesquisa, identificam-se pontos de estrangulamento no que concerne à articulação dos serviços, organização do acolhimento da demanda, sistematização de fluxo e criação de protocolos de atendimento e encaminhamento dos casos, falta de dados fidedignos e atuais sobre o avanço do consumo e do perfil do usuário do município e fragilidades de ordem estrutural, dentre elas o número de serviços oferecidos, insuficientes em relação ao aumento das demandas e da taxa populacional.
Em contrapartida, observa-se o desejo efetivo dos profissionais que fazem parte da rede de dirimir esses nós críticos por meio da formação em serviço, da articulação da rede e da aproximação com a academia, seja no aspecto da formação, seja no âmbito do desenvolvimento de pesquisas. Em especial, pontua-se o potencial que a rede de saúde mental do município tem para discutir, formular, propor e implantar boas práticas que considerem o que está posto (as políticas oficiais que direcionam as ações para a área) com o que pode ser criado: ações estratégicas e estruturais que levem em conta as peculiaridades do município, da região, dos modos de vida da população e da rede de saúde mental existente.
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Recebido em: 02/04/2016
Aprovado em: 15/09/2016
1 A pesquisa foi financiada pela Fapemig. Agradecemos a participação de AllissonVasconselos Oliveira, bolsista de IC da PUC Minas/Betim.
2 Sobre esta metodologia, desenvolvida em Quebec/Canadá com objetivo de incrementar a rede intersetorial de enfrentamento ao uso prejudicial de drogas por jovens, ver Lima e Passos (2012).
3 Centro de Referência em Saúde Mental Infantojuvenil, o mesmo que CAPSi.
4 A título de comparação, a capital, Belo Horizonte, com população de aproximadamente 2 milhões e quatrocentos mil, tinha um PIB total de 52 milhões de reais e de 22 mil per capita.
5 Algumas poucas falas reproduzidas aqui têm apenas caracteres ilustrativos dos aspectos analisados no diagnóstico.
6 Os resultados da aplicação do inventário serão tratados em artigo específico que se encontra em fase de finalização pela equipe de pesquisa.