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Psicologia para América Latina

versão On-line ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  no.19 México  2010

 

Psicología política y formación ciudadana

Arte, cultura e política: o Movimento Hip Hop e a constituição dos narradores urbanos.

 

 

Mariane Lemos Lourenço

Psicóloga, Doutora e Mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) - (Brasil)

 

 


Resumo

Presente o propósito de mostrar uma face para muitos obscura da sociedade, esta pesquisa teve como objetivo o estudo do Movimento Hip Hop, que foi avaliado enquanto forma de contestação social e política. O caminho escolhido foi ouvir jovens que participam do Movimento Hip Hop, além de pesquisa bibliográfica. No decorrer do estudo, foi possível constatar que o Movimento Hip Hop constitui-se como um novo sujeito político na esfera pública do cotidiano da periferia. Os letristas do rap figuram como narradores urbanos. Eles abordam em suas narrativas temas que dizem respeito a sua experiência na polis. A arte do Movimento Hip Hop possibilita aos jovens a valorização de si mesmo e da periferia, informação e conhecimento e substituição da violência pela força das idéias e das palavras.

Palavras-chave: rap, hip hop, arte, narradores, cultura, política.


Resumen

Con el propósito de dar a ver una cara de la sociedad para muchos obscura, esta investigación tuvo por objetivo el estudio del Movimiento Hip Hop, que se evaluó como forma de contestación social y política. La trayectoria elegida fue la de oír a jóvenes que participan del Movimiento Hip Hop, además de  realizar una investigación bibliográfica. En el transcurso del estudio, fue posible constatar que el Movimiento Hip Hop se constituye como un nuevo individuo político en la esfera pública del cotidiano de la periferia. Los letristas de rap figuran como narradores urbanos. Abordan en sus narrativas temas que  relacionan su experiencia en la polis. El arte del Movimiento Hip Hop posibilita a los jóvenes su propia valoración y la de la periferia, información y conocimiento y sustitución de la violencia por la fuerza de las ideas y de las palabras.

Palabras claves: rap, hip hop, arte, narradores, cultura, política. 


Abstract

Present the purpose of showing a face for many obscure of the society, this research had as objective the study of the Hip Hop Movement, which was evaluated as form of social and political reply. The method chosen was to hear youngsters that participate in the Hip Hop Movement, besides the bibliographical research. In the course of the study, we could verify that the Hip Hop Movement is a new political subject in the public sphere of the daily life of the periphery. The composers of the rap show up as urban narrators. They approach in their narratives themes regarding their experience in the polis. The art of the Hip Hop Movement facilitates the youngsters the valorization of oneself and of the periphery, information and knowledge and substitution of the violence by the power of the ideas and of the words.

Keywords: rap, hip hop, art, narrators, culture, politics. 


 

 

Introdução

Atualmente parece que poucos desejam de fato adentrar a esfera da vida pública, que envolve a discussão e a participação nas questões políticas das nossas cidades e do Estado. Sennett (1999) acredita que esse estado de coisas ganha reforço pelo que chamou de "tiranias da intimidade", o que significaria uma vida inteiramente voltada para o eu e seus problemas particulares, pois, "a crença nas relações humanas diretas em escala intimista nos seduz e nos desvia da conversão de nossa compreensão das realidades do poder em guias para nosso próprio comportamento político".(Sennett, 1999, p. 414).

No Brasil, jovens da periferia de nossas cidades reclamam um espaço de inserção na esfera da vida pública da cidade e do Estado, através da arte de um Movimento chamado Hip Hop que nasceu nos guetos de Nova York na década de 1970 e a partir daí difundiu-se pelo mundo, tendo como ponto de partida as regiões periféricas das grandes cidades. Aqui não foi diferente; o Movimento Hip Hop é presença expressiva em nossas periferias, tendo adquirido características próprias.

A expressão Hip (quadril) e Hop (balançar) é uma gíria, conhecida pelos jovens do Hip Hop, como balançar o quadril. O Movimento foi criado pelas equipes de baile norte-americanas, com o objetivo de apaziguar as brigas e contrariedades freqüentemente manifestadas pelos jovens agrupados em gangues. O termo Hip Hop designa um conjunto cultural amplo que inclui música (rap), pintura (grafite) e dança (break). O rap, sigla derivada de "rhythm and poetry" (ritmo e poesia), é a música do Movimento e constitui o seu elemento de maior destaque. Mc é a sigla de "Mestre de Cerimônia"; é ele que canta o rap e, na maioria das vezes, também compõe as letras.

Apesar de ter suas origens norte-americanas, o Hip Hop feito no Brasil tornou-se totalmente distinto e independente, pois as questões sociais são diferentes. Além do quê, cada vez mais os grupos brasileiros procuram incorporar ingredientes nacionais e locais ao Movimento. Como exemplo, em Curitiba temos o Hip Hop Pinhão. 

O Hip Hop no Brasil despontou na periferia de São Paulo e desenvolveu-se ao longo dos anos 80, mas tornou-se popular somente na década de 90. A estação São Bento do Metrô, no centro de São Paulo, é considerada o berço e referência da cultura Hip Hop no Brasil.

Hoje o Movimento Hip Hop já é presença marcante nas periferias de: Brasília, Recife, Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre, Florianópolis, entre outras capitais.

O Movimento Hip Hop configura-se como um movimento social juvenil marcado pelo protesto e pela contestação, que seriam segundo Ammann (1991) características essenciais de todo movimento social. Para Elaine Andrade (1999, p.89) o "Hip Hop sendo um movimento social, permite aos jovens desenvolver uma educação política e, conseqüentemente, o exercício do direito à cidadania".

Este estudo é devotado a esta forma de expressão, com o objetivo de avaliar o Movimento Hip Hop enquanto possível forma de contestação social e política. Observando também as contradições e conflitos do Movimento, sua diversidade de estilos, dando-se especial destaque a um de seus elementos: o rap. A pesquisa possibilitou ainda um olhar renovado sobre os jovens que integram o Hip Hop, personagens que vivem na obscuridade, pois são considerados por muitos como rebeldes, violentos e rudes, estereótipos que se deseja contestar.

 

Metodologia

O caminho escolhido para atingir o objetivo proposto foi ouvir jovens que participam do Movimento Hip Hop, além de pesquisa sobre o assunto, realizada através de material fonográfico (discos e cd's), assim como revistas direcionadas a esse público.

Foram entrevistados jovens que são integrantes do Movimento Hip Hop, residentes na cidade de Curitiba, todos os procedimentos éticos foram seguidos. Estes jovens além de ouvirem músicas desse gênero participam de grupos de rap e seriam muito atuantes no Movimento Hip Hop da cidade. Foram entrevistados, após os pré-testes, oito integrantes de grupos de rap locais, com idades entre 17 e 26 anos.

O roteiro de entrevista foi baseado em letras de rap dos grupos Racionais Mc's, Planet Hemp, Pavilhão 9, e dos rappers Marcelo D2 e Gabriel o Pensador. Todos eles contam, em suas narrativas, histórias do cotidiano da cidade e de sua periferia.

Os trechos de rap escolhidos para o roteiro de entrevistas dizem respeito aos temas mais freqüentes nas letras dos grupos de rap nacionais. Portanto são questões que mobilizam os jovens engajados no Movimento Hip Hop do Brasil. Os temas são: as desigualdades sociais, a violência policial, a violência das quadrilhas e dos assaltos, o tráfico e o uso de drogas e suas conseqüências, a ineficácia da justiça, o desrespeito aos direitos humanos, o desemprego, as aspirações de consumo, a pobreza e miséria na infância, as más condições de trabalho, o cenário político, o cotidiano da cidade e de sua periferia.

 

Resultados e discussão

Contradições e conflitos no Movimento Hip Hop: diversidade de estilos

As entrevistas e leituras sobre o Hip Hop mostraram que o Movimento como arte e cultura inseridas na sociedade de massas traz em si inúmeras contradições e conflitos, como uma grande diversidade de estilos e uma ambígua relação com a mídia.

A variedade de estilos reflete a forma de cada participante expressar seu protesto. Esses estilos muitas vezes constituem ponto de conflito, pois expressam idéias contrárias entre si. Os estilos mais comuns seriam: o rap gospel que trata de temas ligados à religião; o rap romântico; o under ground considerado agressivo, é um estilo que procura esconder-se e preservar-se da mídia. E o gangster rap, um estilo ainda mais agressivo, em que os rappers clamam palavras de protesto e "palavrões".

O estilo gangster ou gangsta rap seria o principal responsável pelos preconceitos e estereótipos que a mídia e a população em geral têm a respeito do Hip Hop, reflexos de um processo de criminalização que associa esse estilo ao Hip Hop norte-americano. É importante destacar que esse estilo gangster rap é apenas uma parte do rap.

Entre todos os estilos, o rap político é a tendência predominante no Brasil, como mostraram as pesquisas de Andrade (1996); Damasceno (1997); Diógenes (1998); Azevedo (2000);  Tella (2000) e Herschmann (1997; 2000).

2.2. O narrador e sua experiência

As letras de rap se apresentam em forma de narrativa, em que seus autores relatam fatos que presenciaram ou viveram em seu dia-a-dia. Algumas letras são apenas descritivas de tais situações, outras trazem conselhos ou sugestões visando à solução dos problemas narrados. Entretanto, todas as letras sempre carregam consigo uma intenção crítica do social. Mesmo as letras somente descritivas têm sempre o objetivo de relatar os fatos ocorridos para trazê-los ao conhecimento de outros, a fim de que tais fatos sejam questionados.

De maneira singular, as letras de rap, apresentam os elementos de narrativa segundo o conceito estrito de Benjamin, em seu texto "O Narrador" (1936). As letras, muitas vezes, contêm o nítido propósito de aconselhar, com uma dimensão utilitária, um ensinamento moral; outras vezes, atêm-se a histórias do cotidiano. Estas são algumas características que emprestam às letras de rap a forma de narrativa. De acordo com Benjamim:

(...) tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se "dar conselhos' parece hoje algo antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. (Benjamin, 1985, p. 200-201).

A arte da narrativa desvaneceu, segundo Benjamin, porque a humanidade tornou-se pobre em experiências, ou melhor, não ousa mais compartilhá-las, pois jamais houve experiências tão desmoralizadoras como as atuais (problemas econômicos, falta de ética dos governantes, guerras, etc). Benjamin acredita que seria uma "prova de honra" confessar essa pobreza de experiência, que, para ele, é uma espécie de nova barbárie. Mas toma o conceito de barbárie num sentido positivo. "Pois o que traz ao bárbaro a pobreza de experiência? Ela o leva a começar do começo; a começar de novo; a saber se virar com pouco; a saber construir com pouco." (Benjamin, 1986,p.196).

Mas é preciso antes, através da arte do narrador, compartilhar sua experiência atual comum a tantos outros, em meio à barbárie... E desse modo falam de como vivem na cidade com seus problemas, mas, também, com sua arte. Deixam dessa maneira suas marcas no tecido urbano, seus vestígios no concreto através de suas narrativas. Segundo Benjamin "é assim que adere à narrativa a marca de quem narra, como à tigela de barro a marca das mãos do oleiro".(Benjamin, 1983, p.63).

As experiências comunicáveis desses jovens que escrevem letras de rap dizem respeito às suas próprias experiências cotidianas (estas se convertem nos temas de suas letras). O rapper, presente como narrador, relata acontecimentos que presencia e vive diretamente. Fala do que acontece em sua volta. "Os rappers não cantam situações idealizadas. Mas aquelas do dia-a-dia de todo mundo".(Andrade, 1996, p.124). Este é mais um aspecto que os leva ao encontro do conceito de Benjamin de que o "narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. (...) Assim, seus vestígios estão presentes de muitas maneiras, seja na qualidade de quem as viveu, seja na qualidade de quem as relata".(Benjamin, 1983, p. 201-205).

O depoimento de Cristina (narradora do Hip Hop) confirma essa dimensão de narrativa na composição das letras de rap:

Nós nos inspiramos no dia a dia de cada uma de nós. (...) E bastante na vila aqui. Aqui na zona sul a gente vê tudo o que está acontecendo, não só aqui mais fora também daqui, em outros bairros. O que mais acontece é violência, é droga, é tudo junto.  Então nós nos inspiramos por fora, e aqui com a gente mesmo. É isso que nós fazemos nas nossas letras.(...) Nós lemos bastante revistas, nós gostamos de revistas. Mas, nós não costumamos ler coisas para fazer as nossas letras que daí não seria uma coisa nossa. Então nós vemos mesmo o nosso dia a dia, assim, o que está acontecendo. É assim que nós fazemos! (Mc Cristina)

Esses relatos dos narradores do rap, mencionando suas experiências pessoais, tornam-se modelos para os jovens da periferia. Suas letras insinuam-se como conselhos, de modo que esses jovens possam compreender a si próprios e a vida. No rap "Mensagens Pessoais", Thaíde e Dj Hum narram uma história e a finalizam com um conselho, em forma de advertência:

Um homem fora libertado, após vinte anos de cativeiro
Teve a notícia pelo carcereiro
Mal acreditava que depois de uma grande espera
O mundo novamente lhe pertencia
(...) Tentou se esconder, não tinha refúgio
Procurou esperar, veio o desespero
Foram precisos vinte anos para recuperá-lo
E apenas vinte e quatro horas para tornar a perdê-lo
Depende de vocês para suas andanças não serem fatais.
(Trecho do rap "Mensagens Pessoais" de Thaíde e Dj Hum)

Os narradores urbanos desejam aconselhar, influenciar os outros com aquilo que acreditam ser positivo e cobram um dos outros os conselhos expressos nas suas letras. Mas "curiosamente, mesmo todas essas cobranças - que exigem de seus membros uma maior 'conscientização política' e uma vida sem 'vícios' ou 'desvios'- não têm evitado que eles sejam estigmatizados, demonizados".(Herschmann, 2000, p.194).

Isto pode ocorrer porque falam do seu dia-a-dia com seus problemas, como a violência, as drogas, o tráfico, o que confere forte autenticidade as suas letras. Tudo o que desejam é transformar o seu cotidiano, mas a qualquer momento podem ser vencidos pela crueldade da violência, do tráfico, das brigas. Como podem sucumbir diante da realidade, vivem também os conflitos entre aquilo que dizem em suas letras, ou seja, as mensagens contra a violência, contra o uso de drogas, e o apelo constante a todas essas práticas.

Entretanto, a revolta que insistem em declarar não se manifesta por meio da violência, mas através de uma crítica social. O rap, por falar de violência, pode às vezes ser definido como violento. A violência é, sobretudo uma experiência que mobiliza o narrador urbano. Entre os muitos problemas da sociedade atual, aparece como um dos mais dramáticos, e é um tema bastante recorrente nas letras de rap.

A questão da violência é relatada nos raps da maneira como ocorre, com toda a crueldade a ela subjacente. Quando se ouve, por exemplo, a letra de um rap que relate a violência, é difícil não sentir a carga de dramaticidade implícita nas cenas reais que contam. Em muitas letras, o rapper que relata a história é um dos personagens que a viveu. Muitos rappers escrevem suas histórias dentro das penitenciárias brasileiras; assim, a dureza e a forma rude das suas palavras expressam cruamente o que vivem, como na letra de rap chamada "Diário de um detento" que narra o massacre ocorrido em 1992, na Casa de Detenção Flamínio Fávero, mais conhecida como Carandiru.

São Paulo, dia primeiro de outubro de 1992, oito horas da manhã.
Aqui estou, mais um dia. Sob o olhar sanguinário do vigia.
Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de uma HK.
Metralhadora alemã ou de Israel. Estraçalha ladrão que nem papel.
Na muralha em pé. Mais um cidadão José. Servindo o Estado, um PM bom.
Passa fome, metido a Charles Bronson. Ele sabe o que eu desejo, sabe o que eu penso.
O dia tá chuvoso, o clima tá tenso.
Vários tentaram fugir, eu também quero.
Mas de um a cem, a minha chance é zero.
Será que Deus ouviu minha oração? Será que o juiz aceitou minha apelação?
(...)
Cada detento uma mãe, uma crença. Cada crime uma sentença.
Cada sentença um motivo, uma história de lágrima, sangue, vidas e glórias.
Abandono, miséria, ódio, sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo.

(Trecho da Letra do rap "Diário de um Detento"  do grupo Racionais Mc's)

Desse modo, outro aspecto importante desse Movimento que vem da periferia é o resgate da memória enquanto História, para que não sejam esquecidas histórias do cotidiano brasileiro e de seu passado recente, contadas nas letras de suas músicas. É pertinente lembrar, por exemplo, a chacina da Candelária, o massacre no Pavilhão 9 e a violência diária, em suas várias formas.

2.2.1. O Hip Hop e a não-violência 

Assim no Hip Hop, a violência é direcionada para a força da palavra, em oposição ao uso da força física. Desse modo, "trocar idéias" no Movimento torna-se um fundamento de mobilização do grupo e uma maneira de assimilar novos conteúdos.

A maioria dos jovens que se associam ao Hip Hop adota a postura do Movimento, que seria a de não-violência. Eles se inspiram em líderes pacifistas como Luther King e Gandhi. É muito relevante a reflexão de Celso Lafer, quando diz que: "a não-violência é a única alternativa política adequada à violência do 'sistema'".(Lafer, 1988, p.200).  Para Diógenes (1998, p.132) muitos jovens optam por protestar através do Movimento Hip Hop, no qual "a idéia de inimigo e de confronto assume (...) uma conotação essencialmente política". De um modo, diferente das gangues e galeras, que se pautam pela violência, o Hip Hop inverte o lema da violência para outra dimensão, a da consciência.

Shusterman acredita que "o Hip Hop proporciona um campo estético onde a violência física e a agressão são traduzidos em formas simbólicas". (Shusterman,1998, p.153). O Movimento Hip Hop nasceu para a Paz. Segundo Elaine Andrade "essa Paz significa conscientização dos direitos sociais, reconhecimento do valor e necessidade do estudo, e, afastamento das drogas" (p. 144). Esta é a essência de sua mobilização: levar essa paz com a arte.

O que pode permitir aos jovens criar estratégias que possibilitem reinterpretar de forma positiva a experiência de exclusão e medo. O Hip Hop, desde o seu início, surgiu como uma resposta política de seus integrantes na intenção de reelaborar conflitos e disputas violentas das ruas em termos artísticos, substituindo "a rivalidade das ruas pela realidade da arte, as principais lideranças do movimento Hip Hop enfrentaram o universo cotidiano da falta de oportunidades e a violência enfatizando as disputas no plano simbólico". (Silva, 1999, p.27).

2.3 Cultura, política e os âmbitos público e privado

Cultura, arte e política formam um feixe de temas entrelaçados, que se constituíram objeto de discussão no encontro com os narradores do movimento.

Os jovens entrevistados entendem o Hip Hop como "cultura de rua". Seu conceito é digno de reflexão diante das contingências da sociedade atual. Não deveriam todos tomar conta, preservar a cidade? Por que as pessoas se tornaram indiferentes aos espaços que transcendem a vida íntima, ou privada?

Como uma tentativa de resolução do conflito entre o encolhimento da vida privada e o esvaziamento da vida pública, a juventude Hip Hop apropriou-se das ruas, praças e parques nas metrópoles, designando um lugar intermediário entre o privado (casa) e o público, lugar de origem de uma sociabilidade que para Magnani (1984) seria mais significativa e estável do que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade.

O Hip Hop busca apropriar-se dos espaços públicos, assim como das regiões nobres e centrais da cidade, seus atores segundo Rose (1997), reinterpretam a experiência da vida urbana, apropriando-se de modo simbólico do espaço urbano, através da dança, do rap, do estilo. Os artistas grafitam muros, túneis, paredes etc., reivindicando seus territórios e marcando sua identidade na propriedade pública. Por meio do grafite, esses jovens visitam e invadem simbolicamente áreas nobres e centrais da cidade. Os B.boys dançam nas ruas, fazendo que se tornem teatros para a juventude. Os Dj's iniciaram as festas nas ruas, transformando as vias públicas em centros de livre expressão. O Hip Hop tem dado voz às contradições e tensões do espaço público urbano.

O Hip Hop como "cultura de rua", engloba ações comunitárias e questões políticas; promove o encontro dos jovens para a formação de grupos não apenas artísticos, mas, políticos, em que podem atuar discutindo questões sociais e políticas. O Movimento se constitui assim como uma possibilidade de intervenção político-cultural construída na periferia, que promove, atuando na esfera cultural, formas não tradicionais de se fazer política.

Os jovens entrevistados mostraram que desejam transformar um ambiente, aparentemente sem saída e opção, num outro, em que as manifestações culturais alcançam um papel importante na luta por seus direitos na cidade. Essa transformação deriva da renovação dos espaços públicos e do empenho no sentido de compreender o poder político e sobre este fazer reflexões críticas.

2.3.1. Arte, política e Hip Hop

Pensar sobre as possíveis relações entre arte e política pode ser relevante na tentativa de entender a escolha desses jovens, ou seja, entender por que escolheram a arte, para através dela construírem sua crítica política.

Quando se estabelecem ligações entre arte e política, não se quer dizer que artistas devam candidatar-se a cargos políticos, ou ainda que devam militar em partidos desta ou daquela facção.

Tal pensamento advém do fato de a sociedade atual parecer ter esquecido o significado original do termo política. Neste trabalho, o conceito de política é observado na origem do termo, que vem do grego, através do latim, e é "derivado do adjetivo originado de polis (politikós), que significa tudo o que se refere à cidade e, consequentemente, o que é urbano, civil, público e até mesmo sociável e social." (Bobbio e col., 1999, p. 954).

Quando neste trabalho se pensa em cultura, arte, política e o Movimento Hip Hop, quer-se destacar que os jovens que participam deste Movimento, excluídos da esfera da vida pública, "deixados para trás" (Sennett, 2000), buscam através da sua arte uma inserção na sociedade.

Sua arte ganha então um sentido político pleno, na medida em que desejam através dela atuar, questionar, criticar e intervir no âmbito da vida pública, na cidade, e no Estado.

A arte do Movimento, através do rap, do break, do grafite, do trabalho dos Dj's e Mc's, lhes garante visibilidade, constituindo-se em um novo locus público, propiciando um discurso próprio sobre a periferia, onde reivindicam melhores condições de vida e organizam-se  "como uma forma alternativa de se fazer política, distante dos espaços historicamente encarregados instituídos dessa prática como o Estado, a Igreja, a Universidade e o Partido Político." (Azevedo, 2000, p.91).

É assim o Movimento um convite à inserção no espaço público, dentre outros aspectos, começando com a consciência de que é importante cuidar e preservar o espaço público por excelência, a cidade, melhorando as práticas sociais que envolvem a questão de viver na polis.  Por propostas como esta, a arte do Movimento Hip Hop vai ganhando dimensões políticas.

Destaque-se que esta arte se manifesta e se concretiza dentro de uma sociedade de classes, expressando os seus conflitos, suas desigualdades e sua dramaticidade.

O olhar aqui repousa sobre uma forma de arte assim produzida e sobre todas as suas contradições, porque ela é ambígua, expressão de conformidade (absorvendo elementos da cultura dominante) e de desejo de resistir. Trata-se, pois, de arte integrante da cultura popular, vista nas suas relações com a cultura dominante e "como expressão dos dominados, buscando as formas pelas quais a cultura dominante é aceita, interiorizada, reproduzida e transformada, tanto quanto as formas pelas quais é recusada, negada e afastada, implícita ou explicitamente, pelos dominados". (Chauí, 1996, p.24).

A arte do Movimento abre caminhos para a denúncia e para a participação na esfera da vida pública. Para Marcuse a arte pode funcionar ainda como uma "catarse", pacificando a fúria da rebelião e da denúncia:

Assim uma catarse, uma purificação realmente ocorre na arte, que pacifica a fúria da rebelião e da denúncia e que torna o negativo em afirmativo. A capacidade mágica do artista acalma seja o horror seja a alegria: conversão da dor em deleite e prazer, conversão do aleatório em valor duradouro (...). (Marcuse, 1990, p.254). 

Para os jovens do Movimento Hip Hop, sua arte vai além da "catarse"... Por um lado, funciona como uma "catarse", em que colocam para fora sentimentos de tristeza, ódio, medo e revolta. Fazem "de cada frase de seus raps 'um cartucho musical', expondo, 'metralhando' catarticamente através das músicas a trágica realidade que os cerca".(Herschmann, 2000, p.281). Por outro lado, funciona como uma busca de conhecimento, informação, visando à inserção na sociedade que os excluiu e sua conseqüente transformação.

Os narradores do rap argumentam que a sua música é o protesto contra a falta de conhecimento, contra a falta de senso crítico, mostrando no lema do RAP, também definido como as iniciais de revolução, atitude e protesto, que "as artes por si mesmas assumem uma posição política, a posição de protesto, da repulsa e recusa".  (Marcuse, 1990, p.248).  A questão neste trabalho não é questionar a possibilidade da arte enquanto arte, como faz Marcuse.

Este estudo do Movimento Hip Hop não tem a pretensão de dizer que a arte deva ser necessariamente engajada. Procura-se apenas entender o que vem a ser esta arte que nasce na periferia de nossas cidades. Para Herschmann:

Sem ter a questão política necessariamente como seu objetivo primeiro, esses jovens desenvolvem um circuito de produção e consumo que traz questões políticas para a esfera pública. Ou melhor, seus estilos de vida são resultados de uma atuação não necessariamente 'engajada', mas que traz reflexos políticos.(Herschmann, 2000, p.281).

Trata-se de uma arte que nasce da exclusão, da falta de acesso a outros meios de diversão como clubes, cinemas, teatros. É uma arte que diverte e que também informa, traz conhecimento. A arte do Movimento Hip Hop funciona como uma instância de mobilização, talvez a única a que esses jovens tenham acesso. Contudo, "não se trata de converter a arte em panacéia. Ela sozinha será um parafuso que gira no vazio. Trata-se de conscientizar (e saber os limites) sua função; como parcela ela será relevante". (Lima, 1990, p.244).

 

Considerações Finais

O Movimento Hip Hop, analisado como forma de contestação social e política, mostrou ser um novo sujeito político na esfera pública do cotidiano da periferia, um instrumento político de uma juventude excluída, transformando esses jovens de excluídos sociais, proscritos e marginalizados em protagonistas da cena urbana onde emergem como atores de relevância social. Eles encontram voz no Movimento, através do qual podem expressar a dor e a angústia que os percorre e, ao mesmo tempo, podem manifestar a vontade de mudar sua situação para melhor.

Sua arte apresentou-se como uma renovada forma de expressão política, instituindo-se em um novo locus público. Os jovens, por meio dessa arte (através do rap, do break, do grafite, do trabalho dos Dj's e Mc's), apropriam-se de modo simbólico do espaço urbano, tanto das ruas da periferia, como dos espaços nobres e centrais das cidades e tentam interpretar e entender os problemas localizados na estrutura social, trazendo questões políticas para a esfera pública. Promovem uma crítica à ordem social, a criminalização da periferia e dos jovens pobres, à mídia e à violência diária em suas várias formas.

Desejam retratar a realidade do país, os preconceitos e os privilégios que pautam as relações dentro da estrutura social, discutindo a situação política da cidade e denunciando seus problemas. Por isso representam segundo Herschmann (2000), um "avesso do cartão postal", expondo o Brasil do jeito que ele é: "fragmentário e plural", repleto de conflitos e diferenças sociais. Desse modo, esses jovens mostram que não estão indiferentes às questões coletivas e que desejam uma transformação social.

Estes ideais do Movimento Hip Hop ainda que por vezes mais anunciados do que totalmente realizados marcam o seu caráter de contestação social e política. A expressão musical do Hip Hop, o rap, é a sua forma mais aguda de estabelecer suas críticas; seu tom político é marcante. Ele torna-se um instrumento para ajudar os jovens na luta por seus direitos e em seu propósito de intervir na esfera pública. Por isso o rap destaca-se dentro do Movimento. Ao contarem suas histórias, os narradores urbanos podem até parecer agressivos, talvez pela indignação presente, contudo as letras de rap não podem ser tomadas como manifestações de violência, exaltação ao terror, pois elas também representam a realidade numa forma de denúncia e crítica.

O Movimento Hip Hop acontece num terreno movediço, recortado de ambigüidades e caracterizado pela diversidade. Por isso, e por ser arte e cultura inseridas na sociedade de massas, traz em si muitas contradições e conflitos.

Praticantes ordinários da cidade, os narradores do Hip Hop escrevem o seu texto urbano, seus raps e revelam elementos de narrativa de acordo com o conceito de Benjamim em seu texto: "O narrador". As narrativas do Hip Hop tratam de um saber refletido, pensado a partir das práticas cotidianas, pois segundo Certeau (1994, p.82) "o ato da palavra não pode separar-se da circunstância". O fluxo das letras de rap não eclipsa a realidade de seus temas, e as histórias narradas são aquelas "histórias que fornecem às práticas cotidianas o escrínio de uma narratividade". (Certeau, 1994, p.142).

Esses narradores singulares das coisas ordinárias transcendem a função de porta-vozes da periferia, porquanto abarcam nos seus relatos a cidade em sua totalidade. Eles tentam integrar/reinserir a periferia como parte importante da cidade, contrapondo-se à exclusão e à segregação territorial e social que marca esse espaço.

O Movimento Hip Hop, enquanto "cultura de rua", definição que enfatiza todo o seu caráter de contestação social e política, mostra a cidade sob os mais diversos aspectos. E essa "cultura" torna-se um espaço de enunciação que abre ausências e densifica a crítica ao cotidiano, por mostrar as contradições e tensões do espaço público urbano. O Movimento Hip Hop através de suas práticas se estabelece como uma forma de intervenção político-cultural levada a efeito no espaço vivido da periferia. Desse modo, propicia o encontro dos jovens, contribuindo para a formação de grupos não apenas artísticos, mas também políticos.

As contradições, conflitos e diversidade de estilos do Hip Hop, indicam que seu terreno é frágil. A trajetória dos jovens nessa trilha mostra-lhes que vencer não é fácil, que propor caminhos alternativos significa enfrentar suas próprias angústias e medos, e a qualquer momento ainda ser vencido por seus próprios problemas e dificuldades. Mas através de sua música, de sua arte tentam contribuir para uma melhor compreensão dos conflitos e fraturas sociais.

 

Referências

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