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Psicologia para América Latina

versão On-line ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  no.34 México dez. 2020

 

Escala de motivos para viver (emviver): processo de construção dos itens

 

Reasons for Living Scale (EMVIVER): Process for Constructing of Items

 

Escala de razones para vivir (emviver): proceso de construcción del artículo

 

 

Marco Antonio GomesI; Letícia Lovato Dellazzana-ZanonII; Makilim Nunes BaptistaIII; Ana Celi PalliniIII

ICentro Universitário de Caratinga, Caratinga, Minas Gerais, Brasil
IIPontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil
IIIUniversidade São Francisco, Campinas, São Paulo, Brasil

Contato com os autores

 

 


RESUMO

A presente pesquisa teve como objetivo apresentar a construção dos itens de um novo instrumento psicométrico denominado de Escala de Motivos para Viver (EMVIVER), a partir da visão da Psicologia Positiva. Participaram do estudo 107 universitários de uma cidade do interior do estado de Minas Gerais, com média de idade de 26,20 anos (DP= 9,90), sendo a maioria do sexo feminino. A pergunta aberta disparadora foi "Quais seus motivos para viver?". O conteúdo das respostas foi avaliado qualitativamente e os resultados apontaram para a construção de itens aglutinados em cinco fatores, denominados de acordo com a literatura em: (a) Relacionamentos significativos; (b) Atração pela vida; (c) Planos para o futuro; (d) Aspectos relacionados ao Eu e (e) Virtudes. A partir da construção dos itens, as propriedades psicométricas da escala serão testadas futuramente, a fim de avaliar se as categorias teóricas sustentam a escala.

Palavras-chave: pesquisa qualitativa; psicologia positiva; construção de instrumento


ABSTRACT

The aim of this study whas to present the construction of the items of a new psychometric instrument called Reasons for Living Scale (EMVIVER) from the Positive Psychology view. Participated in the study 107 students from a city in the state Minas Gerais, with a mean age of 26.20 years (SD = 9.90), mostly female. The open question was triggering "What are your reasons for living?" The content of the participants responses was assessed qualitatively and the results pointed to the construction of clumped items on five factors, named according to literature on: (a) Significant Relationships; (b) Attraction for Life; (c) Plans for the future; (d) Related Aspects to self and (e) Virtues. From the construction of the items, the psychometric properties of the scale will be tested in an adequate sample size in a future study, in order to evaluate whether the theoretical categories support the scale.

Keywords: qualitative research; positive psychology; instrument construction


RESUMEN

Esta investigación tuvo como objetivo presentar la construcción de los elementos de un nuevo instrumento psicométrico llamado Escala de razones para vivir (EMVIVER), desde la perspectiva de la psicología positiva. Un total de 107 estudiantes universitarios de una ciudad en el interior del estado de Minas Gerais participaron en el estudio, con una edad promedio de 26.20 años (DE = 9.90), la mayoría de los cuales eran mujeres. La pregunta abierta fue «¿Cuáles son sus razones para vivir?" El contenido de las respuestas se evaluó cualitativamente y los resultados apuntaron a la construcción de ítems vinculados en cinco factores, nombrados según la literatura en: (a) Relaciones significativas; (b) atracción por la vida; (c) Planes para el futuro; (d) Aspectos relacionados con el Ser y (e) Virtudes. A partir de la construcción de los ítems, las propiedades psicométricas de la escala serán probadas en el futuro, para evaluar si las categorías teóricas apoyan la escala.

Palabras clave: investigación cualitativa; psicología positiva; construcción de instrumentos


 

 

Introdução

A Psicologia é composta por várias áreas de estudo e de atuação. Dentre essas áreas, a psicologia da saúde se destaca por estar crescendo cada vez mais no ensejo da busca e compreensão do adoecimento e das maneiras pelas quais os indivíduos podem se manter saudáveis. Os principais propósitos da psicologia da saúde são compostos pela prevenção e o tratamento de enfermidades, promoção e proteção da saúde, identificação de etiologias, promoção de melhorias no sistema de cuidados e nas políticas públicas de saúde (Calvetti, Nunes & Muller, 2007; Reppold et al., 2019).

No que diz respeito a avaliação, os instrumentos psicológicos podem ser uma das ferramentas importantes para auxílio no processo, conforme sugere a Resolução 09/2018, e podem ser uteis na identificação da depressão, estresse, ansiedade, desesperança, ideação e tentativas de suicídio (Capitão et al., 2005, Rueda & Zanini, 2018). Nesse sentido, contribuições da psicologia da saúde podem ser ferramentas importantes para a prática de terapeutas na medida em que cada vez mais pessoas, ou até mesmo famílias inteiras têm procurado seus consultórios ou redes de assistência a fim de buscar ajuda para tratar de demandas como a depressão (Motta, Moré, & Nunes, 2017; Silva, 2017).

Na psicologia, há uma vertente denominada como psicologia positiva, que preza por uma maneira diferenciada de observar o sujeito, com enfoque nas potencialidades e busca pelo desenvolvimento de características "virtuosas", possibilitando assim, compreender a saúde em um sentido mais amplo (Lemos & Cavalcante, 2009). Nesse contexto, instrumentos psicológicos com indicadores positivos, que avaliam dimensões como virtudes, esperança e otimismo, conseguem constituir significativos preditores de aspectos protetivos, importantes para o processo de promoção e prevenção da saúde mental (Monteiro, Modelo, & Remor, 2019). Tais instrumentos, podem ser ferramentas fundamentais para a prática de psicólogos, principalmente os que trabalham com psicologia clínica.

Apesar do notável avanço dos instrumentos em considerar os indicadores positivos, é preciso deixar claro que esse é um tema relativamente novo na psicologia. Gable e Haidt (2005) ressaltaram que no decorrer do século XX, os psicólogos agregaram conhecimentos sobre diversas temáticas como racismo, violência, irracionalidade, depressão, gerenciamento da autoestima e enfrentamento das adversidades humanas, o que não ocorreu em relação ao estudo das capacidades e virtudes humanas, do desenvolvimento de potencialidades e dos aspectos positivos da vida.

Antes das grandes guerras, principalmente a segunda guerra mundial, a ciência da psicologia tinha como grandes objetivos curar doenças mentais, ajudar os indivíduos a ter uma vida mais produtiva e harmônica e identificar e criar talentos. Em virtude desses conflitos mundiais, a Psicologia precisou se preocupar com os que sofreram em decorrência das guerras e com a correção dos danos mentais por elas causados. Assim, um dos percussores da psicologia positiva foi Martin Seligman que, em 1998 começou a indagar sobre os fatores de proteção da saúde na área da psicologia.

Em janeiro de 2000, Seligman e Csikszentmihalyi editaram um número especial da Revista da Associação Americana de Psicologia (American Psychologist). Nele, publicaram e organizaram artigos que mencionavam conceitos centrais da Psicologia Positiva. Entre os temas apresentados, pode-se citar: esperança, criatividade, felicidade, sabedoria e espiritualidade.

As emoções, cognições e comportamentos positivos podem gerar várias consequências benéficas como melhorias na sáude, na qualidade de vida e no bem-estar das pessoas, reduzindo o impacto negativo causado por situações estressantes. Eles também podem servir como forma de prevenção para alguns comportamentos de risco como, por exemplo, desesperança e ideação suicida (Fredrickson et al., 2000).

É evidente que a psicologia positiva conseguiu introduzir na atualidade importantes contribuições para o âmbito científico e para a população geral (Seligman & Csikszenmihalyi, 2000). Ela possibilita um novo ensejo para o redirecionamento do enfoque de pesquisas e de intervenções para os aspectos saudáveis do desenvolvimento. Nesse sentido, em consonância com Seligman e Csikszenmihalyi (2000), entende-se que a Psicologia não deve se ater apenas ao estudo da doença, da fraqueza e das perdas – semelhante atenção deve ser dada ao estudo de forças e virtudes humanas e o tratamento psicológico não deve envolver apenas o reparo de algo que está doente, mas o cultivo do que há de melhor em cada indivíduo. É neste contexto que os motivos que cada um tem para viver podem ser considerados como fundamentais no desejo pela vida, na qualidade da vida, nas relações com a família e amigos, na espiritualidade, dentre outros aspectos importantes do viver.

Os motivos para viver são considerados como variáveis amortecedoras quando o indivíduo enfrenta situações críticas. Alguns dos motivos para viver são atração pela vida, otimismo, suporte social positivo, vida social satisfatória e religiosidade (Osman et al., 2002). Os motivos para viver, em maior frequência e intensidade funcionam como um fator protetivo de comportamento de risco, mas em menor frequência e intensidade pode ser um possível indicativo de ideação suicida, tentativas futuras e/ou suicídio (Heisel & Flett, 2004). Assim, estudar motivos - ou razões - para viver é uma forma de investigar os aspectos saudáveis, bem como, uma alternativa para a investigação indireta de comportamentos ligados ao suicídio e sintomatologia de depressão (Linehan et al., 1983).

Vários estudos têm focado nos motivos para viver relacionando-os a outros construtos. Por exemplo, no estudo de Bakhiyi. et al. (2017), os motivos para viver foram capazes de impactar junto com os eventos de vida positivos e negativos, a presença, diminuição ou aumento da ideação suicida. Um exemplo disso é que os eventos positivos ocorridos na família e mais razões para viver foram negativamente correlacionados aos pensamentos de morte. Eryilmaz (2012) associou os motivos para viver com o bem-estar em adolescentes, apontando que o suporte social pareceu ser um dos principais construtos em um modelo de equação estrutural, além do apego à vida. Além disso, os motivos para viver também foram estudados junto à desesperança, ideação, tentativas de suicídio e depressão, por Bagge, Lamis, Nadorff e Osman (2014), sugerindo que a ideação suicida é mediada parcialmente pelos motivos de vida.

Uma revisão sistemática a respeito dos motivos para viver sendo associado negativamente à ideação suicida e/ou tentativas, sugeriu que eles podem moderar os pensamentos sobre morte, no entanto outras variáveis devem ser consideradas como importantes na ideação suicida, tais como as estratégias de coping, transtornos psiquiátricos e de personalidade, além da importância do suporte social (Bakhiyi, Caladi, Guillaume, & Courtet, 2016). A maternidade também esteve interligada no sentido positivo com os motivos para viver, no sentido de diminuir a ideação suicida em mulheres que já tinham histórico anterior de pensamentos em relação a morte autoprovocada (Woods, Zimmerman, Carlin, Hill, & Kaslow, 2013). Razões para viver e satisfação com o suporte social (intimidade, satisfação com a família e atividades sociais) também foram protetores contra comportamentos suicidas no estudo de Leal e Santos (2016).

Rieger, Peter e Roberts (2014) apontaram que questões religiosas (fé) estão associadas às razões para viver e à ideação suicida, indo ao encontro das considerações de Bakhiyi et al. (2016), que citaram a importância das objeções morais e estratégias de enfrentamento ligados à proteção contra ideação suicida. Outras pesquisas também associaram os motivos para viver, com estratégias de coping (Wang, Nyutu, & Tran, 2012) e sentimentos de pertença ao grupo (Kissane, & McLaren, 2006).

Sendo assim, após diversas evidências de que os motivos para viver parecem ser importantes na predição de ideação, tentativas de suicídio e depressão, a principal proposta deste estudo, foi a construção de um instrumento nomeado como Escala de Motivos para Viver (EMVIVER), que poderá ser utilizada por psicólogos e outros profissionais de saúde no intuito de avaliar a presença ou a ausência de indicadores protetivos nos comportamentos de risco. Esses fatores consolidam as estratégias de enfrentamento podendo diminuir as chances do desenvolvimento de comportamento suicida (Sánchez, 2001).

Portanto, a EMVIVER tem a pretensão de ser uma escala que rastreia os motivos para viver, oriundos aos sujeitos, considerando o continuum do otimismo e da esperança em relação aos desafios, perspectivas e os planos para o futuro. O instrumento supracitado foi desenvolvido a partir do modelo da Reasons for Living Scale (Escala de Razões para Viver - RLS) de Linehan et al. (1983), construída nos Estados Unidos, e traduzida para a língua portuguesa por Gomes (2013), com o principal objetivo de avaliar indiretamente a ideação suicida por meios de razões para não se matar. Se por um lado, a RLS avalia a ideação por meio de razões para manter-se vivo, mais precisamente por meio de itens negativos como medo de morrer, desaprovação social e preocupação com os filhos; por outro lado, a EMVIVER foi desenvolvida para avaliar os motivos para viver a partir de fatores positivos como otimismo, atração pela vida e relações significativas, modificando o foco da avaliação.

Do ponto de vista da pesquisa científica, têm-se estudado, recentemente, variáveis positivas como o otimismo, a espiritualidade, a criatividade e a imagem corporal, associados ao bem-estar e à qualidade de vida de pessoas doentes e não doentes, e de seus cuidadores (Silva, 2006). Em relação às contribuições da Psicologia Positiva para a clínica psicológica, destaca-se a importância na ênfase da prevenção no processo de psicoterapia como, por exemplo, a atenção à conotação otimista como forma de prevenir a depressão e a ansiedade em crianças e adultos (Seligman & Peterson, 2003).

Portanto, considerando a necessidade de se desenvolver pesquisas que visem investigar capacidades e virtudes humanas, este estudo tem como objetivo apresentar a construção inicial da Escala de Motivos para Viver (EMVIVER), cuja base teórica está na Psicologia Positiva. O processo apresentado se trata de uma metodologia qualitativa, na qual constam as etapas de criação de itens e categorias.

 

Método

Participantes

Participaram do estudo 107 universitários, com idade mínima de 18 anos, de diversos cursos, entre estes, Nutrição, Psicologia, Medicina e Engenharia Ambiental de uma universidade do interior do estado de Minas Gerais. A média de idade dos participantes foi de 26,2 anos (DP= 9,9), sendo a maioria do sexo feminino (n=83; 77,6%). Em relação ao estado civil, 65 (60,7%) eram solteiros, 28 (26,2%) casados, 6 (5,6%) separados, 3 (2,8%) amasiados e apenas 1 (0,9%) viúvo. Quanto ao curso de graduação, 47 (43,9%) cursavam Psicologia, 28 (26,2%) Engenharia Ambiental, 17 (15,9%) Nutrição e 15 (14,0%) Medicina. A seleção dos participantes foi pelo critério de conveniência e a participação dos universitários foi voluntária. Dentre os critérios de inclusão estavam: ser estudante universitário e ter pelo menos 18 anos, podendo atestar e responsabilizar-se pela participação voluntária. Não foram delimitados previamente os cursos, sendo que os comtemplados nesse estudo coincidiram com horário e disponibilidade da universidade e pesquisadores.

Instrumentos

Ficha de Identificação. Com informações sobre a idade, sexo, estado civil e escolaridade, tendo como objetivo aferir os dados sociodemográficos dos sujeitos participantes.

Depoimento escrito sobre motivos para viver. A partir de uma questão especifica "Quais seus motivos para viver?" Aos participantes da pesquisa foi solicitado escreverem um depoimento a partir dessa indagação, com o objetivo principal de investigar quais seriam seus motivos para viver.

Procedimentos de coleta de dados

Realizou-se contato com os responsáveis de cada curso de graduação, que no caso foram os coordenadores, informando sobre a realização do estudo. A partir do primeiro contato foi explicado com detalhes sobre a pesquisa, com o intuito de organizar o cronograma para definir os dias e horários mais adequado para a realização do primeiro contato com os participantes.

Participaram também da coleta de dados, cinco alunos matriculados no 5º período do curso de Psicologia que já haviam cursado a disciplina Entrevista Psicológica. Esses alunos foram informados sobre a pesquisa, temática e objetivos, e foram treinados para auxiliar na coleta de dados.

A coleta de dados foi realizada na própria universidade nos períodos de aulas. Solicitou-se aos participantes o preenchimento e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Todos os alunos que aceitaram participar do estudo e assinaram o TCLE receberam instruções sobre o preenchimento dos instrumentos. O tempo médio de duração de cada aplicação foi de aproximadamente 10 minutos. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade São Francisco com o protocolo número CAAE 02015712.0.000.5514 .

Procedimentos de análise dos dados

O objetivo dessa primeira análise qualitativa foi identificar os motivos para viver dos participantes da presente pesquisa. Foram considerados motivos para viver todas as respostas contidas nos relatos escritos dos 107 universitários que responderam à questão "Quais seus motivos para viver?".

Considerando-se o objetivo de analisar os motivos para viver dos participantes, realizou-se uma análise qualitativa, segundo Gibbs (2009). Para o autor, os dados qualitativos são essencialmente significativos, e mais do que isso, mostram grande diversidade. Eles não incluem contagens e medidas, mas, sim, praticamente, qualquer forma de comunicação humana. Ainda de acordo com o mesmo autor, a ideia de análise sugere algum tipo de transformação, começando com uma coleta de dados qualitativos e processando-os posteriormente por meio de procedimentos analíticos, até que se transformem em uma análise clara, compreensível, criteriosa, confiável e até original.

Para esse estudo, optou-se pela codificação aberta, na qual a resposta é lida de forma reflexiva para identificar categorias relevantes. O objetivo inicial foi reunir temas semelhantes a partir dos trechos escolhidos das respostas dos participantes sobre a questão de autorrelato (motivos para viver). A reunião dos temas (unidades temáticas) possibilitou a construção de categorias de motivos para viver comuns. Por fim, as categorias construídas foram comparadas com a literatura disponível. Os passos da análise foram: (a) leitura de familiarização de todos os relatos, (b) transcrição dos 107 relatos para uma tabela, (c) identificação dos motivos para viver dos participantes, (d) construção de uma nova tabela com uma lista de todos os motivos para viver retiradas dos relatos dos participantes, (e) construção das categorias de análise e de suas subcategorias com base nos relatos dos participantes. Após o processo de codificação, com as categorias já estabelecidas, os itens foram elaborados por dois dos autores correspendendo as temáticas encontradas e pressupostos teóricos nos quais elas se baseram.

 

Resultados e Discussão

A partir da análise de conteúdo, os motivos para viver foram agrupados em cinco grandes categorias: (a) relacionamentos significativos, (b) atração pela vida, (c) planos para o futuro, (d) aspectos relacionados ao eu e (e) virtudes. Após a definição das categorias, três profissionais envolvidos com a pesquisa, com formação em Psicologia e atuação na área de avalição psicológica, trabalharam separadamente para distribuir os itens da EMVIVER em cada uma das categorias de análise. Apenas foram considerados os itens nos quais a concordância entre os juízes foi de 100%. A Tabela 1 apresenta as categorias, as subcategorias e exemplos de respostas dadas pelos participantes, bem como exemplos dos itens que foram construídos. Inicialmente 55 itens (anexo ao final) foram elaborados a partir das grandes categorias.

 

 

Considerando-se que o tipo de análise de conteúdo utilizada neste estudo foi a de codificação aberta, as categorias foram criadas a partir dos dados e nomeadas, quando possível, de acordo com a literatura. As três primeiras categorias – relacionamentos significativos, atração pela vida e planos para o futuro – foram nomeadas de acordo com a descrição de Osman et al. (2004) sobre fatores protetivos.

A quarta categoria – aspectos relacionados ao eu – foi nomeada a partir do estudo de Ryan e Deci (2001) sobre abordagem eudemonista do bem-estar que enfatiza as experiências de realização pessoal e de expressão dos potenciais individuais. Por fim, a quinta categoria – virtudes – foi nomeada de acordo com o estudo de Peterson e Seligman (2004) sobre forças e virtudes.

Botega et al. (2005) salientam que a presença de fatores de proteção pode diminuir a incidência do risco, por meio do fortalecimento de estratégias de enfrentamento, ou seja, a presença de motivos para viver pode oferecer condições de suporte, constituindo-se em recursos e ajuda efetiva para enfrentamento de uma crise, diminuindo o risco de suicídio. A compreensão desses fatores de proteção é fundamental, uma vez que possibilitam a elaboração de perspectivas eficazes de prevenção e promoção de saúde (Morais & Koller, 2004).

Nessa direção, a EMVIVER está inserida em uma visão ampla e atual da Psicologia, denominada Psicologia Positiva. Seligman e Csikszentmihalyi (2000) definiram Psicologia Positiva a partir do seu objetivo de compreender os fatores e processos que promovem o desenvolvimento psicológico sadio e que se interessa pela compreensão de aspectos responsáveis pelo fortalecimento e pela construção de competências. Como assinalado por Sheldon e King (2001), a Psicologia Positiva estuda cientificamente as forças e as virtudes humanas. Aspectos como bem-estar subjetivo, otimismo, felicidade, autodeterminação, esperança, criatividade, habilidades interpessoais e fé são alguns exemplos de traços humanos que os teóricos da Psicologia Positiva vêm relacionando a um desenvolvimento saudável.

Embora este estudo tenha sido inspirado na Reasons for Living Scale (Escala de Razões para Viver - RLS) de Linehan et al. (1983), deve-se salientar que a RLS avalia indiretamente a ideação suicida. Por meio de questionamentos relativos a diferentes razões para manter-se vivo - ou seja, para não se matar, a RLS usa um enfoque cognitivo, valorizando as crenças e as razões para que a pessoa não apresente comportamento autodestrutivo. Isso fica claro quando se observam as seguintes dimensões da RLS: (a) crenças de sobrevivência, (b) medo do suicídio e (c) medo da desaprovação social. Por seu lado, a EMVIVER avalia de forma direta as razões e motivos para viver, a partir de questionamentos positivos que se agrupam em dimensões positivas como, tais como relacionamentos significativos, atração pela vida e virtudes.

Nesse sentido, seguindo os pressupostos da Psicologia Positiva, quando as respostas dos participantes à questão "Quais seus motivos para viver?" foram analisadas, buscou-se categorizá-las de forma a chamar atenção para aspectos positivos da vida. A seguir, são apresentados exemplos de cada uma das categorias e enfatizam-se seus aspectos positivos pra que se tenha uma vida boa (Seligman & Csikszenmihalyi, 2000; Seligman & Peterson, 2003).

Na categoria Relacionamentos Significativos (Osman et al., 2004), incluíram-se 12 itens ligados aos afetos e sentimentos voltados para familiares e amigos como, por exemplo, "poder desfrutar da proteção que a família proporciona", "compartilhar amizades" e "conviver com pessoas queridas". Essa primeira categoria da EMVIVER é fundamental para a avaliação do suporte social e familiar, na medida em que as relações sociais tendem a ter papel essencial na atenção e promoção da saúde física e mental. Nessa mesma direção, sabe-se que as relações sociais são capazes de moderar o estresse em pessoas com experiência em problemas de saúde, morte do cônjuge ou mesmo crises financeiras, além, de transtornos psicopatológicos, como por exemplo, a depressão (Rueger et al, 2016). Fazem parte dessa categoria itens tais como: "A convivência com a família"; "A vontade de dividir/compartilhar amizades", e "A responsabilidade com a minha família".

Além disso, como apontaram os estudos de Woods, et al (2013), Bakhiyi et al, (2016), Bagge et al. (2014); Bakhiyi et al, (2017) e Kissane & MacLaren (2006), os aspectos social e familiares são fundamentais em sua relação com os motivos para viver. Assim, desde a possibilidade de ser mãe, a valorização e convivência com família e amigos, bem como a responsabilidade para com o grupo familiar parecem ser razões que protegem contra o suicídio.

No que tange à importância dos relacionamentos significativos, a falta de apoio e de laços afetivos com familiares e amigos, podem se constituir em aspectos relevantes para avaliação negativa da autoestima, do risco de suicídio e/ou desenvolvimento de transtornos mentais (Baptista et al., 2017). Para Sánchez (2001), esses relacionamentos significativos agem como força contrária aos impulsos destrutivos e fortalecem as estratégias no enfretamento dos problemas. Osman et al. (2004) destacam que os fatores protetivos, como o suporte social, familiar e relações de amizades, fortalecem as estratégias de enfrentamento do sujeito e constituem-se em condições de suporte que ajudam a diminuir a probabilidade de o indivíduo engajar-se em um comportamento suicida.

Na categoria Atração pela vida (Osman et al., 2004) permaneceram 10 itens voltados para o desejo de vivenciar momentos positivos, de viver com entusiasmo e otimismo como nos exemplos de itens tais como: "O amor pela vida", "A vontade de viver" e "Poder usufruir dos momentos que a vida oferece". Pode-se pensar que a categoria Atração pela vida reflete a forma como as pessoas avaliam as suas vidas, incluindo variáveis como satisfação nos relacionamentos, ausência de depressão e ansiedade e, presença de emoções e estados de humor positivos. A satisfação com a vida, por exemplo, é um julgamento cognitivo de alguns domínios específicos na vida como saúde, trabalho, condições de moradia e relações sociais. Esta satisfação reflete, em parte, o bem-estar subjetivo individual, ou seja, o modo e os motivos que levam as pessoas a viverem suas experiências de vida de maneira positiva.

O bem-estar subjetivo busca compreender a avaliação que os indivíduos fazem de suas vidas, em relação aos aspectos felicidade, satisfação, estado de espírito e afeto positivo. No âmbito do conhecimento científico, o termo "felicidade" tem sido conhecido associado fortemente ao bem-estar subjetivo (Zanon et al, 2013). Assim, o construto bem-estar subjetivo (BES) tem sido concebido como o estudo científico da felicidade, estando fortemente relacionado à promoção de saúde.

Na categoria Planos para o futuro (Osman et al., 2004), foram elaborados seis itens relacionados a planos e objetivos futuros como demostrado nos itens "Realizar conquistas", "Realizar os sonhos que fazem parte da vida" e "O desejo de colocar em prática todos os projetos de vida". Não há dúvidas de que ter ou estar construindo um projeto de vida seja um aspecto positivo na vida de uma pessoa. Portanto, o projeto de vida é um aspecto importante para que a vida se desenvolva de forma saudável (Dellazzana-Zanon & Freitas, 2015). Pensar em si e projetar-se no futuro são aspectos protetivos, pois trazem benefícios para o sujeito como conquista da felicidade e da satisfação pessoal e garantia de resiliência nos momentos difíceis (Damon, 2009). Além disso, ter projetos de vida claros pode servir como um fator de proteção contra possíveis comportamentos autodestrutivos em jovens, assim como pode motivá-los a terem uma atitude positiva perante a vida (Damon, 2009). Por essas razões, é fundamental que exista uma categoria que avalie projetos de vida em uma escala que se propõe a avaliar motivos para viver.

Na categoria Aspectos Relacionados ao Eu, Ryan e Deci (2001) destacam a importância do conhecimento, autoaperfeiçoamento e valorização pessoal com cinco itens criados. Exemplo desses itens: "Busca do meu equilíbrio interior", "Busca pela realização profissional" e "Vontade de aprender a cada dia". A categoria em pauta também aponta para a importância da busca de sentido de vida, bem como o autoaperfeiçoamento. Nesse sentido, Steger et al. (2006) relacionam a busca de sentido da vida ao bem-estar, à melhoria de estratégias de enfrentamento de situações estressantes, além de ser um marcador importante de crescimento nos processos psicoterapêuticos. Da mesm forma, King et al. (2006) indicam que o sentido de vida também se relaciona à regulação do humor e estabelecimento de metas de vida, quesitos importantes associados, de forma geral, à felicidade.

Por fim, na categoria Virtudes, incluíram-se 22 itens voltados para a espiritualidade, humanidade e transcendência, tais como: "A certeza que a vida é um presente divino", "Fazer o bem" e "Acreditar em dias melhores". Nessa categoria aglomeraram-se, portanto, os itens relacionados à espiritualidade, à humanidade, à justiça, à transcendência e à esperança. Nessa direção, Lemos e Cavalcante (2009) pontuam que testes contendo como critério indicadores positivos que avaliam dimensões como virtudes, espiritualidade e esperança, constituem-se em importantes fatores protetivos, o que contribui no processo de prevenção e promoção da saúde mental.

A espiritualidade é um fator central para a avaliação em saúde, ao oferecer um referencial de significados para o enfrentamento de enfermidades, contribuindo para a saúde mental de um indivíduo. E, ainda, de acordo com a OMS (1946), a saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social, além do que, desde 1983, discute-se a inclusão da espiritualidade como elemento essencial no processo de promoção da saúde (Fleck et al., 2003). Nesse sentido, diferentes estudos vêm explorando os aspectos de espiritualidade no tratamento de doenças crônicas, na melhora de quadros clínicos graves e no restabelecimento pós-cirúrgicos, assim como relacionando a espiritualidade como suporte protetivo na prevenção de comportamentos de riscos, como no caso de transtornos mentais, uso de substâncias e comportamentos suicidas (Osman et al., 2004), além da relação entre espiritualidade e qualidade de vida.

É importante ressaltar que a divisão dos itens criados para as categorias foi verificada por três profissionais envolvidos com pesquisa em psicologia e avaliação psicológica. A concordância entre eles foi de 100%.

 

Conclusão

O presente estudo teve como objetivo apresentar o processo de construção dos itens da Escala de Motivos para Viver (EMVIVER). Esse instrumento busca ser útil para aferir indicadores protetivos de comportamentos de risco, ou seja, uma medida dos motivos para viver atribuídos às pessoas, como o otimismo e a esperança frente aos desafios, a perspectivas e planos para o futuro. É importante estudar os fatores protetivos, pois eles agem como um "escudo", protegendo o sujeito e diminuindo a probabilidade de comportamentos de risco, inclusive o suicídio e outros transtornos mentais (Sánchez, 2001). Por essas razões, um instrumento construído para a população brasileira que avalie motivos para viver pode ser uma ferramenta útil para profissionais da área da psicoterapia.

O processo qualitativo de construção dos itens da EMVIVER possibilitou que as respostas dos participantes sobre seus motivos para viver fossem analisadas e divididas em categorias temáticas, bem como, criar itens que serão testados em estudos psicométricos futuros. Esse é um processo importante da criação de um teste, na medida em que parte das respostas dos sujeitos sobre o tema a ser investigado. Por meio da análise de conteúdo foi possível identificar categorias de motivos para viver já levantadas pela literatura sobre o assunto. Assim, pode-se pensar que as categorias resultantes do estudo qualitativo de construção de itens – Relacionamentos significativos, Atração pela vida, Planos para o futuro; Aspectos relacionados ao eu e Virtudes – sejam indicadores positivos e, portanto, importantes preditores de fatores protetivos.

Sugere-se que, em estudos futuros, a construção de itens complementares parta de entrevistas individuais ou de grupos focais, por meio dos quais seja possível aprofundar a percepção dos participantes sobre a temática, a fim de ampliar a gama de motivos para grupos específicos, tais com pacientes terminais e ou com doenças crônicas e incapacitantes. Por fim, espera-se que, após a avaliação das propriedades psicométicas, a EMVIVER: (a) seja um instrumento que contribua para programas de prevenção e promoção da saúde mental e (b) sirva como um instrumento alternativo, focado em aspectos positivos da vida, para investigar comportamentos ligados ao suicídio e outros transtornos mentais, além de poder ser um instrumento de grande utilidade na prática clínica e para o trabalho com famílias.

 

Referências

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Contato com os autores:
Marco Antonio Gomes
E-mail: marco022019@gmail.com

Recebido em: 17/10/2019
Revisado em: 31/03/2019
Aprovado em: 15/04/2020

 

 

Sobre os autores:
Marco Antonio Gomes
Doutor em Psicologia/Avaliação Psicológica pela Universidade São Francisco – Avaliador ad hoc do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (BASis); Docente e Pesquisador do Programa de Pós-graduação do Centro Universitário de Caratinga – UNEC.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8609-5511
E-mail: marco022019@gmail.com
Letícia Lovato Dellazzana-Zanon
Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto-Sensu em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – Campinas – São Paulo, Brasil.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0649-1675
E-mail: leticiadellazzana@gmail.com
Makilim Nunes Baptista
Doutor em Psiquiatria e Psicologia Médica pela Universidade Federal de São Paulo, Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto-Sensu em Psicologia da Universidade São Francisco – Campinas – São Paulo, Brasil.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6519-254X
E-mail: makilim01@gmail.com
Ana Celi Pallini
Psicóloga. Mestra e doutoranda em psicologia pelo programa de Pós-Graduação Stricto-Sensu em Psicologia da Universidade São Francisco – Campinas – São Paulo, Brasil.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1348-2323
E-mail: anapallini@outlook.com

 

 

Anexo

 

 

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