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Revista Brasileira de Psicologia do Esporte
versão On-line ISSN 1981-9145
Rev. bras. psicol. esporte v.1 n.1 São Paulo dez. 2007
Da psicologia do esporte que temos à psicologia do esporte que queremos
From the Sports Psychology we got to the Sports Psychology we want
De la psicología del deporte que tenemos a la psicología del deporte que queremos
Kátia Rubio
Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo
RESUMO
Há algumas décadas a Psicologia do Esporte no Brasil vem se organizando e se firmando como uma realidade tanto entre a Psicologia, nos aspectos relacionados com a formação, como também junto a atletas e equipes esportivas. A partir da resolução 014/00, do Conselho Federal de Psicologia, esse quadro sofreu uma drástica alteração, uma vez que a Psicologia do Esporte passou a ser considerada como uma especialidade da Psicologia, regulamentando o exercício profissional e a formação dos psicólogos desejosos de atuarem junto à Psicologia do Esporte. Esse artigo tem por objetivo analisar o desenvolvimento da Psicologia do Esporte apontando suas especificidades no Brasil, bem como sua proximidade com a Psicologia Social e a singularidade do trabalho clínico nesse contexto. Para tanto descreve as várias áreas onde a atuação do psicólogo ocorre e a singularidade desse fazer profissional em um país como o Brasil que apresenta uma estrutura esportiva singular dentro do contexto internacional.
Palavras-chave: Psicologia do esporte, Atuação em psicologia do esporte, Psicologia social do esporte, Clínica em psicologia do esporte.
ABSTRACT
Since a few decades, the Sports Psychology in Brazil has been organized and consolidated as a reality in the Psychological Studies, concerning the different aspects related to this graduation subject, but also among athletes and sports teams. From the resolution 014/00 on, of the Psychology Federal Court, this scenery has suffered a drastic change, because the Sports Psychology began to be considered a specialization of Psychology, regulating the professional practice and the graduation of psychologists willing to work in the Sports Psychology area. This article has the purpose of analyzing the development of the Sports Psychology, showing its peculiarities in Brazil, as well as its relationship with the Social Psychology, and the singularity of the clinical work in this context. Thus it describes the several areas where the psychologist's performance happens and the singularity of this professional praxis in a country like Brazil which has a singular sports structure within the international context.
Keywords: Sports psychology, Performance in sports psychology, Sports social psychology, Clinical praxis of sports psychology.
RESUMEN
La Psicología del Deporte en Brasil viene organizándose y firmándose, en las últimas décadas, como una realidad tanto entre la Psicología, a lo que se atiene a la formación, como junto a los atletas y equipos deportivos. Desde la resolución 014/00, del Consejo federal de Psicología, ese cuadro ha sufrido una radical alteración, visto que la Psicología del Deporte ha pasado a ser considerada una especialidad de la Psicología, reglamentando el ejercicio profesional y la formación de psicólogos deseosos de actuaren junto a la Psicología del Deporte. Ese texto tiene como objetivo analizar el desarrollo de la Psicología del Deporte entendiendo sus especificidades en Brasil, así como su proximidad con la Psicología social y la singularidad del trabajo clínico en ese contexto. Para tanto describe las diversas áreas en que el psicólogo actúa y la singularidad de esa actuación en un país como Brasil que presenta una estructura singular en el contexto internacional.
Palabras clave: Psicología del deporte, Actuación en psicología del deporte, Psicología social del deporte, Clínica en psicología del deporte.
Introdução
Para se compreender o estágio que a Psicologia do Esporte no Brasil se encontra na atualidade é preciso retomar alguns marcos da história da área e do contexto em que essas ações foram produzidas.
A Psicologia do Esporte no Brasil teve seu marco inicial na atuação e estudos de João Carvalhaes, um profissional com grande experiência em psicometria, chamado a atuar junto ao São Paulo Futebol Clube, equipe sediada na capital paulista, onde permaneceu por cerca de 20 anos. Além do clube Carvalhaes também esteve presente na comissão técnica da seleção brasileira que foi à Copa do Mundo de Futebol de 1958 e conquistou o primeiro título mundial para o país na Suécia (Rubio, 1998; 1999; 2000.a). Vale ressaltar que esse esforço e intervenção ocorreram antes mesmo da regulamentação da profissão de psicólogo, fato registrado em 1962. Importante fazer essa ressalva para que se frise a o destaque atribuído ao adjetivo do trabalho realizado: Carvalhaes fez junto ao SPFC e à Seleção Brasileira de Futebol um trabalho psicológico.
Reconhecido no exterior como um inovador por excelência, e como alguém que ajudou o Brasil a superar o silêncio do Maracanã, Carvalhaes participou do movimento de regulamentação da Psicologia provocando fortes impactos em duas frentes: na profissional e na acadêmica.
Na profissional porque foi um período de concessão do registro de atuação profissional àqueles que já vinham exercendo atividades que passaram a ser caracterizadas como do âmbito do psicólogo. E aqui se encontravam os filósofos, pedagogos, sociólogos que atuavam na escola, na indústria e, principalmente, na clínica, e que passaram a ser reconhecidos como psicólogos. Àqueles que não apresentaram os requisitos necessários para a obtenção do título restava fazer o curso de Psicologia e obter o certificado por meio de formação acadêmica.
Na esfera acadêmica o movimento foi de outra ordem, uma vez que apesar de já possuir um corpo teórico considerável na prática clínica, em outras áreas, principalmente na educação e em recursos humanos, a psicologia procurava se afirmar como ciência. São dessa época a criação e a sistematização de um grande número de testes psicológicos que buscavam quantificar e aferir inteligência, comportamento, personalidade e outros temas considerados da esfera da Psicologia. Os instrumentos psicométricos utilizados nessa época pelas diversas áreas psi foram empregados junto à seleção brasileira de futebol de então. (Rubio, 2002.a).
As regras que marcavam o esporte chamado olímpico na década de 1950, tanto em âmbito nacional como internacional, caminhavam em outra direção e se pautavam no amadorismo e no fair play, ditados pela Carta Olímpica. O futebol constituía-se uma exceção nesse universo visto que já se profissionalizara no Brasil e em outros países desde a década de 1920. Talvez por isso ele tenha se tornado um fenômeno distinto das demais modalidades esportivas tanto naquilo que se refere a constituição dos times e clubes com atletas recebendo vultosas remunerações para os padrões da época e comissões técnicas compostas por profissionais de várias áreas , como pela organização de seus eventos campeonatos nacionais e mundiais em que as Federações da modalidade têm a autonomia para organizá-los e gerenciá-los conforme elas assim o desejarem (Carrano, 2000; Costa, 1999).
Essas eram as expectativas e a realidade do futebol com que se deparava João Carvalhaes em 1958. Essas eram as condições da Psicologia e do Esporte no Brasil de então. E assim estava marcado o início da Psicologia do Esporte brasileira. Nos anos que se seguiram foi sendo acumulada muita informação sobre indivíduos (atletas) e grupos (times) que praticavam esporte ou atividade física, sem que isso ainda representasse a constituição de um arcabouço teórico consistente (Lima 2002; Rodrigues, 2006).
A Psicologia do Esporte que temos
Durante quase três décadas o trabalho prático e a produção acadêmica da área pautavam-se em modelos teóricos desenvolvidos nos EUA e na Europa (Cruz, 1997; Riera & Cruz, 1991; Weinberg & Gould, 1995; Wiggins, 1984; Williams & Straub, 1991).
Mas, diante da especificidade do esporte brasileiro, tentou-se adaptar esses instrumentos e técnicas tanto às condições das instituições esportivas como às variações culturais presentes na vida dos atletas brasileiros, sem, contudo se chegar a um modelo próprio de avaliação e intervenção. Esse quadro apresentou uma grande transformação no final da década de 1980, com a busca dos interessados pela formação específica e a posterior organização de grupos de estudo e instrução de psicólogos brasileiros.
O resultado dessa busca pela alteridade pode ser observado na diversidade de formas de atuação específicas do Brasil. Partindo da psicanálise, do cognitivismo, do behaviorismo radical, do psicodrama, da psicologia social, da psicologia analítica ou da gestalt como referencial teórico, um grupo crescente de psicólogos tem se dedicado a desenvolver a Psicologia do Esporte brasileira, e métodos próprios de avaliação, considerando as particularidades das modalidades no país e dos atletas que convivem com uma realidade específica (Angelo, 2000; Cillo, 2000; 2003; Franco, 2000; Matarazzo, 2000; Pereira, 2003; Silvestre Da Silva, 2006).
Vale ressaltar que nem toda psicologia aplicada ao esporte é psicologia do esporte. Já há algum tempo pode-se considerar que a Psicologia do Esporte tenha como meio e fim o estudo do ser humano envolvido com a prática do exercício, da atividade física e esportiva competitiva e não competitiva, muito embora nem sempre tenha prevalecido essa perspectiva entre estudiosos e práticos da área (Rubio, 1998; 2000.b; 2003). Esses estudos podem abarcar os processos de avaliação, as práticas de intervenção ou a análise do comportamento social que se apresenta na situação esportiva a partir da perspectiva de quem pratica ou assiste ao espetáculo (Marques & Junishi, 2000; Figueiredo, 2000; Markunas, 2000; Martini, 2000).
A Psicologia no Esporte é tida por Feijó (2000) e Machado (2000) como a transposição da teoria e da técnica das várias especialidades e correntes da Psicologia para o contexto esportivo, seja no que se refere a aplicação de avaliações para a construção de perfis, seja no uso de técnicas de intervenção para a maximização do rendimento esportivo.
A avaliação psicológica de atletas e a construção de perfis é um dos procedimentos que maior visibilidade dá ao psicólogo do esporte e maior expectativa cria em comissões técnicas e dirigentes. É também uma das grandes preocupações dos profissionais da área por envolver procedimentos éticos ditados pelo Conselho Federal de Psicologia (Luccas, 2000).
O processo de avaliação psicológica no esporte é conhecido como psicodiagnóstico esportivo e está relacionado diretamente com o levantamento de aspectos particulares do atleta ou da relação com a modalidade escolhida. As investigações de caráter diagnóstico têm como objetivo determinar o nível de desenvolvimento de funções e capacidades no atleta com a finalidade de prognosticar os resultados esportivos. No esporte de alto rendimento, o psicodiagnóstico está orientado para a avaliação de características de personalidade do atleta, para o nível de processos psíquicos, os estados emocionais em situação de treinamento e competição e as relações interpessoais. Com o resultado do diagnóstico pode-se chegar a conclusões referentes a algumas particularidades pessoais ou grupais que oferecem subsídios para se fazer uma seleção de novos atletas para uma equipe, para mudar o processo de treinamento, individualizar a preparação técnico-tática, escolher a estratégia e a tática de conduta em uma competição e otimizar os estados psíquicos. Os métodos utilizados para esse fim podem ser tanto da categoria de análise de particularidades de processos psíquicos nos quais se enquadram os processos sensórios, sensórios-motores, de pensamento, mnemônicos e volitivos como os de ordem psicossociais nos quais são estudadas as particularidades psicológicas de um grupo esportivo, buscando revelar e explicar sua dinâmica (Comissão de Esporte do CRP-SP, 2000).
Diferentemente de outras áreas da Psicologia nas quais já foram desenvolvidos e validados um grande número de instrumentos de avaliação, a área de esportes ainda carece de referencial e conhecimento específicos para investigação, e isso tem acarretado alguns problemas bastante sérios. Um deles é a utilização de instrumentos advindos da avaliação em psicologia clínica ou da área educacional com finalidades específicas, como detecção de distúrbios emocionais, perfis psicopatológicos ou quantidade de inteligência, próprios e necessários para os fins que foram desenvolvidos. O outro é a importação de instrumentos de psicodiagnóstico esportivo desenvolvidos em outros países e aplicados sem adaptação à população brasileira, que apresenta condições físicas e culturais distintas de outras populações. Diante disso, questões de ordem ética têm emergido para reflexão sobre o uso e abuso de resultados obtidos por meio de instrumentos de avaliação psicológica no esporte.
Se naquilo que se refere ao psicodiagnóstico esportivo a Psicologia do Esporte brasileira ainda busca sua maturidade, é na prática da intervenção psicológica junto a atletas e equipes que se pode observar a multiplicidade de perspectivas e o seu vigor.
No caso das modalidades individuais, em que o foco da intervenção é o próprio atleta e sua atuação, atividades voltadas para a concentração, o controle da ansiedade e o manejo das variáveis ambientais costumam ser os principais objetivos da intervenção psicológica. No entanto, a forma e o tempo que esse trabalho levará para ser desenvolvido irá variar conforme o referencial teórico do psicólogo que o aplica. As práticas podem envolver visualização, relaxamento, modelagem de comportamento, análise verbal, inversão de papéis, técnicas expressivas ou corporais (Eberspächer, 1995; Valdes Casal, 1996.A; Valdes Casal, 1996.B; Rubio, 2004.a).
No caso das modalidades coletivas o foco da intervenção recai sobre as relações grupais, a formação de vínculo e organização de liderança, e aqui também a diversidade de procedimentos é grande. São amplamente utilizados os jogos dramáticos advindos do psicodrama, o desenvolvimento de auto-conhecimento por meio das técnicas de senso-percepção, bem como procedimentos verbais originários da psicanálise de grupos (Angelo, 2002; Dobranszky, 2006; Rubio, 1998).
Mas a Psicologia do Esporte não é feita apenas dos aspectos relacionados com a prática esportiva. Ela também é feita do estudo do fenômeno esportivo a partir do referencial da Psicologia Social (Brawley & Martin, 1995; Brustad & Ritter-Taylor, 1997; Rubio, 2007; Rubio, 2004.b; Russel, 1993), e nisso os estudos recentes realizados no Brasil têm se destacado no cenário internacional.
A Psicologia do Esporte que queremos
É comum associar a Psicologia do Esporte a um tipo de prática esportiva que tem a vitória como objetivo e a televisão como veículo de divulgação de resultados. Nessa dinâmica o psicólogo é visto como aquele profissional que tem como obrigação fazer com que o protagonista do espetáculo, no caso o atleta, renda o máximo. Essa perspectiva tem sido alvo de críticas visto que, nem o esporte de alto rendimento é o único nicho do psicólogo do esporte, nem a busca do primeiro lugar é seu único objetivo (Comissão de Esporte do CRP-SP, 2000; Luccas, 2000).
O espetáculo esportivo mescla sonho, política e grandes investimentos, na medida em que desde as competições regionais até as internacionais revelam no balanço do quadro de medalhas as discrepâncias que diferenciam as nações, tanto em nível econômico, político-ideológico quanto sócio-cultural. Os feitos realizados por atletas, considerados quase sobre-humanos para grande parcela da população, somados ao tipo de vida regrada a que são submetidos contribuem para que sua imagem heróica se sedimente (González, Ferrando, Rodríguez, 1998; Brohm, 1993; Rubio, 2001; 2002.b).
O chamado esporte de alto rendimento busca a otimização da performance numa estrutura formal e institucionalizada. Nessa estrutura o psicólogo atua analisando e transformando os determinantes psíquicos que interferem no rendimento do atleta e/ou grupo esportivo (Barreto, 2003; Martin, 2001, Valle, 2003).
Mas, a Psicologia do Esporte não se limita a atuar apenas junto a esse restrito grupo. Se a atividade esportiva for considerada para além da prática competitiva é possível dizer que o público alvo da Psicologia do Esporte é também constituído por pessoas ou grupos que praticam exercício regular ou que treinam regularmente para competições, mas com o objetivo de chegar o final da prova ou superar a própria marca, e não necessariamente um adversário. As chamadas práticas de tempo livre têm como desafio maior sobrepor as questões cotidianas para a manutenção da prática da atividade (Nascimento, 2005; Rubio, 2005.a). Esse grupo é constituído, por exemplo, por corredores de longas distâncias que desejam participar de uma maratona ou de uma prova tradicional, são equipes de corrida de aventura que desejam aperfeiçoar as relações inter-pessoais na superação das dificuldades inerentes à convivência intensa desse tipo de prova, são equipes de veteranos que descobriram o prazer de formar um grupo e participar de torneios ampliando o círculo de amizades. Encontram-se também nessa categoria as pessoas e grupos que freqüentam os equipamentos públicos
parques e centros esportivos para realizar atividade física, por escolha ou indicação, e têm como maior desafio encontrar motivação para aderir à atividade (www.pol.org.br/colunistas).
Além dessa população o psicólogo do esporte também atua junto ao chamado esporte escolar que pressupõe a relação do praticante do esporte com o ambiente da escola, nos mais variados graus (Rubio, 2004.b). Apesar de pouco explorada no Brasil essa vertente da Psicologia do Esporte é muito desenvolvida nos Estados Unidos que tem nos colégios e universidades o locus privilegiado para a formação dos futuros profissionais. Nossos campeonatos escolares têm sido um espectro do modelo americano, uma vez que parte dos atletas que compete nessa categoria é contratada apenas para defender equipes colegiais sem ter vínculo acadêmico com a escola, gerando graves distorções entre os alunos. Por outro lado, as equipes formadas por alunos regulares padecem com o desnível gerado pela condição privilegiada dos `contratados'. Ou seja, há os alunos-atletas e os atletas-quase-alunos. No ambiente universitário a dinâmica é um pouco diferente. Existem disputas entre faculdades que se tornaram tradicionais e carregam anos de rivalidade construída por times e torcida. Há ainda os torneios nacionais de diversas faculdades do mesmo curso, como é o caso do Interpsi. Outro exemplo são os Jogos Universitários Brasileiros (JUB's), que têm demonstrado excelente nível técnico, com atletas que tentam equacionar prática esportiva, atividade acadêmica e falta de apoio. Nesses casos a intervenção do psicólogo se dará considerando a faixa etária do atleta, o tipo de competição e de instituição à qual a equipe está associada, sugerindo uma diversidade de atuação e a ausência de um padrão ou modelo pré-determinado.
A iniciação esportiva configura-se ainda como um campo privilegiado da intervenção do psicólogo. É crescente o número de crianças envolvidas em atividades esportivas pedagógicas e competitivas. A prática esportiva tem sido apontada como um importante elemento na educação e socialização de crianças e jovens. Dentre as muitas razões alegadas para o desenvolvimento esportivo de crianças e jovens encontram-se o divertimento, o aperfeiçoamento de habilidades e a convivência com amigos. Entretanto a aprendizagem de habilidades motoras que pode levar ao desenvolvimento do gesto esportivo tem despertado profundo interesse nos psicólogos do esporte. Isso porque a iniciação esportiva apresenta grandes desafios relacionados diretamente ao desenvolvimento de habilidades físicas específicas que permitirão a prática especializada de modalidades esportivas ou simplesmente a adesão ao hábito do exercício físico. Como e em que momento realizar esse trabalho são as controvérsias encontradas na literatura especializada (Belló, 1999; Markunas, 2003; Scalon, 2004; Rubio, Kuroda, Marques, Montoro, Queiroz, 2000). Isso porque há autores que defendem a especialização em idade precoce, enquanto outros apresentam o argumento da necessidade de conhecimento de um amplo espectro de habilidades motoras antes da escolha e fixação em modalidades específicas. Além das questões relacionadas com a criança e a atividade esportiva em si há outras questões que gravitam nesse universo como a influência exercida pelos pais, tanto na escolha da modalidade como na opção pela competição, e a relação criança-professor. Diante de tantas possibilidades é possível dizer que a escolha de uma modalidade esportiva e o sucesso no seu desempenho pode ser motivado por mais de uma das razões apontadas e que a adesão à prática e o bom desenvolvimento nela, que pode resultar em profissionalização, é um processo que envolve muitos fatores. A figura do técnico/professor é mais um elemento que pode determinar a adesão ou o abandono da prática esportiva.
Mas os campos de atuação contemplam ainda a reabilitação e os projetos sociais.
No contexto do esporte é possível entender como reabilitação o período de recuperação de um atleta de uma situação cirúrgica ou de uma lesão (Campos, Romano, Negrão, 2000; Markunas, 2000.a; 2003; Rubio & Angelo, 2005). Isso implica no acompanhamento, juntamente com a equipe médica e fisioterápica, de todo o processo clínico, pré e pós-cirúrgico, e na preparação emocional para o retorno a treinos e competições. Isso porque não é raro acontecer de o atleta estar pronto, do ponto de vista físico, para voltar à ativa, mas não conseguir desempenhar a contento suas habilidades. Essa dificuldade pode estar associada ao medo de reviver o momento da lesão e todo seu processo de recuperação. Nesses casos, um retorno precipitado pode levar à recorrência da lesão, dificultando ainda mais a continuidade de uma carreira profissional esportiva. Entende-se também por reabilitação os cuidados com pessoas que sofrem algum tipo de acidente ou trauma e que passam a necessitar de atividade física regular para o transcorrer de sua vida. Encontram-se nesse grupo pessoas hiper-tensas, com problemas coronarianos ou que passaram por acidente vascular cerebral, obesos que estão sob os cuidados médicos e precisam cumprir um programa de atividade física. Muitas vezes essas pessoas tiveram no passado uma relação pouco prazerosa com a prática de exercícios físicos, e no presente, diante da obrigatoriedade da atividade, precisam de uma assessoria no sentido de compreender o porquê dessa condição. É comum que o setting desse tipo de atendimento seja o local da própria atividade, diferenciando-se da intervenção em psicologia hospitalar. Pode-se entender também como atividade de reabilitação em psicologia do esporte o atendimento a portadores de necessidades especiais que têm na prática esportiva regular uma forma de busca de bem-estar e também de socialização.
Entretanto, se essa prática se torna competitiva, normalmente, os procedimentos adotados são os do alto rendimento, uma vez que o objetivo a ser alcançado é o resultado, a vitória.
Uma outra área que tem se apresentado ao psicólogo do esporte como muito promissora são os chamados projetos sociais (DiPierro & Silva, 2003; Marques, 2002; Sanches, 2004; Silva, 2006). Em sua grande maioria, a proposta desses projetos é de uso do esporte como meio de socialização de crianças e jovens e, no caso dos mais talentosos e habilidosos, de encaminhamento para instituições esportivas para desenvolvimento desse potencial. Nesse contexto a intervenção do psicólogo está voltada para o desenvolvimento de habilidades sociais, de cidadania e de formação de uma outra identidade. Diante disso, a apropriação de conhecimentos de educação e da educação física são fundamentais no desenvolvimento de atividades tanto com os usuários do projeto como com a equipe de profissionais que trabalha e atende esse público. Ainda que sob a denominação projeto social as propostas de atuação podem ser bastante distintas, umas tendendo mais à filantropia e à `ajuda' ao usuário, restringindo a intervenção a um acompanhamento dos problemas emergentes, ou mais pedagógica em que o tempo e o espaço disponíveis para a intervenção objetivem uma proposta transformadora. Em ambas as situações a que se ter muito claro que o vínculo do psicólogo com a instituição e seus usuários é a atividade esportiva.
Uma questão singular: a clínica na Psicologia do Esporte
Observa-se com uma certa freqüência uma inquietação tanto por parte de profissionais quanto de estudantes de psicologia a respeito de uma questão específica da Psicologia do Esporte. Sabedores que somos da especificidade e complexidade do setting da Psicologia do Esporte a questão que se faz com certa freqüência é quando e como realizamos um trabalho clínico com equipes esportivas ou atletas individualmente? E a pergunta subseqüente é podemos fazer isso?
Foi necessário algum tempo para que se entendesse no que consiste o atendimento clínico no contexto do esporte e qual a questão de fundo dessa dúvida (Rubio, 2007).
Não é raro surgir demandas de atletas que não estejam ligadas diretamente ao contexto de treinos e competições, mas que interferem direta ou indiretamente em seu rendimento. Essas questões podem ser de ordem pessoal, familiar, existencial ou social e nesse momento o psicólogo do esporte se põe a pensar se ao trabalhar essas demandas ele não estará saindo de seu papel de `do esporte' e adentrando a seara do `clínico'.
Não é possível falar de uma Psicologia do Esporte recortando-a e distanciando-a de sua condição: ela é antes de tudo Psicologia. Se sua especificidade é ser do esporte ela não deixa de estar fincada em bases amplas que envolvem o conhecimento, e no caso de sua aplicação, a construção de uma prática. Nesse sentido ser um psicólogo do esporte pressupõe a aquisição de conhecimentos de várias áreas da Psicologia, como já descrito anteriormente. É a partir desse momento que se chega à clínica.
É possível entender o procedimento clínico como a construção de uma forma de ouvir e olhar para o fenômeno psicológico humano, seja esse fenômeno no contexto da escola, do trabalho, do hospital, da psicoterapia ou do esporte. Sendo assim, quando se inicia uma intervenção no esporte e se faz um diagnóstico da instituição, do grupo esportivo e depois do atleta, não necessariamente seguindo essa ordem, são utilizados os recursos da perspectiva clínica na busca dos elementos fornecerão os recursos para que se organize uma proposta de intervenção, seja ela pontual ou em formato de periodização (Markunas, 2003.b).
O atendimento clínico no esporte não se refere a um procedimento psicoterápico convencional, pautado em um setting que tem o atendimento dual do consultório como referência. O foco da intervenção clínica na Psicologia do Esporte visa a resolução dos conflitos do sujeito-atleta para a busca do desenvolvimento e rendimento de seu potencial esportivo.
Há situações em que, de fato, o atleta poderá precisar de um atendimento com esse modelo, uma vez que sua vida não se restringe apenas a treinos e competições (Rubio, 2006), mas, nesse caso, o procedimento mais adequado seria então o encaminhamento para um profissional competente, que desempenhe essa função. Vale ressaltar que o código de ética da Psicologia prevê esse tipo de situação e indica que não é recomendado que o profissional psicólogo desvie para atendimento particular clientes com os quais tenha contato em atividade institucional. Enfim, é possível dizer que há também clínica na Psicologia do Esporte.
Considerações finais
Diante do que foi exposto seria possível afirmar que a Psicologia do Esporte brasileira segue hoje, muito proximamente, os passos, avanços e recuos tanto da Psicologia como do Esporte. Isso representa por um lado o compromisso com a construção rigorosa da teoria que fundamenta uma prática em desenvolvimento e por outro a instabilidade das instituições esportivas que dizem desejar o rigor da profissionalização, mas que ainda convivem com o amadorismo no gerenciamento dos clubes e grande parte da Federações e Confederações esportivas.
Associada a uma perspectiva competitiva desde o seu princípio, a Psicologia do Esporte vem conquistando espaço e força em outros contextos como os projetos sociais, o fitness, a reabilitação, a iniciação esportiva, os programas de qualidade de vida e a medicina preventiva.
Vale ressaltar que o termo esporte apesar de referir-se a uma prática competitiva de alto rendimento e profissionalizada ou ao espetáculo esportivo, ele também contempla a atividade física de uma forma mais ampla e abrangente como as práticas de tempo livre e as atividades não regulamentadas e institucionalizadas.
Isso significa um deslocamento tanto da produção do conhecimento como da atuação profissional do psicólogo do esporte. Se na perspectiva do esporte competitivo a intervenção visa a produção da vitória, na prática de atividades de tempo livre, na iniciação esportiva não competitiva e na reabilitação o que norteia o trabalho do psicólogo é a motivação e a adesão, o bem-estar psicológico e o manejo de pensamentos e sentimentos que levam a busca da atividade física e esportiva em diversos contextos sociais em cada uma dessas populações.
A diversidade sugerida pelo amplo espectro de settings, de populações e de expectativas sugere um suporte teórico também variado que explique os diversos fenômenos estudados. Daí uma ligação estreita com a Psicologia Clínica e a Psicologia Social. Se no esporte de alto rendimento o esforço dos vários profissionais que compõem a equipe técnica está voltado para a produção da vitória, nos demais contextos esportivos a vitória pode estar identificada com a formação de um grupo para a atividade, com a permanência na prática ou com a compreensão do significado do processo que desencadeou ou culminou uma necessidade física. Essa ação específica faz com que a Psicologia do Esporte se diferencie da Psicologia no Esporte.
Durante quase três décadas grande parte da produção acadêmica da área era produto da Psicologia no Esporte. Esse quadro apresentou uma grande transformação no final da década de 1980, com a busca dos interessados pela formação específica em outros países e a posterior organização de grupos de estudo e instrução de psicólogos brasileiros.
Como reflexo dessa `formação estrangeira' o que se viu no princípio foi a utilização de instrumentos de avaliação e técnicas de intervenção à semelhança do que se fazia nos países onde foram desenvolvidos. Mas, diante da especificidade do esporte e da realidade brasileiros, esses instrumentos e técnicas foram sendo adequados e adaptados tanto às condições das instituições esportivas como às variações culturais presentes na vida dos atletas e cidadãos brasileiros.
O resultado dessa busca pela alteridade pode ser observado na diversidade de formas de atuação. Partindo da psicanálise, do cognitivismo, do behaviorismo radical, do psicodrama, da psicologia social, da psicologia analítica ou da gestalt como referencial teórico, um grupo crescente de psicólogos tem se dedicado a desenvolver a Psicologia do Esporte brasileira, considerando as particularidades das modalidades no país e dos atletas que convivem com uma realidade específica.
A reflexão sobre essas muitas Psicologias do Esporte vem vivendo uma aceleração desde a criação do registro de especialista em Psicologia do Esporte a partir de 2000, quando os profissionais da área se aproximaram na tentativa de trocar experiências e apresentar as diversas formas de pensar e fazer esse campo.
Apesar do crescimento incontestável vivido pela área principalmente na última década, muito ainda está para ser feito tanto no que se refere à formação específica do psicólogo do esporte, como em relação ao reconhecimento da importância e necessidade desse profissional nas diversas frentes em que ele pode atuar.
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Fontes eletrônicas
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Endereço para correspondência
Av. Prof. Mello Moraes, 65 - Butantã
05508-900 São Paulo - SP
E-mail: katrubio@usp.br
Kátia Rubio é psicóloga, professora associada da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, coordenadora do curso de especialização em Psicologia do Esporte do Instituto Sedes Sapientiae (reconhecido pelo Conselho Federal de Psicologia) e presidente da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte.