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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. v.2 n.2 Juiz de Fora dez. 2008

 

RELATOS DE PESQUISA

 

A análise da fala materna dirigida a bebês em duas etapas do desenvolvimento

 

Analyses of maternal speech to babies in two steps of the development

 

 

Luciana Fontes PessôaI, * ; Maria Lucia Seidl-de-MouraI, ** ; Angela Donato OlivaI, II, **

I Universidade do Estado do Rio de Janeiro
II Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

A linguagem é considerada um instrumento de mediação simbólica que caracteriza a espécie humana e é fundamental nas trocas interpessoais e na internalização dos processos constituídos nessas trocas. Neste artigo foram descritas contribuições teóricas acerca do desenvolvimento da linguagem, e o papel da fala do adulto nesse processo. O modelo de Roman Jackobson foi adotado para análise de características pragmáticas da fala materna. Foram transcritas e analisadas as falas maternas em 40 díades, em dois momentos do desenvolvimento do bebê (30 dias e 5 meses). Foram ainda analisados os aspectos afetivos e cognitivos dessa linguagem. Os resultados mostraram uma predominância da função fática em ambas as faixas etárias. Houve também predominância dos aspectos afetivos em relação aos cognitivos. Acredita-se que o conhecimento das características da fala materna em etapas iniciais do desenvolvimento e a identificação dos aspectos pragmáticos, que podem colaborar para o desenvolvimento da linguagem infantil, são de especial relevância.

Palavras-chave: Aquisição de linguagem, Díade mãe-bebê, Desenvolvimento.


ABSTRACT

Language is considered an instrument of symbolic mediation that characterizes the human species, involved in interpersonal exchanges and internalization of the processes that are constructed in these exchanges. In this article the theoretical contributions and conceptions about language development were described, and the role of adults’ speech in this process. Roman Jackobson’s model of was adopted for the analyses of pragmatic characteristics of mothers’ speech. Mothers’ talk of 40 dyads were transcribed and analyzed in two moments of the babies’ development (30 days and 5 months). The affective and cognitive aspects of maternal language were also analyzed. The results indicated the predominance of phatic function in both age groups. Affective aspects were also more frequent in relation to cognitive ones. Knowledge about maternal and child language characteristics at the initial stages of development, and the identification of its pragmatic aspects that can contribute for child language development are relevant.

Keywords: Language acquisition, Mother-infant dyads, Development.


 

 

A linguagem é o coroamento das realizações típicas da espécie humana. Somos capazes de produzir aproximadamente 150 palavras por minuto, escolhidas de um montante entre 20.000 a 40.000 alternativas e com uma taxa de erro menor que 0,1%. É algo que impressiona em termos da rapidez do processamento.

Esse importante sistema de sinais compreende uma intrincada relação entre aspectos cerebrais, cognitivos e sociais. Uma das grandes dificuldades enfrentadas pelos que estudam o assunto é a de especificar o papel que cada um desses fatores desempenha no processo de aquisição de linguagem. Diferentes perspectivas teóricas tentaram, ao longo do tempo, apresentar argumentos convincentes, dando maior ou menor ênfase a um desses aspectos.

Dentre as posições clássicas, destaca-se a do linguista Chomsky (1965) que concebeu uma tese nativista de tipo representacional para explicar a linguagem. O cerne de sua argumentação apontava para a impossibilidade de o input linguístico - concebido como pobre, irregular, malformado, truncado, com falsos começos, repleto de estruturas complexas - servir como variável explicativa de um desenvolvimento tão rápido e complexo.

Em oposição a essa perspectiva, encontram-se teóricos que privilegiam mecanismos de aprendizagem. Interessados em esquadrinhar e descrever como de fato era a fala dirigida às crianças, pesquisadores realizaram diversos estudos sobre as características do input linguístico. Os primeiros resultados assinalaram a ocorrência de regularidades e de padrões identificáveis além de indicar simplicidade e redundância nessa fala. Começava um clássico debate protagonizado, de um lado, por Chomsky (1965), McNeill (1966), Newport, Gleitman e Gleitman (1977) – que não consideravam razoável incluir o input linguístico como variável explicativa do processo de aquisição de linguagem – e, de outro, por Ferguson (1977), Furrow, Nelson e Benedict (1979) – que procuravam identificar aspectos do input que poderiam estar associados ou contribuir para tal aquisição.

Historicamente, estudar o input linguístico ficou relacionado a perspectivas que conferiam maior privilégio à aprendizagem de tipo associacionista, embora nem sempre fosse esse o caso. Os trabalhos mais contemporâneos tendem a retomar tais investigações sobre outras bases, à luz dos avanços obtidos em outras áreas do conhecimento. Dessa forma, o estudo do input pode ser profícuo quando abandona posições reducionistas e busca integrar as investigações realizadas em áreas afins para tentar compreender a gênese do processo de aquisição de linguagem.

A perspectiva teórica que aqui se pretende adotar para estudar o input linguístico é multidimensional, isto é, inclui o papel do interlocutor, do contexto, da comunicação não-verbal, do conhecimento prévio, das pistas oferecidas pela situação, e outros aspectos da dimensão pragmática. A utilização de alguns constructos pode ajudar a fundamentar essa posição. Por exemplo, a noção de internalização proposta por Vygotsky (1984) pode explicar de que maneira o input linguístico que ocorre externamente é apropriado pelo sujeito de forma peculiar. Não há uma simples assimilação de informação linguística, mas uma reconstrução interna desse input que envolve uma reorganização das atividades psicológicas através de operações com signos. A internalização supõe a incorporação da cultura ao sujeito, a ação do sujeito sobre a própria cultura e a reestruturação de suas atividades. A função mediadora dos signos possibilita modificar não o objeto da operação psicológica, mas as próprias operações psicológicas, indicando como as dimensões social, biológica e psicológica podem estar inevitavelmente entrecruzadas sem que uma se reduza à outra.

Quando a criança adquire uma linguagem específica, ela também está adquirindo, de forma pouco perceptível, aspectos sociais e culturais. Portanto, uma conclusão óbvia e ao mesmo tempo bastante problemática para a pesquisa, é que linguagem, cognição e processos de interações sociais possuem pontos em comum muito difíceis de serem investigados separadamente. Ao mesmo tempo, a criança é capaz de modificar, de alguma forma, o próprio ambiente no qual está inserida.

Bruner (1996) aponta a importância da cultura no estudo do pensamento. Reconhece que ela fornece instrumentos com os quais nosso mundo e nossa mente são construídos. Isso não significa que haja tão-somente uma assimilação passiva dos aspectos externos à dimensão subjetiva; há modos de atuação e de pensamento que os sujeitos adquirem na cultura na qual estão inseridos e que se relacionam com aspectos biológicos. O papel da linguagem nesse processo é fundamental. E é por seu intermédio que o homem interpreta e regula sua cultura. Em seu contínuo aprendizado, o homem adquire ininterruptamente conhecimentos culturais e formas de atuar em situações graças aos simbolismos, concepções e distinções que a linguagem permite identificar. Para Bruner (1985), cultura e linguagem não podem ser entendidas separadamente.

Considerar a fala materna, a partir das relações estabelecidas nos contextos interativos, como fundamental para o desenvolvimento linguístico e cognitivo da criança é pressupor uma análise não mais unidirecional. Como discutem Braz e Salomão (2000), a tendência entre os teóricos é de pelo menos considerar a bidirecionalidade na relação entre o adulto e a criança, supondo a existência de experiências que são trocadas e não unilateralmente apresentadas pela mãe ao bebê. Isso pode ser identificado por análises dos tipos de fala que são utilizadas. Admite-se uma interatividade subjacente em situações comunicativas e que, tanto o comportamento do bebê quanto o contexto nos quais elas ocorrem, funcionam como estímulos para a mãe (ou adulto) ajustar a maneira de falar com o bebê.

Diversos estudos buscam evidenciar como os comportamentos dos bebês desempenham papel ativo nas interações com mães e adultos. Keller (1998) alega que os recém-nascidos apresentam um conjunto de características que os capacitam para os primeiros contatos e trocas com os membros da cultura, inicialmente representados, principalmente, por sua mãe. Tanto a criança age sobre sua mãe através de olhares e mímicas, quanto a mãe age sobre esta por meio de sua fala e movimentação. No caso da mãe, há um ajuste intuitivo e preciso de suas atividades às capacidades do bebê, um ajuste que se dá, inclusive, de acordo com Oliva (2001), em termos funcionais da fala dirigida à criança.

Em uma perspectiva de base biológica, Pinker (2002) adota uma posição nativista (não mais representacional) procurando identificar as estruturas no circuito cerebral do recém-nascido que possibilitam o desenvolvimento da linguagem.

Mehler e Dupoux (1997), em uma linha ligeiramente diferente, alegam que bebês nascem com um aparato para adquirir o conhecimento necessário sobre a linguagem com rapidez e facilidade. Os bebês humanos podem discriminar todas as diferenças fonéticas usadas nas linguagens naturais, eles podem discernir mudanças na entonação do falante e, ao mesmo tempo, ligá-las a sons que memorizaram de uma forma mais ou menos rudimentar. São sensíveis a aspectos mais gerais da fala e podem, sob condições apropriadas, focalizar sua atenção nos aspectos mais específicos dos sinais acústicos.

O reconhecimento da competência do recém-nascido, quanto à sua capacidade de percepção, imitação e comunicação, ou seja, de sua pré-adaptação para iniciar o conhecimento do meio no qual está inserido, em termos físicos e sociais, de acordo com Rochat e Striano (1999) e Seidl de Moura e Ribas (2004), fortalece a concepção sobre o papel ativo do bebê no mundo e sobre a capacidade que tem de interferir nas relações diádicas que inicialmente são estabelecidas com quem cuida dele.

Segundo Seidl de Moura (1999), no momento em que a mãe está interagindo com seu bebê, ela utiliza uma gama de representações acerca de um modelo geral de infância e de um conjunto de expectativas sobre o bebê e seu desenvolvimento. Com base nas suas representações e nas pistas contextuais, ela atribui aos comportamentos dos bebês significados específicos. A atribuição de significado aos comportamentos do bebê e a observação do quanto a mãe modifica seus padrões de interação com base no feedback que recebe dele têm sido de crucial importância na investigação das interações iniciais. Essa atribuição é importante nos ajustes realizados e no próprio processo interacional.

As interações diádicas adulto/mãe-bebê, principalmente as que incluem uma dimensão verbal, podem ser importantes para explicar a transformação de uma comunicação natural e espontânea para uma comunicação social, segundo argumenta Oliva (2001). Pressupõe-se que as interações que envolvem a fala proporcionam mudanças internas na criança, possibilitando que ela compreenda os aspectos da linguagem social.

Com base nisso, argumenta-se que desde o nascimento a linha de desenvolvimento natural não funciona isolada da interação entre os parceiros de uma mesma cultura. Um processo ao mesmo tempo natural e de interação cultural precisa estar em ação para o desenvolvimento dos"instrumentos" do sujeito que permitirão o desenvolvimento dos processos mentais superiores (Vygotsky, 1984).

Através da relação diádica, as mães tentam principalmente engajar as crianças no diálogo e não apenas dar informações ou ensinar a falar. Para Snow (1986), a mãe ajusta sua fala ao se dirigir à criança principalmente pela vontade de comunicação com o bebê e não pelo desejo do ensino de regras gramaticais.

O modo pelo qual os adultos se comunicam com as crianças pode variar de cultura para cultura, acarretando variações nas formas interativas que se estabelecem entre os parceiros. Pye (1992) relata que não é comum a fala dirigida a crianças entre os Quiché Mayan. Nessa cultura, elas são consideradas, física e espiritualmente, vulneráveis e necessitam ser mantidas calmas e quietas. As mães podem suavemente sussurrar para as crianças, mas em nenhum momento é feita a tentativa de considerá-las como parceiros de conversa.

Bornstein, Tal e Rahn (1992) analisaram e compararam a linguagem utilizada pelas mães com bebês de cinco e treze meses de idade em quatro países diferentes. Dois principais aspectos da linguagem foram destacados: os cognitivos - relacionados aos dados informativos, que envolviam as perguntas, frases diretas, etc. - e os afetivos - que correspondiam ao uso de sons onomatopéicos, não proposicionais, rimas, sons de animais, etc. Os dados evidenciaram, praticamente para todas as culturas, um maior uso de fala relacionada aos aspectos afetivos com os bebês de cinco meses, ao passo que com os de treze meses as mães utilizaram uma linguagem mais informativa.

No estudo de Seidl de Moura e Ribas (1998), os dados foram interpretados como indicadores de que as mães tratam os bebês, desde as fases iniciais do desenvolvimento, como pessoas às quais se podem atribuir gostos, desejos e sentimentos, e não como seres que se limitam a manifestar necessidades fisiológicas. A consequência dessa concepção manifesta-se na conduta materna de tentar adequar sua fala, seus gestos a algum tipo de denominador em comum com o bebê, a fim de estabelecer mais facilmente algum tipo de comunicação com ele. Isso fica evidente quando se observa a estrutura da"conversa" que ocorre entre a mãe e o bebê, que se assemelha às conversas entre duas pessoas, em que um fala e o outro escuta, verificando-se a alternância de papéis entre ouvinte e falante.

O desafio, portanto, que contemporaneamente se apresenta, é o de tentar compreender como diferentes perspectivas ambientais e biológicas podem ser integradas. É a partir desse enfoque interacionista e dinâmico que este trabalho propõe a retomada do estudo do input. Em uma abordagem semelhante, investigações empíricas sobre análises pragmáticas do input empreendidas por Seidl de Moura, Oliva e Pessôa (1998); Oliva (2001), sugeriram como ele pode estar atuando no processo de aquisição de linguagem sem desconsiderar capacidades da criança de atentar preferencialmente para alguns tipos de input. Esses estudos visaram, preliminarmente, detalhar aspectos pragmáticos da fala dirigida ao bebê. Os resultados iniciais descortinaram o percentual de ocorrência de algumas funções da fala dirigida ao bebê. O número de participantes nesses estudos, contudo, foi pequeno e os autores apontaram para a necessidade de a investigação ser realizada com um maior número de díades.

O presente trabalho procurou realizar uma análise descritiva de algumas funções que podem ser identificadas no input linguístico dirigido ao bebê, ampliando o número de participantes e detalhando especificamente alguns contextos com a finalidade de estabelecer eventuais regularidades funcionais relacionadas a diferentes situações.

A forma de abordar essa relação será observando o input linguístico que os adultos dirigem aos bebês de trinta dias e de cinco meses, identificando as funções linguísticas que ocorrem em alguns contextos. Busca-se mapear possíveis mudanças ou ajustes nas funções linguísticas quando a fala é dirigida a bebês de diferentes idades e em diferentes circunstâncias. O pressuposto é o de que a linguagem não se restringe a ser um sistema de representação do mundo. Ela é um sistema de interação entre os agentes, é um refinamento das situações comunicativas e tem um papel decisivo no processo de desenvolvimento da criança.

O estudo visa identificar o papel que o bebê exerce, a partir das interações observadas, no tipo de função da fala que a mãe lhe dirige. A suposição subjacente é a de que a mãe está sensível às respostas que o bebê dá a ela e aos estímulos ambientais. Assim, esperam-se diferenças entre a fala materna aos 30 dias e 5 meses do bebê e em diferentes contextos específicos.

 

Método

Participantes

Para atender ao objetivo de identificar as funções de linguagem presentes no fala dirigida aos bebês foram analisadas quarenta díades mãe-bebê em duas etapas intermediárias que são marcos importantes no primeiro ano: aos 30 dias (fase entre o recém–nascido e os 2 meses) e aos 5 meses (na transição entre a intersubjetividade primária e a secundária) em diferentes contextos, constituindo dois grupos independentes.

Grupo 1: Vinte díades mãe-bebê observadas em ambiente natural, residentes em bairros de classes baixa e média do estado do Rio de Janeiro. As mães possuíam entre 18 e 41 anos, nível de escolaridade predominante de ensino médio e à época da filmagem eram elas que cuidavam dos bebês, que tinham idade média de trinta dias.

Grupo 2: Vinte díades mãe-bebê observadas em ambiente natural, residentes em bairros de classes baixa e média do estado do Rio de Janeiro. As mães possuíam entre 18 e 41 anos, nível de escolaridade predominante de ensino médio e à época da filmagem eram elas que cuidavam dos bebês, que tinham aproximadamente cinco meses de idades.

A idéia foi poder comparar ajustes funcionais na fala dirigida a dois grupos de bebês pré-verbais, cujas trocas interativas apresentam-se diferentemente nesses dois momentos do desenvolvimento. No primeiro, os bebês completaram apenas um mês de vida e no segundo, algumas mudanças podem ser observadas. Nessa época ocorrem com muita freqüência e de maneira mais intensa sorrisos sociais, brincadeiras, troca de olhares com os outros, jogos com brinquedos mediando a relação, atenção mais clara para o ambiente e para as pessoas, etc.

Categorias de análise da fala materna (Jackobson,1975)

1. Função Emotiva – atribuição de significados - preferências e vontades (PV), sensações físicas, necessidades básicas, estados emocionais - adjetivações e elogios. Exemplos de emissões que caracterizam função emotiva: “Você gosta não gosta, já que está com sono é porque gosta!”; “Ela dá uma mijada linda!”; “Você gosta dessa água”; “É um banho bom!”; “Neném qué suco”; “Cê qué aguinha”; “Eu quero é brincar mamãe”; “Tá com sono”; “É o lindo da mamãe”.

2. Função Referencial – descrições de ações passadas, presentes e futuras. Exemplos de emissões que caracterizam função referencial: “É a mamãe que está dando banho em você”; “O perfuminho pra ficar cheirosinho”; “A mamãe vai brincar com você”; “A mãe tem que estudar”; “A mamãe vai atender ao telefone”.

3. Função Conativa – imperativos, pedidos, solicitação de resposta. Exemplos de emissões que caracterizam função conativa: “Vamos lavar a cabecinha do neném?”; “Não volta a chorar”; “Vamos esticar essa perninha”; “Levanta a perninha”; “De quem é esse ursinho?”; “Você não vai brincar?”.

4. Função Fática – tratamentos, frases não-proposicionais, sons onomatopéicos e contrações interrogativas monossilábicas. Exemplos de emissões que caracterizam função fática: “Tá procurando mamá, tá?”; “Que legal!”; “Prontinho!”; “A mãozinha agora”; “É, filho!”; “Não tá bom, hein?”; “Oh!,...pra refrescar”; “Agora pegou”; “Vem, Pâmela!”; “Tá com uma cara, né?”.

Aspectos afetivos e cognitivos na fala materna:

1. Aspectos Afetivos – uso de sons onomatopéicos, frases não-proposicionais, rimas, sons de animais, tratamentos, uso de palavras infantilizadas tais como, pepeta, papá, etc, uso de contrações interrogativas monossilábicas, pedidos, elogios, estados emocionais, sensações físicas, necessidades básicas, preferências e vontades e adjetivações.

2. Aspectos Cognitivos – perguntas, frases diretas, emprego de verbos ligados à atividade mental tais como, pensar, acreditar, etc., imperativos e descrições.

Tipos de contextos em que essas categorias ocorreram também foram identificados e classificados da seguinte forma:

3. Contexto de cuidado, envolvendo atividades tais como, troca de fraldas, tomar banho, aplicar remédios e vestir o bebê;

4. Contexto de alimentação, envolvendo a amamentação e a introdução de alimentos, assim como, sopinhas, frutas e sucos naturais;

5. Outros contextos, envolvendo todas as outras atividades da díade que não estavam diretamente relacionadas com o contexto de alimentação e com o contexto de cuidados com o bebê.

Procedimento

O estudo fez parte de projeto mais amplo, longitudinal e transcultural e foi submetido ao Comitê de Ética do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e ao Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e foi aprovado.

As díades mãe-bebê foram visitadas em suas residências, quando apenas a mãe e o bebê estavam em casa, e os registros eram feitos apenas nos períodos em que o bebê se encontrava acordado. A observação foi registrada em vídeo e foi solicitado à mãe que mantivesse sua rotina diária, ignorando, na medida do possível, a presença do observador.

Os bebês do grupo 1 (de um mês de idade) foram filmados uma única vez durante 20 minutos. Não foram considerados para a análise os cinco minutos iniciais, para que se minimizasse o efeito da artificialidade e se estabelecesse uma certa adaptação ao observador. Não foi possível filmar por um tempo maior esses bebês, pois comumente eles adormeciam.

Os bebês do grupo 2 (de cinco meses de idade) foram filmados uma única vez durante uma hora, da qual foi selecionado aleatoriamente um período de 15 minutos.

Os 15 minutos de fita dos dois grupos foram transcritos. Foram registradas as falas da mãe dirigidas ao bebê e vocalizações. Em seguida, foram identificadas as emissões dessa fala para proceder à categorização de funções e de aspectos afetivos e cognitivos nos diferentes contextos.

A unidade de análise da fala materna foi a emissão de fala da mãe, a qual foi delimitada ou definida por pausas que a mãe faz, naturalmente, em sua fala, independentemente da sentença estar ou não completa. Dessa forma, em uma única sentença, foi comum encontrar duas ou mais emissões.

Cada unidade de análise, isto é, cada emissão foi classificada em apenas uma das categorias de função propostas pelo estudo. A presença na fala materna de aspectos afetivos e cognitivos foi identificada e analisada seguindo a definição e, finalmente, o contexto em que a emissão ocorreu foi registrado.

 

Resultados e Discussão

A função fática foi a predominante na fase inicial de comunicação entre mães e bebês de aproximadamente trinta dias e de cinco meses de idade. Essa função está associada aos recursos linguísticos usados pelo emissor (a mãe) para estabelecer, prolongar, chamar a atenção ou interromper a comunicação com o interlocutor (o bebê). Ela é identificada em interjeições, solicitações de respostas, chamamentos, sons onomatopéicos, contrações interrogativas monossilábicas e frases não proposicionais. A tabela 1 indica essa maior frequência nas díades com bebês de trinta dias quando são considerados os contextos separadamente.

 

 

Como pode ser verificado, a função fática foi a mais observada em todos os contextos e totalizou 72,54% das emissões. Observa-se, assim, que foi mais frequente a fala materna com a função de buscar chamar a atenção do bebê, tentar checar se a atenção está voltada para a mensagem e visar manter o engajamento dele na troca, pelo período de tempo maior possível.

A função conativa, vinculada ao destinatário (o bebê), foi encontrada na soma dos três contextos, em 11,45% das emissões, que se distribuíram entre eles. As emissões conativas caracterizam-se por imperativos, pedidos e solicitações de resposta que, de certa forma, também mantêm um canal de comunicação com o bebê. Embora com menor frequência do que as fáticas, parecem indicar que a mãe se dirige ao bebê como um interlocutor, um parceiro que pode responder a ela.

A função referencial nos três contextos foi observada em 10,51% das emissões e distribuída da seguinte forma: 2,26% no contexto de alimentação; 6,93% no contexto de cuidado e 1,32% nos outros contextos. Nessa função, a ênfase das emissões maternas recai sobre as descrições das situações presentes, passadas e futuras. A partir das descrições, a mãe mantém o bebê informado sobre os aspectos que considera relevantes de uma determinada situação. Nessa etapa do desenvolvimento do bebê, não parece ser a mais importante. Mais do que informar ao bebê sobre o mundo, as falas maternas parecem estar tendo a função de mantê-lo ligado a ela.

Finalmente, a função emotiva encontrada em 5,5% das emissões dos três contextos apresentou a seguinte distribuição: 1,87% no contexto de alimentação; 2,31% no contexto de cuidado e 1,32% em outros contextos. Nessa função, a análise fica focada no conteúdo da mensagem e centralizada na mãe. A forma como ela age com seu filho - o que diz e como diz – baseia-se nas concepções, nas crenças e nos conhecimentos que foi desenvolvendo sobre o bebê. Nessa função, incluem-se os elogios e as adjetivações. Dentre as categorias relacionadas com a função emotiva, encontrou-se uma subcategoria que é a atribuição de significado, ou seja, o quanto a mãe, explicitamente em sua fala, atribui um significado ao comportamento do seu bebê. Essa subcategoria se subdivide em “preferência e vontades”, “sensações físicas”, “necessidades básicas” e “estados emocionais”. Nos dois grupos estudados, as atribuições mostram-se predominantemente vinculadas às preferências e vontades dos bebês. Esse dado indica haver uma concepção por parte das mães de que os bebês, desde muito cedo, mostram-se capazes de fazer uma série de discriminações sensoriais e ter, consequentemente, diversas preferências.

Levando em consideração o contexto no qual a fala dirigida ao bebê foi produzida, 45,2% das emissões ocorreram no contexto de cuidado; 24,17% no contexto de alimentação e os restantes 30,63% em outros contextos. De certa forma, como os bebês são muito pequenos e dormem durante uma boa parte do tempo, não surpreende o fato de um maior número de emissões ocorrer em contextos de cuidado, tais como o banho, troca de fralda ou roupa, limpeza do nariz, do ouvido e do umbigo, colocação de perfume, etc, pois são ocasiões em que o bebê mais provavelmente se encontra acordado. É interessante destacar que as mães conversam com seus filhos nesses momentos procurando descrever ou informar sobre as atividades (ou etapas das atividades) realizadas. Isso parece demonstrar que desde fases iniciais do desenvolvimento as mães consideram seus bebês capazes de compreensão e estimulam uma interação inicial que se dá a partir de sua fala.

Com relação aos aspectos afetivos e cognitivos, observou-se um percentual maior dos aspectos afetivos nas emissões maternas (67,83%) do que de aspectos cognitivos (32,17%) com os bebês dessa faixa etária.

Nas díades com bebês de cinco meses, 75,27% das emissões analisadas produzidas pelas mães foram classificadas como tendo função fática nos três contextos observados. Numa comparação preliminar, esse alto percentual parece indicar uma semelhança com os resultados apresentados pelas díades com bebês de trinta dias. Uma análise que considera o tipo de contexto revela, porém, uma diferença percentual da função fática quando as díades com bebês de trinta dias são comparadas às díades com bebês de cinco meses: 6,56% dessas emissões dirigidas aos bebês de cinco meses ocorreram no contexto de cuidado contrastando com os 31,98% das que foram registradas nas díades com bebês de 30 dias; 4,63% das emissões fáticas para bebês de cinco meses ocorreram no contexto de alimentação enquanto para o grupo de bebês com trinta dias esse percentual foi de 16,94%; 64,08% das emissões fáticas para os bebês de cinco meses ocorreram em outros contextos, enquanto 23,62% dessas emissões foram registradas nas díades com bebês de trinta dias. Esse resultado parece apoiar a idéia de que a fala da mãe sofre influência das respostas do bebê. Nesse sentido, as análises centradas apenas no input linguístico da mãe não parecem ser capazes de sozinhas indicar as razões das modificações funcionais registradas na fala dirigida aos bebês. A explicação dessas alterações não está confinada pelo input materno. O comportamento do bebê, por exemplo, pode atuar como modelador funcional dessas emissões. O uso mais frequente do brinquedo, intermediando a relação da díade, também parece contribuir para a modificação funcional das emissões.Vide tabela 2

A função conativa, vinculada ao destinatário, foi encontrada em 7,83% das emissões considerando os três contextos, predominando aqueles que não eram de cuidado ou alimentação. Observou-se um ligeiro aumento dessa função em outros contextos, mas não tão grande quanto ao registrado na função fática. Comparando-se as díades com bebês de trinta dias e as díades com bebês de cinco meses, pode-se observar que os percentuais das emissões fática e conativa praticamente dobraram.

A função referencial, relacionada ao contexto, também predominou em outros contextos, o que contrasta com o resultado aos 30 dias. Nas díades com bebês de trinta dias, em contexto de cuidado, 6,93% das emissões foram categorizadas como pertencendo à função referencial, contrastando com 1,32% registrados em outros contextos e com 2,26% em contexto de alimentação. Para bebês de cinco meses, o percentual de emissões é de 0,89% no contexto de cuidado, 0,41% no contexto de alimentação e 8,92% em outros contextos. Essas diferenças podem se dever ao aumento das descrições que as brincadeiras obrigam, de modo que a atenção não precisa ficar restrita ao contexto de cuidado.

Finalmente a função emotiva, encontrada em 6,68% das emissões nos três contextos, apresentou a seguinte distribuição: 0,56% no contexto de cuidado, 0,45% no contexto de alimentação e 5,67% em outros contextos. Novamente o padrão se repete como nas demais funções observadas nas díades com bebês de cinco meses – aumento na ocorrência em outros contextos.

 

 

Ao contrário do que foi observado com bebês de trinta dias de idade, 8,53% das emissões ocorreram no contexto de cuidado, 6,35% no contexto de alimentação e 85,12% das emissões ocorreram nos demais contextos. Essa diferença não surpreende, pelo fato de os bebês estarem mais responsivos ao ambiente e às pessoas, a fala dirigida a eles aumenta em situações lúdicas, em trocas sociais e em atividades que envolvem manipulação de objetos, embora sejam ainda pré-verbais.

Com relação aos aspectos afetivos e cognitivos, constatou-se que também nos bebês com 5 meses, predominam os aspectos afetivos na fala materna (72,73%), mostrando que a tendência observada em relação aos bebês menores se mantém.

 

Conclusões

Esse estudo visou investigar características pragmáticas da fala materna em dois momentos do desenvolvimento do bebê. Dois aspectos se destacaram nas duas idades: o predomínio de emissões que têm função fática e de aspectos afetivos na fala materna. O predomínio da função fática frente às demais pode estar relacionado ao período do desenvolvimento do bebê. Recém-nascidos dirigem preferencialmente o foco de atenção para o rosto humano ou para a direção da voz humana. O foco de atenção do bebê é facilmente direcionado para a mãe que fala com ele, aproxima-se dele ou busca interagir de alguma forma com ele. Aos 5 meses essa tendência básica ainda não se modificou totalmente, e os objetos parecem estar apenas começando a ser integrados nas interações das díades.

Os resultados podem ser interpretados como um tipo de ajuste linguístico que a mãe faz de acordo com o que observa no bebê. Ela aumenta as instâncias de fala com características de função fática, possivelmente como recurso para chamar a atenção do bebê para si e para suas emissões. A alta frequência de tal função parece indicar que a estratégia está sendo apropriada. Afinal, a condição necessária para que se estabeleça uma forma de comunicação verbal entre a díade é que o bebê esteja com sua atenção voltada para a mãe. Intuitivamente, a mãe utiliza esse recurso linguístico (função fática) para chamar ou manter a atenção do filho voltada para ela. De certa forma, o uso mais frequente da função fática apoia a perspectiva de que o bebê tem um papel fundamental no ajuste da fala a ele dirigida e indica que ele não pode ser considerado um mero receptor de informações. Os dados do estudo abrem um caminho importante para novas investigações sobre o papel que o interlocutor desempenha no processo de aquisição de linguagem.

Uma interpretação dinâmica dos resultados sugere que a observação de uma variável deve levar em conta a interação que mantém com as demais. Por exemplo, a variável de contexto separadamente não informa muita coisa, nem a variável de idade. Quando observadas simultaneamente, no entanto, resultados interessantes acabam sendo percebidos. Talvez se possa interpretar que o contexto de cuidado em díades com bebês de trinta dias desempenha papel facilitador na frequência das emissões. Ele pode ser considerado, dentre os três apresentados, o mais propício para que a mãe venha a entabular uma “conversa” com seu bebê. No momento em que cuida do bebê, a mãe está muito próxima dele, o que pode ensejar ou facilitar a comunicação entre eles. Já no contexto de alimentação, além de a preocupação principal não ser a comunicação, é comum nessa idade o bebê ficar sonolento durante o mamar. Já com cinco meses, a partir da introdução de brinquedos e pelo fato de a mãe atribuir mais competências ao seu bebê, outros contextos predominam.

Os aspectos afetivos da fala, que traduzem afeto, carinho, intimidade, aparecem em maior número do que os cognitivos. Esse resultado parece indicar um aspecto básico e geral da comunicação entre mães e bebês e corrobora tendências de estudos anteriores (Bornstein, Tal & Rahn, 1992). Pode ser interpretado como uma estratégia que as mães utilizam para estarem mais próximas de seus bebês e facilitarem ou simplificarem a comunicação com eles, encontrando um ponto comum com que possa ser compartilhado e a partir do qual possam atribuir novas significações.

Outro aspecto que os resultados revelam é a grande proporção da fala materna como uma resposta às diferentes condutas da criança tais como gestos, maneiras de olhar, sorrir, chorar, resmungar, fazer necessidades fisiológicas, comer, etc. A análise das emissões indica que quase todo o proferimento maternal é diretamente precedido ou seguido por esses sinais das crianças. Isso pode significar que as mães não estão simplesmente comunicando informação para suas crianças, mas que estão tentando engajá-las em conversas.

Durante o desenvolvimento inicial, os pais são os agentes sociais que melhor entendem as intenções das crianças, atribuindo significações aos seus comportamentos e capazes de prover o apoio adequado de que elas necessitam. Desempenham, dessa forma, um importante papel de mediadores na construção do mundo sociocultural da criança.

Esta pesquisa também corrobora alguns resultados acerca da presença de interações mãe-bebê em fases iniciais do desenvolvimento encontrados em (Ribas & Seidl de Moura, 1999; Seidl de Moura & Ribas, 2002). Eles, vêm também se somar aos trabalhos reflexivos acerca do modelo interativo de diferentes vertentes na pesquisa sobre o desenvolvimento humano e que consideram esse processo como necessariamente vinculado às interações sociais.

Entende-se também que o avanço na área de investigação sobre a interação mãe-bebê depende, em larga medida, da produção de evidências empíricas relativas aos processos envolvidos nessas interações e, nesse sentido, defende-se a necessidade de que se desenvolvam e aperfeiçoem metodologias de observação da interação mãe-bebê, com variações que podem incluir classes sociais diferenciadas ou pesquisas de laboratório.

 

 

Referências:

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* Psicóloga, Doutora e Pós-Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Contato: pessoalf@gmail.com
** Psicóloga, Professora Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
*** Psicóloga, Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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