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Psicologia em Pesquisa
versão On-line ISSN 1982-1247
Psicol. pesq. vol.12 no.3 Juiz de Fora set./dez. 2018
https://doi.org/10.24879/2018001200300522
Artigo Original
10.24879/2018001200300522
Relações de gênero e poder na Belle Époque: entre discursos e práticas
Gender and power relations in Belle Époque: between speeches and practices
Maria Cláudia Novaes Messias I; Ana Maria Jacó-Vilela II
1 Segundo Fausto & Devoto (2004), estima-se que em torno de 65% da população brasileira era analfabeta no começo do século XX. Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
2 A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro foi criada em 1832, juntamente com a Faculdade de Medicina da Bahia. Até este período existiam no Brasil pouquíssimos profissionais médicos formados por universidades portuguesas ou francesas, a maior parte dos cuidados médicos ficava a cargo de barbeiros e boticários. Estas Faculdades substituíram os Cursos de Cirurgia e Anatomia criados por Dom João VI em 1808 (Jacó-Vilela et al, 2007). Universidade do Estado do Rio de Janeiro. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-07-28-9-8700.
3 Degeneração é um termo advindo da teoria das degenerações de Benedict-Augustin Morel (1809-1873) apresenta-se então, como parte do arcabouço teórico sobre a alienação mental. Para Morel, em virtude do pecado original, o homem primitivo recebe como um de seus castigos a “degeneração moral”. Esse desvio é impresso na constituição genética e ocasiona linhagens de degenerados com potencial hereditário. Assim, ao permitir que o físico se impusesse sobre o moral, o castigo recebido é a degeneração moral. Seguindo seu raciocínio, Morel propõe que, com o passar do tempo, as degenerações se agravam, visto que o degenerado perde a possibilidade de procriar. As degenerações são, por conseguinte, um campo propício para a alienação mental e a loucura. Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Resumo
Este trabalho busca analisar as relações de gênero e poder que atravessavam as experiências das mulheres no período conhecido como Belle Époque, entre 1889 e 1922, na cidade do Rio de Janeiro, sendo resultado de revisão da literatura. A partir do contexto social, político, econômico e cultural da cidade, analisam-se os espaços sociais e discursos disponíveis para as mulheres de então, buscando compreender as múltiplas faces do ser mulher que acompanha o tecido social dessa trama. Assim, discute-se a questão feminina sob o ponto de vista dos médicos, o problema da educação, o ideal de família e o trabalho “fora do lar”. A perspectiva teórico-metodológica deste trabalho se insere no campo da história das mulheres e das relações de gênero.
Palavras-chave: Gênero; Mulher; História.
Abstract
This work seeks to analyze the gender and power relations that crossed the experiences of women in the period known as Belle Époque, between 1889 and 1922, in the city of Rio de Janeiro, being the result of a review of the literature. From the social, political, economic and cultural context of the city, we analyze the social spaces and discourses available to the women of the time, seeking to understand the multiple faces of being a woman that accompanies the social fabric of this plot. Thus, the female question is discussed from the point of view of physicians, the problem of education, the family ideal and work “outside the home”. The theoretical-methodological perspective of this work is inserted in the field of women’s history and gender relations.
Keywords: Gender; Woman; History
Este trabalho busca analisar as relações de gênero e poder que atravessavam as experiências das mulheres no período de 1889 a 1922, no Rio de Janeiro, sendo resultado de revisão da literatura em pesquisa desenvolvida durante o mestrado, que tratava, a partir de uma análise de gênero, dos discursos dos movimentos espírita e anarquista acerca das mulheres nesse contexto sócio-histórico (Messias, 2013).
Quando se quer falar das mulheres, especialmente em um contexto particular, considera-se que isto implica considerar diferenças de classe e de raça/etnia, contemplando a complexidade da trama social onde estão imersas as tensões, as relações de gênero e poder. Nesse sentido, no recorte que aqui se apresenta, destaca-se a importância das diferenças de classe social na experiência concreta das mulheres e, sobretudo, nas suas formas de luta e resistência, sendo este o principal foco de análise deste trabalho. As relações entre gênero e raça/etnia, ainda que fundamentais, não foram objeto de análise desta pesquisa, que busca evidenciar as experiências das mulheres em função das distinções de classe. Acredita-se, portanto, que “o conceito de gênero como forma sócio-histórica de desigualdade entre mulheres e homens chama atenção para outras categorias de diferença que se traduzem em desigualdade, [...] e coloca a questão de como elas se cruzam” (Matos, 2009, p. 66). Gênero, portanto, aqui, enfatiza o aspecto fundamentalmente social e cultural dessas distinções, algumas das quais certamente baseadas em raça/etnia, o que não é objeto de nossa discussão.
Justifica-se a eleição do gênero como categoria de análise histórica partindo, antes de mais nada, da percepção de que este conceito é fundamental para a compreensão dos acontecimentos históricos (Rohden, 2001; Gonçalves, 2006; Perrot, 2005; Scott, 1992). Segundo a perspectiva aqui adotada, uma narrativa em que o gênero seja colocado como uma categoria de análise leva a uma releitura da história (Wolff & Possas, 2005; Soihet, 2000; Perrot, 2005; Scott, 1995), evidenciando o que já havia sido proposto por Scott (1995): o gênero como elemento constituinte das relações sociais, baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e que, por sua vez, constituem uma forma primordial de significar as relações de poder. Portanto, inserir as mulheres na história provoca uma ressignificação do que tradicionalmente é tido como historicamente relevante, ou seja, ressalta que as relações entre os gêneros não incidem apenas sobre temas em que a relação entre estes é mais evidente, mas sobre a complexidade de fenômenos sociais e históricos.
A fim de transitar por essa pequena parcela do tecido histórico, este trabalho se divide em cinco partes: a primeira trata do contexto social, político e cultural da cidade do Rio de Janeiro, no período de 1889 a 1922, conhecido como a Belle Époque carioca. A partir deste enquadre, analisam-se os espaços sociais e discursos disponíveis para as mulheres de então, buscando compreender as múltiplas faces do ser mulher que acompanha o tecido social dessa trama. Assim, discute-se a questão feminina sob o ponto de vista dos médicos, o problema da educação, o ideal de família e o trabalho “fora do lar”.
A perspectiva teórico-metodológica deste trabalho se insere no campo da historiografia, mais especificamente história das mulheres e das relações de gênero, com atenção às produções da historiografia sobre o período e as implicações de suas análises para as conclusões difundidas sobre o feminino nesse período.
O Rio de Janeiro e suas mulheres: entre discursos e práticas
O Rio de Janeiro desenvolveu-se rapidamente, ainda durante o período colonial, pela importância de seu porto, que escoava os fluxos da atividade mineradora e abastecia o interior. Tornou-se a cidade mais importante do Brasil, passando, em 1763, a ser a capital. No século XIX, com o declínio do ouro, o café passou a ocupar papel central na economia do país. Sua cultura espalhou-se pelo Vale do Paraíba, Minas Gerais e oeste paulista, aumentando, assim, a relevância do porto do Rio de Janeiro como exportador da produção cafeeira. A cidade transformou-se em grande centro de comercialização e seu prestígio no cenário nacional fez com que se mantivesse como principal cidade no Império e, naturalmente, continuasse como capital, mesmo com o advento da República. Sendo a maior cidade, o centro econômico, político e cultural do país, no Rio de Janeiro é que, primeiramente e, principalmente, eram sentidas as mudanças que vinham ocorrendo durante os últimos anos do Império e que culminaram na abolição da escravidão, em 1888, e na proclamação da república, em 1889. No período que compreende o final do II Império (1889) e início da década de 1920, a cidade do Rio de Janeiro foi o palco de conturbados movimentos sociais.
A expectativa inicial trazida pela República foi sistematicamente fracassando, pois o avanço do liberalismo não foi acompanhado no mesmo grau por avanços de liberdade e de participação, trazendo um descrédito à política institucional (Carvalho, 1987). A República, ou seus vencedores, fez muito pouco em termos de ampliação dos direitos civis e políticos; considera-se, inclusive, certo retrocesso no que se refere a direitos sociais (Carvalho, 1987). Nas classes mais baixas a participação política era mínima, pois a grande maioria da população era analfabeta – e analfabetos não tinham direito ao voto –, além de também serem excluídas as mulheres1. A estas foram negadas a liberdade e a cidadania, não possuíam direitos civis e, portanto, não poderiam participar do processo eleitoral. Esta proibição era justificada por suas qualidades naturais de irracionalidade, submissão e incapacidade para discernir sobre o mundo público. Juridicamente, permanecia submetida ao pai ou ao marido, não possuindo direitos individuais, liberdade de consciência, pensamento, expressão, religião, tão pouco de circulação, de trabalho e de gerência sobre recursos patrimoniais e de herança (Soihet, 1987). A “fragilidade feminina”, portanto, é também constituinte de sua tutela (Louro, 2009).
No Rio de Janeiro, contando-se as mulheres, os menores de 21 anos, os analfabetos, os praças, os religiosos e os estrangeiros, excluía-se do direito ao voto 80% da população (Patto, 1999, p. 169). Antes de ser um direito, o voto era uma função social e, por isso, concedido a quem a sociedade considerava que poderia confiar, excluindo, assim, a maioria da população. É assim que é possível criar um imaginário sobre a cidade: “Domesticados politicamente, reduzido seu peso político pela consolidação do sistema oligárquico dominante, à cidade pôde ser dado o papel de cartão-postal da República. Entrou-se em cheio no espírito francês da belle époque [...]” (Carvalho, 1987, p. 39; grifos do autor).
No plano econômico, o aumento das exportações de café, ao longo do século XIX, impulsionou o processo industrial e a consolidação do modelo capitalista, provocando o desenvolvimento de intensa atividade comercial e financeira. Além disso, a cidade obedecia a alguns critérios que facilitavam a implantação de indústrias: a proximidade do crescente mercado consumidor, em função da presença do aparelho de Estado; o acesso às fontes de matérias-primas e de máquinas necessárias à produção, por ser uma cidade portuária; além de proximidade dos mercados de capital, ao abrigar o principal centro financeiro do Brasil. Nesse período, o Rio de Janeiro passou a reunir a maior concentração de fábricas do Brasil (Rago, 2009; Soihet, 1987; Hahner, 1978).
Nesse contexto, grande massa de pessoas foi atraída para a cidade, tanto por ser o centro administrativo do Estado, mas, sobretudo, por oferecer maiores oportunidades de trabalho. No final do século XIX, havia ocorrido uma alteração drástica no campo populacional em termos de número de habitantes e de composição étnica. O declínio da produção cafeeira e a abolição da escravidão provocaram a intensificação do afluxo migratório proveniente das áreas degradadas do café, além de um crescente número de imigrantes estrangeiros aportava no Rio de Janeiro, visando substituir a mão de obra escrava (Messias, 2013).
O Rio de Janeiro tornou-se, neste período, a cidade mais populosa e mais urbanizada do país: segundo o Censo Populacional, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/ IBGE, em 1890, contava com 522.651 habitantes, passando para 691.565, em 1900, e 1.157.873 (Soihet, 1987) em 1920, dos quais 917.48 eram brasileiros e 239.129 estrangeiros. A grande quantidade de pessoas que chegava à capital formava uma imensa reserva de mão de obra que permanecia na linha tênue entre a fome e a ilegalidade. Circulavam em subempregos, sendo quase escravizados; muitos trabalhavam em troca de um teto e um prato de comida ao fim do dia, outros faziam seus biscates, eram vendedores ambulantes, carregadores de cargas, trabalhadores temporários que faziam os serviços mais variados buscando maneiras de “ganhar o pão de cada dia”. As taxas de desemprego eram extremamente altas e a inflação generalizada (Carvalho, 1987; Soihet, 1987), os custos de alimentação e habitação eram muito elevados, o que os tornava quase impeditivos para a camada mais pobre.
Desenvolvia-se um grave problema habitacional, que vinha se agravando desde meados do século XIX, e que se tornava cada vez mais sério e urgente, especialmente nas camadas de renda mais baixas (Carvalho, 1987). A maior parte dessa população ocupava, até os primeiros anos do século XX, habitações coletivas insalubres, como cortiços e casas de cômodo, nas áreas centrais da cidade, onde também ficavam os centros comerciais, de negócios, o porto e a maioria das indústrias. Na medida em que a industrialização avançava, formava-se uma nova classe, o proletariado, que compartilhava, além do lugar na organização social do trabalho, experiências de vida e de sofrimento, valores, relações sociais e culturais, por meio dos quais se identificava como um grupo. O operariado era formado em sua maioria por mulheres e crianças, além de um número crescente de imigrantes estrangeiros (Rago, 1997, 2009; Soihet, 1987, 2009), que dividiam duras condições de trabalho e existência, marcadas pela superexploração, baixos salários, longas jornadas e desemprego recorrente.
A República, proclamada sob os valores liberais, não objetivava regular o mercado, a produção e as relações de trabalho (Carvalho, 1987). Não havia leis trabalhistas que garantissem direitos básicos aos trabalhadores, as jornadas de trabalho podiam chegar a 17 horas em fábricas insalubres e mal ventiladas, sem direitos a folgas semanais ou férias, com salários que não cobriam as despesas básicas de uma família, ainda que todos os seus membros trabalhassem (Soihet, 1987; Rago, 1997, 2009; Hahner, 1978). Os salários eram ainda mais baixos no caso de mulheres e crianças, razão pela qual eram mão de obra privilegiada.
Esse quadro tinha consequências diretas nas condições de vida: problemas de abastecimento de água, de saneamento e de saúde pública. Violentas epidemias de varíola, febre amarela e tuberculose, entre outras, tornavam o Rio de Janeiro um “lugar perigoso para viver” (Carvalho, 1987, p.87), o que, segundo o discurso corrente, atrapalhava o comércio de importação e exportação, a circulação de pessoas e investimentos.
A imposição de transformações no espaço urbano contava com a contribuição de discursos variados, especialmente o da ciência, representado, a partir da segunda metade do século XIX, pela medicina moderna, eminentemente medicina social, que se torna o dispositivo fundamental para o fornecimento de justificativas para intervenção no meio social. Esta se torna a missão higienista, controlar e curar as moléstias, inclusive as sociais, curar o corpo doente da sociedade (Jacó-Vilela, Messias & Espírito Santo, 2007). Portanto, tudo o que causava “desordem” deveria ser eliminado ou devidamente controlado por meio de projetos profiláticos e reparadores, desenvolvidos pelos médicos. É nesse momento que dois conceitos ganham força: a noção de “salubridade”, da importância do meio, das condições materiais e seus elementos constitutivos como saudáveis; e a de “higiene pública”, as técnicas de controle, prevenção e modificação das circunstâncias materiais do meio, visando à saúde (Jacó-Vilela et al, 2007). Desse modo, foram elaboradas propostas para a cidade e para várias organizações sociais, objetivando conduzi-las à saúde, ao saneamento e à habitação, com a finalidade de higienizá-las: hospitais, cemitérios, bordéis, casas e fábricas.
Assim, é nesse contexto que, com fins econômicos, políticos e sociais, um projeto sanitário e urbano foi construído para a área central da cidade, principal foco de urbanização e concentração de pessoas e serviços. Este plano foi levado a termo, a partir de 1903, pelo prefeito Francisco Pereira Passos (1836-1913) e constituía um projeto de remodelação urbana calcado no modelo francês desenvolvido pelo Barão de Haussmann (1809-1891) em Paris: houve a modernização do porto, visando ampliar sua capacidade, as ruas foram alargadas para permitir a melhor circulação de ar, de pessoas, de cargas e dos novos automóveis; construíram-se praças, ocorreram obras de saneamento, construção de esgotos e campanhas de vacinação compulsória para o controle das epidemias. Acredita-se que, no total das obras, tenham sido demolidos cerca de 4000 imóveis, a maioria deles cortiços onde habitavam os mais pobres (Soihet, 1987).
A população, expulsa de suas casas e jogada na rua sem qualquer projeto habitacional, seria agora vacinada “à força”. Expulsão e vacinação foram fatores que contribuíram para gerar inúmeras revoltas. “A medicina e os interesses econômicos uniram-se no propósito de transformar a velha cidade numa metrópole moderna que deveria atrair capitais e homens estrangeiros” (Soihet, 2009, p. 364).
A República – que logo seria denominada de “Velha” - trazia as marcas desse redimensionamento das políticas de controle social, tendo como alvo especial os hábitos das camadas populares. Produziu-se, assim, um discurso moralizante que se expressava através de novas formas de regulação das condutas humanas e dos fenômenos sociais, de maneira especial a instituição familiar, investindo na sua regulamentação desde a moradia até o comportamento sexual.
Assim, considerava-se fundamental a implantação do modelo da família burguesa entre os trabalhadores, uma vez que, no sistema capitalista que se estabelecia, o custo de reprodução do trabalho era calculado a partir da consideração da contribuição invisível, não remunerada, do trabalho doméstico feminino (Soihet, 2009; Rago, 1997). E esse projeto se constituía com o respaldo e a legitimação da ciência médica. Deste modo, o discurso científico sobre a distinção entre os sexos se estabelece como um esforço de marcar nítidas fronteiras entre eles, apontando suas características exclusivas e suas funções sociais. Logo, são prescritos os comportamentos apropriados ou mesmo possíveis e necessários para cada um deles. Em função das mudanças sociais, políticas e econômicas, redefinir ou mesmo reafirmar os alicerces da diferença entre os sexos parecia fundamental.
A invenção da diferença: as mulheres e seus médicos
Emerge então, uma justificativa de cunho predominantemente biológico, pautada na anatomia, visando comprovar que a diferença física entre os sexos é expressa desde os ossos até o cérebro, passando pela pele, músculos e fibras (Rohden, 2001). Diferentes nas características físicas eram, igualmente, diferentes nas características morais e psicológicas, o que balizava suas funções sociais com o mesmo determinismo que as funções biológicas e as diferenças anatômicas: todas definidas pela natureza.
No entanto, apesar da afirmação da natureza biológica e determinista da diferença entre homem e mulher e de suas funções, esta natureza era instável, sujeita a intervenções vindas do meio. Ou seja, existiriam fatores que poderiam perverter o desenvolvimento normal e sadio da mulher, dificultando ou, mesmo, impedindo a sua função primordial, a reprodução. Assim, interferências culturais, a educação ou o trabalho, tidas como “influências perniciosas” (Rohden, 2012, p. 82), poderiam transformar ou corromper a “frágil” diferença natural e biológica: o que era natural não era definitivo, estável, estático e garantido. “É exatamente em virtude dessa tensão que os médicos vão se preocupar tanto em ‘proteger’ o processo de concretização da diferença” (Rohden, 2001, p. 121).
Dessa forma, a anatomia era a arena onde a representação da diferença se afirmava. O corpo da mulher, e principalmente seus órgãos reprodutivos, na sua “concretude corpórea cientificamente acessível” (Laqueur, 2001, p. 193), adquiriu um significado novo. A mulher passou a ocupar papel central nos discursos e práticas médicas, sendo definida e determinada pela sua função reprodutiva, à qual era atrelada sua sexualidade. Os médicos “(...) caracterizam a vida da mulher a partir de passagens que sofre em função da preparação, exercício e perda da capacidade reprodutiva” (Rodhen, 2012, p. 77), o que não ocorre quando se referem ao homem. A função reprodutiva é entendida como eminentemente feminina.
As teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro2, produzidas entre meados do século XIX e a década de 1940, representam o que Rohden (2012) afirma ser o que existia de mais oficial no pensamento médico brasileiro, aquilo que seria verdadeiro e cientificamente comprovado. Naquelas analisadas por Rohden (2001) e Jacó-Vilela et al (2007), os discursos médicos esforçam-se para proporem uma clara distinção entre os sexos, delimitando também as funções e as características atribuídas a cada um deles. Desta forma, prescreviam quais atividades estariam de acordo com as qualidades intrínsecas ao sexo masculino e ao sexo feminino. Entretanto, a mulher era o grande foco da atenção dos médicos, o que fica evidente pela quantidade crescente de teses dedicadas a questões relativas ao sexo feminino neste período (Rohden, 2012; Jacó-Vilela et al, 2007). Conforme Rohden (2012), entre 1833 e 1940, de um total de 1593 teses, 1345 se referiam à mulher e somente 248 ao homem. Tratavam de temas como gravidez e parto, amamentação, puerpério, puberdade, órgãos e funções reprodutivas, menstruação e masturbação. Essa preocupação especial da medicina com a mulher levou, inclusive, à constituição da ginecologia como especialidade médica ainda no século XIX (Rohden, 2012).
No discurso médico, a mulher estava profundamente vinculada à natureza, em oposição ao homem, identificado com a cultura. Esse modelo, redefinido no século XIX, como salientou Laqueur (2001), mais do que ilustrar as supostas “descobertas científicas”, reflete o mandato das contingências políticas e culturais que configuram os interesses das sociedades, e que possuem suas raízes na construção do dualismo entre natureza e cultura. Portanto, a diferença percebida entre os sexos fundamenta as formas centrais a partir das quais cada sociedade se pensa a si mesma e estrutura sua organização (Rohden, 2001). A associação com a natureza, neste momento em que a cultura é o demonstrativo da superioridade de algumas civilizações em relação a outras, que ainda vivem no estado “natural”, implicava que a mulher era entendida por sua inferioridade em relação ao homem, com menor capacidade mental e física, devendo subordinar-se ao homem, para que este lhe oferecesse proteção. O homem é descrito como detentor das capacidades de inteligência e raciocínio, além da força física, em função de sua musculatura e esqueleto serem mais fortes. Estaria destinado aos grandes trabalhos de modificação da sociedade, às funções nas ciências e na política (Jacó-Vilela et al., 2007). À mulher, restava a maternidade e o lar, tarefas que se ajustavam às suas capacidades. “Além de, aparentemente, não ter capacidade mental para o mundo público a mulher também não teria capacidade física” (Rohden, 2012, p. 75), o que explicita a justificativa anatômica da hierarquia de gênero, vigente em meados do século XIX e início do século XX.
Contudo, se a anatomia justificava as diferenças, essa era instável e delicada. Como visto, a vida social, os hábitos e a cultura poderiam desestabilizar e corromper o desenvolvimento em seu processo natural. Portanto, era fundamental o controle e adequação rigorosos do ambiente e do comportamento, especialmente em relação à mulher. A quebra desses padrões e normas significava a degeneração3, mas, também, comprovava a especificidade da natureza da mulher, considerada um ser ambíguo e contraditório, portador do bem e do mal, com predisposição biológica e constitucional para a amoralidade, a mentira, a inveja, a vingança, a cólera e a vaidade (Soihet, 1987). Consequentemente, a fisiologia específica da mulher a tornava mais sujeita às moléstias mentais (Jacó-Vilela et al., 2007); seu corpo e sua sexualidade eram, por excelência, espaços da loucura, constituindo-se alvo prioritário de intervenções.
As práticas médicas produziram novas construções femininas e do feminino. E nesse contexto, com o país em fase de reestruturação política, se compreende a legitimação de um discurso que se dedica a definir a mulher, destacando, quase exclusivamente, a sua capacidade para a procriação (Rohden, 2012). Ao lhe atribuírem como função primordial a procriação, em razão de imperativos agora considerados científicos - e não mais morais -, impõem para a mulher a responsabilidade pelo cuidado e educação dos filhos. Aos poucos, ela é levada a uma posição de destaque, enquanto esposa e mãe, guardiã da missão de educar os futuros cidadãos da nação civilizada e moderna que se pretendia construir (Jacó-Vilela et al., 2007). Entretanto, será precisamente essa função que praticamente a impediria de se dedicar a outras tarefas, sobretudo aquelas tradicionalmente exercidas pelos homens. A fim de educar os filhos e desempenhar seu destino natural como esposa, mãe e dona de casa, era preciso que a mulher fosse, antes, educada, mas sua educação deveria privilegiar a higiene, o caráter e estar baseada nos princípios da moral, dos valores sociais e cívicos, como era corrente no discurso republicano (Soihet, 2009; Jacó-Vilela et al., 2007).
A constituição feminina servirá, então, de justificativa para sua submissão intelectual, uma vez que a dedicação aos estudos poderia desviar para o cérebro as energias que deveriam estar destinadas ao amadurecimento do aparelho reprodutivo, o que significava proibição de uma educação intelectual mais apurada (Messias, 2013).
Educadas, mas não muito. As mulheres a caminho da escola
Este pensamento informou as práticas relativas à educação feminina por longo período no Brasil. Os questionamentos somente começaram a se fazer sentir no final do século XIX, quando o discurso sobre a importância da educação para a construção de um país moderno se tornou mais intenso. As críticas à situação educacional do país, em que grande parcela da população permanecia analfabeta, circulavam nos jornais, nas instâncias políticas, nas rodas sociais, propiciando um acentuado debate da elite intelectual brasileira (Louro, 2009). Havia algumas escolas. Entretanto, a maior parte delas era mantida por congregações e ordens religiosas, que remetem à longa tradição brasileira de ensino prioritariamente conduzido pela Igreja Católica.
Segundo a Lei Geral de 1827, que regularizava o ensino primário no país, as meninas somente tinham acesso ao 1º nível de instrução, “às primeiras letras” (Louro, 2009). As diretrizes educacionais de meninos e meninas diferiam consideravelmente em conteúdo e não era permitido que estudassem juntos (Nunes, 1994).
Na medida em que os valores vigentes prescreviam o casamento e a maternidade como destinos fundamentais para a mulher, embora inúmeras vezes, especialmente nas camadas mais pobres, a mulher contribuísse para o orçamento familiar, o homem tinha preferência na aquisição da instrução. Eram proibidas às mulheres, até 1879, as profissões para as quais se necessita formação superior (Louro, 2009). Todavia, mesmo após esta data se conservavam, e até se ampliavam, as barreiras ideológicas e sociais. “A persistência desta mentalidade por longo tempo manteve a mulher obrigada ao exercício do trabalho na prática de tarefas menos qualificadas e mais desvalorizadas, em geral aquelas extensivas da sua própria atividade doméstica” (Soihet, 1987, p.170).
Finalmente, o argumento sobre a necessidade de educar as mães em potencial, em função do projeto de modernização e higienização da sociedade e da família, as mulheres obtiveram maior acesso à educação, crescendo a necessidade de mais professoras, “senhoras de boa moral”, para as meninas (Louro, 2009). Afirmava-se que sua ligação com as crianças as convertia em “educadoras naturais” (Louro, 2009), pois, se seu destino primordial era a maternidade, o magistério seria uma extensão desta sua vocação natural. Em um perfeito silogismo, o magistério não subverteria a função constitucional da mulher, pelo contrário, poderia ampliá-la (Louro, 2009). A partir daí, o magistério começou a ser definido por características consideradas como tipicamente femininas: paciência, docilidade, afetividade e dedicação (Louro, 2009).
O campo de atuação como professoras, especialmente, para as mulheres das camadas médias urbanas, foi se ampliando aos poucos. Contudo, sua atuação profissional não deveria concorrer com suas tarefas essenciais de mãe, esposa e dona de casa. O magistério estava inserido no quadro que concebia o trabalho da mulher fora do ambiente doméstico como ocupação transitória, em horário parcial e de menor valor social, que deveria ser abandonado tão logo se impusesse sua verdadeira função, como esposa e mãe, já que o sustento da família cabia ao homem, sendo um sinal de sua capacidade provedora e, por conseguinte, de sua masculinidade (Louro, 2009). Esse discurso sobre a transitoriedade do trabalho feminino justificava os salários inferiores, pois seria, supostamente, “complementar”, ainda que existissem muitas situações nas quais o salário da mulher era indispensável para a renda familiar. Como, também, justificava a dupla jornada de trabalho, uma vez que, ainda que trabalhassem fora de casa, as atividades domésticas assim como o cuidado dos filhos permaneciam sendo exclusivamente femininas. A incompatibilidade da profissionalização feminina com o casamento e a maternidade foram, e permanecem sendo, uma das construções sociais mais persistentes (Messias, 2013).
Higiene, moral, disciplina e educação então caminham juntas visando à construção e à modernização da nação. Portanto, eram rigorosamente controladas as normas de moral e comportamento das futuras professoras. Nesse projeto, as educadoras, os exemplos das crianças, seriam suas guias, de maneira saudável e disciplinada, à vida adulta, ao trabalho, à nação e à família, possibilitando, portanto, a manutenção da ordem social, com um povo trabalhador e saudável.
O ideal de família e de moral: as mulheres entre o discurso médico e o religioso
Fundamentalmente, o que estava colocado era, portanto, um novo modelo de família em que se mantinha um sistema no qual a divisão de trabalho entre homens e mulheres estava submetida à separação entre a esfera pública, destinada ao homem, e a esfera privada, onde estava a mulher. Por meio desta divisão de trabalho se garantiria a saúde física e mental da população, com a constituição de descendentes saudáveis e disciplinados (Soihet, 1987).
Segundo essa lógica, o casamento era a finalidade primeira da existência da mulher, por meio do qual ela poderia exercer seu destino natural como mãe. Seria uma espécie de carreira, de profissão, para a qual a mulher era preparada desde a infância, e que lhe garantiria, além de sustento, reconhecimento e posição social (Soihet, 1987; Rago, 2009). Contudo, esse padrão destinava-se, especialmente, às mulheres das camadas mais elevadas. Por outro lado, “servia como instrumento ideológico para marcar a distinção entre as burguesas e as pobres” (Fonseca, 2009, p. 517). O número de pessoas casadas, no total da população, era bastante pequeno, sobretudo nas camadas populares. Segundo Soihet (1987), isso se explicava em função do alto custo das despesas matrimoniais e da burocracia, além do desinteresse, pois não estava em jogo a regulação de propriedades e bens, o que permitia que ali prevalecesse o concubinato (Fonseca, 2009). Apesar de existir uma positividade do concubinato nos circuitos mais populares, o casamento formal se apresentava como um valor e uma expectativa também para as mulheres destas camadas (Soihet, 2009). Era aquilo que diferenciava umas das outras, conferindo algum status e respeitabilidade. “A moral burguesa não era de todo estranha aos grupos populares. A prova se acha no desespero registrado por meninas defloradas que preferiam arriscar um aborto, cometer infanticídio ou até matar-se, antes de vir a público seu estado de mãe solteira.” (Fonseca, 2009, p. 529). Assim, esse modelo normativo, inicialmente destinado às mulheres das camadas mais altas, paulatinamente foi sendo transposto e incorporado às classes trabalhadoras (Rago, 2009). Os discursos normalizadores da moral e do corpo da mulher, materializados no ideal da família nuclear burguesa, eram fortemente calcados na moral religiosa, no caso do Brasil, a católica. Mesmo após o advento da República, com a separação entre Igreja e Estado, que se constitui laico, a moral católica permaneceu como uma das forças discursivas mais potentes e constitutivas das relações de poder no campo social brasileiro (Messias, 2013).
Deste modo, era legitimado e corroborado, pela medicina, pela Igreja e pela sociedade, um modelo no qual o casamento era tido como ideal social, ao mesmo tempo em que o trabalho fora da esfera doméstica era considerado inadequado para a mulher, pois destruiria a família e provocaria degeneração.
Rainhas do lar? As mulheres e seus trabalhos
Entretanto, as resistências (Soihet, 2000) cotidianas se apresentavam cada vez mais potentes, das mais diversas maneiras. Os padrões de comportamento e conduta que se construíam não retratavam, nem de longe, a realidade vivenciada pela maioria das mulheres (Soihet, 1987, 2009; Fonseca, 2009; Rago, 1997).
Aquelas das camadas populares comportavam-se de acordo com as situações cotidianas de sua vida. Com sua maior participação na esfera do trabalho, embora em posições desvalorizadas e mal remuneradas, muitas dessas mulheres não se adaptavam àquelas categorias apresentadas como intrínsecas ao universo/corpo feminino. Isto contradizia a presumida passividade, submissão e fragilidade da mulher e a prescrição dos papéis exclusivos de mãe e esposa, destinada ao lar e à família. “Enquanto os médicos esperavam definir a feminilidade como fixa e estática, ela se apresentava instável e fluida” (Rohden, 2001, p. 48).
Segundo Rago (2009), a inserção das mulheres no espaço público não exprimiu uma redução das exigências e prescrições morais, muito ao contrário, quanto mais ela se afastava do campo doméstico, mais a sociedade colocava “sobre seus ombros o anátema do pecado, o sentimento de culpa diante do abandono do lar, dos filhos carentes, do marido extenuado pelas longas horas de trabalho” (Rago, 1997, p. 63). Entretanto, os obstáculos não se restringiam ao processo produtivo, mas, sobretudo, já se iniciavam nos discursos sobre a inadequação do trabalho feminino fora da esfera doméstica, implicando sua desvalorização profissional, política e intelectual. Seu trabalho era menos valorizado, seus salários mais baixos, eram desqualificadas intelectualmente, sofriam intimidações físicas e o assédio sexual era prática recorrente (Soihet, 1987; Hahner, 1978).
Contudo, a complexificação da sociedade produz diferentes maneiras de lidar com o cotidiano concreto: não era possível existir um só modelo de família, de mulher ou de homem. Ainda que persistissem inúmeras tentativas de normalização, as resistências insistiam em existir na sua diferença. As mulheres pobres sempre trabalharam fora de casa (Soihet, 1987, 2009; Fonseca, 2009). Exerciam, fundamentalmente, atividades tradicionalmente consideradas femininas, vinculadas às atividades domésticas (como lavadeiras, costureiras, bordadeiras, cozinheiras). Muitas eram absorvidas na indústria que então se iniciava, sobretudo naqueles setores ligados aos trabalhos anteriormente executados na esfera privada (como produção de vestimentas, na fiação e indústria têxtil e na produção de produtos alimentícios) (Soihet, 1987; Rago, 2009). Estas mulheres, apesar de seus pequenos ganhos, pois, como temos afirmado, as atividades femininas eram as mais desvalorizadas e menos remuneradas, tinham um papel relevante na economia familiar, sendo que muitas delas viviam sozinhas (por serem solteiras ou por outras razões, como abandono e viuvez), garantindo sua subsistência e a de seus filhos (Soihet, 1987, 2009; Fonseca, 2009).
No que diz respeito às mulheres das camadas médias e altas, a quem se destinavam, inicialmente, as normas disciplinares que estabeleciam a rígida divisão sexual do trabalho, algumas já começavam a manifestar o desejo de exercer atividades fora do lar. Questionavam o mandato que agenciava sua posição legal, a restrição ao voto e à cidadania plena, e, especialmente, as questões que envolviam seu acesso à educação e ao mundo profissional - referindo-se, aqui, especificamente, às profissões qualificadas, de nível superior.
As estatísticas censitárias da cidade do Rio de Janeiro demonstram que, gradativamente, as mulheres foram ocupando os mais variados espaços de trabalho; desta forma, também explicitam a compreensão que se tinha delas e de sua atividade profissional, as relações de gênero e poder presentes.
O Censo de 1890, conforme citado por Soihet (1987), por exemplo, fornece escassas informações sobre o trabalho feminino, pois não faz referência às atividades ligadas ao campo doméstico, que, neste momento, são aquelas desempenhadas pela grande maioria das mulheres pobres. Além do mais, em grande parte das categorias de trabalho ali apresentadas não ocorre a distinção por sexo, como na agricultura e indústria. Em 1906, no Censo (Soihet, 1987) já aparecem as especificações de sexo, desta forma sabe-se que 80,34% das mulheres que trabalhavam encontravam-se no quadro de profissões que envolviam o serviço doméstico - que contabilizava também as donas de casa, que não exerciam atividade remunerada. Este dado precisa ser avaliado com cautela, pois, mesmo as donas de casa que exerciam alguma atividade remunerada informal, quando inquiridas, não a declaravam, segundo Soihet (1987). Havia (e talvez ainda haja) uma tendência de ocultarem ou subestimarem sua contribuição para o orçamento doméstico. No magistério, evidencia-se um grande crescimento do número de mulheres, eram 1959 mulheres, o que correspondia a 68,93% do número de professores (Soihet, 1987).
No recenseamento de 1920 (Soihet, 1987), a maioria das mulheres ainda permanecia relacionada na categoria de serviço doméstico, cerca de 82,08%. Na indústria, a participação feminina continuava maior no setor de vestuário, 62,18%, o que representava 34.132 mulheres. No setor têxtil, eram 39,26%, mais de 5.000 mulheres (Soihet, 1987). Nesse momento, as mulheres estavam presentes também no setor de serviços, como correios e telégrafos, constituindo 31,92% da força de trabalho nestes lugares. O magistério primário tornava-se uma profissão eminentemente feminina, conforme as tendências sociais indicavam. As mulheres passam a representar, neste recenseamento, 81,20% do total de profissionais deste setor.
Nesse contexto, chama a atenção o fato de grande parte do proletariado ser constituído por mulheres, denotando uma contradição aparente em relação ao discurso vigente sobre o trabalho feminino. Segundo Rago (2009), em 1872, as mulheres representavam 76% da mão de obra nas fábricas. Os homens pertencentes à elite certamente desejavam elaborar uma distinção absoluta entre o público e o privado, por conseguinte, entre o homem e a mulher; no entanto, além das discussões de cunho moralizante sobre a exploração do trabalho das mulheres, o que os preocupava era, sobretudo, seu rendimento econômico (Rago, 2009). Justificavam a exploração do trabalho de mulheres e crianças com base no argumento de que estes, sobretudo os mais carentes, precisavam trabalhar para garantir sua sobrevivência. Além disso, acreditavam que as mulheres das camadas mais pobres fossem, devido à sua constituição física ou à deficiência na sua formação moral, “inferiores às ‘mulheres normais’ e mais inclinadas aos vícios e às tentações do mundo moderno” (Rago, 2009, p.593), o que justificava sua exploração no trabalho.
Depois da década de 1920, o discurso moral e de tutela sobre a mulher ganhou mais força, com forte reação masculina em função disputa no mercado de trabalho industrial (Rago, 2009). Com isso, os Censos da cidade do Rio de Janeiro, no período que vai de 1890 até 1920, sinalizam uma gradativa queda da mão de obra feminina nas indústrias (Rago, 2009). Ou seja, as mulheres foram, progressivamente, “expulsas e substituídas” (Rago, 2009, p.582) pela mão de obra masculina, nas primeiras décadas do século XX.
Conforme indicam os dados censitários, apesar das inúmeras restrições e de sua expulsão do setor industrial, muitas mulheres encontram outros campos de trabalho (em escolas, lojas, hospitais, escritórios, asilos e nos serviços públicos), passando a ter maior participação no comércio e no setor de serviços, que também tendiam a se expandir em função da crescente urbanização.
Nas camadas média e alta, observa-se um aumento do número de mulheres que têm mais acesso à educação formal e às profissões a ela relacionadas. Algumas, mesmo, já conseguiam ter acesso à formação em profissões de nível superior. No entanto, a maior parte das mulheres, especialmente aquelas das camadas sociais mais pobres, permanecia em ocupações consideradas femininas, mal pagas, malvistas e de baixa produtividade; trabalhavam em serviços domésticos, fundamentalmente como forma de trabalho remunerado, fazendo-o frequentemente em suas casas. “A vasta maioria das trabalhadoras brasileiras continua nos empregos menos qualificados, menos agradáveis e de menor remuneração” (Hahner, 1978, p.172).
Contudo, as estatísticas censitárias devem ser encaradas com cautela e questionadas quanto à sua precisão. Uma explicação, segundo Hahner (1978), seria o fato de que as mulheres que trabalhavam parte da jornada, em meio turno de trabalho, ou de forma intermitente, tendiam a ser excluídas da população ativa apontada nos censos, tanto no Brasil como em outros países.
Além disto, os homens, sendo os cidadãos de fato e de direito, tidos como os “chefes da família”, eram, normalmente, aqueles que respondiam aos censos, e ao serem inquiridos, tendiam a esconder o trabalho das mulheres da família, especialmente quando esse trabalho era executado em casa (Hahner, 1978; Soihet, 1987). Devido à quase nula importância dessa distinção nos dados do Censo, o trabalho doméstico das mulheres permanece sendo de segunda classe, ligado às suas funções fundamentais como esposa, dona de casa e mãe, ou seja, sem necessidade de discriminação censitária que represente um campo de trabalho. “Portanto, muitas mulheres que combinavam atividades domésticas com algum trabalho pago não eram relacionadas entre a população ativa” (Hahner, 1978, p.173).
Considerações Finais
Na medida em que se analisam as múltiplas influências que operam na vida cotidiana das mulheres, verifica-se que estas podem assumir comportamentos variados e singulares, contrariando os padrões de comportamento considerados naturais e biológicos e, por isso, tidos como universais, definitivos e socialmente exigidos. Nesse sentido, o artigo destaca a importância das diferenças de classe social na experiência concreta das mulheres e, sobretudo, nas suas formas de luta e resistência.
As mulheres, ao articularem as experiências da vida privada com a vida pública, nas suas batalhas cotidianas, questionaram a hierarquia de gênero, não só na família, mas nos discursos e na esfera política tradicional, confrontando, assim, o ideal de mulher submissa e reclusa ao lar, criando novas formas de vida, novos papéis.
Nesse sentido, o contexto histórico em que emergem as questões dos direitos da mulher ou da igualdade entre os sexos são marcados por projetos de transformação social e política e por ideais revolucionários. A participação das mulheres em movimentos de contestação e luta estaria baseada nos ideais de igualdade de direitos que atravessam a história. Em outro sentido, estes movimentos de mulheres também são momentos de estruturação de novas relações entre a esfera pública e privada e de novas configurações das relações de gênero, na vida social e política. Subvertem, portanto, a ordem dos gêneros em voga na sociedade.
Ficam evidentes as diferentes relações e lutas que se estabelecem em função das distinções de classe, pois, em uma sociedade como a brasileira, altamente estratificada, uma pequena elite de mulheres que se profissionaliza e se qualifica pode coexistir, em perfeita harmonia, com uma extensa massa de mulheres ocupando os níveis mais baixos da vida social e econômica. A herança histórica brasileira, que guardava resquícios da severidade imposta pela Igreja para regular o feminino, fez com que a maioria da sociedade, e das mulheres, se mantivesse contra as ideias feministas, embora liberais e mantenedoras da ordem mais ampla.
Em suma, ressalta-se que esta demonstração reflete um fato comum no passado e no presente: a persistência da assimetria de gênero em um século povoado por conquistas femininas, que deveriam ter assegurado a igualdade entre os sexos.
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Endereço para correspondência:
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Clyo-Psyqué – Laboratório de História e Memória da Psicologia
Centro Cultural Reitor Oscar Tenório
Rua São Francisco Xavier, 524
Maracanã - Rio de Janeiro, RJ - Brasil
Telefone: (21) 23340830
Fax: (21) 23340830
Recebido em 04/07/2018
Aceito em 01/10/2018