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Psicologia em Pesquisa
versão On-line ISSN 1982-1247
Psicol. pesq. vol.13 no.2 Juiz de Fora maio/ago. 2019
https://doi.org/10.34019/1982-1247.2019.v13.26058
ARTIGOS
O lar e o habitar para moradores de Serviço Residencial Terapêutico
The home and the dwelling for residents of Residential Therapeutic Service
Mariana Carneiro CapuchoI; Teresinha Cid ConstantinidisII
IGraduada em Psicologia pela Faculdade Multivix (2012). Especialista em Políticas Públicas e Promoção Social pela Faculdade Pitágoras (2013) e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) com ênfase em Saúde Mental. Atualmente é psicóloga do Instituto Vida e Saúde, atuando na coordenação do Serviço de Residências Terapêuticas do Espírito Santo. E-mail: marianaccapucho@gmail.com
IIGraduada em Terapia Ocupacional pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar, 1987). Mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP, 2000) e Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES, 2011). É professora adjunta do Curso de Terapia Ocupacional da UFES e professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Psicologia (PPGP/UFES)
RESUMO
Este estudo tem como objetivo investigar o entendimento de atuais moradores de um Serviço Residencial Terapêutico (SRT) acerca do significado de lar e de habitar. Foi realizada pesquisa qualitativa por meio de entrevistas semiestruturadas com moradores de Residências Terapêuticas (RT) situadas em cidades da região metropolitana de Vitória (ES). A análise temática de conteúdo indicou núcleos de sentido que evidenciaram a casa e o habitar atrelados à presença da família, à liberdade, à autonomia, à proteção. Foi demonstrado que a RT não é um lar para todos, bem como apontada a importância da participação do ex-interno do hospital psiquiátrico no processo de passagem da internação para a residência terapêutica e o fortalecimento de laços afetivos do morador.
Palavras-chave: Residências terapêuticas; Habitar; Saúde mental; Desinstitucionalização.
ABSTRACT
The therapeutic residences are dwellings inserted in the community, destined to ex- patients of long admission in psychiatric hospitals that allow the social insertion of these people. Qualitative research was performed through semi-structured interviews, which sought to understand the meaning of living for residents of Therapeutic Residences. Participated in the research, five residents of Therapeutic Residences located in cities in the metropolitan region of southeastern Brazil. The thematic analysis of the contents indicated nuclei of meaning that evidenced the home and the dwelling, linked to the presence of the family, to freedom, to autonomy, to protection and as milestones of the rupture of this locus of existence, psychic suffering and hospitalization. It is pointed out the importance of the participation of the ex-inmate of the psychiatric hospital in the process of moving from hospitalization to therapeutic residency.
Keywords: Therapeutic residences; Dwell; Mental health; Deinstitutionalization.
A Política Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde, a partir da Reforma Psiquiátrica com a promulgação da Lei 10.216 (Brasil, 2001), redirecionou o modelo de assistência à pessoa com sofrimento psíquico substituindo o hospital psiquiátrico por serviços de base comunitária e territorial. O Serviço Residencial Terapêutico (SRT), mais conhecido como Residências Terapêuticas (RT), é fundamental para a implantação desse modelo. Trata-se de um serviço que visa consolidar o modelo de atenção voltado para a inserção das pessoas com sofrimento psíquico na comunidade. A Portaria/GM no 106/2000 (Brasil, 2000), que normatiza as diretrizes do SRT, assim define essas residências: "Moradias ou casas inseridas, na comunidade, destinadas a cuidar [grifo nosso] dos portadores de transtornos mentais, egressos de internações psiquiátricas de longa permanência, que não possuam suporte social e laços familiares, que viabilizem sua inserção social" (Brasil, 2000, s/p).
O SRT além de moradia, conforme a referida portaria aparece como modalidade assistencial substitutiva à internação psiquiátrica e como unidade de suporte, caracterizando-o como um serviço de saúde. Em legislação posterior, sob a Portariano 3.090/2011, no entanto, o caráter fundamental do SRT aparece como um espaço de moradia:
Os Serviços Residenciais Terapêuticos configuram-se como dispositivo estratégico no processo de desinstitucionalização. Caracterizam-se como moradias inseridas na comunidade destinadas a pessoas com transtorno mental, egressas de hospitais psiquiátricos e/ou hospitais de custódia. O caráter fundamental do SRT é ser um espaço de moradia [grifo nosso] que garanta o convívio social, a reabilitação psicossocial e o resgate de cidadania do sujeito, promovendo os laços afetivos, a reinserção no espaço da cidade e a reconstrução das referências familiares (Brasil, 2011, s/p).
É possível verificar as descrições da função das RTs, conforme destacadas pelos grifos: cuidado, de acordo com a legislação de 2000; e moradia, conforme a legislação de 2011. Sztajnberg e Cavalcanti (2014), indo além, caracterizam as RTs como transição, passagem de um cuidado absoluto para seguir em direção à vivência, ainda que limitada. Nesse sentido, cria-se uma direção ao pensar a RT como um local de passagem, como um ambiente facilitador para que o morador crie o próprio modo de viver.
No entanto, o local de passagem e a criação de modos de vida próprios, referidos pelos autores, envolvem direito à cidade que, por sua vez, envolve o direito à moradia e também à educação, à saúde, aos serviços públicos (incluindo saneamento básico), ao lazer, à segurança, ao transporte etc., que são expressão do direito à dignidade humana (Santos, 2014). Diante desses direitos, o Estado deve garantir a lei e se responsabilizar pelos seus efeitos sociais. No entanto, a realidade brasileira mostra que a demanda por moradia e a efetivação do direito à cidade para a população pobre têm sido agregadas a ações como Banco Nacional de Habitação, Programa Aceleração do Crescimento e Programa Minha Casa Minha Vida, isto é, políticas que priorizam o crescimento econômico (Costa, 2014). Felix e Lima (2017) apontam que a internação, muitas vezes, é uma alternativa ao simples fato de as pessoas não terem habitação e o hospital psiquiátrico responde a esta necessidade de moradia. Em face do exposto, tomar a RT como local de passagem envolve a garantia de direitos que estão em campo de problemas e impasses, em uma situação paradoxal que evidencia a processualidade da política e seu caráter de permanente construção.
Vale ressaltar que o Ministério da Saúde aponta o Programa de Volta Para Casa (PVC), que consiste no pagamento do auxílio-reabilitação psicossocial, como um dos tripés da desinstitucionalização junto com o SRT e o Programa de Redução de Leitos Hospitalares de Longa Permanência (Brasil, 2003). O PVC e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) visam auxiliar a inserção social de pessoas egressas de ao menos dois anos de internação ininterruptos de instituição psiquiátrica. Ainda que o PVC contribua para fortalecimento dos vínculos sociais do usuário (Leite, Oliveira e Scarparo, 2015), estudos apontam um processo de burocratização e pouca autonomia na utilização dos recursos e ressaltam a necessidade de estratégias para o empoderamento e o protagonismo dos beneficiários (Moreira, 2014); Lima & Brasil, 2014).
Para Argiles, Kantorski, Willrich, Antonacci e Coimbra (2013), os SRT enfrentam dificuldades inerentes de um processo novo, singular e inovador, que prossegue construindo novas ideias e respostas para os desafios encontrados diariamente. Os autores destacam o questionamento sobre o pensar a clínica da moradia sob o olhar das novas práticas de saúde mental e de cuidado produzidas pela desinstitucionalização.
No entanto, a residência como lar, como lugar de habitar, tem sido pouco explorada nos estudos nacionais sobre o SRT. Saraceno (1996) aponta que o habitar, a rede social e o trabalho formam a tríade fundamental no processo de reabilitação e inserção social. A noção de moradia, para o autor, inclui não só a estrutura física, mas também as diferentes maneiras de apropriação do espaço ou os modos de habitá-lo. O autor traz a proposição de um modelo de superação da psiquiatria tradicional, a Reabilitação Psicossocial, como a reconstrução plena da cidadania da pessoa com sofrimento psíquico e da contratualidade nos três grandes cenários: habitat, rede social e trabalho.
Nessa perspectiva, Saraceno (1996) ressalta a necessidade de diferenciação do morar considerando dois aspectos: o estar e o habitar. Dessa maneira, o estar seria ocupar sem apropriação do espaço, seja material, emocional ou simbólica. Já o habitar, é a possibilidade de ocupar o espaço onde se vive, com apropriação simbólica, material e emocional. A diferenciação se dá na apropriação, feita pelo sujeito, da moradia, pois quem habita também se apropria material e emocionalmente do espaço e dos objetos que o compõe, interagindo gradativamente com os outros que também vivem ali.
O filósofo Gaston Bachelard, em sua obra A poética do espaço (2008) afirma que a casa é nosso canto no mundo. Para o autor, o homem habita sua casa antes de habitar o mundo, evidenciando sua visão de que a casa é nosso ponto de referência não só tendo como função a habitação, mas também a proteção. "Todo espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa (...). Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano" (p. 200). Na visão do autor, a casa como "espaço feliz" é defendida contra as forças da natureza e da economia capitalista que a reduz à sua mera funcionalidade.
Considerando o habitar segundo o referencial apresentado, o hospital psiquiátrico não é um local de habitação, pois traz a perda da autonomia e da individualidade do sujeito, assim como traz a experiência de abandono e isolamento, além da segregação subjetiva e social do indivíduo. Desse modo, acontece violência contra o sujeito tutelado, produzida pelo hospital, que o impossibilita de criar espaço de existência e de habitá-lo. De acordo com Bachelard (2008), habitar um espaço é uma função e sem ela, até mesmo dentro de um ambiente cercado por muralhas como se apresentam os hospitais, o sujeito sente-se desprotegido.
A pessoa com sofrimento psíquico, na ocasião da alta do hospital psiquiátrico, sai do espaço asilar e tutelar para um lugar que é destinado a ser sua casa. Assim, este estudo se constituiu a partir do objetivo de analisar o entendimento de atuais moradores de um SRT acerca do significado de lar e habitar.
Método
Para atender ao objetivo proposto no presente trabalho, foi realizada a pesquisa segundo o método qualitativo (Minayo, 2007), e por se tratar de estudo que envolve seres humanos, seguiu-se a Resolução no 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde, submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa e aprovado por este órgão.
Instrumento
Foi utilizada entrevista semiestruturada, com itens flexíveis e orientada pelos seguintes tópicos: (a) pré-internação; (b) internação; (c) transição e (d) residência terapêutica. Para cada tópico abordado, uma ou mais perguntas foram direcionadas aos participantes com certa flexibilidade do roteiro, adequando-se às diferentes situações do contexto. As entrevistas foram gravadas digitalmente com posterior transcrição de áudio. Tais procedimentos foram realizados pela pesquisadora, autora principal deste estudo.
Participantes
Participaram desta pesquisa cinco moradores de Residências Terapêuticas estaduais, egressos de hospitais psiquiátricos, selecionados de acordo com os seguintes critérios: serem moradores das residências; estarem em condições para participar da entrevista - ou seja, no contato prévio com o pesquisador, mostrarem-se capazes de manter um diálogo e estarem orientados no tempo e no espaço - e, por fim, concordarem em participar da pesquisa.
A descrição dos participantes apresentada na Tabela 1 é baseada em dados coletados nos prontuários de cada um, disponibilizados pela Organização de Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), que gerencia a RT.
Local da Pesquisa
A pesquisa foi realizada com moradores de RTs de cidades da região metropolitana de Vitória (ES). Essas RTs foram inauguradas a partir de 2004, com o fechamento gradual dos leitos de internação psiquiátrica de um dos principais hospitais psiquiátricos do Estado. O processo de implantação do SRT nessa região iniciou-se com duas RTs, chegando, no decorrer de 12 anos, ao número atual de 18 residências terapêuticas estaduais. Nos primeiros dois anos de implantação, as RTs eram gerenciadas pelo setor de ressocialização do referido hospital psiquiátrico e, logo após a OSCIP, obteve a licitação para gerenciar o projeto de maneira terceirizada à Secretaria de Saúde do Estado.
As RTs mais antigas têm maior aceitação da comunidade com relação ao seu funcionamento e à circulação dos moradores pelo bairro, mas as mais recentes ainda enfrentam resistência da vizinhança, o que acarreta, muitas vezes, a impossibilidade ou a dificuldade da circulação dos moradores no território. A dispensa da medicação, o cuidado da casa e as atribuições domésticas (como limpeza, preparo das refeições), ou seja, a rotina da RT, ficam a cargo de cuidadores contratados pela OSCIP.
As RTs são referenciadas nos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e as Unidades Básicas de Saúde dos bairros, entre outros serviços essenciais para a produção de cuidado em saúde mental.
Análise de Dados
Esta pesquisa foi desenvolvida na modalidade de análise temática de conteúdo (Bardin, 1977) que "procura nas expressões verbais ou textuais os temas gerais recorrentes que fazem a sua aparição no interior de vários conteúdos mais concretos" (Turato, 2003, p. 442).
Resultados e Discussão
Os resultados apontaram regularidades discursivas que delinearam as seguintes categorias: (1) Entre a casa e a internação; (2) O habitar e o trabalhar; (3) A transição para a RT; e (4) Aspectos da vivência na RT.
A identificação dos nomes dos participantes foi substituída pela letra M junto com numeração de 1 a 5. O nome do hospital psiquiátrico citado pelos participantes nos relatos foi substituído pela grafia [hospital psiquiátrico].
Entre a Casa e a Internação
Os participantes retomam sua origem e sua história de vida associando-as à casa. No entanto, os resultados apontam que os participantes descreveram suas lembranças da moradia anterior à internação. Em sua maioria, as histórias de vida são compostas de muitas moradias e as vivências relacionadas ao habitar não se apresentam necessariamente representadas por um único lar:
A gente morava... na rua Francisco... Guaratiba... Piúma... Aí depois fomos morar em Itaquari...
Itaquari... depois Piúma de novo (M 1, 11 de abril, 2017).
Eu nasci em Jaguaré, né? Mas a casa que meu pai deixou é lá de Sooretama (M 2, 30 de março, 2017).
Os resultados vão ao encontro da teoria de Bachelard (2008), que propõe que a casa tem o poder de proteger, oferecer calor e repouso:
Eu tinha as minhas coisinhas... eu tinha... minha estante, meu som, meu guarda-roupa... a casa... é um conforto pra gente... (M 1, 11 de abril, 2017).
Ademais, as narrativas trazem à composição desse lar uma temporalidade anterior à internação e trazem o lar atrelado à presença da família, como ilustra o relato de M 1:
Eu gosto de todas as casas, né... porque meu pai veio, minha mãe tava com ele... tinha os irmãos, o irmão... caçula, a caçula nasceu em 78, o caçula nasceu em 81, um em 65, em 67... 64... mãe de 45, pai de 34... (11 de abril, 2017).
Para Felippe (2010), a casa é um retrato do morador e da sua família, e os resultados apresentados corroboram tal afirmação, pois falar da casa remete os participantes a falar da família que ali habitava. Outrossim, a casa dá ao homem a segurança para enfrentar o mundo:
Quando tava todo mundo junto em casa… quando eu era criança. O pai nunca batia em nós! (M 4, 21 de junho, 2017).
E essa possibilidade de enfrentar o mundo é trazida pelos participantes pela liberdade que a casa propõe:
Quando eu tinha minha casa era melhor, né? Eu... eu saía na hora que quisesse, ia trabalhar cedo... ficava lá dentro, trancado com porta, mas era aberto (M 1, 11 de abril, 2017).
A importância dada pelos participantes para a liberdade que a casa oferece se opõe ao que o hospital psiquiátrico institui. Oriundos de hospitais psiquiátricos, nos quais se destacam as privações da liberdade, ressaltam a liberdade associada a ter uma casa:
Ah. Sair... comprar uma casa. Morar sozinho, cuidar da minha vida (M 2, 30 de março, 2017).
No entanto, o hospital psiquiátrico aparece como moradia no discurso de alguns participantes:
A minha casa antes? Ah, era o [hospital psiquiátrico] mesmo... (M 2, 30 de março, 2017).
Aí, meu anjo... o meu lar foi lá no hospital. Eu não tive casa! (M 5, 27 de julho, 2017).
Os participantes trazem suas narrativas atreladas ao hospital psiquiátrico, indicando que a instituição totaliza a vida dessas pessoas. Os relatos confirmam que o hospital permanece como referência para essas pessoas. Diante do desamparo provocado pelo surto e, posteriormente, pela perda de suas casas, essas pessoas passam a residir no hospital psiquiátrico. Elas têm a história marcada por longas internações, quando a loucura era sinônimo de exclusão e segregação. Para Machado (2012), o isolamento social que os pacientes psiquiátricos vivem é tão intenso que, muitas vezes, eles preferem estar internados para evitar a solidão. Nesse sentido, a internação passa a ser moradia, pois eles não tinham perspectivas de vida fora dali. A moradia, portanto, assume o sentido de abrigamento. O hospital psiquiátrico, cercado por grades e muros, com funcionamento por meio da tutela aos internos, garantiria o sentimento de proteção a essas pessoas? O sentimento de proteção, segundo Bachelard (2008), está vinculado à função do habitar, e sem ele o sujeito pode se sentir desprotegido e alheio.
É importante destacar que a experiência do morar, para os participantes, está relacionada à perda da casa. Em sua maioria, foram expulsos de seus lares pelos próprios familiares, principalmente, em função do sofrimento psíquico. Dada a importância da casa como proteção e aconchego, a loucura aparece como um rompimento dessa ligação, visto que com a ocorrência da crise, os sujeitos perderam seus lares:
Eu sei que perdi tudo... tudo... tudo... tudo... tem quinze anos que eu estou sozinho nesse mundo (M 3, 25 de maio, 2017).
Saraceno (1999), ao discutir o morar e a contratualidade, afirma que o aprisionamento ou a expulsão do habitar revela o precário poder contratual do sujeito, que fica impedido de exercitar seu poder e seu prazer na apropriação do espaço onde reside. Além disso, o sofrimento desses sujeitos não mais tinha o respaldo da casa, rompendo com a possibilidade de proteção e estabilidade que a "casa primordial" (Bachelard, 2008) proporciona. Isso faria com que vivenciassem a loucura e a crise expostos aos perigos e às hostilidades do mundo.
O Habitar e o Trabalhar
É importante destacar que para alguns participantes as lembranças da casa anterior à internação estavam atreladas ao trabalho laboral, conforme ilustrado no relato de M 1:
Era muito difícil... pagava aluguel... eu engraxava sapato, vendia laranja... eu sempre trabalhei, né? [...] É, eu trabalhava com serviço... serviço de pedreiro, trabalhei de pintor... pintava casa. Em construção... trabalhei em firma... (11 de abril, 2017).
A lembrança que relaciona casa ao trabalho remete às possibilidades que a atividade remunerada ofertava aqueles, quanto à inclusão social, à independência e à autonomia.
Pagava aluguel... eu engraxava sapato, vendia laranja... eu sempre trabalhei, né? [...] Aí eu tinha um dinheiro e pensei: "vou montar um comércio aqui" (M 1, 11 de abril, 2017).
As falas apontam que para esses moradores o trabalho está diretamente relacionado com espaço de habitação, inclusive como possibilidade de deixar a RT:
Mas se eu tivesse uma casa eu já tinha saído da residência há muito tempo, mas tá difícil aluguel (M 4, 21 de junho, 2017).
Quando o trabalho já não faz parte do cotidiano dos participantes, as possibilidades de autonomia se reduzem significativamente, gerando um sentimento de impossibilidade e impotência frente às perspectivas futuras de sair da RT. É possível notar, através dos resultados, que os moradores demonstram a necessidade de retornar ao trabalho, às atividades remuneradas e ao benefício que essas funções proporcionam. Os participantes desta pesquisa recebem BPC e PVC, isso significa que a questão não se centra no trabalho pela remuneração, mas pelo desejo de ser incluído socialmente e desempenhar o papel social de trabalhador.
O habitar e o trabalho apresentam-se como eixos indissociáveis nas falas dos participantes, corroborando os princípios da Reabilitação Psicossocial (Saraceno, 2001), já que o aumento da capacidade contratual das pessoas com sofrimento psíquico se constrói justamente sobre esses eixos.
A transição para a Residência Terapêutica
A maioria dos participantes afirmou que queria sair do hospital. Ademais, os relatos apontam para a angústia dos moradores sobre não ter para onde ir e onde morar, motivo pelo qual estão na RT. Nota-se que a RT não se configura como casa para M 4, mas uma alternativa a ela:
Porque eu não tenho casa, né? Então, é tão bom porque lá tem comida boa... tem cigarro... [...] Porque eu não tenho casa, né? Não tenho casa. Mas quando eu deito assim... eu fico pensando assim: "ó, meu Deus... se eu perder esse lugar aqui, pra onde é que eu vou?" (21 de junho, 2017).
As falas indicam total falta de referência, independência e autonomia na decisão do próprio futuro. Os dados mostram que há uma impossibilidade de escolha ao sair do hospital e que ao deparar com a oportunidade de residir na RT há um contentamento com a residência, justificado pela inexistência de outra possibilidade de morar.
Não, eu não acho ruim não... porque a gente não pode cuspir no prato que come não [...] Não, no momento está bom, né? Deus está me ajudando, né? Tô comendo, dormindo, tomando remédio... sempre vou na igreja... (M 3, 25 de maio, 2017).
O sentimento de aceitação da RT como alternativa ao desamparo distingue-se do que Saraceno (2001) aponta como o significado de habitar um espaço. No estar não há apropriação material, simbólica ou emocional. No habitar há possibilidade de ocupar o espaço onde se vive, com as apropriações necessárias.
Para além do local de abrigamento, Saraceno (2001) aponta que a casa para a pessoa com sofrimento psíquico é um lugar a ser conquistado, ou seja, é necessário voltar-se para o espaço real de abrigamento a fim de promover a conquista desse espaço e o desenvolvimento de desejos, habilidades e emoções que circundam o habitar. Assim como para os participantes deste estudo, para as pessoas com sofrimento psíquico - que não possuem uma casa, um habitar como referência, têm uma rede social fraca e não apresentam capacidade de produção social relevante - o poder de contratualidade tende a ser zero. É na troca, no poder contratual do sujeito, que se criam relações entre os membros da comunidade. Para o autor, as funções da reabilitação psicossocial se referem a conquistas concretas que seriam a casa, a ativação de desejos, assim como habilidades ligadas ao habitar, eixo primordial para a reabilitação.
Partindo das políticas públicas que implementam as RTs, esse serviço está direcionado para sujeitos que "[...] não possuam suporte social e laços familiares" (Brasil, 2001, s/p). Dessa maneira, as RTs se destinam a pessoas com baixo poder de contratualidade, e isso necessita ser considerado nas ações de atenção psicossocial.
A expectativa de sair do hospital e poder conseguir "um canto" para viver torna-se significativa na perspectiva de se obter um local de referência e proteção, conforme exposto por M 5.
Ah, minha filha... era um horror, me sentia mal. Mas nós não sabiapra onde ir. [...] Eu perguntava pro Dr. Silvio, "arranja um lugar pra mim...", ele falava: "vou dar um jeito, acho que o governo vai arranjar um canto pra vocês." [...] Ela orava sempre pra Deus arranjar um canto [grifo nosso] pra mim, um caminho. Tinha vezes que ela chorava, filha. Pra Deus abrir a porta pra mim, pra alguém cuidar de mim [grifo nosso]. Porque eu não tinha aposento, não tinha nada, lá eu não podia ficar... (27 de julho, 2017).
O relato de M 5 (27 de julho, 2017) indica - para além dos objetivos das RTs, como a reintegração à comunidade, o viver na cidade (Brasil, 2004) - a urgência de pensar a casa para os ex-internos como local em que se sintam acolhidos e protegidos. Nesse sentido, a dimensão individual na produção de subjetividade desses sujeitos precisa ser considerada e o objetivo de proteger essas pessoas deve levar em conta o que é sentir-se protegido para cada um deles, trazendo a necessidade de envolver os ex-internos nesse processo de passagem para as RTs. No entanto, os relatos sobre a notícia da saída do hospital revelam que ela foi dada, em sua maioria, por profissionais do hospital, evidenciando que eles iriam conseguir "um canto" para os internos, sem que eles participassem desse processo.
Doutor... arrumou um lugar, né? Falou que ia arrumar um lugar pra mim, né? Aí Daniele falava assim: "G., já, já a gente arranja um lugar pra você!" Daniele... Vanessa... aí falou assim: "tem uma vaga lá" [grifo nosso] (M 1, 11 de abril, 2017).
É interessante notar algumas expressões utilizadas nos relatos dos usuários ao se referirem às RTs no momento de transição: "arranjar um canto" e "pra alguém cuidar de mim" (M 5, 27 de julho, 2017), "vaga" (M1, 11 de abril, 2017). Tais expressões denotam que, nessa transição, a residência constitui-se como uma extensão do hospital e não como espaço de morar e de viver.
Os participantes relatam que não poderiam permanecer no hospital e que também não escolheram o local para onde iriam.
Porque eu pedi pra sair... porque eu era de lá... então, falaram que eu tinha que passar um tempo nas casas... que eu ia sair de lá também... porque ninguém ia ficar mais lá né? E ficar sozinho não podia lá, né? (M 1, 11 de abril, 2017).
Segundo os participantes, eles receberam a notícia da ida para a RT no mesmo dia ou em dias próximos em que saíram do hospital:
Não, foi elas chegaram, falaram que a gente ia se mudar e sair dali, aí falaram no dia, no mesmo dia a gente saiu (M 5, 27 de julho, 2017).
Os relatos apontam a ausência de participação dos ex-internos no processo de passagem para a residência, assim como a ausência de preparação para o processo de desospitalização. Martins, Peres, Oliveira, Stipp e Almeida Filho (2013) apontam que a transferência dos sujeitos às RTs exige destes condições psíquicas para o estabelecimento de novos vínculos para a reinserção social, pois deparam com um ambiente diferente do que conheciam antes da internação, discrepante da casa a qual tinham expectativa de retornar. Também, ao pensar na ida para a RT como uma transição, o sujeito passaria de um cuidado absoluto para seguir em direção a uma vivência social, mesmo que limitada. Sztajnberg e Cavalcanti (2014) apontam a importância de pensar na RT como um local de passagem com abertura para outras possibilidades, propiciando ao morador um ambiente facilitador para que ele crie o próprio modo de viver.
É importante considerar, nesse processo, que os sentimentos referentes à saída do hospital relacionam-se ao desejo de retornar para sua casa e não ir para a RT ou para outro lugar.
Ah... porque eu queria sair de lá... mas ir embora pra outra... casa... pra outro lugar (M 3, 25 de maio, 2017).
No entanto, ressalta-se a importância da RT como uma possibilidade substitutiva ao hospital psiquiátrico, que só será possível ser habitada a partir do momento que for verdadeiramente construída/elaborada pelo morador como um real espaço de vivência possível, um espaço de habitar.
O desejo de retorno à casa, que é considerada por eles o seu lar, é consoante com as lembranças da casa, conforme aponta Bachelard (2008). Segundo o autor, essas lembranças estão no inconsciente do ser humano, e quando vamos para uma nova casa acessamos recordações das antigas moradas, vivenciando fixações de felicidade e de proteção. Fonte (2013) reitera que a desinstitucionalização, em sua complexidade, é um processo para além da desospitalização, que devolve ao sujeito o lugar de verdadeiro protagonista da sua vida; a passagem existente entre a internação e o convívio comunitário fundamental nesse processo. A passagem do sujeito tutelado para sujeito protagonista agrega um sentido de ruptura que muitas vezes não é considerado.
Um participante aponta que, para ser uma casa de verdade, a casa precisa ser própria, não alugada ou emprestada. Assim como os demais, que sugerem que sua casa é aquela em que viveram por mais tempo e/ou casas das quais um dia foram proprietários.
Lá não é casa não. Casa coisa nenhuma. Casa, casa... quando a gente fala... é casa própria, né? Aquela casa não é minha porque é alugada a casa... é alugada... (M 1, 11 de abril, 2017).
Ah, sair... comprar uma casa. Morar sozinho, cuidar da minha vida. [...] mas tem que pagar água, luz... pegar roupa pra lavar, pegar alimentação (M 3, 25 de maio, 2017).
As falas de M 1 (11 de abril, 2017) e M 3 (25 de maio, 2017) fazem parte do discurso dominante no nosso país do lugar da casa própria como um direito à moradia, resultado de uma ideologia que contribui para manter a ordem social pelo financiamento da propriedade privada que, de certa maneira, manipula o trabalhador e desloca a pobreza para o subúrbio (Bonates, 2007). No entanto, é importante ressaltar que o sonho da casa própria não é apenas uma meta de consumo, mas para a população pobre é a oportunidade de estabilidade diante de um percurso de dificuldades entre aluguéis e despejos. Ademais, o discurso do sonho da casa própria está estreitamente ligado à possibilidade de superação da pobreza e à inclusão social (Gamalho & Heidrich, 2008).
Aspectos da vivência na residência terapêutica
A maioria dos participantes prefere a RT ao hospital, relatando que esta é melhor do que a internação devido à liberdade que a casa oferece.
Eu esqueci até um pouco de lá, eu tava tão preso... eu tava vendo a minha filha... e aqui eu penso, mas não penso tanto, né? Eu ficava preso e pensava muito. Com saudade... (M 2, 30 de março, 2017).
No entanto, estar na RT não significa estar satisfeito em relação à moradia, ao seu lugar de habitação, à sua casa:
No [hospital psiquiátrico] eu já ficava com muito homem, homem... nas casas esse monte de homem... Oriente [RT] um monte de homem... Ah, aí não... [...] Porque fiquei ali no [hospital psiquiátrico]. O [hospital psiquiátrico] é ali perto, não mudou nada. [...] É perto do [hospital psiquiátrico]. Logo ali em cima. Vai até a pé. Agora eu posso ir lá subindo no [hospital psiquiátrico], as mesmas pessoas do [hospital psiquiátrico] estão na casa... aí não dá. [...] Podia ser mais... melhor, né? Assim mais... agora é melhor porque fica assim mais solto... no [hospital psiquiátrico] também, se for assim fica no [hospital psiquiátrico] (M1,11 de abril, 2017).
A fala de M 1 (11 de abril, 2017), ao comparar a RT ao hospital, e não a comparar a outras opções de moradia, aponta para a realidade da RT distante do seu ideal de casa. Ao discutirmos o lar como um local de habitação, de acordo com Bachelard (2008) habitar um espaço é uma função e, sem ela, o estar dentro de um espaço físico considerado casa, não garante que o sujeito se sinta em casa. Além disso, esta fala traz uma crítica aos modos de governo da vida impostos pelo SRT.:
Então, é tão bom porque lá tem comida boa... tem cigarro... (M 2, 30 de março, 2017).
Porque lá a gente pode sair a hora que quer e voltar (M 3, 25 de maio, 2017).
Sobre as relações interpessoais com os demais moradores, apontam como positivas. No entanto, mesmo ao trazer a positividade da convivência com outros moradores, ressentem a falta de convivência com familiares e amigos, relações prévias à internação.
Minha mãe vendeu a casa. Agora estou sem lugar pra ir. A mãe morreu, a irmã diz que não pode ir lá, não pode. [...]: Ah hoje em dia é difícil né... minha mãe morreu, né? Meus irmãos morreram tudo... só se eu fosse casado, né? (M 1, 11 de abril, 2017).
Eu tenho vontade... às vezes eu penso nela, será que ela tá passando fome, ou não... eu penso nisso (M 2, 30 de março, 2017).
Ao analisar a RT como um processo transitório é importante repensar o percurso da reabilitação psicossocial incluindo a reaproximação e o fortalecimento dos vínculos afetivos (Matos & Moreira, 2013). Nessa perspectiva, é reiterada a família como terceiro eixo da reabilitação psicossocial proposta por Saraceno (1996), acrescida do trabalho e da habitação. É importante que a família não seja a projeção de identificações como idealização. Assim, mesmo que os participantes não tenham mais os vínculos familiares preservados, a reaproximação e o fortalecimento dos laços sociais com outras pessoas e com a comunidade são necessários.
Diante da complexidade do processo do morador em considerar a RT como um lar, M 1 assim se referem à RT:
A residência não é minha casa... A casa que eu tinha era lá em Sooretama que eu ia comprar... (11 de abril, 2017).
No entanto, em relação ao que se oferece como residência aos moradores, é importante questionar se seria possível alcançar o idealizado por eles. De acordo com Massa e Moreira (2019), não se pode afirmar que a RT seja o ideal de assistência a pessoas com sofrimento psíquico, entretanto a busca incessante pelo modelo de desinstitucionalização deve estar presente para que haja mudança e viabilização da reinserção e das relações sociais.
Ainda nessa perspectiva, os participantes falaram sobre o desejo de comprar uma casa, se casar, namorar e voltar a trabalhar.
Considerações Finais
Longe da pretensão de esgotar o assunto, este estudo trouxe para discussão o lugar da casa e do habitar para além de um espaço físico, mas como uma função no processo de subjetivação dos moradores das RTs e um espaço a ser ocupado na relação com o mundo. Ocupar um espaço, uma residência, não confere os significados possíveis do habitar, como conquistar espaços de vivência, espaços possíveis de nos identificar subjetivamente com valores construídos. Portanto, o habitar é habitar o mundo, ser no mundo, existir.
Para os participantes deste estudo, a casa aparece, de um lado, atrelada à presença da família, à liberdade, à autonomia, à proteção e, de outro lado, ao sofrimento psíquico e à internação, como marcos do rompimento desse lócus de existência.
Foi possível discutir a residência terapêutica, conforme definida pela constituição vigente, como um serviço substitutivo à internação psiquiátrica, como um dispositivo de desinstitucionalização e uma casa ou moradia como possibilidade de habitar um espaço que, como os resultados deste estudo ressaltam, influencia no processo de inserção social de pessoas com sofrimento psíquico.
Este estudo aponta a relevância da participação do ex-interno do hospital psiquiátrico no processo de passagem da internação para a residência terapêutica, visto que o morador e o território necessitam ser preparados para que a inclusão social se efetue e que seja além de um processo de adaptação ao novo local de moradia. Também trata da importância da criação para o morador de novos laços afetivos, além dos laços familiares, tanto com os moradores da residência, quanto com a equipe de cuidado e a comunidade.
Em relação à preparação do morador e do território, o movimento contínuo - seja proposto por planos terapêuticos ou por iniciativa do próprio morador - de circulação no território, de inserção em dispositivos sociais disponíveis em bairros e espaços públicos é também um facilitador do processo. Em concordância com essas ações, a legislação em saúde mental vigente oferta um cuidado intersetorial e integral para o sujeito com sofrimento psíquico. A Política Nacional de Saúde Mental busca consolidar um modelo de atenção aberto e de base comunitária, bem como com equipamentos variados. A proposta é garantir a livre circulação desses sujeitos pelos serviços, pela comunidade e pela cidade, facilitando o trabalho em rede.
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Endereço para correspondência:
Teresinha Cid Constantinidis
Universidade Federal do Espírito Santo
Av. Fernando Ferrari, 514 - Goiabeiras - Vitória - ES
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teracidc@uol.com.br
Recebido em: 14/04/2019
Aceito em: 25/05/2019