SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.16 número1Esquizofrenia infantil como autoproteção psíquica - concepção da psicologia analíticaAprende-se a ser pai?: A participação de homens em grupos de gestantes e casais grávidos índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.16 no.1 Juiz de Fora jan./abr. 2022

https://doi.org/10.34019/1982-1247.2022.v16.32787 

ARTIGOS

 

Desconstruindo polarizações acerca da internet: entrelaçamentos entre os universos online e off-line

 

Deconstructing polarizations about the internet: entanglements between online and offline universes

 

Deconstruyendo polarizaciones sobre internet: entrecruzamientos entre universos en línea y fuera de línea

 

 

Flávia HaskyI; Isabel FortesII

IPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). E-mail: flahasky@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6170-3290
IIPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). E-mail: mariaisabelfortes@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3662-9575

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo insere-se no campo de estudos sobre internet e subjetividades contemporâneas e dedica-se à problematização das relações entre os universos online e off-line. Através da argumentação de diversos autores, assim como de exemplos extraídos da cultura digital atual buscaremos sustentar a visão de que "os mundos" real e virtual são distintos, porém não opostos. Acreditamos que o entendimento de que há um entrelaçamento entre ambos, de que são registros permeáveis, em continuidade, que se modificam e se afetam mutuamente, pode contribuir para pensar o fenômeno da internet por um viés de desconstrução de polarizações ainda marcante nesse campo de estudos.

Palavras-chave: Psicanálise; Internet; Realidade; Virtualidade.


ABSTRACT

This article is part of the field of studies on internet and contemporary subjectivities and is dedicated to problematizing the relationships between the online and offline universes. Through the arguments of several authors, as well as examples extracted from the current digital culture, we will seek to support the view that the real and virtual "worlds" are distinct, but not opposites. We believe that understanding that there is an intertwining between the two, which are permeable registers, in continuity, that modify and affect each other, can contribute to thinking about the phenomenon of the internet through a bias of deconstruction of the polarizations that are still striking in this field of studies.

Keywords: Psychoanalysis; Internet; Reality; Virtuality.


RESUMEN

Este artículo forma parte del campo de estudios sobre internet y subjetividades contemporáneas y está dedicado a problematizar las relaciones entre universos online y offline. A través de los argumentos de varios autores, así como de ejemplos extraídos de la cultura digital actual, buscaremos sustentar la visión de que los "mundos" real y virtual son distintos, pero no opuestos. Creemos que la comprensión de que existe un entrelazamiento entre los dos, que son registros permeables, en continuidad, que se modifican y afectan entre sí, puede contribuir a pensar el fenómeno de internet a través de un sesgo de deconstrucción de polarizaciones que aún llama la atención en este campo de estudios.

Palabras clave: Psicoanálisis; Internet; Realidad; Virtualidad.


 

 

Os novos dispositivos das tecnociências transformaram radicalmente, em poucos anos, o mundo em que vivemos. Dentre todas as novas tecnologias, as que envolvem as relações e experiências virtuais são as que dominam inegavelmente o cenário contemporâneo. A partir do advento da internet e de sua veloz e espantosa difusão, passamos a viver em um contexto de expansão crescente do ciberespaço, no qual observamos e experimentamos transformações radicais nos mais diversos âmbitos, como o político, o econômico, o social e o comportamental.

Apesar desta inquestionável incorporação da virtualidade em nossas vidas, observamos que o campo de estudos dedicado às reflexões sobre a internet e suas incidências nas subjetividades contemporâneas ainda segue marcado por visões dicotômicas. Há, portanto, a persistência de uma tendência a polarizações de posições frente à internet, em que figuram visões apocalípticas ou maravilhadas a respeito da rede.

O presente artigo se dedica a pensar o fenômeno da internet por outro viés, buscando desconstruir a duplicidade de posições face à explosão do digital, explorando a ideia de que os universos online e off-line são entrelaçados, ou seja, de que "os mundos" real e virtual não se opõem, já que um está em continuidade com o outro. É um estudo que nasce da percepção de que, assim como na valoração da internet como sendo boa ou má para os relacionamentos, observamos posturas que se agarram a um dos lados, também, neste ponto, encontramos esse modo de compreensão do mundo que separa cada coisa de um lado, sem atentar para o "entre", para as misturas.

Entendemos que a posição com a qual nos alinhamos - a qual considera tais universos como um contínuo - se soma a outros caminhos reflexivos que buscam problematizar a inserção maciça da rede virtual na cultura contemporânea desde os anos 2000, buscando enfatizar as coexistências, as complexidades e os paradoxos, atentando para a possibilidade de a rede se prestar a múltiplos usos. Assim sendo, intencionamos, por meio desse estudo, fazer coro com perspectivas que pensam a rede como um lugar em que manifestações eróticas podem tanto se presentificar quanto se mostrarem escassas.

Nesta iniciativa de tentarmos contribuir para o debate a respeito do virtual e seus destinos, a partir de uma interlocução com a psicanálise, buscamos, de saída, nos distanciar de qualquer dicotomia entre X e Y, para propor outros parâmetros de pensabilidade sobre a internet. Em vez de nos determos em questionamentos sobre a internet ter ajudado ou prejudicado a construção de laços entre as pessoas ou de julgar seus usuários como sujeitos em busca de ilusões protetoras ou que querem fugir da realidade, pensaremos sobre o universo digital considerando-o como um espaço em que coexistem tanto práticas e discursos que acentuam a fragilidade de laços com o outro nas trocas entre os internautas, quanto produções de encontros e erotismo que se servem da tecnologia como forma de reinvenção da vida.

O entendimento de que real (compreendido aqui como sinônimo de realidade) e virtual se misturam, de que um incide sobre o outro, ajudará a sustentar essa desconstrução de uma visão dicotômica ainda existente sobre a internet, a qual, a nosso ver, prejudica o trabalho analítico. Caso sigamos, preconceituosamente, analisando as incursões que nossos pacientes fazem pelo mundo on-line como negativas ou piores do que as vivências que poderiam fazer na "vida real", perderemos a oportunidade de escutá-los em suas singularidades, deixando de ajudá-los em seus percursos de vida.

 

Mundos Distintos, Porém Não Opostos

"Falamos mais, escrevemos mais, nossas vidas se tornam cada vez mais públicas e compartilhadas no mundo virtual. E no mundo real? Cabe essa distinção hoje entre mundo real e mundo virtual? Não é o mundo virtual muitas vezes mais real que o real?" (Cavalcanti, 2014, p. xiv). As perguntas levantadas por Cavalcanti (2014) neste extrato nos pareceram interessantes e pertinentes à discussão que pretendemos explorar nesse artigo. A provocação da autora a respeito do mundo virtual ser tão ou mais real do que o mundo real faz frente a um discurso, ainda forte, que considera aqueles que navegam assiduamente na internet como sujeitos em busca de uma substituição da realidade "real" por uma realidade "virtual", sendo esta ilusória, mentirosa e pouco estável. Desejamos problematizar esse tipo de discurso sustentando um viés de pensamento sobre a internet e seus usos que considera "os mundos" real e virtual como distintos, porém interligados. A afirmativa de Dessal (2017), nesse sentido, serve-nos de inspiração: "a linha divisória entre o mundo real e o virtual se apaga a uma velocidade tamanha, que jamais havíamos imaginado" (Dessal, 2017).

No momento histórico em que surgiram as novas tecnologias digitais, havia essa dicotomia entre a "realidade real" e a realidade virtual. É o que nos aponta o verbete "virtual", escrito por Romão-Dias (2006), esclarecedor sobre esse aspecto. Dentre as muitas definições que apresenta, contextualizadas dentro de um amplo panorama, a autora sublinha o fato de que naquele momento foi reacendida uma antiga concepção que opunha real e virtual, a qual se tornou hegemônica. O virtual voltou a ser visto como o "outro" do real (Romão-Dias, 2006, p. 522). Para dar corpo a esta visão, expomos a seguir dois exemplos que ilustram essa dicotomia entre real e virtual.

Em cartaz no Teatro Cândido Mendes no Rio de Janeiro, em outubro de 2019, a peça No virtual todos somos felizes, com direção de Anselmo Vasconcellos, parece denunciar desde seu título a tendência à idealização e à maquiagem da vida real no mundo virtual. Ao afirmar, já em seu título, que existiria a possibilidade de uma felicidade universal no mundo virtual, subentende-se que este mundo funcionaria regido por regras opostas à da "vida como ela é", ou seja, repleta de infortúnios. De modo semelhante, os humoristas do programa Porta dos Fundos caricaturam de forma muito bem-humorada essa dissimetria entre o que se vive na vida real e o que se publica nas redes sociais no episódio "Vida Real". Protagonizado por um mendigo que encontra um colega que se surpreende com o enorme contraste entre seu estado de mendicância e as viagens internacionais que alegram sua página no Facebook, o episódio alerta a sociedade sobre essa nova possibilidade que a internet traz. Karnal (2018) teoriza sobre esse fenômeno encenado pelo campo das artes afirmando que "na internet não há mazelas que eu não queira que haja. (...) Os recalques do cotidiano somem diante da fragmentação e da reconfiguração do 'eu real' no 'eu virtual'" (Karnal, 2018, p. 51).

Apesar de concordarmos que muitos sujeitos contemporâneos têm tentado se apartar das mazelas de suas realidades mergulhando suas vidas no mundo virtual, consideramos problemáticos os posicionamentos que tendem a separar real e virtual, posicionamentos que dão a entender que podemos viver vidas paralelas que não se afetam mutuamente. A essa separação entre os mundos online e offline subjaz a ideia de que no primeiro o impossível pode se tornar possível. No entanto, sabemos que os que são totalmente felizes no virtual, como sugere a peça teatral, certamente não o são no real. E ainda que se enganem momentaneamente sobre suas condições ou que façam os outros acreditarem que estão ótimos, experimentam dissabores. O mendigo que se finge de homem bem-sucedido na rede social não deixa de passar fome, de não ter onde dormir; a internet não extrai dele as suas mazelas.

A esse respeito, Nicolaci-da-Costa (2006) atenta para um aspecto que para nós é fundamental: "embora a Internet não respeite as limitações do mundo físico, a vida 'real' o faz" (Nicolaci-da-Costa, 2006, p. 32). A autora desenvolve seu pensamento nesta direção, quando, em artigo posterior, levanta a possibilidade de que o outro, mesmo na Internet, ofereça resistência ao fantasiar. Sendo assim, prossegue, "o tão sonhado controle de todas as variáveis não é possível nem no mundo virtual, dado que há uma pessoa do outro lado da tela" (...) [O interlocutor] "tem vida própria e, assim sendo, tem o poder de, a qualquer momento, atrapalhar o ato fantasioso e chamar o sujeito de volta à vida" (Romão-Dias & Nicolaci-da-Costa, 2012, p. 94). A mensagem que fica relembra que "a realidade depois cobra seu preço" (Romão-Dias & Nicolaci-da-Costa, 2012, p. 99).

A fim de incrementar esse debate, vejamos um exemplo muito interessante relatado pela pesquisadora Sherry Turkle. Em suas pesquisas, ela teve a oportunidade de entrevistar várias pessoas que achavam a vida online mais satisfatória do que a vida real. No livro Alone Together (2017), ela cita o caso de Doug, um estudante universitário que possuía quatro avatares distribuídos em três mundos online diferentes. Ele sempre tinha esses mundos abertos como janelas em sua tela de computador, juntamente aos trabalhos escolares, e-mails e jogos favoritos. Com frequência, costumava passear através deles todos. Na conversa com Turkle, o rapaz disse que a vida real - RL (real life) - "é apenas uma janela a mais", e que, "normalmente não é a sua melhor" (Turkle, 2017, p. xii).

Encontramos em Vaz, mais precisamente em algumas de suas elucubrações sobre a internet, elementos ricos para aquecer essa discussão. Segundo este pesquisador da área da Comunicação, "nossa cultura inventa máquinas que parecem ter vida e cria, para nossa vida ordinária, a concorrência de uma outra vida no interior das máquinas" (Vaz, 2000, p. 5) (grifo nosso). O autor define a internet como "uma tecnologia onde vale a pena viver", onde um número cada vez maior de indivíduos passeia, estabelece amizades e pratica sexo. Estamos diante da existência de uma nova forma de vida propiciada pelo universo online, mas que deixa em aberto quais são as implicações deste na vida que se leva quando não se está plugado. Há uma "outra vida", ela é atraente em muitos aspectos, mas nem por isso podemos abdicar por completo da vida tal como a experienciávamos antes da hiperconexão.

A posição que construímos a esse respeito, a qual partilhamos com diversos autores cujos nomes e ideias apresentaremos em seguida, baseia-se na crença de que real e virtual são dimensões entrelaçadas. O virtual não antagoniza o real, pois a ele se mistura. Um modifica o outro, são mundos permeáveis, que se interferem mutuamente. Se, até certo momento da história, ainda restavam dúvidas quanto a isso, a explosão mais evidente dessa fronteira se deu com a criação dos dispositivos móveis de comunicação, os smartphones.

Para Miskolci (2017), dado que "vivemos em um mundo em que as relações são crescentemente mediadas tecnologicamente, torna-se patente a falácia da oposição real/virtual e cada vez mais clara a existência de um contínuo online/offline" (Miskolci, 2017, p. 47). O autor vê como "superada a distinção virtual/real que seguia a - hoje sabemos - ingênua interpretação de que as interações online ocorriam em um outro espaço" (p. 21). Seguindo com sua argumentação, esclarece que

o advento da internet 2.0, a expansão da banda larga, a chegada das câmeras digitais e a popularização de equipamentos móveis para acessá-la permitiram que a rede se imiscuísse de tal forma no cotidiano que já não evoca qualquer separação entre o que se faz dentro ou fora dela. A vida conectada em rede começou a contestar a separação entre online e offline, assim como a hipotése de que seria possível viver em um espaço alternativo com regras próprias e diferenciadas. Não só as normas do velho cotidiano face a face moldam nossas relações on-line, mas também, desde que o acesso à rede se disseminou, as características das interações por mídias digitais têm passado a modificar as do dia a dia. (Miskolci, 2017, p. 22)

Em linhas gerais, analisando a passagem da modernidade à contemporaneidade, observa-se que várias dicotomias foram desmanteladas, como, por exemplo, entre natureza x cultura, realidade x ficção, verdade x mentira. Daquilo que nos interessa especialmente destacar, nota-se que a dicotomia real x virtual é mais uma que está sendo desmontada, somando-se à lista anterior. E, sendo assim, prescrições como a que encontramos na abertura do livro "Nomofobia: dependência do computador, internet, redes sociais? Dependência do telefone celular? O impacto das novas tecnologias no cotidiano dos indivíduos. Aspectos: clínico, cognitivo-comportamental, social e ambiental"1 perdem o sentido. "Que o livro sirva de alerta (para) promover a reeducação digital para que possamos resgatar o calor das relações humanas, priorizar a vida real e de fato usufruirmos os benefícios dessas novas tecnologias" (Cavalcanti, 2014, p. xvi) (grifo nosso).

Nicolaci-da-Costa (2006) acredita que estejamos diante de "duas plataformas de vida em permanente interação". Para a autora, pioneira nos estudos sobre os impactos subjetivos da internet,

diferentemente do que muitos temiam nos momentos iniciais de sua difusão, a Internet não criou um mundo paralelo sem conexão com o mundo 'real', nem gerou uma realidade 'virtual' que substituísse aquela característica do mundo físico. Criou, sim, um espaço alternativo que, embora tendo um relativo grau de independência em relação ao espaço 'físico', com ele interage permanentemente. (Nicolaci-da-Costa, 2006. p. 35)

Em tom conclusivo, afirma que "o 'virtual' não substituiu o 'real' nem o tornou irrelevante. Talvez isso permita que muitos reconciliem o sono!" (Nicolaci-da-Costa, 2006, p. 35).

Almeida e Eugenio (2006) salientam a mesma ideia com uma expressão diferente e bastante interessante: falam de um híbrido real/virtual. Chegam a tal constatação por observarem que "os jovens dos dias de hoje fundem os domínios do real e do virtual por meio de diversos recursos tecnológicos" (Almeida e Eugenio, 2006, p. 12). Aquilo a que nomeiam de "agenciamentos 'reais' e 'virtuais'" organizam-se em esquemas de retroalimentação, incorporam-se uns aos outros, interpenetram-se. "O composto real/virtual, assim em contiguidade, insiste em sua agregação" (p. 58). É curioso notar que o artigo em que apresentam tais ideias foi escrito antes da invenção dos smartphones! As autoras definem as redes sociais existentes à época - Messenger, Orkut e Fotolog - como formas de "ampliação das superfícies de contato" (p. 57).

Partindo de Weissberg (1993) e do que este autor chamou de co-presença, Almeida e Eugenio constroem sua visão sobre o que usualmente se entende por real e virtual. No uso das ferramentas para a sociabilidade, incluindo aí as tecnológicas, esmaecem-se as descontinuidades entre uma e outra instância, em favor de agenciamentos híbridos, "um misto em que as duas entidades são simultaneamente requisitadas" (Weissberg, 1993, p. 120, como citado em Almeida e Eugenio, 2006, p. 57). Segundo esta perspectiva, a tela se vê dissolvida enquanto fronteira demarcada, já que "conectados permanentemente à internet, transitamos para 'dentro da tela' como quem se move por mais um cômodo da casa" (p. 58). Sobre esta percepção de que a tela não mais separa, Leduc (2017) comenta que as telas, do computador ou do smartphone, dão falsamente a ideia de uma separação entre dois lugares, como se houvesse um "lugar internet como espaço físico paralelo àquele da vida real" (Leduc, 2017, p. 3).

Antes de passarmos para outros autores que endossam essa mesma visão, gostaríamos de comentar uma das colocações de Almeida e Eugenio neste artigo, a qual nos inquietou. Afirmam que "como o resto da internet, o Orkut é um espelho do mundo real: há de tudo lá, bom e mau, exatamente como aqui fora" (Almeida & Eugenio, 2006, p. 71). Concordamos que coisas boas e más existem "lá dentro" das redes sociais virtuais como "aqui fora". Nesse sentido, o uso do termo "espelho" se aplica bem. Entretanto, consideramos importante comentar que há diferenças consideráveis entre os modos de se relacionar virtuais e reais. Dizer que não há oposição entre estes domínios, que há interpenetração, não é o mesmo que dizer que não há distinção entre eles. A piada contada por Gueller (2017) é ótima para explicitar esse ponto, além de ser muito engraçada:

Estou tentando fazer amigos fora do Facebook. Saio na rua e vou dizendo pra todo mundo o que comi, como me sinto, o que estou fazendo e o que farei mais tarde. Escuto a conversa dos outros e grito 'curti'. Até agora, já tenho três pessoas me seguindo: dois policiais e um psiquiatra. (Gueller, 2017, p. 63)

É preciso, então, assinalar as diferenças e entender as mudanças.

 

Registros que se Afetam Mutuamente

A concepção de real e virtual pensados como um contínuo se vê reforçada pela percepção de que um registro afeta o outro. Tal ideia é sustentada por autores que concebem a internet como uma ferramenta para veicular as subjetividades de nossa época, mas não só. Para além dessa função, a rede virtual opera também como meio de engendrar as subjetividades, participando ativamente de sua constituição. Segundo Viganò (2009), "o advento da internet contribui potencialmente para fazer da assim dita realidade virtual um elemento constitutivo da realidade social" (Viganò, 2009, p. 245).

O filósofo francês Michel Serres produziu diversas obras nas quais procura demonstrar os importantes efeitos do virtual no real, principalmente, através da figura dos adolescentes contemporâneos, público de referência para o qual criou o carinhoso apelido de Polegarzinha. Observando-os e dialogando com eles, concluiu que

um novo ser humano nasceu, no curto espaço de tempo que nos separa dos anos 1970. Eles não têm mais o mesmo corpo, a mesma expectativa de vida, não se comunicam mais da mesma maneira, não percebem mais o mesmo mundo, não vivem mais na mesma natureza, não habitam mais o mesmo espaço. (Serres, 2013, p. 20)

Entendemos que, se há "um novo ser humano", real e virtual se afetam radicalmente, o que reforça a impossibilidade de pensá-los em oposição.

Flanzer (2017) aborda esse aspecto enunciando um paradoxo: para alguma coisa ser real ela primeiro tem que ser virtual. O virtual tem sido anterior ao real e têm imprimido consequências no real (boatos e bullyings que são disparados na e pela internet e se propagam para além dela exemplificam tal fenômeno). Leduc (2016)2 defende que não devemos separar artificialmente o mundo virtual do mundo real já que as relações virtuais podem ter prolongamentos na realidade e consequências importantes. No caso dos adolescentes, por exemplo, os encontros no âmbito virtual funcionam como um modo de laço social suplementar àquele da escola (Leduc, 2016, p. 1). De fato, tanto em nosso trabalho em escola quanto na clínica com adolescentes, temos podido constatar que quando postam ou curtem algo na rede, isso repercute em suas vidas, nas salas de aula, nas relações de amizade, nas paqueras. Assim,

são os jovens que experimentam de maneira mais radical hoje que a internet, muito mais que um instrumento de comunicação que conecta emissores à distância (como seria o caso do telefone ou dos correios) se apresenta para nós como um 'fenômeno total'3 ou totalizante; uma extensão cada vez mais real e opaca de nossa vida, de suas exigências e mesmo de seu sentido. (Costa-Moura, 2014, p. 155)

Pelos mesmos motivos, Türcke considera a expressão "realidade virtual" equivocada. Segundo o filósofo "a presença etérea é uma presença real com um efeito tão poderoso, que é muito fácil esquecer-se, por outro lado, de quão fantasmática ela é" (Türcke, 2010, p. 46). Vale lembrar que para os nativos digitais, que não conheceram outra vida que não a vida conectada, essa distinção entre o online e o offline faz ainda menos sentido. Tal público não pensa em sua identidade digital e em sua identidade no espaço real como coisas separadas, ou seja, não pensa em suas vidas híbridas como algo notável (Palfrey e Gasser, 2011, p. 14, como citado em Melgaço, 2017, p. 69).

A ideia de que um "mundo" interfere no "outro" está presente ainda no argumento de autores como Nicolaci-da-Costa (2006) e Sibilia (2015), para quem o real é transformado pelo virtual. Há entre eles o entendimento de que novas tecnologias que vão sendo criadas passam a transformar os sujeitos que as usam, bem como suas práticas. "As subjetividades e os corpos contemporâneos se veem afetados pelas tecnologias da virtualidade" (Sibilia, 2015, p. 65). Dito de outro modo, "essa mesma vida 'virtual' atua ainda como uma força transformadora da vida 'real'" (Nicolaci-da-Costa, 2006, p. 35).

Expressando posicionamentos de Bauman (2001) que fortalecem esse aspecto, Lima (2017) indica que para o sociólogo o modelo "conexão-desconexão" da internet influencia os relacionamentos sociais dentro e fora do ambiente virtual (grifo nosso). Isso significa que, segundo esse ponto de vista, a internet propicia a frivolidade das comunicações e das formas de se relacionar, ao fazer com que a quantidade passe a se sobrepor à qualidade dos relacionamentos sociais (Lima, 2017, p. 82). "A liquidez e a superficialidade engendram as novas formas de se relacionar no mundo virtual e fora dele" (p. 83). Para estes pensadores na cultura atual interagimos uns com os outros quase como se todos vivêssemos na internet.

Essa transformação provocada pela tecnologia digital no mundo e nas subjetividades levou Bentes (2019) a problematizar o termo "cultura digital". Como toda a cultura contemporânea está absolutamente povoada pela digitalidade, a autora sugere que talvez já possamos retirar esse "digital" como adjetivo referido à cultura, concebendo a própria cultura como algo que também se tornou digital. A incorporação do adjetivo "digital" ao substantivo "cultura" reforça a contiguidade entre real e virtual. Nesse ponto, propomos um diálogo entre Bentes e o psicanalista Barros (2015), a partir do texto em que este se dedica a refletir sobre a expressão "mundo virtual". Tomando como ponto de partida a desnaturalização dessa expressão, Barros procura explorar sua própria surpresa diante da ideia de que o virtual possa, ele próprio, constituir um mundo. Frente a essa novidade afirma, então, que, com a expressão "mundo virtual" o que vemos é uma dissolução mais ou menos rápida da separação entre o mundo e as máquinas. A localização da fronteira entre os dois, que parecia intransponível, já não consegue ser feita com facilidade.

Pouco a pouco, vai se fortalecendo a perspectiva de que o ciberespaço como um espaço de socialização se enreda aos outros espaços destinados a este fim. As distinções entre real e virtual, entre online e offline já não operam mais, ou seja, não dão conta de descrever apropriadamente o mundo em que vivemos. Na atualidade, é preciso estar atento às interfaces e às sobreposições. Nobre e Moreira (2013) trabalham esse aspecto, lembrando-nos que "ainda que a internet represente, por excelência, o campo do imaterial, para muitos usuários, a socialização ou o sexo virtuais têm o mesmo valor das relações concretas e, como tal, são reais, ainda que virtuais": "O virtual abre caminho para aquilo que já possui existência em alguma dimensão" (Nobre & Moreira, 2013, p. 289).

Tisseron (2015) reforça essa ideia traçando um caminho teórico que vai "do virtual psíquico ao virtual digital". O autor argumenta em prol de uma continuidade e de uma não oposição, o que pode ser visto em passagens como esta: "As relações com os objetos digitais de nossas telas são a extensão das relações que mantemos com nosso virtual psíquico, exatamente do mesmo modo que ferramentas mecânicas são a extensão das possibilidades de nossas mãos e a escrita a de nossa memória" (Tisseron, 2015, p. 167). De seu livro Sonhar, fantasiar, virtualizar, destacamos ainda um dado interessante, que ilustra bem as ideias que estão sendo colocadas neste tópico: "O último relatório do Ministério da Cultura para as práticas culturais dos franceses [2010] mostrou que os que têm mais relações nos espaços virtuais são também os que têm melhor socialização na vida real" (Tisseron, 2015, p. 169). Tal fato impulsionou o psicanalista a elaborar a seguinte afirmativa, com a qual concordamos: "as interações pela internet são bem reais, mesmo quando são feitas através de objetos digitais como os avatares" (Tisseron, 2015, p. 169).

A referência a Pierre Lévy é fundamental neste ponto, pois é dele, originalmente, a concepção de que o virtual e o real não são excludentes. Autor chave nas reflexões sobre o tema da virtualidade e do ciberespaço, Lévy, já na epígrafe de sua célebre obra O que é o virtual (1996) afirma, referindo-se a Deleuze, que "o virtual possui uma plena realidade, enquanto virtual" (Lévy, 1996, p. 11). O termo "virtual", que se origina do latim medieval virtualis e é derivado de virtus significa força, potência. O exemplo a seguir contribui para a compreensão deste sentido: "a árvore está virtualmente presente na semente". Dessa forma, fica desmontada a oposição fácil e enganosa entre real e virtual e o segundo é definido como o que existe em potência e não em ato. (Lévy, 1996, p. 15). O esforço de Lévy se configura como uma tentativa de tirar a conotação de falsidade implícita na acepção que opõe real e virtual.

Ao exprimir-se mais diretamente ao fenômeno computacional, que à época da escrita deste livro já dava largos passos rumo ao que presenciamos hoje, Lévy afirmará que o virtual é uma revolução, por trazer consigo uma alteração radical na forma de conceber o tempo, o espaço e mesmo os relacionamentos. Vivemos um momento raro em que se anuncia uma cultura nova, sendo "a virtualização um movimento pelo qual se constituiu e continua a se criar nossa espécie" (Lévy, 1996, p. 147). Segundo o autor, face a este processo de virtualização encontramos os que temem uma desrealização geral e os que veem nas últimas mudanças uma panaceia para os males do mundo. De sua parte, sustenta a proposta de uma terceira possibilidade:

enquanto tal, a virtualização não é nem boa, nem má, nem neutra. Ela se apresenta como movimento mesmo do 'devir outro' do humano. Antes de temê-la, condená-la ou lançar-se às cegas a ela, proponho que se faça o esforço de apreender, de pensar, de compreender em toda a sua amplitude a virtualização. (Lévy, 1996, p. 11/12)

Frisando uma vez mais que opor o virtual ao real não nos ajudará a compreender e transitar no novo universo que a nós se apresenta, alerta para o fato de que

o virtual, rigorosamente definido, tem somente uma pequena afinidade com o falso, o ilusório ou o imaginário. Trata-se, ao contrário, de um modo de ser fecundo e poderoso, que põe em jogo processos de criação, abre futuros, perfura poços de sentido sob a latitude da presença física imediata. (Lévy, 1996, p. 12)

Insistindo nesse viés de evitar o critério do verdadeiro ou do falso, Lévy (1996) afirma que "longe de circunscrever o reino da mentira, o virtual é precisamente o modo de existência de que surgem tanto a verdade como a mentira" (p. 148).

Por fim, gostaríamos de mencionar a contribuição de Mathias (2009) a esta discussão, pelo modo original com o qual se posiciona e dá seguimento às ideias dos autores que trabalhamos até aqui. Partindo de Lévy e visando estabelecer definições para a web, reforça que considerar real e virtual como opostos é um erro, demonstrando que "a internet e a realidade são híbridas e solidárias". Mathias define a internet como "um instrumento que faz mundo" (instrument qui fait monde), esse instrumento-mundo. Vivemos, pois, sob o "postulado da imersão", já que a informação faz parte de nós, assim como nós fazemos parte dela. Real e virtual se entrelaçam, se confundem.

 

A Banda de Moebius como Recurso Topológico para Pensar Esse Contínuo

Dando continuidade à concepção de que real e virtual são dimensões com permeabilidade entre si, recorreremos, agora, à figura topológica da banda ou fita de Moebius para seguir nossa exploração. Intentamos fazer uso dessa forma um tanto quanto estranha, desse enigmático objeto com um só lado que fascina matemáticos, artistas, engenheiros e psicanalistas (sobretudo Jacques Lacan) para aprofundar as reflexões acerca do "estar online/estar offline".

Primeiramente, cabe mencionar que tal figura se tornou cara aos psicanalistas quando Lacan encontrou na banda de Moebius um importante recurso para interpretar a estrutura do aparelho psíquico, utilizando-a como metáfora para o funcionamento do psiquismo humano. Em sua obra, encontramos também articulações entre a Banda de Moebius e alguns conceitos psicanalíticos como: o eu freudiano; a relação significante/significado; a relação entre sujeito e objeto a; o corte; a repetição. A banda de Moebius foi definida pelo psicanalista francês como o suporte estrutural do sujeito enquanto um ser que se apresenta como divisível.

Como introdução a esta parte de nosso artigo elegemos citar a artista Lygia Clark, trazendo a definição dada por ela à fita de Moebius, definição que, a nosso ver, ressoa praticamente como uma descrição possível da internet. Vejamos: "Uma fita de Moebius quebra os nossos hábitos espaciais: direita-esquerda, anverso e reverso etc. Ela nos faz viver a experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo" (Clark, 1983, p. 151).

Esse misterioso objeto, que desafia as leis da física e permite "subir para baixo" ou "sair para dentro", se apresenta como um recurso interessante para dar materialidade à dimensão paradoxal característica da internet. Inspirados em Lacan, que lançou mão da Banda de Moebius para, em vez de definir o sujeito, mostrá-lo, procuraremos aqui figurar o continuum real e virtual nos servindo deste mesmo objeto.

Inventada em 1858 pelo astrônomo e matemático alemão August Ferdinand Moebius, essa estrutura espacial de superfície infinita permite figurar a impossibilidade de representar o dentro e o fora como espaços antagônicos. Trata-se de um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita, após se efetuar meia volta em uma delas. Para construí-la, basta pegar uma tira de papel, girar uma de suas pontas e juntar os dois extremos. Assim procedendo tem-se uma fita com "apenas um lado", que é a característica que define a fita de Moebius. Apesar do efeito de torção gerar a impressão de que ela possui dois lados, na verdade possui um só, uma vez que sua superfície não se interrompe. Esse objeto de construção simples e efeitos surpreendentes não tem avesso nem direito; sendo a diferença entre as duas faces um elemento relativo ao tempo e ao espaço.

Uma das características mais fascinantes da fita de Moebius é a de ser o que os matemáticos chamam de "objeto não orientável". Isso significa que é impossível determinar qual é a parte de cima e qual é a parte de baixo, o que é o dentro, o que é o fora. Se, por exemplo, você começasse a caminhar pela parte de "cima" de uma fita de Moebius, quando desse a volta completa e chegasse novamente ao ponto de partida, estaria, sem se dar conta, parado na parte de "baixo". Da mesma forma, se começasse a caminhar pela borda externa da fita, ao dar a volta completa, terminaria em sua borda interna. Tal lógica não poderia facilmente ser transposta para as reflexões acerca da cultura digital? Cremos que sim e tentaremos, através de dois exemplos "reais" (ou serão virtuais?) demonstrar essa impossibilidade de determinação exata de uma ou outra parte (realidade ou virtualidade).

Lançado em julho de 2016 nos Estados Unidos, o jogo Pokémon Go é paradigmático para testemunhar o hiperatravessamento da vida cotidiana pela tecnologia, protagonizando de forma emblemática a dissolução entre real e virtual que por ora nos ocupa. Sucesso absoluto que atraiu milhões de adeptos em todos os países em que foi lançado, trata-se de um jogo revolucionário por usar a realidade aumentada, isto é, a mistura da realidade e do virtual. A novidade introduzida por este aplicativo é a junção do mundo dos videogames à nossa realidade habitual, criando uma terceira dimensão. Tendo como objetivo capturar pequenos monstrinhos orientais espalhados pelas ruas da cidade, os jogadores caminham com seus celulares à mão, lançando pokebolas e aumentando suas pontuações. Como efeitos reais da brincadeira virtual, citamos dois fenômenos tão comuns quanto intrigantes: de um lado, o aumento de acidentes e ferimentos envolvendo jogadores, motoristas ou outros pedestres. De outro, a formação de novos grupos que se encontram em pontos específicos das cidades onde se concentram pokémons raros e, por que não?, jovens excêntricos em busca de novos laços. Esse novo meio de construir amizades talvez ilustre o comentário de Lima (2017) em que afirma que "a virtualidade do ambiente online se enoda à realidade offline, numa articulação que pode favorecer o laço social" (Lima, 2017, p. 84).

Sobre essa "febre" do Pokémon Go, a jornalista Maria Ribeiro compartilhou o seguinte comentário em sua coluna no Jornal O Globo:

Tem gente que busca a iluminação, gente que espera o grande amor e gente que caça pokémons, (...) se a vida não tem sentido, bora ir mesmo assim. (...) Esperando Godot e procurando pokémons, a gente vai. Go, companheiras, go. (...) O Japão traz dessa vez uma busca por alguma coisa absolutamente abstrata e irreal, mas que de vez em quando pode ter uma paisagem bonita. Go, Pokémon, go. (Ribeiro, 2016)

O segundo exemplo que escolhemos para dar corpo a essa proposta de pensar a cultura digital através da Banda de Moebius é o fenômeno virtual Hatsune Miku, a cantora japonesa de assombroso sucesso na atualidade. Ela nasceu com 16 anos, 1 metro e 58 cm e 43 kg, dados que permanecerão inalterados para sempre. Essa artista virtual, cuja voz é um programa eletrônico, faz concertos "ao vivo", em várias cidades do mundo e convoca um mercado adolescente que esgota as entradas, pagando milhões de dólares por elas. Além de frequentarem seus shows, seus fãs a seguem pelo Facebook, lhe enviam mensagens, dando-lhe existência e promovendo, por conseguinte, o efeito considerável que produz. Impressionada com essa possibilidade inédita a psicanalista Favret (2016) escreveu um artigo a respeito de Miku, do qual extraímos duas passagens: a fala de uma fã e o comentário da autora a respeito deste fenômeno. Para a adolescente entrevistada, "é genial a sensação de ficar fascinada por algo que não é real. Essa é a sensação mais genial, e não é absurda, porque às vezes a realidade fede!" (Favret, 2016). Favret acredita que justamente por Miku não ser a imagem virtual de um corpo encarnado é que ela tem tamanha importância: sempre estará disponível, não haverá cancelamento de concertos por uma afonia, nem por mal-estar advindo de algum outro sintoma e jamais envelhecerá (Favret, 2016).

Pokémon Go, Hatsune Miku e tantos outros elementos e hábitos da cultura contemporânea nos fazem perceber o que, topologicamente, a banda de Moebius consegue representar: uma subversão em nosso espaço comum de representação, que indiferencia as oposições, colocando direito e avesso em continuidade. Na banda, assim como no mundo digitalizado da Era da internet, interior e exterior/real e virtual se inespecificam.

 

Considerações Finais

Para finalizar, gostaríamos de acrescentar um breve comentário sobre o filme francês Quem você pensa que sou? (2019), do diretor Safy Nebbou, pela forma interessante e sensível com a qual consegue abordar essa temática dos mundos real e virtual como espaços contínuos. A trama, protagonizada por Juliette Binoche no papel da cinquentona Claire, explora justamente os efeitos reais de experiências online, problematizando as noções de identidade e de verdadeiro e falso. Depois de ser abandonada pelo marido e de tentar um relacionamento "real" com um jovem rapaz, que não prosseguiu, Claire decidiu criar um perfil com outro nome (Clara), outra idade (24 anos), outra foto (de uma jovem exuberante): um perfil falso.

A mensagem transmitida por esta obra pode ser resumida da seguinte forma: mulher destruída no campo amoroso usa a ficção como tentativa de cura. No fim do filme, assistimos Claire dizendo à analista: "eu precisava ser cuidada mesmo que com ilusões". Outras de suas falas emblemáticas à terapeuta, ricas para refletirmos sobre nosso tema de pesquisa, seguem adiante: "As redes sociais são tanto a salvação quanto a perdição"; "Um dia você é caça, no outro é caçador"; "aquela bolinha verde que indica que o outro está online traz muito conforto. O efeito é semelhante ao salbutamol, faz respirar melhor"; "aquilo era excitante, a espiral começou"; "Era eu de verdade"; "Ele gostou da minha voz, das minhas palavras"; "Quando estava com ele me sentia viva. Eu tinha 24 anos, não estava fingindo. Nunca me senti tão viva"; "Algo está acontecendo entre a gente. Conheci alguém; tudo sempre divertido; estou me liberando do meu ex".

O uso da rede social nesse processo que envolvia tanto a elaboração do luto da separação quanto sua reconstrução enquanto mulher lhe pareceu positivo, vivificante. Podendo contar com o trabalho analítico para se haver com intensos efeitos dessa nova experiência, Claire foi chegando a conclusões tais como essas: "Me senti mais Clara do que Claire"; "Viver outra vida? Não, a minha, enfim".

Concluímos, então, esse artigo sobre real e virtual, no qual buscamos demonstrar que são registros em continuidade, com essa imagem de Claire e Clara se misturando, ou seja, de uma outra Claire, diferente da anterior, pelo fato de "ter sido", também, Clara. Através dela, vemos reforçada a ideia do quão inoperante é a permanência de visões dicotômicas. Vemos como fundamental, em nossos dias, a problematização acerca da persistência de uma tendência a polarizações de posição a respeito da internet no contexto em que hoje vivemos. As complexidades que envolvem Clara e Claire, a impossibilidade de separá-las, demonstram na prática como os universos online e offline são híbridos, entrelaçados, ou seja, dão a ver que são mundos distintos, porém não opostos. O exemplo dessa personagem, assim como os vários outros expostos neste artigo, evidencia a existência de implicações e de modificações mútuas entre as vidas que levamos nos "mundos" real e virtual, assim como a impossibilidade de determinação exata do que seria da ordem da realidade ou da virtualidade. Trata-se, portanto, de espaços não excludentes, espaços que se enredam, transformando-se a si mesmos e imprimindo novidades àqueles que neles transitam.

 

Referências

Almeida, M. I. M., & Eugenio, F. (2006). O espaço real e o acúmulo que significa: Uma nova gramática para se pensar o uso jovem da Internet no Brasil. In A. M. Nicolaci-da-Costa (Org.), Cabeças Digitais: O cotidiano na era da informação (pp. 49-80). São Paulo: Loyola.         [ Links ]

Barros, R. R. (2015). Virtualidades. Editorial Flash 08. VII Enapol. Encontro americano de psicanálise de orientação lacaniana, São Paulo. Versão em espanhol recuperada de http://oimperiodasimagens.com/es/faq-items/editorial-flash-08-virtualidades-romildo-do-rego-barros/

Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Bentes, I. (2019). Memética, criação coletiva e operações psicológicas massivas. II Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital. Comunicação oral apresentada no II Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital, PUC-Minas, Belo Horizonte.

Cavalcanti, M. T. (2014). Prefácio. In A. L. S. King, A. E. Nardi, & A. Cardoso (Orgs.), Nomofobia: Dependência do computador, internet, redes sociais? Dependência do telefone celular? (pp. xiii-xv). São Paulo: Atheneu.         [ Links ]

Clark, L. (1983). Livro-Obra. Edição limitada (24 exemplares) confeccionada por Luciano Figueiredo e Rio Meu Doce Rio.

Costa-Moura, F. (2014). Proliferação das #hashtags: Lógica da ciência, discurso e movimentos sociais contemporâneos. Ágora (Rio de Janeiro), 17(spe), 141-158. doi:10.1590/S1516-14982014000300012        [ Links ]

Dessal, G. (2017). ¿Conectados o desconectados? Los lazos amorosos y familiares em el mundo digital. Fundácion OSDE. Conferência apresentada na Fundácion OSDE. Recuperado de https://citaenlasdiagonales.com.ar/Conectados_o_desconectados.pdf.

Favret, E. (2016). Imagem virtual. In Associação Mundial de Psicanálise (Org.), Scilicet: O corpo falante - Sobre o inconsciente no século XXI (pp. 153-155). São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise.         [ Links ]

Flanzer, S. N. (2017, agosto). Sobre a obrigação de ser feliz. TEDx Barra da Tijuca. Rio de Janeiro. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=778wsVqNsd4

Gueller, A. S. (2017). Droga de celular! Reflexões psicanalíticas sobre o uso de eletrônicos. In A. Baptista & J. Jerusalinsky (Org.), Intoxicações Eletrônicas: O sujeito na era das relações digitais (pp. 63-77). Salvador: Ágalma.         [ Links ]

Karnal, L. (2018). O dilema do porco-espinho: Como encarar a solidão. São Paulo: Planeta do Brasil.         [ Links ]

Leduc, C. (2016). Enfants du numérique? ECF -École de la cause freudienne. Trabalho exposto numa conferência em Reims.

Leduc, C. (2017). Préambules à une clinique du réseau. La Cause du Désir, 97(3), 72-76. doi:10.3917/lcdd.097.0072        [ Links ]

Lévy, P. (1996). O que é o virtual? São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

Lima, N. L. de (2017). Juventude e cultura digital: Diálogos interdisciplinares. Belo Horizonte: Ed. Artesã         [ Links ].

Mathias, P. (2009). Qu'est-ce que l'Internet? Paris: Vrin.         [ Links ]

Melgaço, P. (2017). Cérebro eletrônico faz quase tudo? Sobre a hiperconexão e o desamparo. In P. Melgaço, V. C. Dias, J. M. P. Souza, & J. O. Moreira (Orgs.), Como a tecnologia muda o meu mundo: Imagens da juventude na era digital (pp. 65-78). Curitiba: Appris.         [ Links ]

Miskolci, R. (2017). Desejos digitais: Uma análise sociológica da busca por parceiros on-line. Belo Horizonte: Autêntica.         [ Links ]

Nebbou, S. (Diretor) (2019). Quem você pensa que sou? (Celle que vous croyez) [Filme]. Paris: Diaphana Films.         [ Links ]

Nicolaci-da-Costa, A. M. (2006). Internet: Uma nova plataforma de vida. In A. M. Nicolaci-da-Costa (Org.), Cabeças digitais: O cotidiano na era da informação (pp. 19-39). Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, São Paulo: Loyola.         [ Links ]

Nobre, M. R., & Moreira, J. O. (2013). A fantasia no ciberespaço: A disponibilização de múltiplos roteiros virtuais para a subjetividade. Ágora (Rio de Janeiro), 16(2), 283-298. doi:10.1590/S1516-14982013000200007        [ Links ]

Ribeiro, M. (2016). Go, companheiras, go. Jornal O Globo, Segundo Caderno.

Romão-Dias, D. (2006). Virtuel. In B. Andrieu (Org.), Le Dictionnaire du corps em sciences humaines e sociales (pp. 521-522). Paris: CNRS Editions.         [ Links ]

Romão-Dias, D., & Nicolaci-da-Costa, A. M. (2012). O brincar e a realidade virtual. Cadernos de Psicanálise CPRJ, 34(26), 85-101. Recuperado de http://cprj.com.br/imagenscadernos/caderno26_pdf/11-O-BRINCAR.pdf        [ Links ]

Serres, M. (2013). Polegarzinha. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.         [ Links ]

Sibilia, P. (2015). O homem pós-orgânico: A alquimia dos corpos e das almas à luz das tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Contraponto Editora.         [ Links ]

Tisseron, S. (2015). Sonhar, fantasiar, virtualizar. São Paulo: Edições Loyola.         [ Links ]

Türcke, C. (2010). Sociedade Excitada: Filosofia da Sensação (A. A. A. Zuin, F. A. Durão, F. C. Fontanell, & M. Frungillo. Trad.). Campinas: Editora da Unicamp.         [ Links ]

Turkle, S. (2017). Alone Together: Why we expect more from technology and less from each other. New York: Basic Books.         [ Links ]

Vaz, P. R. G. (n.d.). Internet, Agentes de Rede e Subjetividade Contemporânea. Projeto para Bolsa de Produtividade em Pesquisa, CNPq. Recuperado de http://souzaesilva.com/Website-Backups/Website/portfolio/webdesign/siteciberidea/paulovaz/textos/projeto.pdf

Viganò, C. (2009). Realidade virtual e realidade sexual. A peste: Revista de psicanálise e sociedade e filosofia, 1(2), 245-251. Recuperado de https://revistas.pucsp.br/index.php/apeste/article/view/6279        [ Links ]

Weissberg, J.-L. (1993). Real e Virtual. In A. Parente (Org). Imagem-Máquina: A era das tecnologias do virtual. São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Flávia Hasky
flahasky@hotmail.com

Recebido em: 09/11/2020
Aceito em: 26/01/2021

 

 

1 Publicado pelo grupo DELETE - Desintoxicação e uso consciente de tecnologi@s do IPUB/UFRJ em 2014. Trata-se do primeiro centro no Brasil especializado exclusivamente no atendimento dos usuários abusivos e dependentes das tecnologias, pioneiros em "Detox Digital".
2 Texto recebido da própria autora por e-mail.
3 Expressão de Paul Mathias (2009), autor de Qu'est-ce que l'Internet.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons