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Contextos Clínicos
versão impressa ISSN 1983-3482
Contextos Clínic vol.5 no.1 São Leopoldo jul. 2012
https://doi.org/10.4013/ctc.2012.51.01
ARTIGOS
O desafio do diagnóstico psiquiátrico na criança1
The challenge of making a psychiatric diagnosis in children
Lylla Cysne Frota D'Abreu
Universidade de Potsdam. Departamento de Ciências Humanas. Instituto de Psicologia. Karl-Liebknecht-Str. 24/25, Komplex II, Haus 14, Raum 5.04, 14476, Potsdam OT Golm, Alemanha. lyllacysne@yahoo.com.br
RESUMO
O diagnóstico psiquiátrico na infância ainda é tema controverso na Psicologia Clínica. Questões desenvolvimentais próprias da infância, o receio da estigmatização, variáveis contextuais e a questionável validação dos transtornos mentais na infância justificam a resistência e a preocupação que profissionais têm ao fazer um diagnóstico psiquiátrico. Por outro lado, existe um consenso da necessidade de avaliação sistemática da criança, porque sumariza e ordena observações de clínicos, cria um corpo de pesquisa internacional em linguagem comum e guia estratégias universais de ajuda. Dessa forma, o diagnóstico psiquiátrico feito através de investigação exaustiva da condição psicossocial da criança por profissionais experientes pode trazer melhora considerável à sua saúde e bem-estar. Os problemas associados ao diagnóstico psiquiátrico justificam a cautela que se deve ter ao fazêlo, mas seus benefícios mostram a utilidade de sua aplicação.
Palavras-chave: diagnóstico, psiquiatria, criança.
ABSTRACT
Psychiatric diagnosis in childhood is still a controversial issue in Clinical Psychology. Developmental issues typical of childhood, fear of stigmatization, contextual variables and questionable validation of mental disorders in childhood justify the resistance and worry of professionals about making a psychiatric diagnosis. On the other hand, there is a consensus about the need for systematic evaluation of children, because it summarizes and orders clinical observations, creates a body of international research in a common language and guides universal strategies of intervention. Therefore, the psychiatric diagnoses made by experienced professionals through exhaustive investigation of the psychosocial condition of children can bring considerable improvement to their health and well-being. The problems associated with the psychiatric diagnosis justify the caution that one should have, but its benefits show the usefulness of its application.
Key words: diagnosis, psychiatry, child.
Fazer um diagnóstico psiquiátrico é sempre tarefa desafiadora. A maioria dos transtornos psiquiátricos é diagnosticada pela combinação e intensidade da manifestação de sinais, ou seja, achados objetivos observados pelo examinador (por ex., taquicardia, hiperatividade motora); de sintomas, queixas subjetivas apresentadas pelo indivíduo afetado (por ex., ansiedade, palpitação) (American Psychiatric Association, 2002; Kaplan et al., 1997); e prejuízo funcional. Mesmo com o auxílio de sistemas de classificação, como o DSM-IV-TRTM (American Psychiatric Association, 2002) e a CID-10 (Organização Mundial de Saúde, 1993), há frequente sobreposição de sintomas, não há testes laboratoriais com diagnósticos conclusivos, a experiência da doença psiquiátrica tem sempre aspectos subjetivos e individuais (Papolos e Papolos, 2007) e há sempre consequências potencialmente indesejáveis do "rótulo psiquiátrico".
O diagnóstico psiquiátrico na criança apresenta ainda maior complexidade que o diagnóstico no adulto. Primeiro, porque seus problemas emocionais se expressam por meio de comportamentos desadaptados e desviantes, raramente associados pela própria criança a um sofrimento interno (Bird e Duarte, 2002). Segundo, porque alguns comportamentos podem ser considerados normais em uma determinada idade, mas sugerem problemas de saúde mental em outra: sintomas como dificuldades na regulação de impulsos, dificuldade em tolerar frustração, dificuldade em sustentar a atenção, medo, dificuldades na fala são normais em crianças pequenas, mas podem ser indicadores de problemas de desenvolvimento em idade um pouco mais avançada (Papolos e Papolos, 2007). E terceiro, porque os critérios para diagnóstico de alguns transtornos mentais na infância são derivados daqueles para adultos, e pouca atenção em pesquisa tem sido dada à validação desses critérios. Ou seja, não apenas os limites entre o normal e o patológico são menos passíveis de distinção em crianças, mas também aqueles entre um diagnóstico e outro (Perring, 1997). Um diagnóstico competente nessa faixa etária demanda, portanto, avaliação criteriosa.
Baseando-se em pesquisas sobre prevalência de sintomas psiquiátricos em nível clínico e em estudo de comorbidades psiquiátricas na infância e na adolescência, o objetivo do presente estudo é (i) enumerar e discutir as dificuldades e limitações do uso do diagnóstico psiquiátrico em crianças e adolescentes e (ii) justificar o seu uso, a partir de sua importância em pesquisas epidemiológicas, e seus aspectos facilitadores na prática clínica e seus benefícios aos pacientes.
Prevalência de transtornos mentais na infância e adolescência
A prevalência de transtornos mentais em crianças e adolescentes não é tão bem documentada como é para adultos. A partir dos anos oitenta, estudos que investigavam transtornos psiquiátricos clínicos passaram a usar estratégias sistemáticas para minimizar o impacto de erros metodológicos: critérios de diagnóstico padronizados, para evitar ampla variação de critérios, e entrevistas de diagnóstico estruturadas, para evitar variação na informação coletada (Roberts et al., 1998).
Roberts et al. (1998) analisaram cinquenta e dois estudos que estimavam a prevalência geral de transtornos psiquiátricos entre crianças e adolescentes. As taxas variaram de 1% a 51%, dependendo da metodologia utilizada. Ao agruparem em quatro faixas etárias distintas, as taxas de prevalência média foram de 10,2% para a pré-escola, 13,2% para a fase escolar e 16,5% para a adolescência. Em estudos que incluíam múltiplas idades, a taxa média foi de 21,9%. Usando a Escala Comportamental de Rutter, as taxas ficaram em torno de 12 %; fazendo uso de escalas para transtornos afetivos e esquizofrenia, 14%; e usando a entrevista estruturada DISC (Diagnostic Interview Schedule for Children) ou critérios do DSM-III-R, as taxas foram de 20-25%.
Estudos nos Estados Unidos estimam que cerca de 20% de crianças e adolescentes sofram de prejuízos funcionais médios, e que 5-9% sofram de transtornos emocionais graves (U.S. Department of Health and Human Services, 1999). Na Grã-Bretanha, a taxa estimada é de 9,7% (Fleitlich-Bilyk e Goodman, 2004). Em países em desenvolvimento, apesar de limitações metodológicas, taxas entre 10-20% foram apontadas em um estudo de revisão bibliográfica (Hackett e Hackett, 1999). No Brasil, estudos recentes indicam taxas de prevalência de problemas de saúde mental em crianças que variam de 7 a 20% (Cury e Golfeto, 2003; Ferrioli et al., 2007; Fleitlich-Bilyk e Goodman, 2004; Paula et al., 2007).
Fazendo uso da CBCL e/ou Youth Self Report, Paula et al. (2007) encontraram, num estudo no município de Embu, uma taxa de prevalência de problemas de saúde mental de 24,6%, desconsiderando prejuízo funcional global, e de 7,3% com prejuízo funcional global (casos que necessitavam de tratamento). Cury e Golfeto (2003), usando o Strengths and Difficulties Questionnaire (SDQ) em crianças de seis a onze anos, na cidade de Ribeirão Preto, encontraram uma taxa de 18,7%.
Em um estudo recente em Taubaté, São Paulo, com crianças de sete a catorze anos, utilizando o instrumento Development and Well-Being Assessment (DAWBA), constatou-se que 12,7% da amostra apresentou pelo menos um transtorno psiquiátrico. Os transtornos disruptivos (oposicional e de conduta) foram prevalentes, correspondendo a 7% da amostra, seguidos dos transtornos de ansiedade, 5,2%, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade 1,8% e depressão, 1%. Vinte e quatro por cento apresentaram algum tipo de comorbidade, sendo as mais comuns entre os transtornos de hiperatividade e transtornos disruptivos e entre transtornos depressivos e de ansiedade. O aumento nas taxas de transtornos depressivos foi a única mudança significativa com o aumento da idade. Escolas públicas tinham taxas de prevalência substancialmente mais altas que escolas privadas. Transtornos oposicional e de conduta foram significativamente mais frequentes no meio urbano e transtornos de ansiedade no meio rural (Fleitlich-Bilyk e Goodman, 2004).
Segundo dados norte-americanos, nem todos os transtornos mentais identificados na infância e na adolescência persistem na vida adulta, mesmo assim a prevalência de transtornos mentais em crianças e adolescentes parece ser semelhante à de adultos. Enquanto alguns transtornos continuam na vida adulta, uma fração de crianças e de adolescentes se recupera e uma fração de adultos desenvolve transtornos mentais somente na vida adulta, indicando diferenças na natureza e na distribuição dos transtornos mentais na infância e na vida adulta (U.S. Department of Health and Human Services, 1999).
Transtornos mentais com início na infância e adolescência
O DSM-IV-TRTM e a CID-10 listam os transtornos mentais que geralmente são diagnosticados pela primeira vez na infância ou na adolescência (America Psychiatric Association, 2002; Organização Mundial de Saúde, 1993). Segundo o DSM-IV, o oferecimento de uma seção separada para transtornos que usualmente são diagnosticados pela primeira vez na infância ou na adolescência serve apenas por razões práticas e não pretende sugerir a existência de qualquer distinção clara entre transtornos da "infância" e da "idade adulta". Muitos transtornos desse grupo podem apresentarse de uma forma residual ou atenuada na fase adulta. Por outro lado, muitos transtornos não inclusos nesse grupo e que têm seu início durante a infância e adolescência são listados separadamente. Para a maior parte dos transtornos, um conjunto de critérios é oferecido, aplicando-se a crianças, adolescentes e adultos, com as possíveis variações quanto à idade, descritas à parte.
Outra forma comum de classificação de "diagnósticos" na infância corresponde aos chamados transtornos internalizantes e transtornos externalizantes. Os transtornos internalizantes englobam os transtornos de ansiedade e de humor. Eles são caracterizados pela experiência repetida de intensa dor, internalizada ou emocional, ou seja, descrevem sentimentos ou problemas vivenciados internamente pela criança, ainda que não sejam aparentes aos outros. Sentimentos associados a essas condições podem ser de ansiedade, medo irracional, depressão, tristeza, baixa autoestima e sentimento de desvalia. Depressão e ansiedade frequentemente coocorrem em crianças. Esse grupo de transtornos inclui transtornos de ansiedade de separação, de ansiedade generalizada, de estresse pós-traumático, obsessivo compulsivo, depressivo maior, distimia, bipolar e ideação suicida (Jensen, 2006; Liu, 2004; Mash e Bark-ley, 2003).
Os transtornos externalizantes em crianças são, em geral, dirigidos aos outros e manifestados por padrões de comportamento desafiador, desobediente, hostil, agressivo, mentiroso, antissocial, impulsivo, desatento e hiperativo, inapropriados para a idade (Jensen, 2006; Liu, 2004). Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtorno de conduta (TC) e transtorno desafiadoroposicional (TDO) são categorias diagnósticas que caracterizam comportamentos externalizantes, as quais parecem ter pior prognóstico que os internalizantes, assim como maior resistência à maioria das formas de intervenção (Hinshaw, 1992).
Comorbidade
Apesar de a categorização entre comportamentos externalizantes e internalizantes ser usual, essa dicotomia não é nem perfeita, nem completa. A coocorrência entre ambas as categorias é estatisticamente evidente (Angold et al., 1999). Crianças com problemas de comportamento internalizante também podem ter um impacto negativo nos outros, incluindo irmãos, pais, pares e professores. Da mesma maneira, aquelas com comportamento externalizante podem não apenas afetar negativamente seu ambiente externo, como também apresentarem intenso sofrimento interno. Um exemplo disso é que crianças agressivas podem experienciar forte ansiedade, assim como crianças deprimidas podem exibir graves problemas de conduta (Liu, 2004).
Na realidade, comorbidade parece ser mais regra do que exceção. A atenção dada ao tema cresceu exponencialmente em todas as áreas. Comorbidade geralmente se refere à manifestação de duas ou mais desordens que ocorrem mais frequentemente juntas que separadamente. Ela tem sido reportada em psicopatologia infantil em mais de 50% dos casos em amostras da comunidade e com taxas ainda mais altas em amostras clínicas. As comorbidades mais comuns na infância e na adolescência incluem TDAH e TC, transtornos depressivos e ansiedade e transtornos autistas e retardamento mental (Mash e Barkley, 2003).
O termo "comorbidade", no entanto, é foco de considerável debate. Alguns pesquisadores defendem que a terminologia é inadequada, porque não distingue a manifestação de condições orgânicas da medicina (doenças) de condições latentes de saúde mental (síndromes e transtornos). Outros autores apontam que uso dos termos "comorbidade", "coocorrência" e "covariância" reflete apenas uma disputa semântica (Mash e Barkley, 2003).
A Saúde Mental se ocupa de transtornos, ou seja, síndromes comportamentais e psicológicas que são desvios do padrão de normalidade, que são bem menos estabelecidos que fisiopatologias. Isso é uma importante distinção, porque comorbidade entre transtornos pode indicar problema no sistema de classificação, e não uma associação entre duas doenças. O fato de os pesquisadores não lidarem ainda com doenças claramente validadas não quer dizer, no entanto, que o estudo de comorbidades em Saúde Mental não seja relevante. Ao contrário, entender a presença de comorbidade entre condições psiquiátricas oferece um meio de corrigir e validar a nosologia psiquiátrica. O ponto-chave é que o estudo de comorbidade não depende da existência de entidades de doenças bem validadas, mas pode ser particularmente informativo no caso de transtornos pouco validados (Angold et al., 1999).
Comorbidade/associação tem característica central nas desordens psiquiátricas, já que aumenta potencialmente o comprometimento funcional do indivíduo (Egger e Angold, 2006; Poeta e Neto, 2004). Elevadas taxas de comorbidade levam a diferentes hipóteses, que podem coexistir: (a) maior vulnerabilidade da amostra; (b) pobre validação entre os transtornos da infância; (c) viés do aplicador do instrumento; e (d) inflação das taxas de prevalência e associação pelo instrumento utilizado.
Amostras clínicas contêm uma taxa desproporcional e inflada de comorbidade, porque é maior a probabilidade de crianças com essa condição serem referidas a serviços de saúde mental (Mash e Barkley, 2003). Os casos em que os pais procuram tratamento s especiais para os filhos, em geral, apresentam sintomatologia mais severa, maior prejuízo, e são provenientes de famílias que sofrem mais o impacto dos problemas da criança (Angold et al., 1999).
As altas taxas de comorbidade/associação podem indicar problemas no atual sistema de classificação, como pobre validação entre os transtornos psiquiátricos na infância e sobreposição/emaranhado de sintomas de diferentes transtornos. Uma das críticas feitas aos sistemas é que alguns sintomas, como "irritabilidade", "dificuldade de concentração", "problemas de sono" podem ser identificados em duas ou mais categorias diagnósticas distintas como depressão, TDO, hiperatividade e ansiedade. Em determinados casos, a tarefa de diferenciar em qual categoria diagnóstica determinado sintoma se enquadra (como por exemplo, "irritabilidade", se em transtorno depressivo maior ou em TDO) encontra uma série de dificuldades clínicas. Parte das críticas se refere à ideia de que a sobreposição de sintomas seria "construída" por um sistema diagnóstico falho.
Outra hipótese se refere ao possível viés do aplicador do instrumento. Muitas vezes clínicos são sujeitos a vieses na coleta de informações e nas tomadas de decisões: as elevadas taxas seriam, portanto, um artefato resultante destes problemas metodológicos e vieses. No entanto, mesmo em pesquisas que faziam uso de autorrelato de pais, professores, crianças e de outros profissionais, as taxas de prevalência de comorbidade em amostras clínicas permaneciam altas nos diferentes relatos, excluindo a hipótese de que apenas o viés do aplicador "produziria" o fenômeno da comorbidade (Angold et al., 1999).
A quarta hipótese faz menção à ideia de que o instrumento de avaliação utilizado infle as taxas de comorbidade. Entrevistas estruturadas são mais sensíveis, usam limiares diagnósticos mais baixos e, consequentemente, mais crianças atingem o critério de diagnóstico (Roberts et al., 1998). Essas entrevistas podem inflar taxas de prevalência e de comorbidade porque identificam casos subclínicos, ou seja, casos em que crianças têm problemas substanciais, que requerem intervenção, mas não cumprem critérios diagnósticos operacionalizados do DSM-IV-TRTM (Goodman et al., 2000), sendo essa uma das principais críticas ao sistema de classificação diagnóstica atual.
Limitações e benefícios que justificam o uso das categorias diagnósticas segundo os sistemas de classificação atuais
Clínicos e pesquisadores continuamente expressam preocupações com o diagnóstico psiquiátrico na medida em que os sistemas de classificação atuais, CID-10 e DSM-IV-TRTM, são mais categóricos e menos dimensionais, restritivos e estáticos, de natureza ateórica, fragmentam excessivamente os quadros clínicos e não identificam casos sub-clínicos. Manuais nosológicos perdem muitas vezes contextualização dos sintomas e das "idiossincrasias" individuais da doença mental (Lopes et al., 2006) e são pouco sensíveis a questões próprias do desenvolvimento da criança.
Existe também uma preocupação generalizada das consequências do "rótulo" psiquiátrico. Em primeiro lugar, ele pode dar um poder desproporcional às instituições médicas e educacionais, desconsiderando variáveis de contexto da família, da rede de ensino e da cultura. Ou seja, medicalizam questões sociais (D'Abreu e Marturano, 2011), centrando o problema no indivíduo e perdendo a sua dimensão coletiva. Em segundo lugar, o diagnóstico clínico pode ser mantenedor de problemas, criando, segundo Lopes et al. (2006), um sentido tautológico na medida em que o indivíduo interpreta emoções e comportamentos comuns e próprios do desenvolvimento como representação e ratificação do transtorno. E em terceiro, o "rótulo" pode trazer efeitos prejudiciais à autoimagem da criança e à forma como os outros a percebem e a ela reagem.
No entanto, ainda com a contínua falta de consenso da definição, método, integração e utilização dos dados, existe consenso quanto à necessidade de um sistema coerente de classificação que guie teoria, pesquisa e prática. Historicamente, a classificação de doenças, ainda que com limitações, teve funções de organização, descrição e análise da distribuição de patologias numa determinada população (Laurenti, 1994). Com um modelo importado das ciências naturais, categorizações provêm nomenclatura e fornecem base para a busca de informações (Berrios, 2008). Dessa forma, parece haver concordância entre profissionais de saúde mental da necessidade de avaliações sistemáticas de crianças em risco, não apenas pelo diagnóstico em si e pelos aspectos epidemiológicos, mas pelos desdobramentos que uma avaliação adequada representa para a criança e sua família.
Estabelecer o diagnóstico de forma precisa tem implicações importantes de ordem prática. O diagnóstico dá "forma" a um conjunto de sintomas que se sobrepõem, não para dar um rótulo psiquiátrico à criança (Pelegrine e Golfeto, 1998), mas para auxiliar no seu tratamento (Grillo e Silva, 2004). Um dos principais objetivos dos sistemas de classificação é o incentivo à pesquisa (Matos et al., 2005): o diagnóstico psiquiátrico auxilia a sumarizar e a ordenar observações; guia estratégias de tratamento de maneira mais universal; põe os clínicos em contato com um pré-existente e relevante corpo de informações clínicas e de pesquisa e facilita estudos etiológicos, epidemiológicos e de tratamento (Mash e Barkley, 2003). Ademais, ele facilita a comunicação entre profissionais com diferentes formações. Uma pesquisa nacional mostrou que em torno de 65% dos psiquiatras brasileiros reportavam que o sistema de classificação psiquiátrico era uma ferramenta confiável de comunicação entre clínicos (Banzato et al., 2007).
Um clínico que entra em contato com uma criança diagnosticada com determinada desordem, por exemplo, já coleciona uma série de informações a respeito do transtorno e pode se deixar guiar por estratégias consideradas como mais eficazes pela pesquisa científica. O mesmo comportamento pode corresponder a categorias diagnósticas diferentes e requer, portanto, tratamento diferenciado. Rohde et al. (2004) apontam, por exemplo, que dificuldades de seguir instruções pode sugerir desatenção (nos casos de TDAH) ou comportamento de oposição a pais e professores (nos casos de TDO). Um diagnóstico preciso fornece diretrizes distintas de tratamento para ambos os transtornos diagnosticados e é fundamental para a eficácia da intervenção terapêutica. Perring (1997) dá o exemplo da criança em tratamento por TDAH, que tem a habilidade de concentração aumentada, torna-se menos disruptiva e apresenta menor número de conflitos em casa e na escola. Também Serra-Pinheiro et al. (2004), em estudo de revisão, mostraram que a escolha da terapia específica ao diagnóstico de TDO mostrou resposta efetiva na remissão de sintomas.
Estudos evidenciam que a maioria das crianças no Brasil não recebe tratamento em saúde mental adequado, porque nem sequer os problemas são reconhecidos como problemas clínicos (Fleitlich e Goodman, 2000). Transtornos na infância podem ter evolução crônica, sobretudo nos casos de comorbidades, e apresentam forte impacto social, familiar e educacional (Moraes et al., 2007). São inúmeras as consequências adversas na vida adulta: internações psiquiátricas, uso de medicação psicotrópica, abuso de álcool e drogas, comorbidades psiquiátricas e comportamento antissocial grave (D'Abreu e Marturano, 2010). O transtorno de conduta com início na infância, por exemplo, tem prognóstico consideravelmente mais grave se comparado ao transtorno de conduta com início na adolescência (Moffitt, 1993). O padrão de ciclagem e evolução crônica do transtorno bipolar com início na infância também traz graves prejuízos ao desenvolvimento infantil, com associação a comportamentos de risco, problemas escolares, taxas de suicídio e recorrentes crises (Moraes et al., 2007).
É crucial a identificação precoce de sintomas psiquiátricos. Um diagnóstico preciso tem importantes implicações em esforços de prevenção e tratamento, assim como no entendimento da etiologia de uma psicopatologia. Ele possibilita prever consequências específicas para aquele transtorno (Fergusson et al., 1993; Fergusson et al., 1997), desenvolver tratamentos mais assertivos e diminuir os riscos para a desadaptação psicossocial na adolescência (Ferreira, 2000). Também possibilita uma melhor orientação dos pais para que desenvolvam expectativas mais adequadas em relação à criança e obtenham mais informação a respeito do prognóstico (Grillo e silva, 2004), além de oferecer pistas para a implementação de políticas públicas voltadas para a saúde mental da criança.
Conclusões
Ainda que haja a necessidade de aprimoramento da validação das categorias diagnósticas dos transtornos psiquiátricos da infância e da adolescência, pesquisas relativas ao tema têm feito um enorme avanço nas últimas décadas. Existe forte base empírica que apoia os sistemas classificação diagnóstica e é possível que modelos híbridos, que integrem aspectos categoriais e dimensionais, venham no futuro responder à demanda atual dos clínicos em saúde mental (Matos et al., 2005). Perring (1997) ressalta que as preocupações quanto ao diagnóstico deve ser uma boa razão para que os clínicos sejam cuidadosos em como fazê-lo, mas seus benefícios devem ser uma forte razão para não evitá-lo. O diagnóstico deve ser feito com responsabilidade e, sobretudo, por profissionais com profundo conhecimento do desenvolvimento de psicopatologias e com investigação exaustiva da condição psicossocial da criança (considerando aspectos pessoais e contextuais). A presença e o número de sintomas, sua frequência e o prejuízo funcional que causam são critérios importantes de diferenciação dos casos clínicos e não clínicos (para maiores detalhes, ver Rohde et al., 2004). Profissionais pouco treinados podem fazer uso do jargão psiquiátrico de forma errônea e abusiva, podem negligenciar características do meio e desconsiderar aspectos próprios do desenvolvimento da criança. O uso dos critérios diagnóstico sem cautela ou sem experiência clínica é, portanto, ameaçador porque priva pais e filhos dos benefícios que um diagnóstico bem feito pode trazer.
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Submetido: 08/10/2011
Aceito: 23/03/2012
1 Agradecimento pelo apoio CAPES. O texto faz parte da dissertação apresentada à Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre. Área de Concentração: Saúde Mental.