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Contextos Clínicos
versão impressa ISSN 1983-3482
Contextos Clínic vol.5 no.1 São Leopoldo jul. 2012
https://doi.org/10.4013/ctc.2012.51.05
ARTIGOS
Mulher, trabalho e família na cena contemporânea1
Woman, work and family in contemporary life
Diogivânia Maria da Silva; Albenise de Oliveira Lima
Universidade Católica de Pernambuco. Rua do Príncipe, 526, 50050-900, Recife, PE, Brasil. diogivania@hotmail.com, albenise@unicap.br
RESUMO
Com o exercício nos espaços público e privado, a mulher brasileira aponta-nos para um novo esboço do feminino marcado por elevados níveis de cobranças pessoais, profissionais, sociais e emocionais. Tomando a configuração social como cenário, este artigo se propõe a analisar, a partir de um estudo de caso, as interações entre as múltiplas atividades desenvolvidas pela mulher (cuidado com a casa, filhos e trabalho remunerado) e as possíveis repercussões sobre a sua saúde. A participante do estudo é uma mulher de 30 anos, casada, com filhos e exercendo a profissão de policial civil, residente na cidade do Recife. Por um lado, os resultados mostram que ser mulher "multi", na atualidade, acarreta satisfação e realização em tudo o que ela faz, mesmo que o preço seja sofrimento e sobrecarga emocional. Por outro lado, o peso de tantas responsabilidades termina por manifestar sérios danos a sua saúde.
Palavras-chave: trabalho feminino, qualidade de vida, saúde da mulher.
ABSTRACT
Brazilian woman, in public and private spaces, points to a new sketch of femininity marked by high levels of personal, professional, social and emotional demands. Considering the configuration of such scenario, this paper intends to analyze in a case study the interactions of multiple activities developed by women (house and children caring, paid work) and its possible repercussions on health. The participant is a married, 30 years old woman with children, who works as a civil police officer in Recife city. Results show that being a "multi" woman in contemporaneity leads to satisfaction and self-realization in everything she does, even though there is a price to be paid regarding suffering and emotional overload. On the other hand, this amount of responsibility ends up causing serious health issues.
Key words: work feminine, quality life, woman health.
Mulher, carreira e família: interfaces
Segundo pesquisas publicadas por Diniz (2004), o acúmulo de atividades desempenhadas pela mulher constituiu um importante fator de liberdade, mas também de risco. Por um lado, o trabalho remunerado possibilitou autonomia e permitiu à mulher uma maior participação no consumo de bens e de serviços. Por outro lado, o excesso de atividades culminou numa maior vulnerabilidade da sua saúde, especialmente a saúde mental. Nessas pesquisas, Diniz aponta três fatores principais de vulnerabilidade para a mulher atual: o empobrecimento da população feminina, a violência, e as múltiplas jornadas de trabalho. Esse acúmulo de atividades representa riscos e prejuízos, e é fruto dos estereótipos e papéis atribuídos à mulher (Couto-Oliveira, 2007).
De acordo com Rocha-Coutinho (2003, p. 57), embora se encontre um número expressivo de mulheres no mercado de trabalho, a mulher atual - independente de sua condição socioeconômica - "ainda oscila muito entre os dois modelos femininos a que esteve exposta: a "boa" mãe, que sobrepõe a família a qualquer outra atividade [...], e a profissional, competente e independente".
Desse modo, apesar dos discursos modernizantes encontrados nas mulheres da atualidade, percebe-se uma cobrança demasiada, em relação a si própria e às suas vidas familiares. Seguindo essa linha de raciocínio, Rocha-Coutinho (2003, p. 54) afirma: "parece, assim, que, ainda hoje, é na interseção carreira-família que vão se configurar os maiores impasses enfrentados interna e externamente por grande parte das mulheres em seu percurso singular de atuação nos mundos público e privado".
Pensando nessas questões que acompanham a mulher, a Fundação Perseu Abramo (2001) realizou pesquisa com mostra representativa da população feminina. Nela, analisouse a mulher brasileira nos espaços publico e privado - como vivem e o que pensam as brasileiras no início do século XXI. Observaram-se os modos de viver da mulher atual, e foi traçado, entre outros aspectos, um perfil sócio-demográfico da mulher brasileira: as percepções de suas condições e problemas atuais; seus conceitos acerca do feminino e do masculino; sua participação na cultura e na política; suas expectativas e nível de satisfação com a vida; o trabalho doméstico e o remunerado.
Nessa pesquisa, os papéis de mãe e esposa apareceram em menor frequência no que tange às fontes de realização feminina, pois, segundo elas, o acúmulo de responsabilidades na criação dos filhos, e a falta de autonomia decorrente do vínculo com o marido representam alguns pontos negativos.
Dificuldades e excesso de responsabilidades, atribuídas principalmente à dupla jornada de trabalho, o doméstico e o remunerado, são lembrados por 11% como definidores da situação atual da mulher. Outros componentes negativos apontados são as discriminações no mercado de trabalho, tanto de funções como de salários e o preconceito social que lhes reserva discriminações e um lugar inferior em relação aos homens. E uma maior exposição à violência (Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 5).
Chama atenção o conflito de ideias nessas mulheres: ao mesmo tempo em que apontam as duplas jornadas de trabalho e a responsabilidade com os filhos como uma das situações mais negativas atribuídas à mulher, deposita na possibilidade de maternagem uma realização simbólica de seus melhores aspectos. Como diz Priore (2001), nota-se, nesses discursos, uma coexistência de novas e antigas for-mas de atuação (identidades!) permeadas de prazer e de culpa.
Outro dado verificado na pesquisa da Fundação Perseu Abramo (2001) foi que, se pudessem escolher livremente, cerca de metade das mulheres optariam por ter uma profissão, trabalhar fora, e dedicar menos tempo às atividades domésticas e da família. Todavia, 38% delas prefeririam, se fosse possível, dedicar-se mais às atividades domésticas e à família, deixando o trabalho fora de casa em segundo plano.
Sobre a divisão das tarefas domésticas com os companheiros, 87% delas concordam que deveria haver maior participação masculina. E, na existência de filhos pequenos, aparece uma contradição, pois 86 % delas permaneceriam em casa se pudessem, enquanto o homem trabalharia fora e os filhos cresciam. Esse desejo, segundo a mesma pesquisa, inviabilizaria a manutenção econômica da família.
De todas as regiões brasileiras, a Região metropolitana do Recife, apresenta uma peculiaridade com o maior percentual de famílias chefiadas por mulheres e com ausência de companheiro.
Da autonomia para o excesso de atividades
O acréscimo de papéis sociais atribuídos à mulher tem fertilizado um interessante território em sua subjetividade. Segundo análises realizadas por Hall (2001 p. 9), todo esse acúmulo gerou "um tipo diferente de mudança estrutural [...] fragmentou-se as paisagens culturais de classe, gênero e sexualidade, que, no passado, nos tinha fornecido sólidas localizações como indivíduos".
Dessas mudanças ocorridas, percebe-se também uma reestruturação no campo das psicopatologias. E, dentre as patologias mais associadas ao esgotamento físico e mental encontramos o "burnout" e o estresse.
Burnout é a síndrome que deve o nome ao termo inglês "to burn out", que significa "queimar por completo", e designa aquilo que deixou de funcionar por exaustão energética. Caracterizada por imensa dificuldade e esgotamento, emocional e físico, pode chegar a uma sensação permanente de cansaço e frustração. Também se encontram presentes oscilações de humor, distúrbios do sono e dificuldade de concentração, muitas vezes combinados a outros sintomas de ordem física e emocional (Kraft, 2006).
Essa conceituação de Kraft (2006, p. 62), sobre Burnout enquanto um estado de esgotamento físico e mental relaciona-se diretamente aos conceitos desenvolvidos por Dejours (1992) acerca das profissões de risco, que se caracterizam por toda atividade que expõe os trabalhadores a riscos nas suas integridades orgânicas e emocionais.
Para Dejours (1992), as psicopatologias do trabalho avançam como uma possibilidade de resposta aos novos desafios pessoais, familiares e culturais, que tecem circuitos cada vez mais interligados um ao outro. Em Perrot (2004), essa configuração identitária produziu e revelou na sociedade um processo de fusão e mútua ocupação do feminino, possibilitando realizações variadas tanto no campo material quanto no simbólico.
Assim, podemos acrescentar a essa junção, privado versus público, uma discursividade paradoxal: ao passo que a vida pública foi fruto de uma luta e da conquista feminina, por vezes o "casamento" entre as duas dimensões entra em conflito, não raramente culminando em crises de sentido existencial. Nesse aspecto, Tavares e Irving (2007 p. 97) concordam ao refletir que "essas transformações, no campo das identidades, ocorrem através dos conflitos e da fragmentação, seja cultural, simbólica ou social".
Tomando essa configuração social como cenário, este artigo se propõe a analisar, a partir de um estudo de caso único, as interações entre as múltiplas atividades desenvolvidas por nossa entrevistada (cuidado com a casa, filhos e trabalho remunerado) e as possíveis repercussões sobre a sua saúde.
Método
Optou-se por estudo de caso único, considerando que, essa estratégia metodológica viabilizou o nosso interesse em realizar uma análise mais aprofundada do objeto de estudo, assim como de oferecer uma paisagem complexa e idiossincrática da nossa entrevistada.
Segundo Stake (2000), a escolha pelo estudo de caso deve preservar quatro aspectos: (a) delimitação (distinção entre fenômeno estudado e contexto); (b) integração (comunicação entre as variadas faces do estudo); (c) multidimensionalidade (realização de diálogos entre diversos contextos: físicos, sociais, familiares, psicológicos, entre outros); e (d) unidade (preocupação com a conservação da especificidade do caso). Stake (2000, p. 436), esclarece ainda que nessa modalidade de investigação, predominam "questões ou temáticas sobre relações complexas e de caráter multifacetado acerca de um objeto específico".
Participante
Renata2, 30 anos de idade, casada, mãe de três filhos, policial e residente na região metropolitana do Recife. No momento da pesquisa (2008), a participante desenvolvia múltiplas atividades (chegou a quatro jornadas de trabalho) e apresentava sérias complicações de saúde, tais como hipertensão, sudorese, angústia e ganho de peso: foram 50 quilos atribuídos aos "excessos de sua vida".
Produção do material qualitativo
O instrumento ao qual lançamos mão para acessar o universo da participante constituiu-se de duas entrevistas com roteiro semiestruturado, gravadas e transcritas. Partimos das seguintes questões: história da constituição da família, trabalhos e cuidados com a casa e filhos; responsabilidade econômica da casa; queixas sobre a saúde; se contava com a ajuda de redes de apoio para reduzir as cargas de trabalho.
Tratamento do material
Elegemos como procedimento de organização, descrição e análise da fala da entrevista da, a análise temática de conteúdo, de Minayo (1994). Essa autora conceitua, do ponto de vista operacional, a análise do conteúdo, como uma possibilidade de conhecer mais profundamente as comunicações para além de seus significados imediatos. Por isso, é uma técnica que visa a uma percepção mais aguçada dos conteúdos latentes.
Para o estudo de caso, apresentamos algumas etapas fundamentais dessa análise, dentre as quais destacamos a pré-análise e a análise. A pré-análise, se baseia numa leitura flutuante do material obtido. Para Minayo (1994, p. 201), "na fase pré-analítica determinam-se a unidade de registro (palavra-chave ou frase), a unidade de contexto ou sentido, os recortes, as categorizações e os conceitos mais gerais que nortearão a análise". Na sequência da exploração do material, chamada analítica, alcançam-se níveis mais aprofundados, realizando uma depuração e aprofundamento das falas transcritas.
Cuidados éticos
Para a realização do estudo de caso foram considerados os aspectos éticos em consonância com a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, a Declaração de Helsinki e o Código de Nurenberg para experimentação humana. O projeto da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Católica de Pernambuco sob o número 001/2009 (registro interno) e CAAE 0002.0.096.000-09.
O início do estudo: "dentro de um só cérebro, vários cérebros!"
Observamos como ponto característico de Renata uma necessidade de centralizar em si todas as atividades referentes ao funcionamento de sua família. Inicia seu diálogo conosco dizendo: "faço de um tudo", ao se referir às tarefas por ela desenvolvidas. Em destaque, nos reafirma sua sobrecarga ao dizer: "sou gerente administrativa e financeira da casa, vendedora e coordenadora de uma feira de artesanato".
Esposa e mãe de três filhos (duas crianças e um adolescente), ela nos revela que é muito doloroso delegar funções, o que só ocorre, em última análise, quando não há mais condições de, sozinha, "assumir seu cargo". Embora os filhos - quando requisitados - colaborem, ela só se permite pedir essa colaboração quando, metaforicamente e em tom irônico, admite que sem a ajuda deles "morreria". Contudo, essa ajuda é sempre dosada, já que uma de suas maiores preocupações é não sobrecarregar os filhos e o marido. Sobre o marido, ela o reconhece como uma pessoa "oba-oba", de apertar a mão e distribuir simpatia, "uma criatura adorável" e, imediatamente quando se compara a ele, sente-se como aquela que age, fala alto, e assume as duras responsabilidades, mesmo reconhecendo que "o preço pago seja muito alto" (sic). No entanto, parece que somente assim Renata assume um papel fundamental no grupo familiar e se realiza simbolicamente.
Embora admita suas variadas atribuições, seu discurso é entremeado por sentimentos de culpa, sobretudo quando se recorda do tempo em que os filhos eram pequenos e ela, por necessidade de trabalhar fora de casa, era "obrigada" - como ela mesma diz - a deixá-los sob a responsabilidade de outros cuidadores.
Os primeiros anos de vida dos seus filhos foram marcados, segundo Renata, por muito sofrimento e sentimento de culpa, pois Renata não administrava o fato de, como policial, oferecer apoio e segurança à sociedade e não ter a garantia de que seus filhos estariam bem cuidados. Outro fato agravante para ela foi o fato de ter exigido de seus filhos, mesmo sem querer, uma adaptação constante a novas empregadas, visto que Renata era bastante criteriosa na seleção, e no mínimo desconforto sinalizado pelas crianças ela logo se desfazia da ajuda e reiniciava sua luta na busca por outras cuidadoras, chegando ao número de 20 secretárias (babás) ao longo de doze anos.
Não podemos, entretanto, deixar de apontar que Renata considera e sempre considerou como sua principal e fundamental atividade o exercício da maternagem. Nesse sentido, sua cobrança de ser uma boa mãe era e é muito alta. Assim, teria Renata condições de permitir que seus filhos se vinculassem afetiva e maternalmente a alguém que não fosse apenas a ela? Vejamos o que diz a entrevistada sobre a estratégia que seu filho mais velho (e mais "apegado" à mãe) desenvolveu para resolver o impasse de tantas trocas: "talvez por isso [as mudanças] o mais velho aprendeu a nunca se apegar a elas (as babás), se adaptava bem, mas nunca se afeiçoava; ele era bandoleiro". Observa-se que não foi apenas Renata que lançou mão de estratégias para lidar com suas inseguranças e cobranças frente ao cuidado dos filhos, mas seus filhos, sobretudo o mais velho, assumem o "compromisso" de não se vincular afetivamente às babás, assegurando, dessa forma, lugares bem definidos dentro do grupo familiar.
Observamos, na história de Renata, o que Perrot (2004) analisa na sua obra "As mulheres ou os silêncios da história". Diz a autora que circunda a mulher contemporânea um tripé paradoxal que se sustenta na realização profissional; nas queixas sobre o acúmulo de atividades; e nas expectativas geradas com a maternidade. Esses três fatores correspondem historicamente a uma dita "identidade feminina". No caso de Renata, o exercício da maternidade, que é eterno, está acima de tudo o que faz, inclusive, acima da sua responsabilidade com o social, fazendo-a perceber-se egoísta. Assim ela nos fala:
Uma vez estava sem nenhuma empregada e levei os meninos pro quartel; houve a necessidade de levar os dois. Meus pais, na época, já tinham falecido. Tive que levar os dois meninos. Aí ela disse [a comandante]: esses meninos não podem vir para aqui não. Aí eu disse a ela: então me dê uma semana de folga até eu resolver, arranjar alguém, porque na minha cabeça não cabe eu dar segurança e não oferecer segurança aos meus inocentes, não ia deixar meus filhos de três e quatro anos sozinhos, a sociedade que perdoe, nesse lado eu sou egoísta, primeiro meus filhos. (grifo nosso).
Nota-se, na fala de Renata, o peso atribuído por ela a cada uma das atividades que desempenha, ainda que se identifique com sua profissão, é clara a decisão de que entre filhos e trabalho, os filhos estão em primeiro lugar.
Embora a modernidade assista à junção entre essas atividades, velhos e novos padrões de comportamento coexistem. E não raro, os sentimentos de impotência, culpa e cobrança surgem frente aos desafios de vida enfrentados por Renata, que se caracteriza como uma mulher múltipla e multifuncional, o que é ilustrado na seguinte fala: "quando eu morrer, viu, vou doar meu cérebro e vão descobrir que dentro dele há vários outros cérebros".
No tocante à identidade profissional, observamos a presença de sentimentos ambíguos e conflituosos. Se, por um lado notamos Renata identificada e realizada com sua profissão, quando diz, em vários momentos, "meu trabalho é lindo, me identifico demais com ele", "eu gosto do que faço, ganho meu dinheiro honestamente". Por outro, vemos esse mesmo trabalho representar fonte de variados sentimentos negativos e com evidentes repercussões sobre sua saúde, entre eles, estresse, ansiedades e decepções, mostrados nas seguintes falas: "queria mudar os procedimentos", "me sinto com nojo e revoltada". Tratam-se de breves demonstrações das muitas indignações apontadas por ela. Tais conflitos colocam-na em uma angústia constante, desencadeada, de um lado, pela realização que o trabalho promove, mas também, em certos momentos, revela-se numa desilusão generalizada, e se amplia a todos os aspectos de sua vida. "Minhas ideologias foram todas colocadas no chão". Esse pronunciamento se configura num questionamento bastante dramático para a vida de Renata, a ponto de ela se perguntar "se vale a pena ou não ser honesta, trabalhadora". Complementares e contraditórios, o que está em jogo nessa identificação versus decepção é o desmantelamento de uma ideologia face à realidade encontrada, aquilo que Renata apreendia como fundamental. Suas ideologias de trabalho somam-se a uma estrutura laboral que não corresponde às expectativas e desejos dela em cumprir seu papel profissional com dedicação e zelo. O conflito surge da distância imensa entre suas possibilidades reais e ideais.
No tecer das relações de trabalho, advertenos Veronese (2007) que as pessoas entrelaçam aspectos variados de vida pessoal, social, familiar. E, em certas situações, o sofrimento emerge em função do choque entre a "história individual, portadora de projetos, de esperanças e de desejos, e uma organização do trabalho que os ignora" (Veronese, 2007, p. 10). Como já mencionamos, entre os maiores conflitos enfrentados por Renata está o impacto entre os "teceres" de sua vida pessoal, familiar e profissional.
Segundo coloca Dejours (1994, in Veronese 2007), o trabalho deveria corresponder ao espaço potencial que as crianças encontram em seus jogos e brincadeiras, ou seja, o trabalho representaria uma fonte rica de elaboração subjetiva das ansiedades e angústias no decorrer da vida. Diz o autor:
É na atividade laboral, ao buscarem-se estratégias para lidar com o sofrimento, que se revive a esperança de encontrar um caminho criativo e com um sentido social útil e adequado. É aqui que o "teatro" do trabalho cumpre uma função similar ao jogo infantil; ali investem-se afetos e capacidades de aprendizagem (Dejours, 1994, in Veronese, 2007, p. 10).
Renata, por sua vez, embora reconheça pontos de positivação e identificação com sua profissão, não encontra nela um apoio necessário e suficiente para uma realização laboral satisfatória. Assim ela nos fala: "meu trabalho é lindo, e tenho orgulho dele, mas que nele você é muito humilhado, é"; essa ambiguidade geradora de conflitos faz com que ela "entre em parafuso, fique desnorteada" (sic).
Evidencia-se, com a unidade anterior, uma relação estreita na terceira unidade de sentido: repercussões sobre a saúde, pois é pelo fato de Renata não encontrar elaboração psíquica dos sofrimentos decorrentes de sua relação com o trabalho, que diversas manifestações patológicas têm surgido em sua vida, as quais ela expressa da seguinte maneira: "essas preocupações [inclusive o trabalho] me causam mil e uma alterações [...] pressão alta, engulo sapos demais e tem horas que fico cheia".
Outra alusão feita por ela é que a cobrança não é apenas profissional, mas também, pessoal e familiar. Essas questões terminaram por lhe causar obesidade e, nos termos utilizados por Renata, identificamos um sobrepeso nos níveis objetivos e subjetivos, ou seja, a obesidade expressa direta e indiretamente os incômodos enfrentados: "Hoje quem corre atrás de mim é o bandido. Com esse meu peso [ ...] (pausa). Estou com sobrepeso, gorda mesmo, preciso perder os 50 quilos que engordei, também com tanta coisa pra dar conta tinha que ficar larga, pra caber tudo dentro de mim".
Entre os muitos desafios a serem enfrentados por Renata, os efeitos negativos da sobrecarga de trabalho assumiram, durante a entrevista, o mais relevante dos assuntos tratados por ela. "A cobrança atira por todos os lados", assim ela nos diz. Entretanto, ela não estabelece uma relação entre essa multiplicidade de tarefas e o seu preocupante estado de saúde. Chegou ao limite de ter sérias complicações, pois, como disse seu médico, havia risco de infarto ou acidente vascular cerebral. Apresenta discursos por vezes contraditórios, tais como: "meu trabalho é minha saúde mental", para logo em seguida enunciar "não posso expressar o sufoco [...] aquela suadeira".
Cabe considerar, portanto, que Renata não encontra em sua vida uma rede de proteção e ajuda consistente. Nem mesmo a recomendação médica de que ela deveria procurar ajuda psicológica fora acolhida nem reconhecida como real necessidade. O exame realizado acerca de sua saúde é reconhecido por ela como "probleminhas, pequenininhos, que resolve rapidinho". Estaria tudo no diminutivo, como um recurso encontrado por ela para seguir sua vida sem sucumbir aos seus problemas de saúde, cada vez maiores?
A negação do seu estado de saúde, suas insatisfações, assim como certos procedimentos do trabalho parecem ter assumido uma saída estratégica para lidar com seus desconfortos, e assim ir administrando seu mal-estar. As consequências desse sofrimento são largamente discutidas e refletidas pela literatura, a qual aponta os efeitos cumulativos das múltiplas atividades reverberadas em severos prejuízos à saúde da pessoa (Diniz, 2004; Couto-Oliveira 2007; Gomes, 2003).
Apesar de Renata sofrer, ela também se vangloria com a multiplicidade de tarefas e "cérebros" (sic) que possui. Afinal, ela demonstra, através de todos os espaços de sua vida, a intensidade e o excesso de que vem se ocupando e, conforme ela mesma reflete está "com sobrepeso, gorda mesmo, preciso perder os 50 quilos que engordei, também com tanta coisa pra dar conta, tinha que ficar larga, pra caber tudo dentro de mim".
Renata reconhece externamente, com essa afirmativa, que "necessita" revisitar seu cotidiano e reavaliar seu funcionamento perante os acontecimentos de sua vida. Mesmo "que a passos de tartaruga", o primeiro passo foi dado, e quem sabe essa inquietação possibilite a instauração de uma nova fase na vida de Renata?
Considerações finais
Encontramos na cena contemporânea aquilo que poderíamos definir como um novo topos para a mulher. Inéditas paisagens se vislumbram nesse cenário e a mulher flexibilizou-se na ocupação de diversas esferas. Contudo, velhas formas de funcionamento permanecem sob outras roupagens; como observamos na revisão de literatura e no estudo de caso, as desigualdades sociais entre homens e mulheres ainda permanecem. A mulher que lutou tanto para conquistar espaços fora da cena doméstica hoje também sofre por - uma vez conquistado o espaço público - agregar a esse uma série de tarefas e funções. Notamos uma organização familiar matrifocal, em que as atividades desenvolvidas pelos membros de uma família centram-se na figura da mulher. Surge, porém, uma contradição. Por um lado, ela encontra satisfação e realização em tudo o que faz, e por isso sobrecarrega-se e sofre. Por outro, não suporta o peso de tantas responsabilidades e termina por manifestar sérios danos a sua saúde.
Esperamos que as reflexões produzidas a partir desses questionamentos propiciem novos conhecimentos e novos olhares para pensar a problemática da mulher protagonista de múltiplos papéis e responsabilidades na cena contemporânea.
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Submetido: 16/05/2011
Aceito: 23/03/2012
1 Este artigo faz parte da dissertação de mestrado em Psicologia Clínica realizado na Universidade Católica de Pernambuco e com bolsa da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do estado de Pernambuco - FACEPE.
2 Nome fictício e escolhido pela participante após leitura do termo de consentimento livre e esclarecido. Perguntávamos por qual nome ela gostaria de ser representada na pesquisa.