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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.5 no.2 São Leopoldo dez. 2012

https://doi.org/10.4013/ctc.2012.52.05 

ARTIGOS

 

Construindo conhecimento sobre o adolescente que cometeu ofensa sexual

 

Building knowledge about the sexual offender adolescent

 

 

Liana Fortunato CostaI; Eika Lôbo JunqueiraII; Fernanda Figueiredo Falcomer MenesesII; Lucy Mary Cavalcanti StroherII; Monique Guerreiro de MouraIII

IUniversidade de Brasília. Campus Darcy Ribeiro, 70910-900, Brasília , DF, Brasil. lianaf@terra.com.br
IICentro de Orientação Médico Psicopedagógico. SMHN Quadra 03, Ed. COMPP, 70710-100, Brasília, DF, Brasil. eikalj@ig.com.br, Fernanda.falcomer@gmail.com, lustroher@ibest.com.br
IIIHospital Regional da Asa Norte (HRAN), SMHN Quadra, 101, Área Especial (Asa Norte), 70710-905, Brasília, DF, Brasil. moniquegdm@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Esse texto enfoca um recorte da pesquisa-ação "Grupo Multifamiliar de Adolescentes Ofensores Sexuais". São escassos, em nosso contexto, os estudos sobre a temática do adolescente ofensor sexual. Foram feitas entrevistas iniciais com o adolescente e sua família para avaliar a dinâmica familiar e as condições da agressão sexual perpetrada. Nesse texto, privilegiamos o conhecimento de como o adolescente se percebe, como é percebido por sua família e sua relação com a escola. Participaram do estudo sete (7) adolescentes e suas mães. Os resultados evidenciam contradições entre como a mãe vê o adolescente e como ele se vê. Essas contradições se estendem para a expectativa de ambos em relação a uma ocupação do adolescente e também ao meio social. O contexto do adolescente ofensor sexual necessita ser conhecido visando à implementação de intervenções familiares e individuais.

Palavras chave: adolescente ofensor sexual, abuso sexual, família.


ABSTRACT

This text deals with a section of the research-action "Multifamiliar Group of Sexual Offender Adolescents". In our context, studies on the topic of teen sex offender are scarce. Initial interviews were made with the adolescent and his family to evaluate the familiar dynamics and the conditions of the perpetrated sexual aggression. We privileged in the text the knowledge of how the adolescent sees himself, how he is seen by his family and his relation with the school. Seven adolescents and their mothers participated of the study. The results show contradictions between how the mother sees the adolescent and how he sees himself. These contradictions extend to the expectation of both in relation to an occupation of the adolescent and also to the social environment. The context of the sexual offender adolescent needs to be known with a view to the implementation of individual and familiar interventions.

Key words: sexual offender adolescent, sexual abuse, family.


 

 

Este artigo enfoca um recorte da pesquisa qualitativa "Grupo Multifamiliar de Adolescentes Ofensores Sexuais", que trata da sistematização de metodologia para atendimento a essa população. O oferecimento desses grupos inicia com uma entrevista com o adolescente e sua família, no sentido de construir uma avaliação da situação e das condições da agressão sexual perpetrada. O recorte apontado acima focaliza algumas informações, retiradas dessas entrevistas, sobre como o adolescente se percebe, como é percebido por sua família e sua relação com a escola, que envolve as expectativas tanto da família como as do próprio adolescente. O objetivo deste texto é conhecer as interações familiares e os interesses desses adolescentes em sua escolaridade. Esta pesquisa qualitativa reúne duas instituições: uma acadêmica e um ambulatório público de atendimento médico, social, psicológico e pedagógico de crianças e adolescentes.

 

O adolescente que cometeu ofensa sexual

Não estamos tratando aqui de pedofilia. Mesmo Seto (2009), especialista nesse tema, admite o quanto é difícil realizar um diagnóstico de pedofilia. Esse autor insiste que pedofilia não é sinônimo de abuso sexual contra crianças. Pedofilia é a preferência sexual de adultos por crianças, meninos ou meninas, em geral em idade da puberdade ou pré-puberdade (Seto, 2009). Na pesquisa, estamos nos referindo a adolescentes que, por características ambientais e/ou familiares, incorreram em comportamentos que não são aceitáveis e passíveis de denúncia, visando uma reorientação. Os adolescentes constantes dessa pesquisa são vistos como aqueles que cometeram abuso sexual decorrente de experiências inadequadas (Forensic Psychology Practice, 2006) ou, como diz Chagnon (2008), decorrente de práticas educativas erradas. Muitos autores reconhecem que esses adolescentes não podem ser classificados como portadores de patologia, apesar de terem sido violentos, e enfatizam o papel da família e das circunstâncias sociais na configuração dessas violências (Chagnon, 2008; Forensic Psychology Practice, 2006; Marshall, 2001; Oliver, 2007).

Dito isso, podemos constatar a inexistência de uma estatística apurada sobre o registro de denúncias de abuso sexual contra crianças cometido por adolescentes. Oliver (2007) e Marshall (2001) concordam que 1/3 dos casos de abuso sexual são cometidos por adolescentes. Em nosso país, encontramos um registro interessante de ser analisado porque evidencia a falta de discriminação da autoria do ato cometido. No site da Sociedade Paulista de Psiquiatria Clínica (2010) existe uma tabela informando, no caso de abuso sexual intrafamiliar, a percentagem de abusos sexuais cometidos por membro da família: tio - 8%; primo - 1%; cunhado - 1%. Sobre o abuso sexual cometido por irmão, ou por adolescente, não há referência. A soma desses índices alcança 10% do total de casos conhecidos. No entanto, na situação dos adolescentes de nosso texto, há um aspecto que é o fato de que todos cometeram abuso sexual intrafamiliar, agredindo parentes próximos. Considerando esse detalhe, então essa estatística seria bem maior porque concentraria o abuso sexual realizado pelos adolescentes em seus diferentes papéis: tio, primo e irmão. O site da Vara da Infância e da Juventude - VIJ/DF - informa dados do CEREVS (Centro de Referência em Violência Sexual) referentes ao ano de 2010 (VIJ, 2010): violência sexual cometida por irmão, 2,33%; cometida por primo, 5,81%; cometida por tio, 9,30%. Os abusos, caracterizados como "experiências inadequadas" (Forensic Psychology Practice, 2006), foram praticados em família e todos os adolescentes da pesquisa foram autores dessa modalidade envolvendo irmãos/irmãs, sobrinhos/sobrinhas, primos/primas, isto é, crianças que moravam ou transitavam na casa. Estamos ainda muito distantes de compreendermos como esse fenômeno se configura em nosso país, especialmente com relação às famílias de baixa renda, nossos sujeitos de pesquisa.

Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia são exemplos de países que muito têm se dedicado a estudar e oferecer contribuições teóricas e metodológicas sobre o tema, especialmente na atenção a adolescentes (Madanes et al., 1997; Marshall, 2001; Oliver, 2007; Seto, 2009). Em especial Ward et al., 2007 são entusiastas de uma abordagem terapêutica a agressores sexuais por encontrarem indícios de respostas muito positivas, principalmente quando se considera a abordagem sobre adolescentes. Trabalhar com adolescentes nesse tema é tratar e prevenir. Atualmente, o reconhecimento da agressão sexual contra crianças é inequívoco, e as publicações têm se dedicado a esclarecer a complexidade do tema e a propor avanços metodológicos (Marshall et al., 2005). A abordagem terapêutica depende de muitos fatores que centram nas habilidades pessoais e técnicas do terapeuta (Craig, 2005); na abordagem grupal ao adolescente (Marshall et al., 2005); na consideração da família como parte ativa do processo de ressocialização do jovem (Henggeler et al., 2009); e na participação de recursos da comunidade (Forensic Psychology Practice, 2006; Henggeler et al., 2009; Marshall et al., 2005; Ward et al., 2007).

Nosso enfoque terapêutico é o Grupo Multifamiliar (GM) que conceitua o atendimento conjunto do adolescente em família (Costa et al., 2005). Como afirma Fishman (1989) o adolescente encontra-se em uma fase caracterizada por grande dependência e desejo de se tornar independente dos pais e da família. O conflito relacional característico se expressa por depender versus separar. No contexto do abuso sexual, perpetrado por adolescentes, esse paradoxo se maximiza e a família, por vergonha, inicia uma trajetória de construir um segredo sobre o ocorrido (Baker et al., 2003; Madanes et al., 1997). A abordagem familiar é valorizada e indicada pelo reconhecimento dessa relação interdependente (Borduin et al.,, 2009; Henggeler et al., 2009; Madanes et al., 1997; Marshall, 2001; Oliver, 2007).

 

Método

Trata-se de pesquisa-ação (Barbier, 2002) que associa o oferecimento de proposta metodológica (as cinco sessões do GM) a uma pesquisa que preserva a atenção e o rigor aos procedimentos. A pesquisa foi realizada em um ambulatório público de saúde mental, Centro de Orientação Médico Psicopedagógico - COMPP, unidade de Saúde Mental Infanto -juvenil, que compõe a Rede de Proteção a Crianças e Adolescentes no que diz respeito ao atendimento às vítimas e a vitimizadores sexuais. O GM teve a duração de agosto a dezembro de 2009, nas seguintes etapas: agosto - treinamento da equipe e entrevistas com as famílias inscritas no GM; de agosto a dezembro - atendimento e supervisão dos GM com intervalos quinzenais e intercalados com atendimento/supervisão.

Participantes - Os sujeitos foram sete adolescentes e os familiares que compareceram à entrevista de avaliação, primeira etapa do GM. Todos os nomes referidos no texto são fictícios. Quem participou das entrevistas: Adolescente Aldir (15 anos), sua mãe e sua irmã; adolescente Breno (17 anos) e sua mãe; adolescente Carlos (15 anos) e sua mãe; adolescente Dudu (17 anos) e sua mãe; adolescente Elder (17anos) e sua mãe; adolescente Fábio (14 anos) e sua mãe; adolescente Galdino (14 anos) e sua mãe. O Quadro 1 oferece mais informações.

Instrumento - Entrevista semiestruturada que procurou abordar os seguintes temas: apresentação do adolescente por ele mesmo, escolaridade dele e da família, lazer, dia a dia da família, dados dos outros filhos e do casal, dados socioeconômicos da família; relações familiares e relação conjugal; expressão da violência; condição do abuso sexual; reações da família frente ao abuso; organização da casa; relações afetivas, presença ou não da notificação da violência.

Cuidados éticos - A pesquisa foi inscrita no Comitê de Ética da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (FEPECS) da Secretaria de Estado de Saúde do Governo do Distrito Federal (GDF) e aprovada com o parecer nº 331/2009.

Análise das informações - Foi utilizada a análise de conteúdo temática proposta por Deslandes et al., 2007. A análise é realizada seguindo os seguintes passos: decomposição do material a ser analisado em partes; distribuição das partes em categorias; descrição do resultado da categorização; realização de inferências dos resultados; e interpretação dos resultados obtidos a partir da fundamentação teórica adotada.

 

Discussão dos Resultados

Foi realizada inicialmente uma leitura geral dos resultados das entrevistas. O recorte visando o enfoque nas diferenças entre as percepções do adolescente e sua mãe e nos interesses sobre a escola se fizeram necessários em face da grande quantidade de material obtido. Procedemos, então, à construção de três núcleos de interpretação: o primeiro diz respeito às diferenças existentes entre como a mãe vê o adolescente e como ele se vê; o segundo núcleo aborda o cerceamento do ir e vir que esse adolescente vive cotidianamente; e o terceiro núcleo mostra as diferenças entre a expectativa da mãe e do adolescente a respeito de sua participação na escola.

a) Como o adolescente se vê e como a mãe o vê: "Eu pensava que ele já tava numa idade que ele é responsável" "[...] eu vou para meu quarto e pronto [...] porque senão..."

Nesse tópico tomamos como maior contribuição as falas de Aldir e sua mãe. O que caracteriza esse núcleo de interpretação é a discrepância entre como o adolescente se vê - Aldir: Sou um cara agitado. Extrovertido, gosto de brincar, de festas - e como a mãe o vê - Mãe Aldir: ...ele é um bom filho para mim, graças a Deus, o que aconteceu [...] mas pra mim ele é um bom filho. À noite, se eu falar assim: Você não vai, ele não vai, obedece. É possível que essa descrição da mãe se deva ao fato que ela sabe que a família está sendo avaliada, afinal a entrevista é para conhecimento e integração ao GM. No entanto, ele faz questão de dizer que não é tão bonzinho assim e se rebela - Aldir: [...] eu vou para o meu quarto e pronto [...] porque senão [...] - parecendo dizer que sua obediência tem limite.

Marshall et al. (2005) apontam a relação com a família como ponto focal para a manutenção da autoridade. Os pais, juntamente com a escola e o grupo social comunitário, são considerados grupos de referência no processo terapêutico com esses adolescentes. Embora possamos apontar diferenças na forma como o adolescente é definido, o que indicamos como importante é a construção de um cenário no qual a mãe, o pai, os irmãos têm ascendência sobre ele - Mãe (sobre Aldir): Obedece a mim, como o pai, se o irmão falar também você não vai, ele não vai, se eu falar que não é horário para sair é ponto final. Essa construção mantém a possibilidade do exercício da autoridade de forma adequada e apoiada pelo terapeuta.

Outra coisa que chama atenção é ele se descrever como dedicado ao trabalho - Aldir: Tudo tem seu tempo! Dedicativo aos estudos, trabalho também. Trabalho, porque agora trabalho muito, ou de manhã e ou de tarde que cansa muito, tô me cansando muito, tem que encarar mesmo. Aqui, o resgate é de suas competências, e ele se apresenta como um adolescente comum com preocupações que se dividem entre escola, trabalho, festas, computador e som. Trata-se de um interesse comum aos adolescentes, até mesmo aqueles que pertencem a famílias com dificuldades econômicas.

Nessa parte da entrevista, que se deu no início do processo terapêutico, a interação entre mãe e filho e entrevistadora focalizou uma conversa num molde corriqueiro (como se não estivessem numa avaliação), na qual os problemas são contornados e a explicação pela qual eles estão ali é dada por conta da irresponsabilidade. O evento do abuso sexual foi minimizado - Mãe Aldir: [...] eu pensava que ele já tava numa idade que ele é responsável. Essa é a tônica presente nessas famílias: a minimização da violência perpetrada dentro de casa. A família procura passar uma ideia de que não há relação violenta em casa. Sabemos que se trata de uma negação dos atos violentos, mas aqui nosso interesse é identificar nessa conduta a construção de um contexto no qual a mãe se afasta do adolescente e eleva as possibilidades de recidiva. Hengeller et al. (2009) apontam que as mudanças de conduta desse adolescente dependem de mudanças na relação com a autoridade parental e na mudança do gruponegativo de pares. É fundamental que a relação com a mãe, como parte dessa autoridade parental seja também transformada, visando que o par parental possa se dar conta da real dimensão do ato violento. O processo de responsabilização de todos e a consequente interrupção da violência depende disso.

Ainda Henggeler et al. (2009), avaliando modelo de Multisystemic Therapy (MST) com adolescentes infratores, indicam uma associação forte com comportamentos antissociais. Nesses casos de adolescentes ofensores sexuais dos quais estamos tratando, isso não é observado. Pelo contrário, as informações sobre as famílias nos mostram uma configuração muito diferente, com controle rígido das ações dos adolescentes, exigências, obrigações, limitações, o que nos faz pensar que o abuso sexual se revela como um acting-out (passagem ao ato) de rebelião, de inversão de papéis de dominação: - Mãe Aldir: ... ele já é [...] mais calmo um pouco... é, e tá melhorando, eu disse que cada vez que ele melhorar, melhorar uma coisa! Porque nem tudo vem de graça! Aldir: Canto e toco [...]. Baixo, violão e bateria. Tive aulas por 4 anos de violão [...] aprendi baixo com aulas e bateria eu aprendi sem aulas. Parece que as exigências sobre esse adolescente são muitas: estudar, trabalhar executar serviços domésticos, cuidar dos irmãos mais novos, evitar sair de casa ou à noite e, finalmente, não namorar, pois esse é o maior fantasma dessas mães. É interessante, porque isso não é expresso claramente, mas está subentendido o tempo todo. A família evita reconhecer o amadurecimento da sexualidade e o cerca de tais controles na tentativa de impedilo de expressar esse aspecto (Oliver, 2007).

Em princípio, o adolescente parece concordar e mostrar que aceita as exigências e controle da mãe, talvez como estratégia de manejo da situação - Mãe Aldir: É alegre, não é triste é alegre, ele sempre gosta de ouvir os sons dele, de jogar vídeo game, de computador, mas agora tá sem computador. Aldir: Gosto de ficar no computador. Madanes et al. (1997) listam uma série de qualidades que devem caracterizar a abordagem a esses adolescentes e uma delas é o bom acolhimento e o contato empático. Da mesma forma, com relação à família, os pais precisam desenvolver mais assertividade e conhecer de fato o adolescente e poderem promover aproximação (Henggeler et al, 2009; Oliver, 2007). Os autores estudiosos do adolescente agressor sexual, citados até então, concordam em um ponto que é a melhor perspectiva de atendimento a esse adolescente, na medida em que a família participa da terapia e que a mãe, em especial, tem papel preponderante. Por isso insistimos em que o contato com essas mães seja valorizado e receba um investimento tão caloroso e empático como com o adolescente. As contradições percebidas nas relações familiares necessitam ser valorizadas e enfocadas no processo terapêutico.

b) A vida do adolescente em casa e na rua: "Festa de criança! Em outra festa ela não vai, só se eu for!" "Porque minha irmã não pode me ajudar no trabalho na casa?"

Os trabalhos de avaliação sobre metodologia de abordagem familiar a adolescentes com histórico de transgressões sexuais ou não (tomamos como exemplos: Borduin et al. 2009; Henggeler et al., 1992; Henggeler et al., 2009; Swenson et al., 2010) mostram que os fatores de risco são intrincados com os fatores de proteção, ou seja, os pais, os pares, o meio social, o ambiente comunitário. Esses autores enfatizam o atendimento em família como o mais efetivo, oferecendo maior possibilidade da redução de reincidência de atos transgressores. No entanto, continuando nossa análise esboçada no item anterior, vemos o ambiente familiar extremamente restritivo, controlador, exigente como um fator de risco, na medida em que não reconhece a etapa de vida do adolescente de necessidade de experimentação e expressão da experiência. O medo dos pais, a ansiedade da mãe em ocupar o adolescente com mil tarefas e obrigações, parece que o leva a buscar desafiar a ordem e burlar a lei. Nos textos acima citados, os autores aludem ao incremento da autoridade dos pais no controle dos filhos. Mãe de Fábio: O máximo que ele faz é brincar de bola lá perto da casa da minha mãe, e de dia. Ontem mesmo ele brincou um até umas seis e pouco, e eu falei pra minha mãe "chama ele e leva ele pra casa"!. As falas indicam que o limite entre autoridade e autoritarismo é tênue e nem sempre claro.

Henggeler et al. (2009) e Timmons-Mitchell et al. (2006) enfatizam o grupo positivo de pares fazendo parte da força potencializadora da intervenção terapêutica. Contudo, diante de uma orientação tão repressora em relação ao pertencimento de grupo de amigos, como se pode investir nesse aspecto? Sequer a mãe admite conhecimento de quem são esses amigos. Mãe Fábio - Festa de criança! [...] mas nessas outras festas ele não vai! Só se eu for! Fábio - Mas os meus irmãos estavam lá, brincando junto, se não também num fica na rua, não! A qualidade da comunicação com os pais é fator importante para esses autores, e as falas indicam como as informações são comunicadas visando cada um seu próprio interesse, além de não se escutarem: Fábio - Ah, videogame, se deixar [...] tem [em casa] mas eu só jogo no final de semana no do meu padrasto! Mãe de Fábio - [...] só quando eu tô em casa, porque senão ele vai chegar do integral, jogar e vai esquecer os afazeres dele! A mãe parece muito interessada nos benefícios que uma atividade religiosa possa trazer para ele, por isso explica: Mãe de Fábio - Ou então, a gente vai pro nosso trabalho lá no centro espírita... tem as aulas dele, doutrinárias, então ele tem um desenvolvimento, como se fosse a catequese... tem o lado da religião também, não tem uso de droga, eles falam que nem cigarro a pessoa pode usar, nem álcool, porque lá num tem! A mudança de prática disciplinar tem papel fundamental na reorientação de adolescentes ofensores sexuais. Timmons-Mitchell et al. (2006) admitem que em 56% dos casos quem comparece aos atendimentos e/ou responde a questionários sobre esse adolescente é a mãe. Por isso, a atenção à qualidade do contato entre eles deve ser priorizada, e é necessário que escutemos o que ela tem a dizer, como reage às condutas dele, como transmite suas orientações, a despeito da avaliação crítica que possamos fazer sobre a atuação de seu papel de mãe, mesmo porque não conseguimos acesso às mesmas observações do que ocorre com o pai.

Há ainda um fato importante que o adolescente faz questão de abordar. Fábio - ... é porque eu pedia pra ela me ajudar em casa e ela não ajudava! [...] Eu lavava, fazia tudo! ... quando eu pedia pra ela ajudar, nada, ela falava "vou contar pra minha mãe!". Antes, eu dava uns tapa nela, aí minha mãe falou que era pra eu fazer isso, aí ela dizia que ia contar pra ela. Ela [irmã] faz as coisas sábado e domingo, por que ela num pode me ajudar? Ela brinca o dia todinho! Ela brinca o dia todinho! Ela brinca o dia todinho! Nesse momento, o adolescente denuncia que ele faz todo o serviço doméstico e que a irmã (menina que foi abusada) não o ajuda. Dois aspectos são relevantes aqui. Primeiro, sua reclamação de que assume um papel de criada da casa e de babá da irmã. Outro aspecto é seu pedido de ser considerado como criança ainda, com direito a brincar como a irmã o faz. Esse diálogo é primoroso porque ilustra sobremaneira a posição dos autores já mencionados, quando dizem sobre a oportunidade presente da família poder conversar. Em especial, Borduin et al. (2009) apontam os benefícios da terapia em família no incremento da comunicação maior e mais clara entre seus membros. Por outro lado, Henggeler et al. (2009) apontam como esse aspecto deve merecer atenção dos terapeutas, porque acreditam esses autores, que os pais se constituem na principal ferramenta de controle das influências do grupo de pares. No processo de atendimento ao adolescente, o incremento da comunicação entre ele e os demais familiares tem um papel essencial, mas entendemos que mais importante é o conteúdo comunicado. Nesse item percebemos que as relações entre os membros da família são, muitas vezes, violentas. Na ânsia de proteger o adolescente, a mãe o agride com proibições que o afastam do âmbito de sua compreensão. Por outro lado, a organização familiar, e suas vicissitudes, colocam esse adolescente numa posição de autoridade e cuidado com a irmã que facilita a agressão sofrida. Não se pode negar a responsabilidade do adolescente nos atos violentos. Estamos ampliando o olhar para além da díade agressor / vítima, incluindo o reconhecimento de um ambiente que está permeado de violências mútuas.

c) O adolescente e a escolaridade: "Eu dô uma dura nele, porque ele tem que tirar notas boas ... no ano que vem eu vou inscrever ele no estágio do Banco do Brasil." "Sou bom em educação física, porque é mais fácil né! Quem é que não gosta de Educação Física?!"

Convém agora retomar o Quadro de Informações e questionar o rendimento escolar desses adolescentes. O que nos chama atenção é que a maioria deles não apresenta grandes defasagens na relação escolaridade/idade. Apenas três adolescentes apresentam um atraso escolar, sendo que não podemos ser rigorosos nessa avaliação em função da realidade socioeconômica deles. Nessa observação, encontramos um dado que aparentemente evidencia conflitos. Por um lado, Henggeler et al. (2009) falam que adolescentes infratores, em geral, têm muita semelhança com adolescentes ofensores sexuais em suas trajetórias de delitos e processos judiciais. Por outro lado, Chagnon (2008) fala em um adolescente ofensor sexual que se mostra transgressor em função de problemas com autoridade em relação aos pais, o que é designado como violência sexual decorrente do recebimento de práticas educativas erradas. Trata-se, portanto, de uma dinâmica de violência diferente da violência cometida por adolescentes infratores que se voltam para atos danosos envolvendo o contexto social e não tanto o contexto familiar. Pensamos que esse aspecto diferencial precisa ser pesquisado e compreendido porque ele se mostra importante, porém carece de maior aprofundamento.

Vemos, ainda, que os interesses da mãe e do adolescente são contraditórios, além de a pressão familiar sobre o adolescente ser também contraditória. Escolhemos aqui as falas de Galdino e sua mãe, que ilustram essa contradição. Mãe de Galdino: [...] eu dô uma dura nele, porque ele tem que tirar notas boas, porque no ano que vem eu vou inscrever ele no estágio do Banco do Brasil, mas se ele não tiver notas boas, ele não é selecionado! Se ele quiser fazer estágio! E aí ele tem que tirar nota boa e se esforçar bastante, senão ele não consegue estágio no Banco do Brasil! Galdino - Porque é mais fácil né! Quem é que não gosta de Educação Física?! A mãe cobra que ele estude, trabalhe, ajude nas tarefas domésticas e faz planos para seu ingresso no trabalho formal, como estagiário de um banco. Só isso já evidencia a contradição, mas se considerarmos a fala de Galdino, então temos um complicador, porque sua expectativa é por um caminho mais fácil, de acordo com sua declaração. A mãe espera uma atividade mais intelectualizada; ele imagina uma atividade mais motora.

Outro dado que aparece é a própria violência que o adolescente sofre dentro da casa. Mãe de Galdino - Ele tá de recuperação ... Português, Matemática e Inglês... Pergunta por quê que eu bati nele?... eu não sei o que é que ele fica fazendo na aula de Inglês! Nesse ponto são vários os autores que concordam que o adolescente ofensor sexual pertence a um grupo familiar que tem dificuldades em manejar a autoridade e constantemente opta pelo exercício de práticas punitivas como forma de educação e/ou orientação (Chagnon, 2008; Henggeler et al., 2009; Marshall et al., 2005; Oliver, 2007; Swenson et al., 2010). Esse ponto é fundamental de ser abordado no GM e é crítico para a reformulação das práticas educativas adotadas pelos pais. Nossas observações indicam que as famílias adotam recursos educativos que se valem de práticas violentas.

A denúncia de que o adolescente necessita de reforço escolar está presente. O interessante aqui é o quanto é importante para o adolescente ser ajudado. Ele diz isso em relação à escola, valoriza a ajuda extra que recebe dela, como também do tio que media seu contato com a internet. Mãe de Galdino - [...] ele faz integral até às quatro! [...] aí, tem aula de reforço, tem aula de jogos, tem aula de artes [...] Galdino - Eu sei falar melhor! Projeto pras pessoas que têm dificuldade nas matérias e querem aprender melhor as coisas... [referindo-se à aula de reforço]. Mãe de Galdino - Agora que o tio dele liberou o computador, e internet quando o tio dele tá em casa! Galdino - É porque antes eu era ruim na escola![...] na sétima série, eu fiquei num monte de matéria no primeiro e no segundo semestre, mas no quarto eu recuperei e passei direto!

A ajuda é importante nesse contexto, porque além de ficar sozinho o dia todo em casa, após a denúncia de violência intrafamiliar, a família isola-se, como já foi discutido anteriormente. O adolescente precisa ser apoiado. Autores enfatizam que a aproximação com os membros da família é fundamental para a diminuição de reincidência do ato transgressor (Marshall, 2001; Marshall et al., 2005). E ainda há a internet como vilã, sendo vista como prejuízo, porém mostrando que precisa ser monitorada, por constituir-se numa atividade sedutora e integradora para os jovens. A escola é uma parte importante do processo de transformação do adolescente. As contradições encontradas mostram o quanto o processo terapêutico desse adolescente precisa ser aproximado dos contextos nos quais ele também transita. Isso deve ocorrer com a participação da família no sentido de as expectativas serem adequadas à realidade, correndo-se o risco de que o distanciamento entre as expectativas e as possibilidades e interesses do adolescente venha a se constituir em um fator de risco para recidiva do ato violento.

 

Considerações finais

Nossa proposta neste texto foi apresentar algumas contribuições para o avanço do conhecimento sobre o adolescente ofensor sexual, assunto ainda extremamente carente de elaborações em nosso país. Sabemos que nos encontramos defasados quanto a conhecer com maior profundidade essa realidade. Já detectamos preocupações e iniciativas de vários profissionais e instituições de atendimento, bem como de pesquisadores (Bianchini e De Antoni, 2011), mas que se constituem em um contexto ainda tímido, considerando-se todo o país. O texto mostra que as relações entre esse adolescente e sua família são um aspecto fundamental a ser compreendido e também a ser foco de intervenção. Mostra ainda como a escola permanece como um ponto de contradições, evidenciando a distância entre o que o adolescente deseja, e o que a família imagina como o benefício advindo dela. A escola como contexto não foi nosso objeto de discussão, mas reconhecemos que precisamos compreender melhor o que escola pode e deve oferecer a esses adolescentes que se encontram aprisionados em relações familiares que são, ao mesmo tempo, violentas e vitimizadoras em relação ao que eles promovem e em relação ao que eles sofrem.

Muitas questões se apresentam como direção de futuras pesquisas e intervenções: a sexualidade familiar nos casos de abuso sexual intrafamiliar cometido por um adolescente da família; a relação de dependência entre a mãe e o filho agressor sexual; o papel, ainda bastante desconhecido, do pai para esse adolescente; o papel da escola como parceira no processo de educação sexual desse adolescente. Enfim, precisamos avançar e construir um conhecimento sobre esse fenômeno, pois urge que se estabeleçam projetos de atendimento a essa população.

 

Referências

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Recebido: 25/03/2012
Aceito: 29/05/2012