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Contextos Clínicos
versão impressa ISSN 1983-3482
Contextos Clínic vol.7 no.1 São Leopoldo jun. 2014
https://doi.org/10.4013/ctc.2014.71.04
ARTIGOS
Entre bruxas e lobos: o uso dos contos de fadas na psicoterapia de grupo com crianças
Among witches and wolves: the use of fairy tales in group psychotherapy with children
Flavia Cambruzzi SbardelottoI; Tagma Marina Schneider DonelliII
IPsicóloga. Rua Vereador Cibeli, 396, Bairro Planalto, 95180-000, Farroupilha, RS, Brasil. fcambruzzi@gmail.com
IIUniversidade do Vale do Rio dos Sinos. Av. Unisinos, 950, Cristo Rei, 93022-00, São Leopoldo, RS, Brasil. tagmad@unisinos.br
RESUMO
O presente estudo objetivou investigar a utilização dos Contos de Fadas como intervenção em um grupo de crianças, pacientes de um ambulatório de Saúde Mental, encaminhadas por dificuldades na aprendizagem ou relacionamento social. Partiu-se da ideia de que os Contos de Fadas contêm material simbólico para ajudar a criança a elaborar seus conflitos, interagindo na capacidade de fantasiar, e com isso contribuindo no desenvolvimento dos processos de simbolização e criatividade. Pretendeu-se, com esse estudo, responder se a utilização dos Contos de Fadas poderia ser uma ferramenta para ajudar nos processos de simbolização e criatividade, através da avaliação antes e após realização do grupo. Participaram do estudo quatro crianças, com idades entre seis e nove anos e seus pais. Para a coleta dos dados, foram utilizados os prontuários, uma entrevista inicial com os pais, uma entrevista com a criança, aplicação do Teste das Fábulas e do HTP (House, Tree and Person), e a realização de um grupo terapêutico com duração de 10 encontros. Observou-se que os contos de fadas foram importantes dentro do grupo para o acesso da problemática de cada um dos participantes, tornando-se possível a realização de intervenções, possibilitando a nomeação dos afetos. Observou-se, através dos testes, que, ao final dos encontros, as crianças obtiveram ganhos nos processos de simbolização, além de uma melhora das queixas iniciais.
Palavras-chave: contos de fadas, psicoterapia de grupo, crianças.
ABSTRACT
This study aimed to investigate the use of Fairy Tales as intervention in a group of children, patients from a mental health clinic, who were referred because of learning or social relationship difficulties. We started from the idea that Fairy Tales have symbolic material to help children elaborate their conflicts, help their capability to fantasize and, therefore, contribute to the symbolization and creativity processes. This study aimed to answer if the use of Fairy Tales could be a tool to help the symbolization and creativity processes, through evaluations before and after the group activity happened. Four children from age six to nine and their parents took part in this study. The data was composed of psychological charts, an initial interview with the parents, an interview with the child, the Fairy Tales test, the HTP (House, Tree and Person) test and 10 therapeutic group meetings. We observed that the fairy tales were important in the group to access each participant's issues, making the interventions possible and allowing them to name their affections. We observed through the tests that at the end of the group meetings the children achieved gains in the symbolization processes, besides improvements in their first complaints.
Keywords: fairy tales, group psychotherapy, children.
Introdução
A maioria das crianças cresce ouvindo contos de fadas. Essas histórias, repletas de bruxas, princesas e príncipes, dão espaço, na vida adulta, para outras histórias envolvendo outros heróis, que estão na televisão, nos jornais, em diversos meios de informação. As metáforas continuam existindo e fazendo parte da nossa comunicação. Sabe-se que o lobo mau que come vovós não existe, mas, no entanto, essas histórias transmitem mensagens que são úteis na vida das pessoas, mensagens interpretadas como uma moral. São essas metáforas que possibilitam alcançar metas dentro da psicoterapia, que a fala por vezes não consegue alcançar, ajudando assim a promover mudanças importantes no curso da terapia (Alves, 1999).
Sabe-se que, nos contos de fadas, assim como nos mitos, há a presença de representações arcaicas do psiquismo humano. Ou seja, é possível observar, dentro dos contos, expressões simbólicas que se relacionam com aspectos psíquicos arcaicos, como, por exemplo, a fantasia de devoração, o sentimento de rejeição ou de vazio, que são encontrados simbolicamente através de personagens e enredos e que habitam o inconsciente de todos nós (Corso e Corso, 2006; Schneider, 2008).
Essas representações servem de instrumento para acessar representações do começo da vida psíquica, que se encontram em nível inconsciente. Esse acesso possibilita o surgimento daquelas memórias que são evocadas inconscientemente e que causam, em muitos casos, sintomas ou simplesmente compõem a forma de ser e de pensar (Corso e Corso, 2006; Schneider, 2008).
Os contos de fadas oferecem, dessa forma, muitas representações para os conflitos e nos fazem acreditar que não há mais o que temer, sendo assim, eles ajudam a criança a lidar com o medo "daquilo que não tem nome", passando a nomear um interlocutor (a bruxa, o lobo mau, a madrasta, o feitiço, etc.) que vai contribuir para conter esse medo (Bettelheim, 2007; Gutfreind, 2010).
As histórias ensinam à criança que é inevitável o ser humano achar-se frente às dificuldades graves da vida. Entretanto, mostram que, se a pessoa tiver coragem para enfrentar essas provações, por mais injustas que possam ser, ela poderá superar todos os obstáculos e vencer no final. A criança necessita que lhe sejam atribuídas sugestões simbólicas de como lidar com os conflitos existenciais, para assim, amadurecer com segurança. Assim, os contos de fadas são ricos nesses aspectos, pois falam exatamente dos problemas existenciais de todos nós e, ao mesmo tempo, garantem o final feliz, pois, seja lá o que acontecer, sempre haverá o clichê "feliz para sempre" (Bettelheim, 2007).
A história do conto em si não diz respeito à realidade externa, mas eles dizem dos problemas interiores do homem, e o que interessa no conto não são as informações acerca da realidade, mas sim aquilo que nos toca internamente. O conto é escrito de maneira muito simples, o que ajuda a simplificar também as situações (Bettelheim, 2007).
Observa-se, com a utilização dos contos de fadas, que esse recurso produz uma melhora em diversos aspectos da vida imaginária da criança, bem como da possibilidade de elaboração de conflitos. A partir do momento em que a criança passa a sentir prazer em ouvir e contar histórias, desenvolve-se a criatividade, que está relacionada à melhora na saúde mental das crianças. Esses espaços traduzem experiências novas que estimulam a criança a interessar-se pelo seu funcionamento psíquico, além de ajudar no desenvolvimento do pensar (Gutfreind, 2010)
Com os achados em estudos envolvendo os contos de fadas, nota-se que essa intervenção oferece às crianças a possibilidade de recontar, reouvir e reviver suas próprias histórias para, a partir disso, construí-las, contá-las, expressá-las e, sobretudo, elaborá-las (Gutfreid, 2010). Os contos fornecem muitos elementos simbólicos que a criança utiliza para elaborar seus conflitos através da narrativa (Corso e Corso, 2006).
Partindo dos pressupostos apontados na revisão da literatura, o presente estudo objetivou utilizar os contos de fadas como instrumento de intervenção mediadora na Psicoterapia de Grupo c om crianças que foram encaminhadas a um ambulatório de saúde mental, onde se pretendeu responder se a utilização dos contos de fadas como recurso terapêutico em um grupo de crianças poderia favorecer, através de avaliação antes e após a participação no grupo, a ocorrência de mudanças na capacidade de simbolização e criatividade infantil.
Método
A partir de uma abordagem qualitativa, foi utilizado o delineamento de Estudo de Casos Múltiplos, de caráter longitudinal, que visou avaliar os sujeitos antes e após a intervenção, tanto individualmente quanto a partir do contexto grupal em que estavam inseridos. Também se caracteriza, metodologicamente, como uma pesquisa-ação. A pesquisa-ação pressupõe a participação do pesquisador na situação a ser investigada. Visa, de maneira sistemática, transformar as realidades observadas a partir da observação e do conhecimento (Fonseca, 2002).
A Pesquisa-Ação é uma investigação de cunho social que é realizada associando uma ação ou participação, com um problema coletivo, onde pesquisador e participantes estão envolvidos de forma participativa. A Pesquisa-Ação tende a envolver, então, um planejamento, um diagnóstico, uma ação, uma observação e uma reflexão, todos encadeados em um ciclo (Fonseca, 2002).
Participaram da pesquisa quatro crianças encaminhadas ao Centro de Atenção Integrado em Saúde Mental (CAISME) que ocupavam a lista de espera para atendimento em Psicologia da unidade. Os participantes foram: Davi, de 06 anos, com queixa de ansiedades e dificuldades de ir para a escola; Ana, de 09 anos, com queixas de mudança de comportamento e desinteresse pela escola após o falecimento do pai; Diogo, de 07 anos, com queixa de agitação e desatenção e, por fim, Lucas, de 07 anos, com queixa de agitação e agressividade. Todos os nomes utilizados neste estudo são fictícios.
Após consentimento da direção do local e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, sob nº 11/111, os pais das crianças foram contatados por telefone e foi agendada uma entrevista inicial, durante a qual foram apresentados os objetivos e a proposta da pesquisa, e, posteriormente, assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Após entrevista com os pais, foi realizada uma entrevista lúdica com a criança e aplicação do Teste das Fábulas (Cunha e Nunes, 1993) e o teste HTP (Buck, 2003). Quando finalizada essa etapa, iniciou-se o denominado Grupo de Contos de Fadas, sendo utilizados, para fins de pesquisa, dez encontros, destacando-se que a proposta de intervenção continuou acontecendo após a finalização da pesquisa, e nenhuma das crianças ficou sem atendimento. Todos os procedimentos foram filmados para contribuir na análise dos dados e, ao final, as crianças foram reavaliadas através dos testes descritos anteriormente (Fábulas e HTP).
Todos os procedimentos da pesquisa foram realizados nas dependências do CAISME. A devolução dos resultados se deu após a conclusão do estudo e foi repassada aos pais de forma individual. A instituição também recebeu uma devolução dos resultados, dada de maneira coletiva aos profissionais que compõem a equipe do local.
Resultados e discussão
Para a realização dos dez encontros grupais, foram disponibilizados 16 contos escolhidos pela terapeuta em consonância com as preferências de cada criança, observadas na entrevista individual. Em cada encontro, foi escolhido e lido um conto, sendo que aqueles lidos foram retirados e não estavam disponíveis nos encontros posteriores. A leitura dos contos foi realizada pela terapeuta, pois, segundo Gutfreind (2010), há a necessidade de cativar a atenção da criança para que ela desfrute da riqueza d a história e, assim, garantir um melhor entendimento do enredo.
Os encontros tiveram duração de uma hora e foram divididos em três etapas: leitura do conto, desenho e brincadeira livre. Em todos os encontros, as crianças quiseram desenhar e, geralmente, faziam-no em silêncio, demonstrando que aquele era um momento para elaboração do que foi evocado com o conto.
Após os desenhos, as crianças optavam por brincar, sendo que foram disponibilizados na sala diversos brinquedos, estruturados e não estruturados. Foi feita uma caixa de brinquedos do grupo, com animais, soldadinhos, fantoches, carrinhos, panelinhas e coroas de princesa. Além disso, havia outra caixa pertencente à sala de atendimento do Serviço de Psicologia, com diversos carrinhos, aviões, bonecos e armas de plástico. Também foram oferecidos brinquedos não estruturados, como blocos de madeira em diversos formatos, peças de encaixar de plástico, e peças para construção daquilo que a imaginação deles permitisse. Os jogos de regras eram retirados da sala em cada encontro para que as crianças pudessem utilizar os brinquedos para estimularem a imaginação através da brincadeira, possibilitando um momento de representar o conto ou deixar vir à tona aquilo que fora evocado.
Em oposição ao que muitas vezes percebe-se no trabalho com crianças, o grupo não demonstrou preferência por contos considerados de meninas ou meninos, sendo que meninos escolheram contos como A Gata Borralheira, Branca de Neve e A Bela e a Fera. Em nenhum momento, as crianças citaram que certos contos eram considerados mais femininos que outros.
Em quase todos os encontros, as crianças trouxeram, de maneira espontânea, situações de briga, tanto na escola como em casa. Falavam de como ficavam nervosas com alguns colegas e de como é difícil controlar os impulsos de raiva. Geralmente, esses conteúdos foram evocados durante os desenhos, e, por vezes, apareceram nas brincadeiras, como no caso de Ana, que será descrito mais detalhadamente a seguir.
Durante a leitura do conto, observou-se que crianças tendiam a antecipar a história, falando daquilo que iria acontecer com os personagens. Essa capacidade de antecipação é entendida como saudável e terapêutica, uma vez que isso demonstra a capacidade de pensar e imaginar não apenas o conto, mas sua própria história (Gutfreind, 2010).
Essa antecipação também sugeriu uma necessidade de aliviar a tensão causada pelos conflitos da história, o que acontecia em praticamente todos os encontros, em que, por vezes, discutiam sobre os personagens, expondo a sua opinião sobre o enredo. Em contos como Rapunzel e Patinho Feio, as crianças diziam que não teriam dado o bebê para a bruxa ou abandonado o pequeno pato, dando assim, um novo rumo para as suas próprias histórias e aliviando as tensões provocadas pela evocação de um conteúdo sádico (Gutfreind, 2010).
O olhar tornou-se importante analisador neste grupo. Nos primeiros encontros, as crianças pareciam ansiosas pelo fim da leitura, e seus olhares pareciam mais evasivos, por vezes, buscando o olhar da terapeuta. Também acompanhavam atitudes mais agitadas, como mexer-se na cadeira, mexer na mesa, pegar o livro da mão da terapeuta e, em algumas vezes, conversas paralelas. Com o passar dos encontros, os olhares fixaram-se mais na terapeuta e demonstraram mais interesse em ouvir o conto, diminuindo a agitação durante a escuta. Através dos olhares, foi possível convidar as crianças a entrarem no mundo do conto, viajarem para terras distantes e lá se depararem consigo mesmas, e, assim, ajudá-las a elaborarem seus conflitos (Gutfreind, 2010).
Os contos escolhidos para os encontros foram, na ordem do primeiro ao décimo encontro: Chapeuzinho Vermelho, Rapunzel, A Bela e a Fera, O Patinho Feio, Peter Pan, Pinóquio, Os Três Porquinhos, A Gata Borralheira, Branca de Neve e os Sete Anões, e João e o Pé de Feijão.
Observou-se que alguns contos foram mais mobilizadores do que outros. Alguns contos agitavam o grupo, outros acalmavam. Foi possível perceber que contos modernos, como Pinóquio e Peter Pan, desencadearam uma catarse grupal, marcada pela agitação e pela competição. Porém, os contos clássicos desencadearam vivências mais arcaicas, ligadas aos conflitos de cada criança.
Bettelheim (2007) fala da importância do uso dos contos clássicos e de tradição oral, lidos na íntegra, que, cheios de arcaísmos, vinculam-se aos arquétipos do inconsciente coletivo, sendo que os contos mais modernos acabam por se vincularem mais ao inconsciente do próprio escritor. Com isso, os contos modernos não possibilitam as associações livres e os devaneios, contribuindo pouco na reparação das dificuldades da criança. Pode-se perceber que, após leitura dos contos modernos, houve uma maior agitação grupal e uma maior dificuldade de expressão no desenho.
Os personagens dessa história
A partir desse momento será realizada uma exposição sobre os participantes dessa pesquisa, realizando uma descrição dos casos e as análises do processo de cada um.
O príncipe da Rapunzel
Davi tem seis anos de idade e frequenta a primeira série do ensino fundamental. Em entrevista com a mãe, a mesma conta que Davi começou a apresentar tiques nervosos, que geralmente se apresentavam na forma de cheirar os dedos e levá-los ao topo da cabeça. Esse comportamento rítmico geralmente aparecia junto da agitação e em situações de nervosismo, como, por exemplo, ir para escola ou sair de casa sem a mãe.
Além disso, Davi começou a apresentar dificuldades de relacionamento na escola, não gostava de ficar perto de outras crianças, desejando ficar mais isolado. Em casa, os tiques apresentavam-se também, porém, com menos frequência do que em situações estressoras fora de casa.
Durante a avaliação, por diversas vezes, Davi pergunta onde está a sua mãe, pedindo para ir ao banheiro para verificar se ela está lá fora. A partir da entrevista com Davi, pode-se confirmar que o mesmo estava passando por uma ansiedade de separação, além da dificuldade em brincar e estabelecer vínculos com outras crianças.
Sabe-se que chega um momento em que a criança necessita separar-se da mãe para desenvolver-se e explorar o mundo, e, segundo Winnicott, a capacidade da mãe suficientemente boa de iludir o bebê constituirá também a base para sua tarefa em desiludi-lo, e provocar essa separação. A partir da interação dos dois, entre a realidade interna subjetiva e a realidade externa objetiva, surgirá um espaço intermediário de ilusão. Esse espaço, chamado de espaço potencial encantará a criança que passará a manipular essa realidade externa, estabelecendo-se em um jogo no interno e no externo, onde agregará um objeto transicional. Esse objeto transicional será como extensão do seio materno, estando, ao mesmo tempo, na realidade externa e na interna, e ajudará a criança a separar-se dessa mãe de maneira saudável. Segundo a perspectiva winnicottiana, perturbações nesse espaço potencial implicam uma dificuldade de elaboração simbólica, onde a criança apenas fantasia acerca do objeto, mantendo uma posição defensiva e de negação (Winnicott, 2000).
Desde o primeiro atendimento, Davi deixou claro que não gostava de contos de fadas, apenas de histórias em quadrinho. Também expôs que gostava de brincar sozinho, com o video game ou em jogos de computador, geralmente bastante violentos. No primeiro encontro do grupo, Davi permaneceu boa parte do tempo em pé, encostado em uma das paredes.
Durante a leitura dos contos, Davi permanecia quieto e bastante atento. Foi possível observar seu crescente interesse pelos contos a partir do seu olhar, que fitava a terapeuta e mostrava-se interessado pelas figuras do livro. Assim, ao longo dos encontros, Davi foi sendo contagiado pelas histórias. Os contos possuem material simbólico necessário para cativar a criança, porque fala de seus conflitos, em nível inconsciente, oferecendo-lhe também o conforto das angústias, por isso, o conto é capaz de cativar (Gutfreind, 2010).
Observou-se que o conto da Rapunzel foi importante para Davi diminuir sua ansiedade de separação. Davi ouviu essa história no segundo encontro, em que foi possível perceber o quanto ela lhe foi mobilizadora. Durante a atividade com desenhos, Davi reproduz um menino empinando uma pipa, que fora interpretado pela terapeuta como uma forma de alcançar algo que estivesse alto, como uma torre, mostrando também a sua necessidade de ligação com ela, representada pelo fio que empina a pipa.
Rapunzel, em sua essência, fala de uma mãe possessiva, tanto na figura do desejo da genitora, quanto na da clausura da bruxa. Vale ressaltar que, na grande maioria dos contos, a figura da mãe boa, que geralmente desaparece logo ao início do conto, como em Branca de Neve, Cinderela e Rapunzel, e a bruxa ou a madrasta malvada se referem igualmente às figuras maternas.
No conto Rapunzel, a simbiose é marcada simbolicamente pelos longos cabelos da personagem, como um cordão umbilical, o qual a bruxa utiliza para subir a torre. Simbolicamente, essa torre expressa a clausura da relação simbiótica, havendo, na figura da mãe má (bruxa), a impossibilidade em sair, ou seja, de crescer. Apenas com a chegada do príncipe, o que vai demonstrar o crescimento dessa menina, e a necessidade de ela se afastar dessa mãe, será rompido o cordão simbiótico. Isso ocorre quando a bruxa corta a trança de Rapunzel, ordenando-lhe a ficar no deserto, gerando, com isso, a quebra do vínculo com ela. Porém, o reencontro com o príncipe garante o final feliz, que alivia a tensão do conto, mostrando simbolicamente que é possível sobreviver, crescer e ser feliz após o rompimento simbiótico com a mãe (Corso e Corso, 2006). O conto da Rapunzel foi muito importante para que Davi superasse a ansiedade de separação, diminuindo assim, os tiques, que não apareceram mais no grupo após o quarto encontro. Essas mudanças também foram observadas pela mãe, que relata para a terapeuta que Davi fica mais tranquilo quando ela sai para trabalhar, solicitando, às vezes, que ele realize algumas tarefas sozinho, as quais antes, sem a mãe, geravam muito sofrimento. Segundo Gutfreind (2010), o conto de fadas possibilita à criança expressar o seu sentimento, aliviando com isso as suas tensões internas.
O Teste das Fábulas apresentou grandes diferenças entre sua primeira aplicação e o reteste. Foi possível identificar uma melhora significativa no processo de simbolização, pois, na primeira aplicação, houve uma grande dificuldade em elaborar as histórias, sendo que, no reteste, Davi construiu enredos com início, meio e fim, conforme mostra o Quadro 1.
Observaram-se, na primeira aplicação, respostas mais inseguras e ansiosas, havendo diversos choques. Já na segunda aplicação, realizada após os dez encontros grupais, pode-se perceber uma melhora, principalmente dessa ansiedade, pois as respostas se apresentam mais claras, menos ambivalentes e com menos choques. As Fábulas 2 e 10, do aniversário de casamento e do sonho mau, respectivamente, foram as que geraram maior mobilização na primeira aplicação, sendo que, na segunda aplicação, elas foram mais desenvolvidas, sem a necessidade de defesas.
Com o passar dos encontros, Davi foi se contagiando com os contos e com as brincadeiras. Passou a ter mais facilidade em brincar em grupo, buscando os brinquedos por conta própria, além de mostrar, ao final do grupo, uma maior criatividade nas brincadeiras. A criança, que, ao iniciar, tinha dificuldades em brincar com brinquedos não estruturados, passou a se divertir dentro do grupo, construindo torres, robôs e castelos com blocos de madeira. Além disso, conseguia inventar histórias durante a sua brincadeira que, por vezes, se relacionavam com o conto da Rapunzel, como no caso das construções de torres, onde tentava montar diversas torres, bem altas, fazendo-as cair e divertindo-se com isso, ou seja, libertando-se da prisão da torre, da simbiose com a mãe.
O brincar por si só é terapêutico; estimular e conseguir que a criança possa brincar já é a própria psicoterapia. Quando brinca, a criança traz os objetos e os fenômenos que pertencem à realidade externa. Assim, a criança põe para fora um pouco do material onírico, e, brincando com ele, há a possibilidade de nomear os sentimentos e as angústias, aliviando um pouco o que está em nível inconsciente (Winnicott, 1975).
O teste HTP mostrou diferenças principalmente no desenho da casa. Na primeira aplicação, a casa está inclinada para a esquerda, como se estivesse desabando, sendo que, no inquérito, Davi responde que essa casa é feita de ferro, o que pode significar um ambiente extremamente concreto, mas que também parece estar em fase de desabamento. Uma casa de ferro torna-se semelhante a uma prisão, que simbolicamente estava relacionada a maneira como Davi sentia-se no ambiente familiar, onde era tratado como um "mini-adulto". Durante o período das sessões grupais, foi também realizado um trabalho com a mãe, a fim de que ela pudesse estimular Davi a brincar em casa com objetos não estruturados. Observou-se, então, na segunda aplicação, o desenho da casa sem inclinação, uma casa de tijolos com uma chaminé por onde agora podem sair todas essas pressões (Buck, 2003).
Para Davi, o grupo não significou apenas um espaço para ajudá-lo na resolução de seu conflito, mas também foi importante para contagiá-lo com a magia dos contos de fadas, levando-o para um mundo onde ele pudesse sonhar e brincar, com menos ansiedades e medos. Assim, o príncipe da Rapunzel conseguiu sair da prisão que era sua torre, sem sofrimentos.
A bela do grupo
Ana, nove anos, cursava a quarta série do ensino fundamental. Era uma menina alta para a sua idade, sempre falante e disposta a tudo. Após a morte do pai, semanalmente, Ana e sua mãe visitavam o túmulo onde foi sepultado.
Para Bowlby (2002), a perda dos pais é vista pela criança como um desamparo. Os sentimentos mais comuns nesse caso são o medo do abandono, a saudade e a raiva por não poder ver mais aquele que se foi. Nota-se que perdas repentinas são consideradas as mais difíceis de elaborar em virtude do afetamento da onipotência infantil, pois é mostrado para criança que seus pais não são superpoderosos, como inconscientemente ela imaginava.
De todos os contos lidos, A Bela e a Fera foi muito importante para ela, pois possibilitou acessar o seu luto. Durante a leitura deste conto, Ana permaneceu em silêncio, absorvendo a história. Após o desenho que faz da sua casa em cima de uma rua asfaltada, o que mostra como essa casa necessita de apoio firme, de um alicerce sólido, ela fala do pai.
Após essa conversa, Ana vai para a casinha colocando diversos bonecos dentro e Lucas pede para ajudá-la. Acham uma coroa e brincam de ser a rainha, e Ana se torna a Bela. Lucas pede também para colocar a coroa em sua cabeça, dizendo ser um rei. Esse momento traduziu a cumplicidade de Lucas em relação à história de Ana, pedindo para brincar com ela na casinha e dando-lhe uma coroa para que ela se sentisse a Bela. A brincadeira foi necessária naquele momento para que ela elaborasse toda a angústia que surge após ouvir o conto e falar do pai.
O Teste das Fábulas mostrou, na primeira aplicação, o choque ao responder à Fábula 4, correspondente ao enterro. Esse choque permanece também na segunda aplicação, sendo que, nesta, Ana também faz uma auto-referência à sua própria história, falando que foi visitar seu pai no cemitério (Cunha e Nunes, 1993).
A maioria das respostas de Ana são ativas e adaptadas, com exceção da Fábula 3, do cordeirinho, em que a resposta foi ambivalente e não adaptada na primeira aplicação, sendo que, na segunda, torna-se adaptada, porém, ainda com ação ambivalente. A principal diferença entre as duas aplicações está na composição das histórias, que se tornaram mais longas, com enredos mais consistentes, com início, meio e desfecho (Cunha e Nunes, 1993).
O teste HTP mostrou diferenças significativas no desenho da árvore e da pessoa. No primeiro desenho, a árvore era pequena, possuía chão e raízes expostas, sugerindo regressão, preocupações consigo mesma além da fixação no passado. Houve rotação da página sugerindo grande angústia. Há linha do solo, sugerindo necessidade de segurança e ansiedade. A exposição das raízes que estão visíveis pode ser comum em crianças, mas também sugerem uma necessidade sólida de apoio. Na segunda aplicação, a árvore se torna grande, sugerindo uma busca de satisfação supercompensatória, fantasia e/ou hipersensibilidade. O mesmo acontece com o desenho da pessoa, que, na primeira aplicação, é pequeno e, na segunda, grande, chegando a ser cortada pela margem da folha (Buck, 2003).
O desenho da árvore ajuda a compreender como é a visão do individuo em relação ao seu ambiente. Já o desenho da pessoa mostra a capacidade do indivíduo para atuar em relacionamentos e "para submeter o self e as relações interpessoais a uma avaliação crítica objetiva" (Buck, 2003, p. 57).A mudança entre um desenho pequeno que significa, no caso da árvore, uma inadequação em lidar com o ambiente para um grande, que sugere uma busca pela satisfação, mostra que Ana passou a compreender melhor o que está acontecendo em seu ambiente, apesar das pressões que ainda a afetam. Já o desenho da pessoa, que se torna, no segundo momento, grande e com tronco e braços desproporcionais ao restante, sugere impulsos insatisfeitos e vividos de forma intensa (Buck, 2003).
Os desenhos de Ana, bem como o Teste das Fábulas, mostram que ainda permanecem os conflitos anteriores, porém, o que mudou foi a sua forma de percebê-los e senti-los. As pressões ambientais ainda são sentidas e ainda há sofrimento, porém, percebe-se que Ana procura meios de lidar com esse turbilhão de sentimentos, encaminhando-se para a fantasia. Percebe-se, conforme estudado por Bettelheim (2007), que os contos ajudam a criança a nomear os seus sentimentos, o que garante um alívio das tensões causadas pelos conflitos.
O Pinóquio espertalhão
Diogo, sete anos, estudava na primeira série do ensino fundamental, numa escola no interior da cidade. Sua família é grande, e Diogo é o filho caçula de oito irmãos, já adultos. Esses irmãos são do primeiro casamento do pai, que, após separação, casa-se novamente. O pai, já aposentado, é quem cuida do filho durante o dia, enquanto a esposa trabalha. Os irmãos são casados e assim, Diogo, enquanto não está na escola, passa o dia em casa com o pai, sem ter muito contato com outras crianças, pois onde moram não há muitas famílias.
Nos encontros, Diogo se mostrou sempre agitado e inquieto. A dificuldade maior foi em brincar e dividir os brinquedos com as demais crianças. Durante a leitura do conto, enquanto as demais crianças ouviam atentamente a história, Diogo movimentava-se exageradamente na cadeira, puxava o livro e prejudicava a atenção dos demais.
A mesma dificuldade que os pais colocaram sentir em impor limites em Diogo também foi sentida pela terapeuta quando do trabalho desenvolvido dentro do grupo, pois, por diversas vezes em que o limite foi imposto, Diogo demonstrou resistência e dificuldades em aceitar. Sua agitação, por vezes, acabava agitando as demais crianças, sendo que Diogo tentava, a todo o momento, chamar a atenção. Uma das principais dificuldades era em relação a algumas regras do grupo, como, por exemplo, a de não mexer na câmera que filmava o grupo. Em praticamente todos os encontros, Diogo levantava de sua cadeira para ver a câmera, mexendo nela. Em todos esses momentos, foi lembrado o combinado, porém, Diogo parecia não dar importância aos acordos firmados.
Foi possível observar que Diogo apresentava comportamentos de liderança dentro do grupo, convocando os demais para as brincadeiras. Porém, em diversas situações, possuía uma postura de líder negativo, convocando outras crianças para brincadeiras que transgrediam as regras estabelecidas pelo grupo. Todos esses comportamentos também eram percebidos na escola e em casa. Além de uma posição de líder, era possível perceber que Diogo representava também um papel de "sabotador", que, segundo Zimmerman (1993), trata-se do paciente que, através dos seus recursos resistenciais, acaba por criar obstáculos no andamento da tarefa grupal.
No sexto encontro, tendo sido lido o conto do Pinóquio, Diogo pede água para beber, sendo que as demais crianças também dizem sentir sede. Entre o tempo de a terapeuta entregar os copos a Diogo e Lucas e sair para buscar o terceiro copo para Ana, Diogo convida Lucas a competir para ver quem bebe tudo antes. Após isso, Diogo sai correndo da sala em direção ao bebedouro, sendo que, no trajeto, bate em uma pessoa que por ali passava. A terapeuta conversa com as crianças, conforme a transcrição a seguir:
Terapeuta - Vocês percebem que isso não é um comportamento legal, vocês acabam saindo correndo...
Diogo - Não, eu e o Lucas saímos caminhando, né?
Terapeuta - Quando a gente faz alguma coisa que a gente sabe que não é legal, a gente pode dizer que fez aquilo. Às vezes é sem querer, por impulsividade, porque a gente não pensou, mas acabou errando. Não tem nada de errado a gente assumir o que faz. Todos nós erramos.
Durante esse diálogo Diogo permanece inquieto, dando risadas e falando sobre outros assuntos. Foi possível observar a inquietação de Ana, que pede a todo instante para o Diogo ouvir e parar de mexer nos brinquedos. Essa atitude traduziu a dificuldade de Diogo em compreender os limites e aceitar as regras. A terapeuta se utiliza da metáfora do conto para ajudá-los a compreender os seus comportamentos.
Terapeuta - Essa história fala exatamente do que aconteceu aqui hoje. Fala de um menino que não conseguia seguir ordens. O que o Gepeto dizia pro Pinóquio?
Ana - Para ir pra escola.
Lucas - E ele foi pro parque de diversões, ele desobedeceu o pai dele.
Terapeuta - E o que a fada dizia para ele?
Lucas - Volte para casa depois da escola.
Terapeuta - E que era para ir pra escola também.
Diogo - Ahhhhh
Terapeuta - E o que Pinóquio fazia?
Lucas - Ele ia primeiro brincar com os amigos deles e daí ele se atrasava muito pra ir.
Terapeuta - Exato, ele acaba não indo pra escola, ele desobedecia a ordem do pai e da fada.
Lucas - O Gepeto foi pro mar procurar o Pinóquio e daí apareceu uma baleia daí a baleia engoliu o Gepeto junto, e no final ele resgatou o pai dele.
Terapeuta - Isso aí. Porque o Pinóquio acabava desobedecendo a ordens.
Ana - Não, mas só do pai dele.
Diogo - Mas daí quando a fada, como viu que ele é bem corajoso e obediente, transformou ele num menino de verdade que nem no sonho dele.
Após esse diálogo, que possibilitou falar que Pinóquio também tinha dificuldades em respeitar as regras e os limites, foi possível observar que as crianças passam a desenhar e brincar mais tranquilas. Ao final, Lucas fala que Gepeto fora engolido por uma baleia, mas que foi salvo por Pinóquio. Essa frase mostra a eles que o mundo lá fora é cruel, mas que, se as pessoas agirem de maneira sincera e respeitarem os outros, podem sair vitoriosas.
A fala final de Diogo mostra que, com a metáfora do conto, foi possível introjetar que é possível um final feliz, mediante nossos esforços, respeito e cumprimento das regras. Esse momento foi muito importante para Diogo, pois sua principal queixa era exatamente a dificuldade no cumprimento de regras.
Pinóquio, no inicio da história, não é um menino de verdade, e sim um boneco de madeira, manipulável. Mas a sua rebeldia e seus repetidos erros, além do sentimento de culpa e do remorso, transformam-no em um humano, que erra e que se culpa. Pinóquio fala dessa realidade, em que errar é humano e insistir nos erros é mais humano ainda, pois isso que é a neurose, voltar sempre para o mesmo caminho já percorrido (Corso e Corso, 2006).
Assim, foi possível perceber que a aproximação do descumprimento de regras dentro do grupo, com a história do Pinóquio, ajudou as crianças a nomearem aquela atitude como humana e normal, porém, que também se precisa ter coragem para assumir as coisas que são feitas de errado se se tem a pretensão de que tudo termine bem.
O Teste das Fábulas mostrou poucas diferenças entre a primeira e segunda aplicação. De todas as crianças, Diogo foi visivelmente o que menos apresentou melhoras da queixa inicial. Ao final do grupo, Diogo manteve as mesmas dificuldades do inicio, principalmente no que tange à agitação e à aceitação dos limites. Porém, observou-se que Diogo, ao final, passou a ter mais paciência para escutar e mais facilidade em dividir os brinquedos.
Tanto na primeira como na segunda aplicação, foi possível observar marcas fortes do processo de castração, sendo evidenciado pela angústia e pela ansiedade. Também há o medo, fantasia de abandono e rejeição. Mostrou-se também a ansiedade marcada pela presença de uma mãe controladora e possessiva que não permite a independização do filho, causando-lhe dificuldades no seu processo desenvolvimental. A figura do pai como castrador é evidenciada, sob o símbolo do jacaré, que não permite a criança entrar no açude (símbolo da mãe), causando-lhe também forte angústia, caracterizada pela mobilização que a fábula lhe trouxe.
O teste não apontou melhoras na construção das histórias, ou seja, no processo de simbolização, sendo que, nas duas aplicações, houve dificuldades em compor uma história, sendo necessários diversos questionamentos da terapeuta para estimulá-lo a imaginar e concluir a fábula.
No caso de Diogo, foi possível observar que os conflitos internos são de uma maior complexidade, muito ligados ao complexo de castração, além de uma grande dificuldade de vínculo com a mãe. O que se observou foi que os dez encontros grupais não foram suficientes para atuar na sua problemática, sendo que os contos de fadas foram mais importantes para trabalhar questões comportamentais vistas na relação grupal, os quais possivelmente não teriam surgido se fossem em um espaço individualizado.
O pequeno borralheiro
Aos quatro anos, Lucas foi retirado do convívio da mãe, usuária de drogas, e, ao entrar na escola, as queixas começam a surgir. O pai, em entrevista, conta que o filho é muito querido, atencioso e carinhoso. Porém, às vezes, nota que o filho sofre com a falta da mãe.
O pai fala, durante a entrevista, das dificuldades em lidar com a mãe de Lucas, que possuí comportamento bastante opositor. O casal separou-se logo após o nascimento da terceira filha, momento em que também a mãe volta a fazer uso de drogas. A partir daí, o pai passou a morar com o filho mais velho de doze anos, e a mãe ficou com a guarda da filha recém-nascida e de Lucas. Nesse período, por diversas vezes, a mãe fez uso de drogas na frente do menino. Além disso, o pai relatou que a mãe sempre teve dificuldades no cuidar dos filhos.
Parte-se da ideia de que é através do contato com a mãe que se torna possível ao bebê fantasiar a existência de um seio criado somente para ele para atender as suas necessidades. Com isso, cria-se uma fantasia e uma ilusão de que, quando ele desejar esse seio, ele lhe será apresentado. Falhas nesse processo, tanto no que diz respeito à mãe suficientemente boa quanto na preocupação materna primária, podem provocar um retorno ao estado de isolamento (Lima, 2010).
Essas falhas no processo de ilusão podem acarretar dificuldades na criatividade, dificuldade de nomear os significados e organizar experiências. Porém, se, ao contrário, o desenvolvimento ocorrer de forma saudável, o bebê passa a conseguir experimentar o mundo através de sua ilusão e representar esses mundos, ou seja, simbolizar. E vai ser a partir dos objetivos transicionais e do brinquedo que constituirá a capacidade de formar os símbolos (Lima, 2010).
A relação com a mãe sempre foi muito permeada pelas dúvidas e pelos medos. Nunca foi dito a Lucas de maneira clara o porquê de sua mãe ter se afastado da família e o porquê de ela não o visitar mais. Isso gerou sentimentos confusos para ele, que estão sendo difíceis de compreender, onde há raiva, mas também há saudade.
Winnicott fala da mãe suficientemente boa, porém, é importante destacar que esse termo não faz alusão a uma mãe que não falha. Essa mãe vai sustentar o processo de ilusão, mas também de desilusão, da presença e da ausência, da satisfação e da insatisfação, do amor e da frustração. Essa mãe falha e deve saber falhar (Winnicott, 2000). A função materna diz respeito à relação estabelecida entre mãe e o bebê, além dos seus cuidados e a forma como ela lhe proporciona o holding (Santos, 1999).
Nota-se que a ausência da mãe é grande e vai de encontro à necessidade de Lucas de um holding materno. A ausência da mãe é vista principalmente pelos desenhos, os quais retratam o menino, seus irmãos e seu pai. Quando questionado sobre a mãe, ele simplesmente fala que ela não vive mais com eles. Em apenas um desenho, Lucas faz referência à mãe que está dentro de um ônibus, indo embora.
Observou-se que o conto da Gata Borralheira foi importante para desencadear pensamentos a respeito das brigas com o irmão e, principalmente, para trabalhar essa problemática. Observou-se que o conto abriu caminho para acessar essa problemática, conforme transcrito a seguir:
Lucas - Teu irmão te bate, Ana?
Ana - Não.
Terapeuta - Teu irmão te bate, Lucas?
Lucas - Sim, e eu quebro a cara dele.
Diogo - Mas ele não pode. É que nem no jogo, se um te dá um chute tu não pode dá outro de volta, se não tu vai expulso.
Terapeuta - Se no jogo é assim, na vida, será que é como?
Ana - É o mesmo.
Lucas - E depois, eles têm que me bater.
Terapeuta - E por que ele te bate?
Lucas - Porque o jogo é pros dois, daí eu "intico" ele e ele leva.
Terapeuta - Como a Gata Borralheira teria se virado nessa história, porque ela tinha irmãs e a madrasta que eram más com ela, e o que ela fez, ela batia nas irmãs, ela brigava com elas?
Diogo - Não fazia nada.
Terapeuta - O que ela fazia então?
Diogo - Ela não batia nas irmãs.
Terapeuta - E no final, não deu tudo certo, sem bater nas irmãs?
Ao final desse diálogo, Lucas pede para fazer mais desenhos, sendo que, nesse dia, produziu quatro ao todo. No primeiro, ele faz o planeta terra e diversos outros planetas ao redor; no segundo, desenha pai, irmão e irmã na chuva; no terceiro, faz um vulcão com uma casa e um menino; e, no último, faz um ônibus, onde, após questionado, diz estar a mãe.
É interessante notar a sequência dos desenhos e o simbolismo por detrás deles, onde se percebe um ambiente conturbado e violento, simbolizado pelo vulcão onde está a sua casa. O pai e os irmãos estão na chuva, mostrando desproteção, além de Lucas sentir-se distante de todos, pois se desenha em folha separada, em cima de um vulcão, ou seja, em cima dos conflitos familiares, onde pode haver culpa por tudo o que está acontecendo. A mãe está retratada no quarto desenho, dentro de um ônibus, ou seja, indo embora dessa família. Os desenhos mostram como Lucas percebe toda essa situação familiar, além de uma possível culpa por esta mãe ter saído do lar.
O conto da Gata Borralheira pode ter ajudado Lucas a internalizar e dar sentido a todos os sentimentos que provocam sua agressividade. Esse conto fala especialmente sobre a rivalidade fraterna e sobre como a personagem se sente dominada por suas meias-irmãs. Seus interesses acabam sendo sacrificados pela mãe, ou madrasta, sendo obrigada a fazer trabalhos sujos e não recebendo nenhuma gratificação por isso. É exatamente assim que se sente a criança quando há a rivalidade fraterna (Bettelheim, 2007).
Lucas talvez se sinta como a Gata Borralheira, que tem irmãos com quem compete pelo olhar da mãe madrasta. Não foi por nada que Lucas se lembrou das brigas com o irmão e de como isso é agressivo às vezes, porque realmente é assim que ele se sente, dividindo a atenção do pai com os dois irmãos e tendo a mãe afastada do lar. Os desenhos de Lucas mostram exatamente isso, quando ele desenha os irmãos em uma folha e se desenha em outra em cima de um vulcão, onde há intensidade, instabilidade. Esse afastamento fala da rivalidade, fala de como é difícil ter irmãos e de dividir a atenção dos pais.
No Teste das Fábulas, foi possível perceber que as respostas fazem bastante referência à figura materna. Na Fábula 1, há a separação dos pais, um para cada galho, e da criança também, mostrando a fantasia de rejeição que é marcada também na Fábula 2. Na Fábula 4, a morte é de uma mulher, figura possivelmente representativa de sua mãe. Foi necessário "matar" simbolicamente essa mãe para aliviar as mobilizações das fábulas anteriores. É possível também uma má resolução do complexo de castração, aparecendo esse conteúdo nas Fábulas 5, 6 e 10, sendo que há um medo por esse processo.
Na retestagem, é possível observar que ainda há a fantasia de rejeição e abandono, principalmente na Fábula 1. Porém, as respostas são mais ricas em conteúdo, com início, meio e fim, o que mostra uma melhora nos processos de simbolização. Além disso, alguns conflitos que na primeira testagem apareceram carregados de defesas, na retestagem, mostram uma evolução, com respostas mais claras e sem a necessidade de defesas. Ainda pode haver a rejeição, porém, a forma como Lucas dá o final para a fábula mostrou que esse sentimento já não é tão carregado de culpa.
O que se pode notar no caso de Lucas é que ele obteve, com a participação no grupo e com o acesso aos contos, a possibilidade de nomear seus sentimentos, que de tão confusos lhe causavam agressividade, raiva e irritabilidade. Sua melhora é vista principalmente na calma com que realizava as tarefas e, principalmente, na facilidade em falar daquilo que lhe incomodava.
Considerações finais
Foi possível constatar uma relação entre os fenômenos observados no grupo de Contos de Fadas e a teoria apresentada especialmente por Bettelheim (2007), Gutfreind (2010) e Corso e Corso (2006). Essas observações competem especialmente ao fato de os contos ofereceram às crianças a possibilidade da nomeação dos afetos, capacidade e desenvolvimento da imaginação e simbolização, orientação aos seus conflitos, principalmente a partir da identificação com os personagens.
Os contos de fadas tornaram-se terapêuticos, pois atuaram na construção de espaços transicionais, onde cada criança teve a possibilidade de identificação com algum personagem específico que se aproximou de sua problemática e, a partir dessa relação, pôde ressignificar sua própria história, diminuindo assim, a angústia, a agressividade, as ansiedades e os medos. Através dos resultados do Teste das Fábulas, foi possível observar que os contos de fadas contribuíram significantemente no desenvolvimento da capacidade de imaginação e simbolização dos participantes.
Três das quatro crianças avaliadas mostraram melhoras nesse processo, pois, na segunda testagem, as respostas ao teste foram mais elaboradas, com maior riqueza de conteúdos, tendo maior definição no início, no meio e no desfecho. Quanto à criança que não apresentou melhoras significativas, entendeu-se que os dez encontros não foram suficientes para dar conta de toda a problemática e dos conflitos por ele apresentados. Pode-se apontar que alguns casos requerem um trabalho mais intenso e com tempo não previamente determinado, bem como com a utilização de outros dispositivos psicoterapêuticos.
Pode-se dizer que não foram apenas os contos de fadas que contribuíram para uma melhora nas queixas inicias e nos processos de simbolização, mas o próprio convívio e as trocas de experiências vivenciadas entre o grupo. O objetivo da terapia grupal é contribuir para a mudança intrapsíquica dos pacientes através da vinculação, da troca de ideias e sentimentos. A participação de outras crianças estimula a espontaneidade que, por vezes, aparece apenas no convívio grupal. A troca entre o grupo favorece certo espelhamento, onde cada um pode ver no outro os mesmos temores e fantasias e sentir-se acolhido e compreendido (Leviski, 1997; Castro, 2009).
Além disso, o momento do desenho mostrou-se muito importante para a externalização dos sentimentos e o desenvolvimento da criatividade. Em todos os encontros, as crianças desenharam após a narração do conto, sendo proposto que elas desenhassem aquilo que elas tivessem vontade em relação ao conto, ou sobre outros assuntos. O objetivo desse momento foi deixar a criança livre para expressar artisticamente aquilo que o conto mobilizou.
Da mesma forma que o desenho, a brincadeira também se tornou um momento importante para elaboração dos conteúdos evocados no conto. Observou-se que cada conto afetou as crianças de maneira particular, pois algumas brincadeiras eram mais calmas, enquanto outras eram permeadas pela agitação e pela competição.
Segundo Winnicott (1975), o brincar se desenvolve no espaço potencial através da oportunidade de a criança experienciar a separação da figura materna. O brincar permite a construção do self, pois, através da manipulação dos fenômenos transicionais entre a realidade interna do individuo e a realidade compartilhada, ele se encontra e permite a construção e a existência do eu.
Dessa forma, foi possível concluir que o Grupo de Conto de Fadas possibilitou a melhora nas queixas iniciais de cada criança, que competiam especialmente à agressividade e à ansiedade, além de contribuir no desenvolvimento dos processos de simbolização. Observou-se que isso se deu através da presença dos contos como mediador nesse processo, mas também pela utilização do desenho como ferramenta terapêutica e do brincar como possibilidade de elaboração.
Referências
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Submetido: 08/08/2013
Aceito: 16/12/2013