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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.8 no.1 São Leopoldo jun. 2015

https://doi.org/10.4013/ctc.2015.81.10 

ARTIGOS

 

Práticas clínicas e o cuidado possível no CAPSi: perspectivas de uma equipe interdisciplinar

 

Clinical practice and possible care in CAPSi: perspectives of an interdisciplinary teamwork

 

 

Aracelly Castelo Branco OliveiraI; Lilian MirandaII

IUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Instituto de Educação. Departamento de Psicologia. BR 465, Km 07, 23890-000, Seropédica, RJ, Brasil. ara_cb@yahoo.com.br
IIEscola Nacional de Saúde Pública-Fiocruz. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, Manguinhos, 21041-210, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. limiranda78@hotmail.com

 

 


RESUMO

Os Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi) são as principais instituições públicas de saúde a oferecer atenção diária a crianças e adolescentes que demandam cuidados em saúde mental. Ainda são incipientes os estudos que discutem seu modo de funcionamento e eficácia clínica. Este artigo se constitui como um estudo descritivo e exploratório, cujo objetivo é apresentar os aspectos centrais do funcionamento de um CAPSi situado numa cidade de pequeno porte do estado do Rio de Janeiro. Através do método qualitativo, foram realizadas, ao longo de três meses, pesquisa documental, entrevistas com os profissionais do referido serviço e observação participante das reuniões de equipe e de atividades terapêuticas. A interpretação do material empírico foi feita através de análise temática. Observou-se que as propostas clínicas se pautam na preocupação em dirigir o cuidado a partir das demandas dos pacientes, através de projetos terapêuticos que devem ser viabilizados coletivamente pela equipe. A supervisão clínico-institucional se mostra como importante sustentação da prática cotidiana e mediação para as relações interprofissionais. Um dos principais desafios do serviço é lidar com a sensação de que precisa responder, sozinho, a todas as demandas que envolvem sofrimento psíquico de seu público. A escassez de serviços na rede e as pressões políticas são problemas que convivem com a dificuldade cotidiana de lidar com o sofrimento psíquico das crianças e seus familiares. A despeito disso, os profissionais e o supervisor apostam na construção constante de um trabalho criativo e sensível às questões psicossociais dos pacientes.

Palavras-chave: CAPSi, saúde mental, infância, equipe interdisciplinar, cuidado em saúde.


ABSTRACT

The Center for Psychological Care of Children and Adolescents (CAPSi) has been considered the major public health institution providing daily care for children and adolescents requiring mental health care. It is a service that replaces the asylum model, proposing operations in intersectoral care networks. However, studies discussing its mode of operation and clinical effcacy are still scarce. This article presents the results of a descriptive and exploratory study whose aim was to present the key aspects of run-ning a CAPSi located in a small town of the State of Rio de Janeiro. We used a qualitative approach to conduct documentary research, to interview the professionals of that center and to take part in the staff meetings and therapeutic activities as observers over three months. Interpretation of empirical material was performed through thematic analysis, taking into account the following thematic axes: specificities of the municipality studied; relationship between the center and the party-political context; organization of care services; relationship with the health system and the intersectoral network; care supporting strategies. We observed that clinical proposals are guided by the concern to manage care according to patient demands, by means of therapeutic projects which must be collectively implemented by the staff. Clinical and institutional supervision has shown to be an important support of daily practice, as well as the mediation of inter-professional relationships. One of the main challenges of this CAPSi is dealing with the feeling that it needs to meet, all by itself, all the demands that involve the psychic suffering of its public. The scarcity of those services within the network and the political pressure are issues that go hand in hand with the daily diffculties in dealing with the psychic suffering of the children and their relatives. Despite all that, the professionals and their supervisor keep investing in the permanent building of a creative and sensitive work that is sensitive to the psychosocial issues of their patients.

Keywords: CAPSi, mental health, childhood, interdisciplinary staff, health care.


 

 

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPSi) são as principais instituições públicas de saúde a oferecer atenção a crianças e adolescentes que demandem cuidados em saúde mental. Influenciados pela Reforma Psiquiátrica (RP), constituem-se como um serviço substitutivo ao modelo manicomial, devendo funcionar em Redes de Atenção, concomitantemente a dispositivos de saúde, educação, cultura, lazer e serviço social (Lauridsen-Ribeiro e Tanaka, 2010).

Estudos sobre o funcionamento dos CAPSi reconhecem sua potencialidade, representada em propostas como o atendimento interdisciplinar, acolhimento das demandas psicossociais dos pacientes e tratamento contínuo, capaz de evitar internações e consequentes separações entre as crianças ou adolescentes e os profissionais com quem construíram vínculos. Nesse sentido, Pinto (2007) afirma que a criação do CAPS vem justamente se opor à lógica médica e ao modelo asilar praticado ao longo dos anos até o marco do movimento da RP brasileira, quando se passou a estruturar organizações acolhedoras das diferentes for-mas de subjetividade, com espaços de escuta das mesmas.

Contudo, Avellar e Ronchi (2010) pontuam que, apesar do crescimento do número de CAP-Si em todo o país, ainda verificamos uma grande escassez de serviços de atenção psicossocial voltados à infância e adolescência, além da concentração dos mesmos nos grandes centros urbanos, o que contrasta com dados de pesquisas nacionais que confirmam a alta prevalência de transtornos mentais nessa faixa etária (Paula et al., 2012; Paula et al., 2007). Por outro lado, ainda que se reconheça a baixa cobertura de serviços, Couto et al. (2008) apontam que, mais do que a ausência de recursos, o problema a ser ressaltado é a desarticulação dos serviços públicos para a infância e adolescência. Assim, tal como adverte Pitta (2011), a política de saúde mental brasileira tem na constituição de redes um de seus maiores desafios.

Atentos a esse tipo de desafio, Avellar e Ronchi (2010) lembram que as novas propostas pós-Reforma Psiquiátrica se baseiam em uma forma de pensar a partir da promoção da intersetorialidade das ações e da particularização do atendimento ao público infantojuvenil, considerando-o como formado por cidadãos de direito, para quem o tratamento deve respeitar várias especificidades, as quais eram desconsideradas anteriormente. Através de uma leitura winnicottiana, as autoras lembram a importância do trabalho de acolhimento e adaptação ativa às necessidades singulares de cada usuário, a ser feito pelo CAPSi em suas diferentes modalidades de atenção.

Experiências mais positivas com relação à articulação de redes são apontadas por Delfini e Reis (2012), cujas pesquisas encontraram avanços na articulação entre CAPSi e unidades básicas de saúde da cidade de São Paulo/ SP. Segundo os autores, tem havido gradativo aumento da inclusão da saúde mental nas ações da Estratégia de Saúde da Família, seja através de compartilhamento de responsabilidades entre profissionais ou de uso de recursos comunitários. Para tanto, o apoio matricial mostra-se como importante ferramenta.

Ainda que possamos contar com pesquisas e reflexões desenvolvidas pelos autores acima citados, não podemos deixar de considerar que os CAPSi e a própria política de saúde mental voltada para crianças e adolescentes são recentes, contando com poucos estudos sobre o modo como se estruturam, os resultados que têm alcançado e os processos terapêuticos que envolvem. Essa escassez precisa ser enfrentada, já que as especificidades da população infantojuvenil exigem a criação de estratégias de intervenção adequadas a esta fase do desenvolvimento e suas manifestações psicopatológicas (Couto et al., 2008).

Considerando o pequeno número de publicações sobre saúde mental infantojuvenil em geral e, especificamente, sobre as práticas clínicas, este artigo se constitui como um estudo descritivo e exploratório, cujo objetivo é apresentar os aspectos centrais do funcionamento de um CAPSi situado numa cidade de pequeno porte do estado do Rio de Janeiro. Os objetivos específicos são: mapear o funcionamento geral de um CAPSi no que diz respeito à demanda atendida, recursos humanos e materiais disponíveis; mapear as principais demandas dos pacientes, tal como são identificadas e compreendidas pelos profissionais; conhecer as estratégias clínicas desenvolvidas no serviço e o modo como são planejadas e significadas pelos profissionais.

 

Método

O estudo descritivo e exploratório aqui apresentado foi realizado a partir de uma abordagem clínico-qualitativa (Turato, 2010), cujo campo de pesquisa foi o CAPSi do município de Paracambi (RJ). As estratégias metodológicas utilizadas foram entrevistas semidirigidas, observação participante e a pesquisa documental.

As entrevistas foram realizadas durante três meses no ano de 2013, com a gestora, o supervisor e três profissionais de distintas categorias - enfermeira, oficineiro e psicóloga - que tinham envolvimento direto com práticas clínicas desenvolvidas no serviço. Cada entrevista durou em média uma hora, sendo realizada em um dos consultórios disponíveis no CAPSi. O roteiro de questões das entrevistas abordou os seguintes temas: história profissional, funções e atividades desenvolvidas no CAPSi, principais questões despertadas no trabalho com as crianças e adolescentes, relação com os familiares, relação do serviço com a rede.

A observação participante foi realizada ao longo de três meses consecutivos (maio, junho e julho de 2013) nas reuniões de equipe e supervisões clínicas (que aconteciam em equipe), reunião de familiares e espaços abertos de convivência. Essas observações eram registradas em diário de campo pela pesquisadora, que se mantinha numa posição de discrição, interagindo com profissionais e usuários apenas quando solicitado por estes.

Os documentos pesquisados foram alguns prontuários de pacientes que estavam em atendimento há pelo menos seis meses. Foram observados os registros de informações acerca das práticas clínicas de que esses pacientes participavam.

Trabalhamos o material empírico a partir de análise temática (Minayo, 2010). Foram feitas sucessivas leituras flutuantes das transcrições das entrevistas e das anotações das observações. Em seguida, foram delimitadas categorias temáticas, partindo-se da identificação dos assuntos e questões que atendiam um ou mais dos seguintes critérios: aqueles que se mostravam mais frequentes, mobilizavam a equipe, destacavam-se pela sua diferença em relação ao que vinha sendo dito ou observado, provocavam interrogações ou surpresa na pesquisadora, apontavam possibilidade de fecundo diálogo com aspectos que a pesquisa bibliográfica indicava ser importantes. Foram construídas as seguintes categorias: especificidade do município estudado; relação do serviço com o contexto político e organização da assistência; relação com a rede; estratégias de apoio ao cuidado; desafios.

 

Resultados e discussão

Neste tópico, apresentamos e discutimos os eixos temáticos organizados a partir do material empírico da pesquisa: especificidades do município do serviço estudado; relação do serviço com o contexto político-partidário; organização da assistência; relação com a rede de saúde e intersetorial; e estratégias de apoio ao cuidado. Tais eixos estão interligados entre si, aparecendo separados apenas para se fazerem mais claros.

É importante explicitar ainda que, durante todo o período de pesquisa de campo e análise, a pesquisadora principal não estava inserida em nenhum contexto institucional de trabalho em saúde. Além disso, o serviço estudado e a equipe lhe eram desconhecidos. Esses fatores desencadearam um envolvimento profundo com as observações participantes e em significativas aprendizagens com os profissionais do CAPSi, a despeito dos problemas e desafios identificados.

Especificidades do município estudado: breve apresentação

A pesquisa foi desenvolvida no município de Paracambi, situado no Estado do Rio de Janeiro. Nele existiu um grande hospital psiquiátrico denominado Casa de Saúde Doutor Eiras (conhecido na cidade como "Dr. Eiras"), criado em 1962, com capacidade para receber mais de 1.600 pacientes (Fernandes, 2001). Ao longo do seu funcionamento, sustentado prioritariamente através do convênio com o Ministério da Saúde, manteve internações financiadas pelo governo federal, chegando a ser considerado o maior hospital psiquiátrico privado da América Latina.

Com o passar dos anos, Dr. Eiras sofreu diferentes processos de precarização, expondo os usuários internados a condições subumanas de sobrevivência. Em 8 de novembro de 2000, quando contava com mais de 1.500 internos, a Secretaria de Estado de Saúde proibiu novas internações.

A partir da publicação da lei federal 10.216/2001 e da implementação das diretrizes do Ministério da Saúde a respeito da nova política de saúde mental, Dr. Eiras passou a sofrer intervenções do poder público. Muitos pacientes receberam alta e passaram a ser acompanhados regularmente, sendo acolhidos em suas famílias de origem ou em Residências Terapêuticas criadas no próprio município e em cidades da região, como um dos serviços substitutivos ao modelo manicomial. Através deste processo, foi possível diminuir o número de internos e de óbitos no hospital.

Vale ressaltar que, ao longo de seu período de funcionamento, o hospital assumiu um papel importante na cidade, na medida em que esta passou a ser conhecida em todo o estado a partir da oferta de internações psiquiátricas de longa permanência. Além disso, por muitos anos, Dr. Eiras se configurou como principal fonte de empregos do município de Paracambi, movimentando a economia e atraindo profissionais de saúde, principalmente médicos e enfermeiros. Neste contexto, a história da cidade e a cultura local são marcadas pela presença predominante do manicômio e sua lógica, marcas essas que ainda se fazem notar, a despeito do processo de fechamento do hospital e criação de uma rede substitutiva.

Mesmo após o fechamento da Casa de Saúde Dr. Eiras, ainda funciona na cidade um Hospital Psiquiátrico particular, denominado Hospital da Cascata, com cerca de cem pacientes em regime de internação de longa duração, sendo muitas dessas internações financiadas pelo SUS. De toda forma, desde a intervenção no Dr. Eiras, iniciada em 2002, foram implantados na cidade serviços substitutivos de saúde mental, além de outras unidades de saúde, de tal modo que, atualmente, ela dispõe de (Paracambi, 2013):

• 1 Hospital Municipal (Clínica, Pediatria e Polo de Saúde Mental). O Polo de Saúde Mental oferece leito psiquiátrico dentro do Hospital Geral, tendo sido criado em 1992, durante o funcionamento do Hospital Psiquiátrico Dr. Eiras, com o objetivo de avaliar a adequação dos encaminhamentos das internações para esse local.

• Atenção Básica com 8 equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF)

• 5 Postos de Saúde

• 3 CAPS (CAPS I, CAPSAD, CAPS II)

• 20 Residências Terapêuticas (RT's)

• Hospital Psiquiátrico particular - Hospital da Cascata, onde ainda verificamos internações e práticas comuns ao antigo modelo manicomial.

A gestão da rede de saúde mental do município é feita por um colegiado, composto por gestores dos diversos serviços que se encontram periodicamente. A coordenadora do CAPSi estudado compõe este colegiado.

O acompanhamento do público infantojuvenil foi iniciado no Polo de Saúde Mental do município, em uma sala destinada ao atendimento de crianças, adolescentes e seus familiares, com demandas por consultas individuais. Em decorrência desse trabalho, em janeiro de 2010 foi regulamentado um ambulatório, nomeado como "Ambulatório Ampliado Infantojuvenil" Adriano de Oliveira Passos. Em 2013, este foi habilitado como CAPSi.

A coordenadora e grande parte da equipe se mantêm desde a implantação do serviço que, há quatro anos, funciona de segunda-feira a sexta-feira, das 9 às 17 horas. A equipe é composta de 19 profissionais: 1 coordenadora, 1 fisioterapeuta, 1 médica, 1 psicopedagoga, 4 psicólogas, 1 psicólogo supervisor, 1 enfermeira, 1 técnico de enfermagem, 1 fonoaudióloga, 1 oficineiro, 1 musicoterapeuta, 1 recepcionista, 1 auxiliar de serviços gerais, 1 técnico administrativo, 1 cozinheira, 1 auxiliar de cozinha.

O desmonte da estrutura manicomial e a criação de uma rede de serviços de saúde mental, contudo, coexistem com heranças do manicômio. Segundo os entrevistados, é possível perceber de várias formas, inclusive através de conversas com moradores e profissionais da área de saúde, o predomínio da patologização do sofrimento psíquico e da identificação do município como "o local de malucos". Da mesma forma, em algumas regiões do estado do Rio de Janeiro ainda é conhecida a frase "vai pro Eiras", destinada àqueles que, por um motivo qualquer, não se adequavam a certo padrão de normalidade. Esses fatores, certamente, se colocam como importantes obstáculos à implantação de uma lógica de atendimento territorializado e voltado à produção de autonomia dos usuários.

Relação do serviço com o contexto político-partidário e organização da assistência

As principais preocupações da gestora do CAPSi estão relacionadas às interferências da política partidária no funcionamento do serviço. Ela comenta, por exemplo, que as alternâncias de partidos políticos na gestão municipal costumam provocar oscilações no fornecimento de materiais, condições de trabalho e definição de profissionais que atuam no CAPSi. Além disso, queixa-se de que, muitas vezes, os gestores municipais utilizam seu poder diretamente sobre o serviço, desrespeitando suas posições e possibilidades na condição de gestora local. Exemplo disso é a obrigação de que o CAPSi esteja presente em todos os eventos públicos da cidade, sem oferecer 'remuneração extra aos profissionais. A obrigatoriedade é imposta pela gestão municipal, mas cabe à gestora local viabilizar a participação dos profissionais e lidar com as queixas acerca da ausência de pagamento de hora extra.

Essa realidade, comum em outras cidades de pequeno e médio porte (Luzio e L'Abatte, 2009), reflete as distâncias entre políticas nacionais e suas concretas possibilidades de implementação regional. Os recursos advindos dessas políticas induzem a criação de serviços, mas, nem sempre, os gestores identificam-se com seus pressupostos técnicos e ideológicos ou dão prioridade à qualificação do trabalho implementado. Isso se faz evidente no caso da política de saúde mental que, informada pelo movimento social da Reforma Psiquiátrica, requer não apenas condições estruturais para operar, mas também transformações no plano da cultura e das representações em torno do sofrimento psíquico.

A despeito dessas questões, porém, um dos profissionais entrevistados comenta as dificuldades de recursos que assolam a maior parte dos CAPS brasileiros e ressalta o valor do apoio da prefeitura de Paracambi, reconhecendo que o serviço em que se insere funciona de forma menos precária. Segundo ele, sua equipe encontra-se instalada numa casa confortável e adequada para o trabalho planejado, possui profissionais em quantidade suficiente, podendo manter a interdisciplinaridade e ainda conta com supervisão clínico-institucional e outros recursos que possibilitam uma boa organização do cotidiano institucional.

Tanto as dificuldades relatadas pela gestora, quanto as vantagens a que o profissional acima se refere, remetem-nos a algumas ressalvas já discutidas por Luzio e L'Abbate (2009). As autoras apontam que no Brasil a maior parte dos estudos em saúde mental é desenvolvida nas grandes metrópoles, o que é problemático já que mais da metade da população reside em municípios de pequeno e médio porte, com características sociodemográficas e políticas bastante específicas. Dentre tais especificidades estão as sucessivas mudanças na gestão municipal e nas diretrizes assistenciais adotadas, nem sempre consonantes com a Reforma Psiquiátrica.

Associada a essa questão temos a desigualdade na distribuição de CAPSi em todo o país, que concentra a maior parte dos seus serviços nas grandes cidades das regiões sudeste e nordeste (Paula et al., 2012; Andreoli, 2007). Também desigual é a distribuição de serviços de saúde mental entre as áreas urbanas e rurais. Nestas últimas, a despeito da implementação de políticas de saúde específicas para as populações do campo e da floresta (Brasil, 2011), persistem a escassez de serviços e os obstáculos à participação dos usuários nas redes de atenção psicossocial (Silva et al., 2013).

Observa-se, assim, que a substituição efetiva do modelo manicomial exige não apenas o comprometimento dos trabalhadores e usuários, mas também o envolvimento direto dos gestores do município na criação de mecanismos de sustentação dos projetos próprios aos serviços substitutivos de saúde mental, o que costuma ser raro, dada a grande rotatividade de políticos que assumem o poder.

Tratando especificamente do CAPSi estudado, identificamos que para compreender a organização do trabalho nele desenvolvido é preciso conhecer o modo como ocorre o processo de recepção de novos usuários, pois este estrutura toda a porta de entrada ao serviço. Todos os pacientes necessariamente passam por esta etapa, denominada pelos técnicos de acolhimento. Em geral, aqueles que procuram atendimento no CAPSi o fazem através de iniciativa da própria família, ou de encaminhamentos de outras unidades da rede. Os principais critérios avaliados para admissão são a idade, a demanda e o município no qual residem.

Há uma escala entre os profissionais, de modo que toda equipe técnica possa realizar o acolhimento. Posteriormente, o caso é discutido na reunião de equipe para que lhe seja dado o direcionamento mais adequado. Mais adiante apresentamos esclarecimentos a respeito da hipótese diagnóstica e o projeto terapêutico, elaborados para cada novo usuário.

Aproximando-se do que Toledo (2004) e Avellar e Ronchi (2010) identificaram nos serviços por eles estudados, o perfil dos pacientes do CAPSi pesquisado se caracteriza por crianças e adolescentes predominantemente do sexo masculino, estudantes da rede pública de ensino. Os principais diagnósticos atribuídos aos pacientes pela equipe são de transtorno de comportamento, definidos pelos técnicos com "problemas de relacionamento e comportamento". Entretanto, chama a atenção o fato de que, a despeito da predominância destes casos, nas reuniões de equipe o que mais mobilizava os profissionais eram os casos de uso abusivo de álcool e drogas e de autismo.

Todos os pacientes possuem seu próprio projeto terapêutico singular (PTS), elaborado, principalmente, pelo profissional de referência (em geral, trata-se do mesmo técnico que o acolheu no serviço) a partir das informações obtidas através do processo de acolhimento (idade, perfil e demanda) e da hipótese diagnóstica do paciente. Segundo uma psicóloga da equipe, os PTS's são sempre discutidos e construídos nas reuniões de equipe e, posteriormente, registrados nos prontuários dos pacientes, estando acessíveis a todos os profissionais. Vale esclarecer que o PTS é uma estratégia que, indicada pelo Ministério da Saúde e inserida na lógica da atenção integral, organiza propostas de cuidado singulares a cada sujeito, a partir de uma articulação interdisciplinar e intersetorial, sempre com a participação do usuário e seus familiares ou outras pessoas significativas em seu contexto social (Brasil, 2007).

A respeito da função e atuação dos técnicos, todos os entrevistados esclarecem que não as desempenham apenas de acordo com a própria categoria ou especialidade, pois estão entre profissionais de diversas áreas e formações, que trabalham em conjunto com uma equipe inteira, pautados mais por projetos construídos coletivamente do que pela formação acadêmica de cada um. Muitos descrevem este como um grande desafio ao iniciar o trabalho no CAPSi, sendo fonte de conflitos e, ao mesmo tempo, de benefícios, tal como explica a enfermeira:

No início foi muito difícil. Porque a gente tem uma perda de identidade profissional muito grande aqui. E isso me deixou muito preocupada no início, por conta mesmo de medo, de insegurança, de como eu vou atender, como eu vou ficar... a gente perde um pouco essa identidade e isso pro profissional no início é difícil. Mas depois fui gostando muito do trabalho, trabalho no coletivo, a gente estar junto, é um acolhimento. E eu comecei a perceber que a gente perde um pouco a identidade, pelo menos a minha da enfermagem, mas a gente ganha muitas outras coisas. Eu não perdi totalmente, porque tem a parte de medicalização, tem coisas que eu faço que são mais específicas da enfermagem, mas, assim, meu trabalho quase todo não é ser só enfermeira, então, assim, isso no início foi difícil, mas agora eu aprendo muito com isso, em trabalhar com os outros profissionais juntos.

Acreditamos que entre as origens desse tipo de organização assistencial estão as contribuições de Campos (1997), que, tratando da atenção à saúde no setor público, critica a excessiva ênfase na especialização da área médica e propõe uma estrutura de trabalho baseada na relação dinâmica entre núcleo e campo de competência. Este último seria um espaço de fronteiras flexíveis, que compreende relações entre diversos saberes constituintes de uma "disciplina-raiz". Segundo o autor, a conformação do campo se dá através de negociações provisórias e intermináveis, já que se baseia em necessidades da clientela, recursos do contexto e diversos interesses (políticos, profissionais, dentre outros). Trata-se, portanto, de um espaço constituído por saberes, tecnologias, modos de atuação, discursos, necessidades e tipos de relações que, em contínuo movimento de afetação e integração, produzem uma organização coletiva das relações e das práticas. A nosso ver, é ao trabalho no "campo" que a enfermeira se refere, ao comentar a organização coletiva das ações do CAPS.

Para o supervisor do CAPSi, esse tipo de atuação dos técnicos, que extrapola aquilo é padronizado em suas categorias profissionais, configura-se como um diferencial no exercício clínico, pois exige constante criatividade nas atuações e intervenções. Na mesma direção, Avellar e Ronchi (2010), ao abordar as práticas envolvidas nas propostas de cuidados em saúde mental, discorrem sobre o grande desafio que estas representam aos profissionais que atuam nos serviços multidisciplinares, pois, além de conduzi-los a uma busca pelo conhecimento e investimento em novas formas de atuação, também apontam para a ausência de um modelo sistematizado de intervenção, podendo deixá-los sem referências no dia a dia. Os dados da pesquisa destes autores indicam a necessidade, impostas pelos CAPS, de que os trabalhadores se disponibilizem a realizar um movimento de criação de novas formas de atuação.

Para alguns autores do campo da atenção psicossocial (Figueiredo, 2004), é na construção do caso clínico, tal como elaborada por Viganò (1999), que se concretiza a assistência no campo interdisciplinar. Trata-se do trabalho de compreensão do paciente a partir do que ele diz acerca de sua relação com o mundo (com a linguagem, as leis, o sistema sociocultural que o cerca) e consigo mesmo. Isso envolve a apreensão dos sinais que o paciente apresenta sobre o modo como organiza sua subjetividade e, consequentemente, sobre a forma como significa e experimenta sua doença. Supõe-se que os sujeitos expressem esses sinais nas distintas relações que estabelecem com os diferentes profissionais da equipe. Estes recolhem os sinais construídos no cotidiano institucional e os compartilham com os colegas, associando os variados elementos apresentados pelos pacientes e, assim, construindo conjuntamente o caso. Note-se que esse trabalho se opõe a uma prática de conhecimento sobre o paciente calcada em saberes externos a ele, baseados nos conhecimentos disciplinares cindidos das relações intersubjetivas que se estabelecem no serviço. Mas, tal como adverte Campos (1997), ele exige constante negociação entre os núcleos de saber, negociação esta que, no CAPSi estudado, parece ocorrer nos espaços de supervisão clínico-institucional.

Contudo, é preciso lembrar que as categorias profissionais são, historicamente, formas de diferenciação e construção de identidade, de modo que as negociações em torno do PTS podem envolver conflitos de poder e de concepções clínicas. Nesse sentido, Furtado (2007) sugere que o funcionamento das equipes requer permanente construção de pontes que permitam o tráfego entre os profissionais, de tal modo que coloquem afinidades e diferenças em contato, sem negá-las ou emudecê-las. Ou seja, cotidianamente, é preciso explicitar e legitimar as diferenças, enfrentando os inevitáveis desconfortos que a alteridade tende a produzir. Quando desobstruído de disputas, o tráfego entre tais diferenças permite que os pacientes circulem pelo serviço e pelos trabalhadores, encontrando distintos espaços de expressão e acolhimento para as suas experiências.

Outro aspecto estruturante da organização do CAPSi são os prontuários, que, contando com os técnicos de referência como responsáveis por sua abertura, reúnem os registros de todas as informações relevantes sobre o paciente, desde o processo de acolhimento até a evolução do tratamento. Para Delfini et al. (2009), os prontuários deveriam ter, ainda, a função de manter o controle sobre a rotina do atendimento. A partir de pesquisa realizada acerca do perfil dos usuários de um CAPSi da Grande São Paulo, os autores afirmam que, embora os profissionais reconheçam a importância dos registros, os prontuários pesquisados não mostravam preenchimento adequado ou suficiente. Os trabalhadores justificam tal insuficiência alegando que não há uma padronização na elaboração destes documentos, o que os deixa confusos quanto ao conteúdo a ser escrito neles.

O mesmo cenário não se repete no CAPSi da presente pesquisa, onde verificamos muitos prontuários com grande número de informações, o que podemos relacionar com a explicação fornecida pelo oficineiro entrevistado: neste serviço, os técnicos têm mais tempo para se dedicar ao preenchimento dos prontuários porque a equipe organiza os atendimentos em horários preestabelecidos, reservando um tempo exclusivamente para a discussão e registro dos acontecimentos de cada período do dia. De fato, observamos que, tanto no final da manhã quanto no final da tarde, a equipe dispunha de cerca de uma hora para conversar sobre os casos e os acontecimentos e, em seguida, evoluir os prontuários de cada paciente que comparecera ao serviço. Essa forma de organização parece permitir que os registros fossem feitos com calma, o que, ao nosso ver, tende a aumentar a disponibilidade ao trabalho.

Acerca da modalidade de atendimento, a principal estratégia clínica adotada pelo CAPSi é designada pela equipe de "coletivo" e desenvolvida num espaço comum, em que todos os pacientes e profissionais presentes num dado turno compartilham atividades. Isto ocorre na área externa do serviço, onde os pacientes têm livre acesso, podendo integrar-se entre si e com os técnicos responsáveis. Segundo os profissionais, essa estratégia favorece a socialização dos usuários, facilitando também a expressão e o reconhecimento de suas necessidades e potencialidades. Isso é possível porque os pacientes são abordados a partir do modo como se apresentam a cada dia, não havendo práticas clínicas padronizadas ou protocolares.

A equipe organiza os atendimentos segundo o que denomina de "perfil" dos pacientes, adequando cada grupo a determinados horários e dias da semana (segunda-feira, por exemplo, são atendidos os casos com perfil ambulatorial, sexta-feira pela manhã são casos mais graves). De acordo com a necessidade, geralmente relacionados a períodos de vivências de crises, ocorrem atendimentos individuais com os pacientes nas salas denominadas de consultórios, mas estes são pontuais. Cada paciente tem seu dia determinado de participação no espaço coletivo, mas o CAPSi os recebe em qualquer outro dia ou horário, caso seja necessário em função de uma situação atípica, experiências de crises ou quaisquer outras necessidades.

As atividades são propostas pelos técnicos a cada dia, de acordo com a demanda e características dos pacientes em atendimento. Não verificamos a realização de atividades preestabelecidas, como oficinas ou similares. Assim, percebemos certa consonância com indicações de Campos (2012a) e Toledo (2004), para as quais é importante que os profissionais se ajustem às necessidades dos pacientes, evitando propostas predeterminadas e, muitas vezes, dissonantes daquilo que mostram estar precisando, desejando ou até podendo naquele momento.

Sobre o manejo dos casos em situações de crise, verificamos que, quando reconhece a necessidade, o serviço realiza encaminhamentos para internação, embora o município não disponibilize um local adequado para essa faixa etária. A equipe conta com o suporte do Polo de Saúde Mental, e não denomina algum eventual encaminhamento como internação, mas sim como "breve observação do paciente em um leito psiquiátrico", sempre acompanhada de um profissional do CAPSi. De acordo com o que ouvimos e observamos, podemos dizer que essa concepção de trabalho vai ao encontro das proposições de Campos (2012b), para quem o serviço deve se responsabilizar pelo acolhimento e acompanhamento dos casos de crise, já que estes são momentos de intenso sofrimento para criança e sua família, o que requer justamente a presença de pessoas com quem já tenham algum vínculo. Em muitos casos, uma internação poderia significar quebra do vínculo justamente no momento em que este se faz necessário.

Questionada sobre a existência de internação psiquiátrica para crianças e adolescentes, a coordenadora esclarece, citando o exemplo de um paciente adolescente:

Ele já passou uma noite, mas não foi internação, foi observação, porque se ele fosse para casa, ele ia quebrar... aí ele dormiu aquela noite. A enfermeira que trabalha aqui, trabalha no Polo, eu também trabalho no Polo, e o pessoal que está lá a gente tem uma ligação grande. Só ficou aquele dia, aí o responsável fica junto. Se for muito pequeno, como já aconteceu com o Adriano [nome fictício], há muito tempo atrás, no início a mãe queria, queria, queria, e a gente achava que não precisava [da internação], mas aí um período a gente disse: "Vamos internar, mas ela tem que ficar". Caramba! Foi uma experiência muito boa, porque ela quer que interne, mas ela não quer se comprometer em ficar. Quando ela tinha que ficar ali, ela não quis mais, ela ficou com ódio do supervisor que era a referência do filho na época. É uma criança, ele não pode ficar aqui sozinho, tem que ser a mãe. Deu uma segurada, porque não deu nem pra trocar, pra ela colocar uma pessoa pra ela, porque às vezes ela queria... aí "Não, a pessoa vai ficar pra você tomar um banho e voltar".

No exemplo acima, ainda podemos observar um outro aspecto que envolve este caso: a responsabilização dos pais, que evoca diferentes reações e dificuldades por parte dos profissionais, o que atravessa os tratamentos dos filhos, como veremos mais adiante.

Relacionado a isto, é muito relevante observar que a relação da equipe com os familiares dos pacientes acompanhados pelo CAPSi se dá, principalmente, através de atendimentos individuais e visita domiciliar, sempre de acordo com a necessidade do caso. Há, ainda, um grupo mensal destinado a reunir todos os familiares e profissionais para discussão do funcionamento do serviço e troca de experiências e outro grupo que ocorre semanalmente, envolvendo apenas as mães de pacientes diagnosticados como autistas.

Sobre este assunto, alguns autores, como Campos (2012b), enfatizam a importância da intervenção clínica voltada aos membros das famílias dos pacientes, já que nos serviços substitutivos, comumente, temos como um dos principais objetivos o resgate e a manutenção de laços sociais e familiares. Entretanto, a autora menciona que alguns espaços destinados ao trabalho com a família nos serviços de saúde mental, muitas vezes, apresentam-se esvaziados de sentido para todos os sujeitos envolvidos, sejam profissionais ou usuários.

Em nossa pesquisa, identificamos, por certo período, esse tipo de esvaziamento no grupo formado pelas mães de pacientes autistas, uma vez que, inicialmente, ele era destinado apenas a ser um espaço de separação entre as mães e os filhos, de modo que os atendimentos dos últimos ocorressem sem interrupções. Mas, após algumas semanas de encontros grupais e discussão dos mesmos em supervisão, este grupo passou a ser pensado como um lugar de escuta e troca entre as mães, coordenado por um dos técnicos, adquirindo, assim, algum sentido. A partir de então, pudemos perceber a criação de um grupo como uma estratégia clínica relacionada ao tratamento dos pacientes e também como um suporte aos familiares que os acompanham.

De todo modo, o trabalho com os familiares pareceu-nos ser um dos maiores desafios do serviço estudado. Grande parte dos casos acompanhados são de pacientes com demandas graves e pais carregados de muita angústia, buscando respostas para os sintomas dos filhos, tratamento e acolhimento para ambos. Os comportamentos mais citados pelos profissionais a respeito dos pais foram: dificuldade em lidar com a doença do filho, preconceito em relação ao tratamento, resistência em aderir ao tratamento, exigências em relação à equipe, queixa sobre a instituição de ensino, resistência ou solicitação excessiva da medicação, pouca responsabilização pelo filho no tratamento, e falta de escuta dos responsáveis na relação com seus filhos. Em algumas reuniões, os profissionais se queixavam bastante desses comportamentos, diante do que o supervisor ressaltava a importância que deve ser dada aos pais no tratamento, e o cuidado necessário para não problematizá-los, no sentido de não tratá-los como adversários.

Toledo (2006) ajuda-nos a pensar em formas para enfrentar o desafio da inclusão das famílias no tratamento, descrevendo o desenvolvimento de um grupo de familiares num CAPSi. A autora enfatiza que, diante de muitos relatos de sofrimento e dificuldades dos familiares, utilizava como estratégia principal a identificação e valorização das capacidades de cada um deles, ajudando-os a reconhecer e utilizar suas próprias potencialidades. Campos (2012b) argumenta na mesma direção, defendendo que é preciso que os profissionais ajudem os pais a exercerem suas funções de cuidado, o que muitas vezes não ocorre porque a equipe tende a julgar a adequação do comportamento deles, ressaltando as falhas e assumindo o lugar de pais ou mães. Ou seja, no lugar da queixa acerca da pouca responsabilização dos pais, é necessário um trabalho clínico para que estes desenvolvam ou resgatem capacidades maternas e paternas. Esta parece ainda ser uma questão a ser elaborada pela equipe estudada.

Relação com a rede

É unânime entre os autores que discutem o trabalho dos CAPSi a avaliação de que as ações realizadas em rede são mais eficazes (Couto et al., 2008; Delfini et al., 2012). Também no campo estudado, ficou evidente que a equipe atribui grande importância à comunicação com os outros serviços públicos da cidade, embora a frequência de parcerias com estes tenha crescido apenas recentemente. Entre os motivos relacionados à dificuldade de trabalhar em rede está a escassez de transporte disponível para que os profissionais se desloquem até as instituições com que desejam formar parcerias. Mas, eles também se queixam da grande dificuldade em encaminhar alguns pacientes que poderiam ser atendidos em outros estabelecimentos de saúde, como nos ambulatórios. Consequentemente, o CAPSi acaba acolhendo todas as crianças e adolescentes, inclusive aquelas cujas demandas são pontuais. Os serviços com os quais a equipe já constitui parceria são algumas escolas, o CAPSII e o CAPSad da cidade.

Relacionado a este desafio e à complexidade dos casos atendidos, outra questão importante é a sensação de sobrecarga que se manifesta no discurso de vários profissionais através da expressão "temos que dar conta de tudo". A equipe relata com muita preocupação e aparente cansaço diversas situações que ultrapassam os limites do serviço, como, por exemplo, atendimento de moradores de regiões que não estão na área de abrangência do município e/ou de jovens com mais de 18 anos que permanecem no CAPSi porque não conseguem sentir-se bem outras instituições.

Diante desse quadro, parece-nos importante ressaltar que o CAPSi tem mesmo o mandato de ordenador da rede, tal como preconiza o Ministério da Saúde (Brasil, 2005). Mas parece que no serviço estudado a equipe não está conseguindo compartilhar as tarefas de cuidado, o que gera a sensação de "ter que dar conta de tudo". Evidentemente, ao responsabilizar-se por "tudo", o CAPSi corre grande risco de incorrer em práticas onipotentes e geradoras de excessiva dependência a ele, dirigidas tanto por pacientes e familiares, como pelas demais instituições da cidade. Esse cenário reproduz, ainda que parcialmente, algumas facetas do modelo manicomial que se pretende superar. Para precaver-se desse risco, tal como apontamos nas seções iniciais deste artigo através de Avellar e Ronchi (2010), o caminho mais seguro é o esforço para a criação de uma rede intersetorial de cuidados e para a transformação do lugar que o sofrimento psíquico vem adquirindo em nossa cultura. Nesse sentido, vale destacar que a problemática do uso de álcool e outras drogas deve ser tratada numa perspectiva ampla, que considera questões sociais, habitacionais, laborais e culturais, alargando as fronteiras demarcadas pelos fatores afetivos e bioquímicos.

Estratégias de apoio ao cuidado

O CAPSi estudado conta com algumas estratégias sistematizadas de apoio ao exercício do cuidado. Trata-se da supervisão e da reunião de equipe que ocorrem concomitantemente toda semana, às sextas-feiras, no turno da tarde. Participam desse encontro o supervisor, a coordenadora, toda a equipe técnica, a recepcionista, o técnico administrativo e, eventualmente, a médica. Além disso, diariamente, no final do expediente, ocorre o que a equipe denomina de reunião de miniequipe. Nesta, conforme descrevemos mais acima, os técnicos do dia se reúnem e discutem os atendimentos e os acontecimentos dos turnos de atendimento.

Vale ressaltar, ainda que brevemente, que a ausência da médica nessas reuniões não é questionada por nenhum dos profissionais. Tampouco a gestora, em sua entrevista, concedeu qualquer destaque ou explicação a essa distinção. Assim, o saber médico recebe condições especiais, na medida em que não precisa se apresentar no espaço coletivo, sendo dispensado de questionamentos e complementações de outros saberes. Mas, por outro lado, ele não participa da construção dos casos e de algumas importantes tomadas de decisão, perdendo, em certa medida, a sua tradicional hegemonia.

A prática médica pautada pelo modelo ambulatorial (consultas individuais) e cindida das elaborações do restante da equipe pode prejudicar a condução do PTS e impor ao CAPSi parte da lógica manicomial. Alguns autores têm observado traços que indicam a convivência de tal lógica nos espaços que pretendem substituí-la, na medida em que operacionalizam práticas assistenciais descontextualizadas e dissonantes das necessidades, interesses e capacidades dos usuários, o que recai na padronização e homogeneização das subjetividades (Cedraz e Dimenstein, 2005; Figueiró e Dimenstein, 2010). É imprescindível que esses fatores possam ser discutidos nos espaços coletivos, como as supervisões clínico-institucionais, e, na mesma medida, é surpreendente que durante os três meses de observação das reuniões de equipe o isolamento do médico no CAPSi estudado não tenha sido sequer mencionado.

A respeito da supervisão semanal, questionamos sua função. Supervisão: para quê e para quem? Ao longo das observações, percebemos que se trata de um recurso direcionado à clínica praticada e também à escuta e acolhimento dos próprios profissionais, que se encontram frequentemente em situações de dúvidas e angústias.

Campos (2012b) comenta essa temática, defendendo que o serviço que possui a proposta de acompanhar casos de pacientes que se encontram em crise precisa pensar em como a equipe cuidadora sustentará sua própria crise. Assim, propõe: "Transformar o surto em passagem, em algo que pode ser tratado e acompanhado e não somente abafado por grande quantidade de remédios. Para isso ser suportável, a própria equipe precisará de cuidados" (Campos, 2012b, p. 107, grifo nosso).

Sobre as abordagens teóricas que permeiam as práticas desenvolvidas no CAPSi, verificamos que predomina a psicanalítica, que é aquela com o qual o supervisor trabalha e, consequentemente, direciona o sentido da clínica no momento das construções coletivas de caso. Apesar desse predomínio da leitura psicanalítica, o espaço de discussão é aberto, de modo que a equipe tem oportunidade para se posicionar e discutir sobre diferentes perspectivas de cuidado. Ao longo da observação das reuniões de equipe, foi possível perceber flexibilidade e disponibilidade de escuta para diversas opiniões e pontos de vista.

Além disso, nas observações das reuniões de equipe, pudemos perceber que não há nenhuma hegemonia de nenhum membro nas decisões, ou seja, o objetivo da gestão democrática e da participação de todos parece ser uma construção cotidiana que tem se mostrado exitosa, tal como sugerem vários autores do campo da saúde coletiva (Campos, 1997; Pitta, 2011). Tal êxito, entretanto, tem como principal limitação a falta da participação do médico nas reuniões de equipe e nos grupos coordenados em colaboração entre diferentes profissionais.

Outro aspecto a se destacar através do material provindo das entrevistas e observações é a evidente escolha da equipe pela direção do tratamento a partir da demanda do paciente, isto é, as construções de práticas e estratégias clínicas a partir do que o usuário apresenta, considerando sua hipótese diagnóstica, a sintomatologia, o contexto sociocultural e o momento em que se encontra em sua trajetória de tratamento. Ou seja, as abordagens teóricas e as especificidades das categorias profissionais são ativadas pelas necessidades dos casos.

Contudo, a despeito dos aspectos exitosos comentados acima, o serviço ainda encontra desafios. Dois deles já foram comentados: relação com a rede e a relação da equipe, como um todo, com os familiares. Entretanto, outras questões frequentemente discutidas nas supervisões foram aquelas ligadas aos casos de uso abusivo de drogas, casos de autismo e a medicalização dos pacientes.

A respeito da medicalização, é imprescindível que consideremos o crescimento progressivo da comercialização de psicofármacos e, especificamente, a alta do consumo destas substâncias por crianças e adolescentes em todo o país (Melo, 2013). No CSPSi em que desenvolvemos nossa pesquisa, assim como naqueles estudados por Toledo (2004) e Avellar e Ronchi (2010), quase a totalidade dos pacientes que estavam em tratamento faziam uso de algum medicamento. Não temos recursos suficientes para avaliar a adequação e necessidade dos psicotrópicos para todos os usuários do serviço, mas não podemos deixar de destacar a intensidade de seu uso, mesmo num contexto em que há tão pouca referência ao saber médico, conforme vimos anteriormente.

Para compreender essa realidade é importante lembrar que, de modo geral, a medicalização deve ser considerada como um processo em que os problemas não médicos são definidos e tratados em termos de doenças e desordens. Assim, a medicalização, de forma genérica, pode ser entendida como produção de um tipo específico de conhecimento que aumenta as possibilidades de intervenção dos agentes de saúde sobre quaisquer fenômenos da vida, não se restringindo ao uso de medicamentos, embora frequentemente acabe por desembocar neles (Camargo Jr., 1997).

Nessa direção, Melo (2013) aborda a questão da medicalização no contexto atual, especialmente nos casos de dificuldade de aprendizagem, lembrando que hoje verificamos o crescente número de diagnósticos psiquiátricos voltados às crianças e a tentativa de uniformização e padronização de comportamentos a serem considerados "normais". Assim, aspectos que deveriam ser cuidadosamente compreendidos através de uma análise multidisciplinar, muitas vezes, são reduzidos a sintomas e, consequentemente, patologizados. Segundo a autora, "abre-se o campo da patologização e da medicalização da infância, à medida que tudo foge à normalidade roteirizada, passa a ser interpretado como doença a ser medicada" (Melo, 2013, p. 131). Consequentemente, observa-se grande número de encaminhamentos de crianças e adolescentes aos serviços de saúde em geral, feitos predominantemente pelas instituições de ensino em função do que elas mesmas nomeiam como transtornos de aprendizagem ou comportamento.

Tal como asseveram alguns autores (Boarini e Borges, 1998; Bontempo e Ferreira, 2012), é imprescindível que os serviços de saúde mental se responsabilizem por desencadear discussões acerca dessa questão, aproximando-se da área da educação para compartilhar os problemas e encontrar vias de resolução que não dependam, exclusivamente, da área da saúde. Assim, não lhes cabe simplesmente acolher a demanda, embora não possam recusá-la. É preciso compreendê-la e compartilhá-la de modo responsável com os vários atores da sociedade. Para o CAPSi que estudamos, vale ressaltar que no lugar de "dar conta de tudo", é necessário depurar os aspectos socioculturais, ideológicos, mercadológicos, dentre tantos outros que envolvem o sofrimento psíquico e as dificuldades dos sujeitos. Diante deles, as responsabilidades pelo cuidado devem ser compartilhadas pelas diferentes instâncias da sociedade, o que exige, é claro, um comprometimento da gestão municipal em acioná-las e em oferecer suporte para que possam atuar.

Em algumas reuniões de equipe, os profissionais mencionaram visitas às escolas ou encaminhamentos de relatórios sobre alunos. Porém, trata-se de ações pontuais que não contam, necessariamente, com encontros presenciais entre trabalhadores das distintas instituições. Tampouco há um projeto integrado e contínuo de algum trabalho conjunto do CAPSi com a área de educação, embora alguns membros do serviço reconheçam a necessidade de viabilizá-lo.

Os casos de crianças e adolescentes que fazem uso de drogas lícitas ou ilícitas são uma questão de extrema gravidade que esteve presente em muitas reuniões de equipe, fazendo emergir a angústia dos profissionais que os atendem e os posicionamentos polêmicos que envolvem o assunto. Manter um adolescente usuário de drogas em tratamento com outros casos e faixas etárias distintas implica para a equipe uma série de dúvidas relacionadas ao manejo adequado e à relação desses sujeitos com os demais pacientes. Em contrapartida, os técnicos concordam que o CAPSAd não é o local adequado de tratamento para esses adolescentes. Sentindo-se impotente, a equipe não enxerga possibilidades de contar com outros setores para o cuidado desses casos e acaba por aprisionar-se em repetidas discussões e queixas.

Sobre os casos de autismo, é unânime entre os membros da equipe a consideração de que se trata de um dos maiores desafios para a prática clínica. Esses profissionais compartilham de dúvidas sobre a forma de intervenção e condução do tratamento, além de incômodo diante da angústia dos familiares que buscam respostas e resultados rápidos do atendimento oferecido pelo CAPSi. Mas, vale ressaltar, não há a dúvida entre os profissionais de que o CAPSi deve se colocar como o lugar privilegiado para a atenção ao autismo. Diante dessa questão, parecem identificar-se com os pais, angustiando-se com a impotência imposta pelos mistérios que envolvem o autismo, a sutileza dos avanços clínicos e a necessidade de construção contínua de uma linguagem capaz de viabilizar o contato com os pacientes. Foi interessante notar que o supervisor não tenta apaziguar tal angústia, tentando guiar os profissionais num processo, nem sempre exitoso, de transformação do sofrimento em motor para a construção do caso clínico.

 

Considerações finais

Um dos aspectos positivos a ser destacado no CAPSi estudado é a supervisão. A existência e a manutenção desse recurso clínico-institucional sinalizam o cuidado da gestora em garantir que as reuniões contem com uma sustentação para questionamentos e reflexões. Mas, além disso, ressaltamos a importância que é atribuída às supervisões pela equipe. Ainda que tenhamos identificado uma aparente dependência em relação ao supervisor, o interesse e o valor dado a esse recurso indicam a disponibilidade dos profissionais em aprender e se colocar em questão. Supomos que isso desencadeie uma disponibilidade de escuta que tende a se estender aos pacientes.

Outro fator que merece ser evidenciado é a proposta da equipe de organizar o cuidado cotidiano através do acompanhamento da demanda do paciente, evitando impor propostas terapêuticas preestabelecidas. Neste sentido, mesmo que os profissionais não tenham assumido ou definido as abordagens teóricas com que trabalham, percebemos que o eixo norteador da clínica é a escuta singular dos pacientes. Consequentemente, o serviço se constitui como um espaço acolhedor às crianças, permitindo-lhes traçar percursos terapêuticos também particulares.

Esse cenário, entretanto, também apresentou alguns desafios para a equipe e, consequentemente, para o serviço. O modo como os profissionais percebem os familiares e a eles se remetem é uma questão a ser pensada e trabalhada, considerando que este aspecto afeta diretamente o tratamento dos pacientes. Trata-se de um fator que dificulta o reconhecimento da legitimidade do sofrimento dos familiares, bem como do saber que lhes é próprio.

Outra questão a ser enfrentada nos espaços de supervisão e na própria relação do serviço com a rede e o cenário político-administrativo é a sensação da equipe de "ter que dar conta de tudo". Tal sensação, muitas vezes, chega a impedir a criação de soluções para certos impasses colocados pelos casos mais difíceis, levando os profissionais a assumir para si toda a responsabilidade pela assistência. Esse tipo de tomada de responsabilidade acaba por escamotear problemas socioeconômicos, educacionais e de violência, além de incitar sofrimento psíquico nos trabalhadores. Tal sofrimento tende a gerar reações pendulares de impotência e onipotência, o que diminui as possibilidades da escuta singular dos usuários e mantém o serviço excessivamente voltado apenas para si mesmo, recaindo no risco da reprodução de práticas manicomiais.

Coloca-se ainda como problemática a necessidade de prestar atenção aos casos de crianças e adolescentes que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas, diante dos quais os trabalhadores se perguntam sobre a eficácia de suas práticas, ao mesmo tempo em que hesitam em confirmar a adequação do CAPSi como um espaço de tratamento a esse público. Essa questão parece sinalizar para a necessidade de capacitação da equipe e intensificação dos movimentos de criação de parcerias intersetoriais.

Portanto, assim como apontam outras pesquisas, o CAPSi estudado tem como grande desafio sua relação com a rede. Também consideramos desafiadora a manutenção do trabalho coletivo, concomitantemente com a preservação das especificidades de cada trabalhador. A preservação da identidade profissional e, ao mesmo tempo, a constância do compartilhamento de responsabilidades e práticas devem servir para que os profissionais se encontrem, sem se misturar uns com os outros, nem com o próprio trabalho.

Esperamos que a apresentação do trabalho desenvolvido nesse CAPSi, com seus êxitos, problemas, desafios e potencialidades, colabore com a ampliação do conhecimento acerca desse tipo de serviço e com a reflexão acerca de outras realidades que têm o mandato de articular e desenvolver o cuidado ao sofrimento psíquico de crianças e adolescentes.

 

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Submetido: 10/08/2014
Aceito: 19/01/2015

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