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Contextos Clínicos
versão impressa ISSN 1983-3482
Contextos Clínic vol.12 no.2 São Leopoldo maio/ago. 2019
https://doi.org/10.4013/ctc.2019.122.08
ARTIGOS
A função do relacionamento sexual para casais em diferentes etapas do ciclo de vida familiar
The role of sexual intercourse for couples at different stages of family life cycle
Fabricio de Andrade RochaI; Liza FensterseiferII
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Rua Ramiro Barcelos, 2600, Santa Cecilia, Porto Alegre, 90035-003, Rio Grande do Sul, RS, Brasil. fabricio.rocha@ufrgs.br
IIPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Faculdade de Psicologia. Rua Walter Ianni, 255, Providência, Belo Horizonte, 31980-110, Minas Gerais, MG, Brasil. pxl@terra.com.br
RESUMO
Sexualidade é um tema complexo, atravessado por questões individuais, familiares, sociais e culturais. O casamento tradicional e a família nuclear passam por profundas alterações, podendo gerar novos desafios conjugais. Este estudo buscou compreender a função que o sexo cumpre nos casamentos de nove casais heterossexuais, em diferentes estágios do ciclo de vida familiar. Participantes foram selecionados por conveniência em Betim-MG e fizeram parte de um grupo focal com esposas e outro com maridos. Os dados foram analisados através da análise textual discursiva. Os resultados demonstraram que os participantes consideram o sexo elemento importante para o casamento. Percebeu-se a existência de funções diferentes para homens e mulheres: eles buscam prazer e relaxamento no orgasmo, e prezam pela quantidade, e elas valorizam mais romantismo e intimidade, prezando pela qualidade da relação sexual. A função do sexo não mudou com a chegada de novas fases do ciclo de vida, mas cada fase trouxe desafios para a relação, podendo gerar tensões e conflitos. Os resultados indicam que intervenções terapêuticas com casais e pesquisas futuras precisam levar em consideração as diferentes funções do sexo para homens e mulheres nas relações conjugais.
Palavras-chave: relações sexuais; relacionamento conjugal; estágios do ciclo de vida.
ABSTRACT
Sexuality is a complex theme, crossed by individual, family, social and cultural issues. Traditional marriage and the nuclear family undergo profound changes, which may generate new marital challenges. This study sought to understand the role that sexual intercourse play in the marriages of nine heterosexual couples, at different stages of the family life cycle. Participants were selected by convenience sampling, in Betim city, Brazil. Data collection was done through a focus group with wives and another with husbands. This data was analyzed through discursive textual analysis. The results demonstrated that participants considered intercourse an important element for marriage. Different functions were perceived for men and women: men seek pleasure and relaxation in orgasm and cherish the quantity and woman value more romanticism and intimacy, cherishing the sexual intercourse quality. The role of sex has not changed with the change of stages in the life cycle of these couples, but each phase brought relationship challenges, generating tensions and conflicts. The results indicate that therapeutic interventions with couples and future research need to consider the different roles of sex for men and women in marital relationships.
Keywords: sexual intercourse; marital relations; life cycle stages.
Introdução
As mudanças na hegemonia do modelo nuclear de família, a existência cada vez mais crescente e socialmente aceita de novas configurações familiares e as grandes transformações sociais em torno das questões de gênero mostram que o casamento e a família da contemporaneidade estão em constante transição. (Araújo, 2002; Dall'Agnol, 2003; Fonseca, 2013; Meireles e Teixeira, 2014; Ribeiro, 2005; Walsh, 2016). Diante de tantas modificações, e compreendendo que a sexualidade é uma dimensão importante da conjugalidade (Féres-Carneiro, 1987), entender o papel da prática sexual no contexto conjugal pode contribuir para a compreensão das relações no casamento contemporâneo, podendo dar subsídios importantes para intervenções com casais e famílias.
Uma pesquisa longitudinal norte-americana buscou associar satisfação conjugal com satisfação sexual e frequência sexual. O estudo foi realizado com 207 casais heterossexuais recém-casados, acompanhados durante 4 anos, com avaliações a cada 6 a 8 meses e revelou que satisfação conjugal e sexual estão diretamente associadas. O estudo demonstrou que tanto homens quanto mulheres que se consideravam mais satisfeitos no relacionamento também se consideravam mais satisfeitos sexualmente. O oposto também é verdadeiro, ou seja, quanto menos satisfação conjugal, menos satisfação sexual. Outro ponto interessante levantado pelos pesquisadores é que, quando um dos cônjuges apresentava maior satisfação conjugal em uma avaliação, na avaliação seguinte sua satisfação sexual também aumentava. Além disso, maiores índices de satisfação sexual em um dos cônjuges normalmente indicavam maiores índices de satisfação sexual do parceiro na próxima avaliação (McNulty et al., 2016).
Esses resultados sugerem que uma vida sexual mais satisfatória contribui para o aumento da satisfação conjugal. Esta, consequentemente, pode contribuir para o aumento da satisfação sexual, e assim por diante. Dessa forma, o relacionamento sexual do casal pode desencadear tanto um círculo vicioso quanto virtuoso, podendo interferir, também, em outras áreas da vida dos cônjuges. Considerando que o estudo conduzido por McNulty et al. (2016) envolveu apenas casais recém-casados, os resultados obtidos evidenciam a necessidade de se ampliar a discussão sobre a função do sexo no casamento para outros estágios do ciclo de vida da família, a fim de entender a correlação entre satisfação conjugal e sexual também em outros momentos da vida. Entender qualitativamente esta correlação pode também trazer contribuições para o estudo e a prática profissional com casais.
A família pode ser vista como um sistema movendo-se através do tempo, que se relaciona intergeracionalmente e passa por mudanças essenciais em diferentes etapas da vida. Essas etapas do ciclo de vida familiar são organizadas em: formação do novo casal, famílias com filhos pequenos, famílias com filhos adolescentes, lançando os filhos e seguindo em frente e a família no estágio tardio da vida (McGoldrick e Shibusawa, 2016). Como pode-se perceber, o foco principal dessa forma de ver a família é o processo da parentalidade, desde a gestação dos filhos à idade adulta, entendendo que a cada mudança de estágio a família precisa se reorganizar para manter sua estabilidade. No entanto, a família contemporânea tem assumido estruturas e configurações diversas e a perspectiva da parentalidade apenas não é suficiente para entendê-la em toda sua complexidade. Ainda assim, uma abordagem sistêmica da família demonstra que, independentemente da estrutura ou da configuração, a questão principal é que cada família passa por etapas que exigem sua reorganização diante da entrada, saída e desenvolvimento de seus membros. O movimento constante de contração, expansão ou realinhamento do sistema de relacionamentos se faz necessário para manter o funcionamento familiar funcional (Carter e McGoldrick, 1995; McGoldrick e Shibusawa, 2016).
Tendo em vista a complexidade do estudo de famílias e os inúmeros desafios de cada momento da vida, para este estudo foram selecionados três estágios do ciclo de vida familiar: a formação do novo casal, por ser o momento em que os novos cônjuges buscam se adaptar à vida a dois; famílias com filhos pequenos, pois a chegada de uma criança é um dos estágios que mais exige adequação do sistema familiar; finalmente, casais no estágio de lançar os filhos e seguir em frente, devido aos desafios que o casal enfrenta para viver novamente a conjugalidade depois que os filhos se tornam adultos e saem de casa.
As mudanças que ocorrem em cada estágio são fontes de ansiedade e problemas relacionais. O relacionamento íntimo do casal pode ser uma dessas fontes de ansiedade, pois em cada etapa do ciclo vital há novas demandas, o que pode interferir no tempo juntos, no cansaço físico e mental, na intimidade do casal. Isso pode afetar a qualidade da relação, influenciando positiva ou negativamente a satisfação sexual e conjugal de ambos os cônjuges.
No presente estudo, satisfação sexual será conceituada como o nível geral de contentamento que as pessoas declaram possuir com a atividade sexual no relacionamento conjugal. O relacionamento sexual, apesar de ser considerado pelo senso comum um ato íntimo, é uma construção social. Historicamente marcado por preocupações de ordem moral, é submetido a dispositivos de controle que são baseados nos valores e ideologias predominantes. Assim, à medida que a sociedade muda o comportamento sexual também sofre alterações (Araújo, 2002; Araújo, 2018).
Entre os atravessamentos sociais ao tema da sexualidade, as questões de gênero são certamente influenciadoras. Embora a posição social da mulher venha se modificando ao longo dos anos (Albertuni e Stengel, 2016), ainda se percebe que a expectativa sobre ela é que seja cuidadora das necessidades dos outros, abrindo mão de seus planos para cuidar dos maridos, dos filhos e dos idosos da família (Carter e McGoldrick, 1995; Biasoli-Alves, 2000). Como são "treinadas" desde pequenas para cuidar dos outros, no que se refere à questão da satisfação sexual muitas podem se anular, dando preferência à satisfação dos parceiros, tornando a experiência sexual frustrante quando sua preocupação com o outro não é retribuída.
Falar sobre relações sexuais, portanto, não é tarefa fácil. Além de todos os atravessamentos citados anteriormente, ainda é preciso levar em consideração que a história de vida de cada sujeito constrói suas particularidades na forma como lida com as situações do dia-a-dia. Assim, pode-se afirmar que todas as experiências de vida estão contribuindo para a formação do sujeito (Schultz e Schultz, 2014). Uma pessoa com um histórico de abuso sexual ou de muita repressão familiar ou religiosa poderá agir e reagir diante do sexo no casamento de maneira diferente de uma pessoa que não viveu essas experiências.
Uma busca em bases de dados de artigos indexados revela que existem poucas referências em português, na área da Psicologia, que trazem o sexo como enfoque no estudo das relações conjugais (Oliveira e Pocahy, 2015; Vilar e Rabinovich, 2014). Por outro lado, esse tema é bastante explorado em pesquisas publicadas em inglês, mas a maioria dos estudos é de caráter quantitativo (Ammar e Widmer, 2013; Cao, et al., 2018; Hernandez-Kane e Mahoney, 2018; Liu, 2018; Paine, et al.,2018). Dessa forma, pesquisas em português que abordem qualitativamente o tema podem contribuir positivamente para terapeutas familiares ou mesmo em terapias individuais, já que criam subsídios para o manejo e a compreensão do assunto.
Considerando estes apontamentos, a pesquisa em questão propôs estudar, de forma qualitativa, a função da relação sexual na conjugalidade, buscando criar subsídios para a compreensão da função do sexo nas relações conjugais, em diferentes etapas do ciclo de vida familiar. Para alcançar esse objetivo, buscou-se verificar o lugar que o sexo ocupa no casamento da atualidade e identificar a noção de satisfação sexual para os casais. O presente artigo visa demonstrar achados desta pesquisa, que podem trazer importantes contribuições para a melhor compreensão do tema e consequentemente para as intervenções com casais e famílias.
Método
Participantes
A pesquisa realizada neste estudo foi de natureza qualitativa e exploratória. Contou com a participação de nove casais das três etapas do ciclo de vida familiar escolhidas, como mencionado anteriormente: casais recém casados, casais com filhos pequenos e casais no estágio de lançar os filhos e seguir adiante.
Os participantes foram selecionados por conveniência. Convites foram feitos pessoalmente, via redes sociais e por mensagens de texto para casais da rede de contatos do pesquisador, na cidade de Betim-MG. A estes casais foi solicitado que indicassem outros casais para participarem da pesquisa. Aqueles que se enquadravam nos estágios do ciclo de vida familiar escolhidos foram, então, convidados a participar dos grupos focais. A Tabela 1 e a Tabela 2 caracterizam, respectivamente, as esposas e os maridos participantes.
Dos nove casais convidados, todas as esposas participaram do grupo focal, mas por motivo de trabalho, apenas sete maridos estiveram presentes. Apesar do foco do trabalho ser em casais, as falas dessas duas esposas foram mantidas no estudo porque compreende-se aqui que o produto do grupo focal é muito mais do que a soma de várias individualidades, e mesmo os maridos não participando do outro grupo, elas fizeram parte da produção do grupo de esposas.
A Esposa 9 e o Marido 9 são casados há 11 anos e estão no segundo casamento. Foram enquadrados no estágio "Lançando os filhos e seguindo adiante", pois ambos possuem filhos adultos dos relacionamentos anteriores. Além de poderem contribuir com as experiências dos casamentos anteriores e do atual, foram representantes de uma configuração familiar diferente dos demais, por terem passado por divórcio e recasamento.
Procedimentos de coleta e análise de dados
Para a coleta dos dados, foi realizado um grupo focal com as esposas e outro com os maridos. A opção por fazer os grupos dessa forma se deu para promover um espaço mais livre à fala, compreendendo que a presença dos cônjuges juntos nos grupos poderia gerar retraimento ou até mesmo suscitar conflitos. O grupo focal é uma entrevista potencializada pela natureza relacional do grupo. É uma técnica de coleta de dados que permite que o observador tenha a possibilidade de ouvir várias pessoas ao mesmo tempo, enquanto observa as interações entre os participantes, que é o que enriquece as informações produzidas e traz insights que dificilmente seriam conseguidos fora do contexto do grupo (Kind, 2004).
Os grupos focais tiveram duração de 100 minutos cada e foram iniciados com a seguinte pergunta introdutória: "Como vocês acham que o relacionamento sexual influencia a vida dos casais?". A condução dos grupos se deu a partir de um guia de temas, com as seguintes questões: O que é estar satisfeito sexualmente? O que leva um casal a estar insatisfeito sexualmente? A insatisfação sexual tem alguma consequência no casamento? Quando o casal está satisfeito nessa área, o que muda? O que casais fazem para buscar satisfação sexual? Homens e mulheres têm visão diferente quanto à função do sexo no casamento? Casais com filhos: Vocês acham que a função do sexo se modificou quando nasceram os filhos? Casais na fase tardia: Depois que os filhos saíram de casa, vocês perceberam alguma alteração no relacionamento sexual?
Para a análise dos dados o material gravado durante os grupos focais foi transcrito e o conteúdo analisado através da técnica da análise textual discursiva. Esta é uma abordagem que transita entre a análise de conteúdo e a análise de discurso, utilizando recursos de ambas (Moraes e Galiazzi, 2006). Para a realização dessa análise parte-se do entendimento de que todo texto é polissêmico. O que está escrito é o significante, mas o significado depende da interpretação de cada leitor, podendo um mesmo texto ser interpretado de maneiras distintas. A análise textual discursiva busca interpretações aprofundadas dos dados coletados na pesquisa, por meio de um processo auto organizado, composto por: 1) um ciclo de desmontagem dos textos em seus elementos constituintes; 2) categorização das unidades encontradas na etapa anterior, por meio do agrupamento de elementos semelhantes e; 3) finalmente, a produção de um metatexto, que expresse as compreensões emergentes, advindas do processo (Moraes, 2003).
Procedimento éticos
A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, tendo sido aprovada sob o número CAEE: 69492517.0.0000.5137. Todos os participantes receberam e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), com todos os esclarecimentos necessários sobre a pesquisa.
Resultados e Discussão
Considerando os objetivos deste estudo e os dados analisados, o metatexto gerado a partir do processo de análise textual discursiva foi organizado em quatro categorias, que serão apresentadas e discutidas a seguir.
As múltiplas funções do sexo no casamento
Todos os casais participantes concordam que a relação sexual é importante no casamento. As esposas, com o uso da linguagem matemática, tentaram quantificar essa importância, concordando entre si que o sexo corresponde a mais da metade da relação. A Esposa 1 classificou o sexo como algo determinante para diferenciar a relação conjugal de uma amizade. Para ela, a relação sexual contribui para a estabilidade da relação, assim como a Esposa 8, que define o sexo como uma sustentação para as relações conjugais. As esposas 2 e 3 não consideram que o sexo represente tanto na relação, dizendo ser um desdobramento de todas as outras áreas da vida. Essa avaliação do sexo como uma consequência da relação global do casal também esteve presente na fala de todas as outras esposas, como uma condição para que o sexo tenha uma importância maior na relação conjugal.
Percebeu-se, nos discursos, que as esposas dão importância para o sexo como uma forma de intimidade, o que traz proximidade para o casal. Para elas, portanto, o sexo vai além do ato sexual propriamente dito. A qualidade do relacionamento sexual, na visão das participantes, reflete o conjunto das vivências do casal. Isso confirma os resultados obtidos por McNulty et al. (2016), que associaram diretamente satisfação sexual e satisfação conjugal. Os autores demonstraram que, quando um dos cônjuges apresentava aumento da satisfação sexual em uma coleta de dados, na coleta seguinte (seis a oito meses depois), ambos os cônjuges demonstravam um aumento na satisfação conjugal. Os dados do presente estudo indicaram que essa correlação ocorre porque a qualidade do sexo, para as esposas, reflete a qualidade da relação de carinho, afeto, atenção, dentre outros fatores que compõem a relação. Assim, o sexo teria uma função circular. Uma vivência ruim pode gerar insatisfação sexual, que diminui a intimidade dos cônjuges. A baixa intimidade, por sua vez, atua negativamente na vivência do casal. Esse processo cria um círculo vicioso. O mesmo valeria para a boa vivência, que gera um círculo virtuoso de satisfação sexual e consequente melhora da relação conjugal. Somente as esposas falaram sobre essa relação entre intimidade do casal e sexo. Isso é consistente com outro estudo longitudinal que demonstrou que comportamentos interpessoais positivos dos maridos prediziam a frequência de relações sexuais dos casais. O comportamento das esposas não apresentou a mesma correlação (Schoenfeld et al., 2017). O contexto da relação interpessoal dos cônjuges, portanto, tem mais influência no comportamento sexual e na satisfação das esposas do que dos maridos, como pode ser inferido a partir dos achados do estudo citado e na presente pesquisa.
Essa diferença ficou explícita na fala da Esposa 3, ao dizer que seu marido dá mais importância para o sexo do que ela. Por isso, para o relacionamento ir bem, a frequência de relações sexuais precisa ser maior do que ela gostaria. A diferença entre o lugar que o sexo ocupa para os homens e para as mulheres emergiu no discurso de todas as outras esposas e também no grupo dos maridos, o que pode ser demonstrado nas falas a seguir:
A mulher tem menos interesse sexual que o homem. A mulher precisa ser conquistada, ela precisa ser levada a querer né? Precisa ser conquistada. A mulher não tem a mesma necessidade que o homem. A gente gosta das preliminares, do abraço, do beijo, do carinho, do afeto, do romantismo, né? Para depois chegar ao finalmente. O homem já é o contrário. Ele vai querer primeiro o sexo para depois pensar em fazer as outras coisas. (Esposa 8)
O homem tem uma necessidade maior que a mulher. Eu enxergo dessa forma. A cabeça do homem é muito voltada para a questão de sexo. A cabeça do homem é mais voltada para o sexo e só. A mulher é sexo, e a conversa, é isso, é aquilo. Tem todo um contexto. (Marido 4)
Durante o grupo focal das esposas, a importância do sexo sempre esteve associada a carinho, afeto, intimidade. Na fala dos homens, carinho e afeto não foram citados como necessidades deles, mas de suas esposas. Para eles, a importância está mais na questão física do sexo. Foi possível perceber, portanto, que os discursos feminino e masculino demonstram uma diferença essencial no que diz respeito ao lugar que o sexo ocupa para cada um. Enquanto as esposas participantes apontaram que o mais importante não era o sexo em si, mas tudo que o sexo traz, todo o contexto antes, durante e depois, para os homens, o sexo é apontado como importante por si só. Isso fica bem marcado no seguinte discurso de duas esposas:
Tem uma experiência que os homens não têm, que muitas vezes a mulher nem sente orgasmo, mas é tão prazeroso aquele momento. O estar junto, a relação, que é gostoso, mesmo sem sexo. (Esposa 8)
Eu falo isso, mas meu marido não acredita. (Esposa 6)
Os maridos também utilizaram a linguagem matemática para falar da importância da relação sexual no casamento, e em consonância com estudos realizados em outros países, apontaram o relacionamento sexual como um fator determinante para a satisfação conjugal (Cao et al., 2018; Gheshlaghi et al., 2014; Schachner et al., 2012). Confirmando o que já havia sido falado pelas esposas, eles deram uma importância maior para o sexo do que as mulheres. Afirmaram que para eles não dá para viver sem sexo no casamento, e o Marido 7 utilizou o termo "instinto" para se referir à importância da relação sexual para o homem. O discurso masculino se opôs ao feminino, como a fala do Marido 4, ao afirmar que mesmo o casal se amando e tendo uma boa relação, a prática sexual precisa ser satisfatória. O Marido 1 disse que a ruína do casamento é quase certa quando há problemas de ordem sexual. Pelo que foi posto até o momento, os homens colocaram o sexo com uma importância primária na relação, enquanto para as mulheres, a relação sexual propriamente dita seria algo secundário. Na próxima categoria de análise são exploradas possíveis respostas para as diferenças na função do sexo para maridos e esposas.
Como explicar as diferenças entre homens e mulheres?
As diferenças do que homens e mulheres buscam no sexo estão de acordo com o que teoriza Geary (1998), que tem uma visão biologicista do comportamento humano. Ele afirma que a evolução da espécie humana através da seleção sexual é um dos determinantes não apenas dos comportamentos sexuais masculinos e femininos, mas de diversas outras características que diferenciam homens e mulheres. O homem possui uma capacidade reprodutiva maior que a mulher, que precisa aguardar o período gestacional para gerar outro descendente. Assim, a perpetuação da espécie humana teria se dado a partir do comportamento sexual dos machos, focados na reprodução, e das fêmeas, concentradas na escolha do melhor parceiro, que lhe garantiria recursos materiais (comida, por exemplo) e segurança, enquanto ela cuidava da prole. Partindo desses pressupostos, pode-se inferir que, evolutivamente, o sexo para o homem parece ter um fim em si mesmo, enquanto para a mulher ele envolve outras questões, como a capacidade do marido de cuidar dela e dos filhos.
A questão do desejo masculino ser maior, em comparação com o da esposa, é citado tanto pelos homens quanto pelas mulheres participantes desse estudo, e apontado como uma questão fisiológica. Para os casais participantes, o corpo das mulheres e dos homens funciona de forma diferente, e por isso os homens buscam mais o sexo. Um dos maridos afirma que "O sexo para mim representa uma intimidade rotineira no casamento, embora o homem faça sexo todo dia e a mulher não dá conta disso." (Marido 7). A expressão usada "não dá conta" se refere aqui ao fato de que, para os casais participantes, o homem tem desejo de sexo praticamente todos dias, e faria todos os dias, mas a mulher não funciona da mesma maneira, ou seja, não tem desejo todos os dias e por isso "não dá conta disso" (Marido 7). A questão aqui, portanto, não é que a mulher não consegue, mas que ela não deseja o sexo na mesma intensidade que os homens, e para ela, a relação sexual parece ter uma função diferente.
Rohden (2008), em um caminho que se opõe ao de Geary (1998), aponta que a explicação fisiológica das diferenças entre homens e mulheres é uma prática construída ao longo dos anos, por uma ciência e por uma sociedade que valorizam, acima de tudo, o empírico, o palpável. A autora faz um levantamento histórico do desenvolvimento das ciências médicas, demonstrando que a descoberta da importância dos ovários e dos testículos levou a um entendimento de que esses órgãos eram responsáveis pela determinação das características físicas de cada sexo, e pelos comportamentos tidos como tipicamente masculinos e femininos. Estes órgãos, e principalmente os ovários, eram também vistos como responsáveis por psicopatologias como a histeria e a loucura puerperal. A menstruação foi vista durante muito tempo como uma expressão da instabilidade física e mental da mulher. Isso reforçou uma visão de que, por natureza, a mulher era frágil e instável.
Os avanços da medicina levaram a uma mudança de foco, com o entendimento de que não eram simplesmente os órgãos sexuais os responsáveis pelas diferenças entre homens e mulheres, mas as substâncias que eles produziam. Assim, a descoberta dos hormônios sexuais fez com que as explicações das características tipicamente femininas e masculinas deixassem de ser meramente anatômicas para serem bioquímicas. A ampla divulgação dessas descobertas pela ciência e pela indústria farmacêutica, e os benefícios que elas trouxeram no campo médico, com a possibilidade de reposição hormonal para corrigir déficits causados pela necessidade de remoção desses órgãos, foram responsáveis pela cristalização no meio social, da ideia de que homens e mulheres são diferentes por um determinismo bioquímico, somente (Rohden, 2008).
Essa autora, no entanto, faz uma crítica a essa visão, demonstrando que questões sociais também são determinantes dessas diferenças. As teorias de gênero, de acordo com ela, têm lutado contra a visão dualista e essencialista, que coloca as diferenças entre homens e mulheres em um plano natural e imutável. É preciso lembrar, porém, que o erro comum daqueles que apostam em teorias naturalizantes das diferenças entre os gêneros pode ser também uma falha daqueles que defendem outras teorias: invalidar totalmente formas diferentes de analisar os fenômenos. Os autores do presente trabalho acreditam ser necessário compreender o ser humano em sua complexa rede de relações com o mundo e consigo mesmo, e o nível biológico precisa ser considerado neste sistema, assim como o processo evolutivo humano, citado anteriormente. Não se pode desconsiderar a dimensão social e cultural na constituição do ser humano e na determinação das especificidades entre os gêneros, tampouco negar que há diferenças biológicas e evolutivas essenciais entre homens e mulheres, que influenciam diretamente nos comportamentos e na forma como eles se relacionam com o mundo à sua volta.
Entende-se, aqui, que os casais participantes desta pesquisa, ao falarem das diferenças fisiológicas entre homens e mulheres, apresentam um discurso influenciado pelo meio social à sua volta, que naturaliza essas diferenças. Esse discurso, no entanto, é também influenciado pelas experiências com seu corpo. Assume-se neste trabalho que a explicação biológica não deixa de ser válida, embora não possa ser a única forma de analisar os fenômenos destacados neste trabalho. A categoria de análise discutida a seguir apresenta outra diferença observada nas falas dos casais, referente à quantidade e à qualidade da relação sexual.
Qualidade versus Quantidade
A questão do lugar ocupado pelo sexo na vida dos casais e sua diferença para os maridos e as esposas aparece nos discursos dos dois grupos focais, em uma dicotomia formada pelos conceitos de qualidade e quantidade. As mulheres trouxeram essa questão com uma certa irritação, passível de se perceber no grupo focal, quando trazem a questão de que para as esposas, o sexo é uma questão de qualidade, enquanto para os maridos, uma questão de quantidade. Usa-se aqui o termo dicotomia para o uso dessas palavras, pois foram sempre usadas pelos participantes como termos com sentido contrário, ou seja, quando se busca a quantidade, automaticamente se perde a qualidade. Não foi trazido em nenhum dos grupos a possibilidade de se ter quantidade e qualidade andando juntas na questão sexual. O trecho que se segue é uma transcrição do grupo das esposas, a respeito dessa dicotomia:
Até uma certa idade para o homem é muito importante a quantidade, e às vezes ele não liga muito para a qualidade (algumas mulheres concordam). E aí que vem a diferença, porque para nós mulheres o que preza é a qualidade, não a quantidade (todas concordam) e isso vem com o tempo. (Esposa 8)
Qual será a idade da qualidade? Só pra eu saber. (todas riem) (Esposa 4)
Então quando o homem é mais novo, é muito preocupado com isso, é fazer três vezes durante o dia, é fazer durante a noite, é fazer de madrugada. (Esposa 8)
Meu Deus! Deus é mais. Misericórdia! (Esposa 2)
Ele esquece da qualidade. E lá de vez em quando vai vir a qualidade. Aí entra filho, entra tempo, entra trabalho. Aí a coisa vai denegrindo. O casal vai ficando quase como amigos. O ato sexual vai ficando... (Esposa 8)
Ou inimigo né. (Esposa 1)
Nesse trecho as esposas associam a quantidade à forma como os homens buscam o sexo no casamento, e a qualidade à forma como as mulheres desejam o relacionamento sexual. O que foi escrito entre parênteses e em itálico é a descrição das reações das esposas enquanto uma delas falava. Essas reações mostram que todas concordaram quando a Esposa 8 citou que os maridos priorizam a quantidade. A fala da Esposa 4 demonstra, em tom de brincadeira, que ela está querendo saber quando essa qualidade vai chegar em seu relacionamento, ou seja, ainda está vivendo um momento em que a quantidade é prezada pelo marido, o que provavelmente causa incômodo para a esposa.
O uso desses termos está de acordo com a teorização de Geary (1998), citado anteriormente. Para ele, os comportamentos sexuais masculino e feminino foram selecionados evolutivamente, e para o homem, a quantidade de sexo sempre foi importante para a manutenção da espécie, enquanto para as mulheres, essa quantidade não fazia diferença, pois o que importava era a qualidade, não do relacionamento sexual, mas do próprio homem. Na história evolutiva humana, um homem de qualidade era o que tinha mais capacidade de cuidar da mulher e de sua prole. A partir dos achados desta pesquisa, expostos até aqui, este "homem de qualidade", capaz de cuidar de sua esposa e da família, ainda é almejado, embora as demandas da manutenção da espécie não continuem mais as mesmas.
A busca frequente de sexo por parte dos maridos parece ser percebida pelas esposas como uma importunação, como pode ser verificado acima, na reação da Esposa 2, à fala da Esposa 8. Isso pôde ser visto diversas vezes no decorrer do grupo focal. A Esposa 3 diz que "é difícil, porque às vezes você abraça o homem querendo só um carinho e o homem tá querendo tudo" (Esposa 3). Outra esposa afirma que "No meu caso também não é diferente. Meu marido também casou pensando que era sexo todo dia." (Esposa 4).
Os maridos também usaram a dicotomia citada anteriormente. O Marido 4 diz que no início do casamento pensava que iria fazer sexo todos os dias, e que foi preciso aprender diariamente que a qualidade era mais importante para sua esposa do que a quantidade. A Esposa 8 e seu marido, com 37 anos de casados, afirmaram que com o tempo essa questão da quantidade vai sendo substituída pela qualidade. Ela chega a afirmar que "sexo é igual vinho: quanto mais velho melhor" (Esposa 8). A Esposa 9, que ficou casada vinte e cinco anos com seu primeiro esposo e está no décimo primeiro ano do segundo casamento, concordou com essa afirmação. Segundo esses casais, os cônjuges vão se entendendo melhor ao longo dos anos e o homem também passa a priorizar mais a qualidade do relacionamento sexual. Isso ocorre devido a questões fisiológicas, advindas do envelhecimento, também por causa das responsabilidades advindas do trabalho e dos filhos, o que limita o tempo do casal. Esses resultados corroboram com a teorização de Carter e McGoldrick (1995), de que várias questões precisam ser renegociadas a cada estágio do ciclo de vida da família, e a questão sexual é uma dessas questões. Os casais mais experientes apontaram que o tempo de casamento vai trazendo melhoras, caso o casal consiga se ajustar a cada demanda.
Para a Esposa 9, o início do casamento é uma fase mais difícil, mas à medida que os cônjuges se conhecem e sabem do que o outro gosta no sexo, aumentam as experiências prazerosas. Teóricos apontam que a formação do casal e a família com filhos pequenos são os dois estágios que exigem maior quantidade de negociações do casal, e que trazem mais mudanças tanto para a família nuclear quanto para a ampliada. Esses momentos de mudanças e de adequações podem ocorrer com muita tensão e ansiedade para a família, e as questões sexuais parecem ser uma dessas fontes de tensão, como pôde ser visto até aqui (Carter e McGoldrick, 1995; McGoldrick e Shibusawa, 2016).
As profundas mudanças geradas pela chegada da criança, apontadas por Carter e McGoldrick (1995) e McGoldrick e Shibusawa, (2016), também estiveram presentes nas falas dos participantes desta pesquisa. Os maridos ressaltaram a mudança na rotina da casa, no tempo do casal, na atenção que precisa ser dividida, nas mudanças geradas no trabalho e no relacionamento em geral. Para os maridos, há mudanças profundas, que exigem adaptação, mas que não se comparam com as mudanças que ocorrem na vida das mulheres, que normalmente assumem sozinhas os afazeres domésticos e o cuidado dos filhos e do marido. As múltiplas funções assumidas pela mulher contemporânea, que é profissional, dona de casa, mãe e esposa de tempo integral, e o desequilíbrio das responsabilidades domésticas, que pesam menos para os maridos, são uma característica do casamento na atualidade (Carter e McGoldrick, 1995; Biasoli-Alves, 2000; Albertuni e Stengel, 2016). Isso parece interferir diretamente na satisfação conjugal e sexual das esposas, como pode ser visto nas seguintes falas:
Mas o homem muitas vezes não entende isso. Ele entra em casa e entra no modo sexo e pra ele acabou o mundo, é sexo. E pra gente não. Pra gente acabou o sexo e tem um milhão de coisa pra fazer. (Esposa 6)
Às vezes eu chego arrumando a casa, lavando vasilha, e ele vem: Nossa não dá tempo não, pelo amor de Deus, rapidinho. E eu penso: Pelo amor de Deus, cheguei do serviço, tô suada já, você tá caçando o quê, vai trabalhar! (risos) (Esposa 2)
Outra questão que sobrecarrega a mulher são as mudanças relacionadas ao corpo e ao humor, resultantes do parto, e que interferem diretamente na relação do casal (Carter e McGoldrick, 1995). Nesse sentido, a Esposa 4 disse que logo após o nascimento do filho, o sexo perdeu o significado. Para ela, separar as funções de mãe e esposa é um processo longo. Ela afirma, ainda, que durante esse processo fazia sexo somente para satisfazer o marido. O mesmo pode ser visto na fala a seguir:
Comigo também aconteceu a mesma coisa. Nos dois filhos. É a questão de que mudou toda a rotina da nossa vida, você está super cansada, seu corpo está uma droga. Você não gosta nem de se olhar no espelho. Então tem tudo isso na cabeça da gente. Desculpe as que não são mães ainda, a dura realidade que ninguém conta pra gente antes de ter filho. Então isso tudo mexe com a gente de uma forma doida. E com eles não mexe em nada. Eles percebem nossa ausência, porque a gente tá sempre cansada, a gente vira um caco, porque a gente não se gosta, porque nosso corpo não está no lugar como era antes. [...] Até a gente se resolver com a situação do corpo, entender o processo... demora. [...] Acho que para a mulher muda a função do sexo depois do primeiro ano do filho, ou até os quatro, quando fica mais independente, porque antes depende muito da gente. (Esposa 6)
Percebe-se, na fala da Esposa 6, que depois da maternidade, além do aumento das responsabilidades domésticas com o cuidado do filho, há conflitos internos com os quais ela precisou lidar. Mudanças no corpo e, consequentemente, na autoestima da mulher, interferem diretamente na relação do casal. O marido, por sua vez, experimenta as mudanças na rotina, mas não sofre os mesmos impactos físicos e psicológicos que a mulher. Essas mudanças são tão profundas que parecem indicar uma mudança na função do sexo nesse período para as mulheres, o que será discutido a seguir.
As funções do sexo mudam ao longo da vida?
Até este momento, o que se percebia é que as funções do sexo não mudavam com o passar do tempo e a mudança dos estágios do ciclo de vida, mas os desafios que cada fase trazia eram diferentes. O sexo para as esposas, ao que parecia, continuava sendo uma expressão de carinho e afeto, um reflexo da vivência do casal, e para o homem, parecia continuar sendo uma questão mais fisiológica do que psicológica, independentemente do estágio do ciclo de vida que estavam passando. No entanto, há, no discurso das esposas, um indicativo de que a função do sexo para a mulher, no período puerperal, passa por uma mudança. Todas as mudanças fisiológicas deste momento trazem impacto não apenas para o corpo da mulher, mas também para seu estado psicológico. Parece ser possível dizer que o sexo, para as mulheres participantes, está em uma esfera mais psicológica do que fisiológica, e as modificações do período pós-parto trazem implicações diretas para a função da relação sexual para essas mulheres.
As esposas que já são mães afirmaram que neste período de mudanças fazem sexo apenas para satisfazer os maridos, pois para elas não é algo tão prazeroso ou mesmo necessário. É um momento em que não reconhecem o próprio corpo e não conseguem estar felizes consigo mesmas, como apontado pela Esposa 6. Carter e McGoldrick (1995) relacionam esses sentimentos, neste momento, à possibilidade de depressão pós-parto. Além disso, as autoras afirmam que a mulher é ensinada desde cedo a abrir mão da sua vida para cuidar dos outros, primeiro dos filhos e depois dos mais velhos. Essa construção social do papel da mulher pode fazer com que ela se sinta "obrigada" a satisfazer seu esposo. O sexo, que antes tinha a função de trazer um bem-estar mais psicológico para as mulheres, neste momento parece ter a função de apenas estabilizar a relação do casal, uma vez que os maridos não passam por mudanças fisiológicas e continuam olhando para a esposa primeiramente como sua parceira sexual e depois como mãe de seus filhos. A Esposa 8 afirmou que isso pode ser gerador de conflitos para os casais.
Há mesmo uma mudança de função do sexo para os casais no período pós-parto? Outros dados dos grupos focais trazem reflexões a esse respeito:
Eu me sinto culpada por ele querer muito e eu querer pouco. Eu reconheço que a gente não tem vontade igual eles, mas penso que às vezes a gente tem que abrir mão um pouco do nosso desejo pra eles, porque querendo ou não a carne é fraca e a gente não pode dar brecha. Não sempre fazer contra a vontade. Meu esposo diz que se eu não quero a gente não faz, porque ele não quer fazer sozinho. [...] Ele é super compreensivo. Eu acabo abrindo mão às vezes do meu desejo para satisfazer ele, mas assim, ele também é muito afetivo. (Esposa 4)
Às vezes a mulher tem que ceder sim, ás vezes a mulher não está com aquela vontade, tá cansada, fez uma faxina, trabalhou, fez uma comida, tá com calor, e tal, mas o homem chega, e se ele souber chegar, ele acaba levando a mulher ao prazer. Se ele não souber ela vai ali... você vai lá só o corpo. A alma fica de fora. (Esposa 8)
Tem dia que você vai querer mas ela não vai querer, e você vai ficar ali. Beleza, vou dormir. Mas você manteve um ambiente ali que você entendeu o lado dela. No casamento você abre mão de muitas coisas também para satisfazer seu cônjuge. Não é só a sua satisfação. Não digo só sexual, mas várias coisas. Todo mundo sabe que a gente abre mão de muitas coisas. E o sexo às vezes entra nessa questão de abrir mão algumas vezes. O homem está querendo mas não vai dar, você sabe que ela não quer. Ela pode aceitar por fazer, mas vai ser legal? Aí vai de cada um. (Marido 4)
Nos trechos citados, os termos "abrir mão" e "ceder" aparecem como central. No discurso das esposas, "abrir mão" se refere a fazer sexo mesmo que não estejam dispostas a isso. De acordo com suas falas, elas provavelmente abrem mão porque se sentem culpadas por não ter tanto desejo quanto os maridos, apenas para satisfazer os esposos, ou porque "a carne é fraca" (Esposa 4). Imaginam que se os esposos ficarem sem sexo, podem buscar essa satisfação com outras mulheres. Do discurso do Marido 4, "abrir mão" tem um significado diferente da esposa. Ele afirma que no casamento se renuncia a muitas coisas para satisfazer o outro, mas na questão sexual, "abrir mão" está relacionado a não fazer sexo quando ele está querendo e a esposa não quer.
Os motivos pelos quais o marido e a esposa abrem mão de algo pelo outro parecem ser fundamentalmente diferentes. Mais uma vez a construção social do papel da mulher está em evidência. Elas renunciam à carreira, ao emprego, os estudos e de outras coisas para cuidar da casa, dos filhos e do marido. O que as esposas participantes relatam é que abrem mão também de seus corpos para satisfazer o marido sexualmente. Não é objetivo desse estudo determinar se essa prática tem resultados positivos ou negativos, mas o que se pode perceber é que, como Albertuni e Stengel (2016) afirmam, com todos os avanços nas conquistas das mulheres, a igualdade ainda não é uma realidade. O casamento continua sendo lugar de desigualdades que parecem sutis, mas demonstram como a mulher ainda é vista como aquela que está na posição de negar a si mesma e servir à sua família, inclusive sexualmente.
Essa prática de "abrir mão" para satisfazer o marido, portanto, não é algo que ocorre somente no pós-parto, mas também em outros momentos da vida do casal. Dessa forma, pode-se afirmar que não há uma mudança na função do sexo durante o puerpério, mas as esposas apenas repetiram algo que já tinham feito anteriormente, e que parecem fazer com certa frequência.
Em uma parte de sua fala, o Marido 3 demonstra que acredita ser uma obrigação da mulher satisfazer seu marido sexualmente. Ele afirma que se sua esposa não fizesse o papel dela, ela abriria o caminho para que ele procurasse sexo com outras mulheres. Esse discurso demonstra, em conformidade com o que teoriza Biasoli-Alves (2000), que muitos avanços foram feitos na história no que diz respeito ao lugar da mulher na sociedade e à busca de igualdade de direitos, mas há ainda a continuidade de muitos conceitos e pensamentos antigos. Percebe-se, no discurso, que a expressão "se ela não fizesse o papel dela" remete a uma ideia de que um dos papéis da esposa é satisfazer seu marido sexualmente, para que ele não venha a "procurar fora" do casamento, o que não tem tido em casa. Essa ideia parece estar não somente na mente dos maridos, mas também das esposas, como foi demonstrado acima, quando uma delas fala que precisa abrir mão e satisfazer seu esposo, mesmo sem vontade, porque a "carne é fraca", referindo-se a ele.
Outro acontecimento que pode trazer modificações na relação sexual para o casal é o momento de lançar os filhos e seguir adiante. Este estágio também foi experimentado de maneiras diferentes pelos maridos e pelas esposas participantes, como pode ser visto no discurso de um dos casais:
Depois que os filhos casam a gente fica tão acostumado, que a casa é de nós dois. Pode fazer barulho, andar do jeito que quiser. (Esposa 8)
No início sempre fica aquele vazio. Até adequar com a casa vazia. Cada cômodo tem uma história né? Aí foi meio difícil. Hoje nós já conseguimos nos adaptar, está tranquilo, os netos vão pra lá e ficam. Então preenchem esse vazio. Mas no início não foi fácil não, foi difícil. Aquela solidão do princípio volta de novo, mas volta com uma consequência mais pesada porque aquele espaço ali não vai ser preenchido. (Marido 8)
Esse casal parece experimentar de forma diferente a saída dos filhos de casa. A esposa destaca a liberdade, com a casa tornando-se novamente só dos dois, enquanto a primeira lembrança do marido é do vazio que os filhos deixaram. A saída dos filhos pode representar, para a mulher, uma liberdade a mais, uma vez que diminuem suas responsabilidades como mãe e dona de casa. É provável que ela sinta um vazio também, e uma sensação de perda. No entanto, a consequência mais direta da saída dos filhos certamente é uma diminuição da sobrecarga sobre a mulher, que pode ser sentida como um alívio. A Esposa 8 também disse em outro momento que "Depois dos 40 é tudo de bom". Isso pode se referir ao fato de que quando os filhos se tornam adultos a mulher fica menos sobrecarregada, o que se consolida com a saída deles de casa. A construção social do papel "natural" de mãe pode ser um dos motivos pelo qual essa saída dos filhos não seja diretamente expressa como uma "libertação" da mulher, mas o que se percebe nos discursos do marido e da esposa citados é que ambos experimentaram essa saída de maneira diferente. O marido sente uma perda e a esposa, normalmente sobrecarregada pelos afazeres domésticos, sente uma liberdade. Psicologicamente este momento pode ser bom para a questão sexual da mulher, que pode experimentar a vida como um todo com mais satisfação.
Outro ponto a se destacar neste momento, e que também é citado por Carter e McGoldrick (1995), é que questões fisiológicas podem afetar o casal, em função do avanço da idade. Para as mulheres, a menopausa é uma realidade experienciada com menos preconceito do que as questões que afetam os homens. O Marido 8 disse que muitos homens sentem vergonha de procurar um especialista quando estão experimentando dificuldades na área sexual, em decorrência da idade. Para ele, isso pode gerar dificuldades na relação.
A questão apontada anteriormente, de que com o tempo os maridos prezam mais pela qualidade da relação sexual também pode estar associada ao fato de que com o avanço da idade já não há mais o mesmo vigor físico. Não há indícios, através dos resultados observados, de que a função do sexo mude nessa fase da vida, mas o que pode se alterar é a frequência com que o casal faz sexo, assim como sua qualidade, alterando-se, então, a forma como cada um vivencia a relação sexual e se satisfaz com ela.
Considerações Finais
Diante do exposto pode-se concluir que o sexo não tem apenas uma função, mas múltiplas funções no casamento. Para os maridos, uma função do sexo pode ser a de trazer proximidade ao casal, mas principalmente, tem a função de proporcionar satisfação física. Para eles, o sexo é também uma forma de relaxar, desestressar, como foi citado tanto por eles quanto por suas esposas. Para as esposas participantes, o sexo parece cumprir uma função muito mais psicológica do que fisiológica. Para elas, o sexo é uma forma de dar e receber carinho, atenção, uma forma de afeto. Por ter uma função mais psicológica, o sexo envolve toda a vivência do casal, ou seja, vai muito além do ato em si. A relação sexual tem também a função de estabilizar a relação e diferenciar o casamento de uma amizade. As esposas demonstraram que, em alguns momentos, fazem sexo apenas para cumprir uma "obrigação" de esposa para com o marido, ou simplesmente para satisfazer o parceiro que deseja mais o sexo, ou, ainda, para que ele não tenha motivos para procurar outras mulheres.
Essas funções parecem não se alterar ao longo da vida, com as mudanças de estágio do ciclo de vida familiar. Embora a quantidade e a qualidade da relação sexual possam mudar de acordo com os desafios e os ganhos de cada estágio, os casais parecem continuar fazendo sexo pelos mesmos motivos, ou seja, a função do sexo permanece inalterada ao longo dos anos, tanto para os homens quanto para as mulheres participantes da pesquisa.
Entende-se que os resultados deste trabalho trazem reflexões importantes no que se refere ao papel do relacionamento sexual para a estabilidade do sistema familiar, podendo ser úteis tanto para incentivar mais pesquisas na área, quanto como fonte de conhecimento e informação aos psicólogos, tendo em vista que há uma carência de estudos brasileiros que abordem esta temática. Para concluir, os resultados apontados aqui indicam que não se pode negligenciar essa parte tão importante da vida de um casal e de uma família. Não se pode deixar, igualmente, que os casais enfrentem sozinhos os conflitos advindos das diferenças entre os cônjuges, favorecendo que a relação sexual, que deveria ser prazerosa e estabilizadora das relações, torne-se fonte de intermináveis conflitos no seio de uma família que não sabe como lidar com eles.
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Recebido em: 20.04.18
Aceito em: 07.11.18