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Contextos Clínicos
versão impressa ISSN 1983-3482
Contextos Clínic vol.13 no.1 São Leopoldo jan./abr. 2020
https://doi.org/10.4013/ctc.2020.131.09
10.4013/ctc.2020.131.09 ARTIGOS
Homens Autores de Violência contra Mulher: Um Estudo Descritivo
Men Authors of Violence Against Women: A Descriptive Study
Julliane Quevedo de MouraI; Thays Carolyna Pires Mazzini BordiniII; Julia Vazquez EnnesIII; Magalie Felix KuceraIV; Cris KrindgesV; Luísa Fernanda HabigzangVI
IPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
IIPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
IVPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
VSociedade Educacional Três de Maio
VIPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
RESUMO
Esta pesquisa teve como objetivo identificar e compreender fatores de risco individuais e familiares da perpetuação da violência, por meio de um estudo descritivo de caráter transversal. Participaram desta pesquisa oito homens que estavam respondendo a processo judicial pautado na Lei Maria da Penha. Os resultados apontaram presença de histórico de maus-tratos na infância, percepção de reciprocidade de violência entre o casal, concordância com crenças legitimadoras de violência conjugal, expressão de raiva desadaptativa, bem como uso de substâncias. Identificar fatores de risco que fazem parte da manutenção da violência entre parceiros íntimos possibilita a criação de intervenções efetivas. As intervenções devem ter como foco aprendizagem de estratégias para regulação de emoções, como raiva, bem como a reestruturação de crenças legitimadoras de violência de gênero.
Palavras-chave: homens; violência contra mulher; fatores de risco.
ABSTRACT
This study aimed to identify and understand individual and family risk factors for the perpetuation of violence, through a descriptive cross-sectional study. Eight men who were responding to a lawsuit filed under the Maria da Penha Law participated in this study. The results showed a history of maltreatment in childhood, perception of reciprocity of violence among the couple, agreement with legitimating beliefs of conjugal violence, expression of maladaptive anger, as well as use of substances. Identifying risk factors that are part of maintaining intimate partner violence enables effective interventions to be created. Interventions should focus on learning strategies for the regulation of emotions, such as anger, as well as the restructuring of legitimizing beliefs of gender violence.
Keywords: men; violence against women; risk factors.
Introdução
O fenômeno da violência contra a mulher constitui-se como uma violação dos direitos humanos, bem como uma importante questão de saúde pública. Sua prevalência acarreta inúmeros prejuízos para a saúde e consequentes repercussões na capacidade laborativa, no relacionamento familiar e social (Barros et al., 2016; OMS, 2002). Entende-se que a violência contra a mulher é pautada por relações desiguais de gênero. A violência de gênero está intrinsecamente relacionada com a lógica do sistema patriarcal, a qual reforça a dominação do homem perante as mulheres, portanto, legitimando a violência para manter sua dominância (Saffioti, 2001).
Segundo a Lei nº 11.340, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, a violência contra mulher pode ser tipificada em cinco formas: violência física, psicológica, sexual, moral e patrimonial. A violência física é compreendida como qualquer ato que ofenda a integridade e a saúde da vítima. A violência psicológica é definida como qualquer conduta que cause danos emocionais e que diminua a autoestima da vítima. Em relação à violência sexual, qualquer ato que obrigue a vítima a manter, participar ou presenciar alguma relação sexual indesejada, mediante ameaças, uso da força e coação. Já a violência patrimonial, é a retenção, subtração e destruição total ou parcial de bens, objetos pessoais, documentos e recursos econômicos. Por fim, a violência moral é definida como qualquer ato que configure injúria, calúnia ou difamação (Brasil, 2006).
Um quinto das mulheres considera já ter sofrido agressão por parte de algum homem (Brasil, 2015). Segundo dados do Disque 100, das notificações realizadas no primeiro semestre de 2016, 67% apontaram o homem com quem as mulheres mantinham algum relacionamento afetivo como sendo o autor da violência (Brasil, 2016). Também é possível perceber o impacto do respectivo fenômeno no âmbito judiciário.
Somente no ano de 2017 foram concedidas mais de 236 mil medidas protetivas de urgência às mulheres em situação de violência, um aumento de 21% em relação a 2016 (CNJ, 2018).
Visto que a violência contra a mulher é cometida majoritariamente pelo atual ou ex-parceiro íntimo, torna-se essencial incluí-lo em políticas públicas de enfrentamento ao fenômeno por meio de medidas de prevenção, proteção, assistência e punibilidade para a promoção da transformação na relação violenta (Barufaldi et al., 2017; Waiselfisz, 2015). Com a promulgação da Lei Maria da Penha foi estabelecida a criação de centros de educação e de responsabilização para os autores de violência doméstica e familiar (Brasil, 2006). Para tanto, é imprescindível identificar fatores associados à perpetuação da violência pelo atual ou ex-parceiro no contexto da relação íntima, visando dar subsídios teóricos e conceituais para se pensar a prática.
Experiências de violência na família de origem e histórico de maus-tratos na infância são fatores preditores da violência entre parceiros íntimos na idade adulta. Existe maior predisposição a repetir padrões relacionais violentos quando presenciados ou testemunhados na infância e adolescência (McMahon et al., 2015; Marasca, Colossi, & Falcke, 2013; Vu et al., 2016). Nesse sentido, com o objetivo de investigar o valor preditivo que as experiências na família de origem tiveram na perpetuação da violência física cometida e sofrida dentro das suas relações familiares, um estudo foi realizado com 186 homens e foi identificado que a exposição a abusos físicos, abusos sexuais e negligência estava associada à violência conjugal. Os achados apontaram que as dimensões do abuso físico e ajuste psicológico paternos mostraram-se correlacionadas com diferentes expressões de agressão física nos relacionamentos conjugais dos participantes (Marasca, Razera, Pereira, & Falcke, 2017).
Parceiros íntimos se engajam em interações conflitivas de diversas ordens, podendo resolvê-las de maneira pacífica ou violenta (Bolze et al., 2013). Uma revisão sistemática analisou a literatura acerca do conflito conjugal e das estratégias de resolução de conflito empregadas pelos cônjuges. A análise apontou que a retaliação, o ataque, a abordagem passiva do problema, a comunicação negativa e a ocultação de informações do parceiro estavam entre as estratégias destrutivas de resolução de conflitos conjugais. Além disso, os homens têm, predominantemente, comportamentos de retirada, esquiva, autoritarismo, crítica excessiva e culpabilização das esposas, escuta superficial, seletiva, defensiva e armada e dificuldades para expressar emoções (Costa, Cenci, & Mosmann, 2016).
Outro fator de risco para violência entre parceiros é a concordância com crenças legitimadoras de violência, pautadas em estereótipos de gênero. As crenças referem-se a processos cognitivos e sociais cuja função adaptativa serve para agrupar e relacionar conhecimentos sobre a realidade que nos cerca. Quando essas crenças são discriminatórias e estereotipadas, passam a interferir e moldar padrões sociais de forma negativa (Heredia, 2004). Já há algum tempo, pesquisas têm investigado crenças legitimadoras de violência e têm identificado que homens com níveis mais baixos de escolaridade e que possuem filhos tendem a apresentar maior concordância com tais crenças (Matos et al., 2006; Paixão et al., 2018; Ventura, Frederico-Ferreira, & Magalhães, 2013).
Uma pesquisa brasileira analisou a percepção sobre a violência conjugal de 23 homens, na faixa etária entre 25 e 62 anos de idade, respondendo a processo criminal. Nos discursos coletivos evidenciaram-se crenças de que a violência conjugal é um problema do âmbito privado, devendo ser resolvida entre o casal, sem interferência de terceiros, inclusive da polícia (Paixão et al., 2018). O estudo de Cortez e Souza (2010), por meio do relato de quatro homens autores de violência, buscou compreender concepções dos participantes sobre relacionamentos íntimos, episódios de violência e papéis conjugais masculinos e femininos. Verificou-se que os participantes relataram a utilização da violência para controlar a parceira, preservando a masculinidade tradicional, ou seja, reafirmando a crença de que o homem é o chefe da casa e a mulher subordinada às suas imposições. Além disso, foi possível observar que os entrevistados descreviam brigas, seguidas por referências e justificativas que reduziam o impacto das agressões do casal. Compreender esse discurso masculino acerca da violência contra mulheres torna-se fundamental para o processo de transformação das relações íntimas, e da prevenção de novos episódios violentos.
A raiva em sua expressão desadaptativa também se mostra como um fator associado aos comportamentos violentos e à agressividade vivenciada nas relações entre parceiros íntimos (Birkley, Christopher, & Eckhardt, 2015). Uma metanálise que buscou examinar associações entre raiva, hostilidade, internalização de emoções negativas e violência entre parceiros íntimos (VPI), evidenciou associações moderadas entre essas variáveis. Tais achados levam a compreensão de que a desregulação de emoções negativas, particularmente a raiva, aumenta o risco de perpetração de VPI por meio de uma variedade de mecanismos de interação, ou seja, quando um estado afetivo negativo aumenta, existe a propensão do aumento da disponibilidade de crenças e imagens relevantes para a agressão de fato (Birkley et al., 2015).
O uso de substâncias, principalmente o álcool, tem sido considerado como um fator preditivo da violência nas relações íntimas. O uso do álcool não pode ser inferido como fator causal da violência perpetrada pelo homem. Porém, ele atua como desinibidor, facilitando episódios violentos (Madureira et al., 2014; Paixão et al., 2014; Vieira et al., 2014). Através dos dados de uma pesquisa, proveniente do relato de 13 mulheres, as quais realizaram denúncia de violência doméstica contra seus parceiros, foi identificado o uso de substâncias psicoativas em 11 desses perpetradores da violência. Elas relataram que os episódios de violência eram permeados pelo abuso de álcool e outras drogas. O uso das substâncias, em algumas ocasiões, precipitava discussões e agressões, apresentando um papel importante no agravo das atitudes violentas cometidas pelos parceiros (Vieira et al., 2014).
Atuar no contexto do enfrentamento da violência com homens autores de violência contra a mulher requer uma compreensão de múltiplos fatores, pois dessa forma é possível intervir visando reduzir a reincidência de novos episódios violentos. Estudos voltados a essa população possibilitam preencher lacunas na literatura, ampliar as políticas públicas e os programas de prevenção, contribuindo também para avanço das discussões sobre violência de gênero (Silva, Coelho, & Moretti-Silva, 2014). Com isso, o objetivo desta pesquisa foi identificar e compreender fatores de risco individuais (abuso de substâncias, crenças legitimadoras de violência e expressão de raiva) e familiares (histórico de maus tratos e testemunho de violência entre os cuidadores na infância) envolvidos na perpetuação da violência cometida por homens contra suas parceiras.
Método
Participantes
Participaram da pesquisa oito homens autores de violência contra a mulher, encaminhados pela rede de atendimento e enfrentamento à violência doméstica. Como critério de inclusão, os homens deveriam estar respondendo a processo judicial devido à violência familiar e doméstica contra mulher e possuir mais de 18 anos de idade. Não foram incluídos participantes que apresentassem prejuízos cognitivos graves que impossibilitasse a compreensão das instruções dos instrumentos aplicados. Nenhum participante foi excluído por este critério.
Instrumentos
(1) Childhood Trauma Questionnaire (CTQ): O instrumento tem como objetivo investigar cinco situações traumáticas: abuso físico, abuso emocional, abuso sexual, negligência física e negligência emocional. É composto por 28 itens com escala Likert de 1 a 5. O questionário possui quatro pontos de corte - mínimo, moderado, grave e extremo - de acordo com o somatório das respostas para cada situação traumática. Esse instrumento é uma versão traduzida para o português por Grassi-Oliveira, Stein e Pezzi (2006). Possui Alfa de Cronbach 0,92.
(2) Escala de Crenças sobre a Violência Conjugal (E.C.V.C): Foi utilizada para avaliar as crenças legitimadoras de violência conjugal. É composto por 25 itens com escala Likert de 1 a 5 (1: discordo totalmente, 5: concordo totalmente). Esse instrumento é uma versão adaptada para o português do Brasil por Moura, Habigzang, Matos e Gonçalves (2019), a partir da Escala desenvolvida por Machado, Matos e Gonçalves (2006). A versão brasileira possui Alfa de Cronbach 0,89.
(3) Escala Tática de Conflitos (CTS2): A escala visa identificar o uso da violência entre indivíduos que tenham relação de namoro, casamento ou afins. É composta por 78 itens com escala Likert de 1 a 5. É composta por cinco subescalas: negociação, agressão psicológica, violência física, lesões corporais e coerção sexual. Esse instrumento é uma versão traduzida para o português por Moraes, Hasselmann e Reichenheim (2002). Possui Alfa de Conbach variando entre 0,79 e 0,95.
(4) Questionário Sociodemográfico: Foi elaborado para investigar características como idade dos participantes, estado civil, escolaridade, número de filhos, dados prisionais, relações familiares, uso/abuso álcool e outras drogas, condições de saúde e história pessoal de violência.
(5) State-Trait Anger Expression Inventory-2 (STAXI-2): Foi utilizado para avaliar estado e traço de raiva. É composto por 44 itens dividido em três partes: a primeira é referente ao estado de raiva, composta por 10 questões, que totalizam mínimo de 10 e máximo de 40 pontos. A segunda refere-se ao traço de raiva, em que são respondidos 10 questionamentos e, assim como ao domínio anterior, totalizam mínimo de 10 e máximo de 40 pontos. A terceira parte diz respeito a como as pessoas agem quando estão com raiva, e é composta por 24 questões. Esse instrumento é uma versão brasileira por Spielberger (2010). Possui Alfa de Cronbach variando entre 0,73 e 0,84.
Procedimentos
O recrutamento dos participantes aconteceu por meio de encaminhamentos realizados por serviços que constituem a rede de atendimento ao enfrentamento da violência contra a mulher da cidade de Porto Alegre e de um município do interior do RS. Os homens que demonstraram interesse em participar da pesquisa foram contatados pela nossa equipe, constituída de duas psicólogas e estudantes de psicologia previamente treinadas. A coleta de dados foi realizada nas dependências dos juizados das respectivas cidades, em uma sala cedida à equipe.
A aplicação dos instrumentos ocorreu em um único encontro com duração média de uma hora. Foi ressaltado aos participantes que a participação na pesquisa não influenciaria o processo judicial que estavam respondendo. A coleta de dados ocorreu na seguinte ordem: (1) aplicação do questionário sociodemográfico; (2) aplicação aleatória dos demais instrumentos para evitar efeitos de ordem.
Foram realizadas análises descritivas dos dados advindos dos instrumentos Questionário Sociodemográfico, Childhood Trauma Questionnaire (CTQ), Escala Tática de Conflitos (CTS2), Escala de Crenças sobre Violência conjugal (E.C.V.C) e State-Trait Anger Expression Inventory-2 (STAXI-2) para caracterização dos casos.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul sob parecer número 2.656.371. Todos os participantes foram informados sobre a natureza e os propósitos da pesquisa e foram incluídos mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE. A respectiva pesquisa seguiu as diretrizes da Resolução nº 510/2016 de ética em pesquisas nas Ciências Humanas e Sociais.
Resultados
A partir da análise do questionário sociodemográfico, foi evidenciado que os participantes tinham idades entre 30 e 54 anos e cinco destes se declararam solteiros. Apenas um participante não possuía filhos. Em relação à escolaridade, verificou-se níveis baixos em cinco casos. Dois participantes relataram testemunhar violência entre seus cuidadores na infância. No que diz respeito a dados prisionais, dois participantes relataram prisão devido a Lei Maria da Penha, sendo uma delas com reincidência criminal. Em relação às informações sobre a saúde mental, três participantes já realizaram algum tipo de tratamento psicológico. O participante 1 e o 6, realizaram tratamento para o uso de substância química, já o de número 8 participou de um grupo reflexivo de gênero. O perfil completo dos participantes encontra-se detalhado na Tabela 1.
Em relação ao histórico de maus-tratos na infância, de acordo com o ponto de corte do instrumento CTQ, o tipo mais evidenciado, em níveis moderados e extremos, foi o da negligência física, seguido por níveis moderados de negligência emocional. Já o abuso físico, em nível moderado, foi apontado por apenas um dos participantes, bem como o histórico de abuso emocional de nível moderado. Nenhum dos homens relatou histórico de abuso sexual. Quatro participantes pontuaram no item que rastreia possível minimização e negação dos episódios de maus-tratos na infância. A tabela 2 apresenta detalhadamente os resultados de cada participante do estudo.
Quanto aos aspectos de resolução de conflitos conjugais, todos os participantes apontaram reciprocidade de atos violentos entre o casal, ou seja, os homens que cometeram violência contra a parceira, também afirmaram sofrer violência por parte dela. O participante 1 foi aquele que mais relatou ter vivenciado reciprocidade de violência no relacionamento, identificado em 5 dimensões: violência física menor (FM) caracterizada por torcer o braço, puxar cabelo, empurrar e segurar com força; lesão corporal menor (LCM) caracterizada por apresentar contusão decorrente de uma briga; lesão corporal grave (LCG) caracterizada como frequentar serviço de saúde em função da briga; agressão psicológica menor (PM) caracterizada por gritar com o(a) parceiro(a) e violência física grave (FG) caracterizada por dar uma surra no(a) companheiro(a). Já os participantes 2 e 5 foram aqueles que acreditaram ter vivenciado reciprocidade de violência em apenas uma dimensão, sendo ela a agressão psicológica menor (PM) caracterizada por insultar e gritar. Ressalta-se que os participantes 1, 2, 4 e 7 se identificaram com afirmações que atribuíram um maior potencial ofensivo aos atos da parceira do que aos seus. Além disso, três homens apresentaram a percepção de que se importaram mais do que a parceira na tentativa de resolução de algum problema conjugal. Para o participante 2 isso aplicava-se na seguinte situação: "Mostrar que se importava com o(a) parceiro(a) mesmo que estivessem discordando.". No caso do participante 4 aplicava-se na seguinte situação: "Explicar para o(a) companheiro(a) o que não concordava com ele(ela).". Já com o participante 7 aplicava-se na seguinte situação "Dizer para o(a) parceiro(a) que achava que poderiam resolver o problema."
A E.C.V.C buscou avaliar a concordância de cada homem com crenças legitimadoras de violência conjugal. Todos os participantes concordaram com alguma afirmação que evidenciavam crenças que legitimam a violência. No total de 25 afirmações, o participante 8 foi aquele que menos concordou com frases que indicavam a legitimação da violência (2 afirmações). Já o participante 3 foi aquele que mais concordou com as sentenças (18 afirmações), expressando concordância com frases como "Um(a) parceiro(a) infiel merece ser maltratado(a)".
Em relação à expressão e estado da raiva, todos os participantes apresentaram aspectos desadaptativos de expressão da raiva, conforme a interpretação dos escores da escala STAXI-2. O participante 1 apresentou tendência a vivenciar intensos sentimentos para expressar sua raiva, além de ser altamente sensível a críticas, afrontas e avaliações negativas realizadas pelos outros. O participante 2 apresentou tendência a gastar uma grande quantidade de energia controlando e prevenindo a aparente experiência e expressão da raiva. Os participantes 3, 4 e 6 apresentaram propensão a se sentir com raiva uma boa parte do tempo, de forma crônica. Já o participante 5 apresentou indícios de vivenciar intensos sentimentos para expressar a raiva e tendia a expressá-la fisicamente a um custo substancial para si mesmo. Os resultados do participante 8 indicaram que ele pode ser temperamental e expressar prontamente seus sentimentos de raiva com pouca provocação. Além disso, pode ser impulsivo e carente de controle de raiva. O participante 7 indicou intensos sentimentos para expressar sua raiva fisicamente. Contudo, predominantemente se encontrava em uma faixa de normalidade, quando comparado com outros homens, em sua expressão de raiva como estado e traço.
Por fim, em relação ao histórico de uso de substâncias, 7 dos 8 participantes relataram o uso de substâncias no passado. Os participantes 1, 3, 4, e 8 relataram o uso do álcool associado a outras substâncias, já o 6 e o 7 mencionaram o uso apenas de álcool. Já o participante 2 negou uso de qualquer substância química no passado. Em relação ao uso atual de substâncias, o 2 e 8 negaram uso. Os demais, faziam o uso de ao menos uma substância. O participante 1 de cigarro e álcool, o 3 apenas de cigarro, os participantes 4 e 5 o uso de álcool e cigarro; o 6 apenas cigarro e o 7 apenas o uso de álcool.
Discussão
Os resultados analisados permitiram compreender fatores de risco para a manutenção da violência perpetrada por homens autores de violência contra a mulher, tais como histórico de maus-tratos na infância, aspectos de resolução de conflitos, crenças legitimadoras de violência conjugal, dificuldades no manejo da raiva e uso de álcool. Em relação ao histórico de maus-tratos na infância, observou-se que a negligência física foi o tipo de maus-tratos predominantemente identificado, seguido da negligência emocional. A negligência é compreendida como uma condição na qual o cuidador, responsável por uma criança, deliberadamente permite que ela experimente sofrimento ou privação das necessidades básicas que garantem um desenvolvimento biopsicossocial adequado. Entre as privações dessas necessidades identifica-se a garantia de acesso à alimentação, educação, saúde e satisfação das necessidades emocionais (Rodríguez-González & Loredo-Abdalá, 2019). As consequências da negligência para o desenvolvimento envolvem sintomas de depressão e ansiedade na juventude, uso de drogas e álcool, além de déficits interpessoais na infância e na adolescência, que fundamentam o sofrimento psicológico no início idade adulta (Cohen et al., 2017).
A literatura aponta a necessidade de considerar o impacto da negligência infantil no relacionamento violento, visto que a ausência das necessidades básicas como comida, vestuário, abrigo ou atenção médica não apenas leva a outras consequências negativas, mas também interfere na capacidade de vivenciar relacionamentos não abusivos com parceiros íntimos. Widom, Czaja e Dutton (2014), buscaram compreender até que ponto as crianças abusadas e negligenciadas relataram vitimização e perpetração de violência por parceiro íntimo (VPI) quando acompanhadas até o meio da idade adulta. Uma comparação foi realizada com 892 crianças de (de 0 a 11 anos), dividas entre dois grupos: com e sem histórias documentadas de abuso físico e sexual e/ou negligência. Identificou-se que indivíduos com histórico de negligência relataram causar mais lesões ao/a parceiro(a) do que controles na vida adulta. Esse achado é coerente com os resultados advindos do levantamento dos dados desta pesquisa, a qual identifica o histórico de negligência em seis participantes autores de violência contra mulher. Entende-se que é possível que a negligência na infância leve a uma maior desregulação emocional que, por sua vez, torna uma pessoa mais vulnerável a vivenciar um relacionamento violento, podendo causar danos ao(a) companheiro(a). A negligência na infância afeta o apego da criança às figuras de cuidado e isso leva a estilos de apego adultos inseguros e, finalmente, à violência conjugal na tentativa de controlar o parceiro e impedir ameaças de abandono (Widom, Czaja, & Dutton, 2014).
Em contraste com a literatura, a qual evidencia associação de histórico de abuso físico com a perpetração de violência entre parceiros íntimos (Fagan, 2005; Richards, Tillyer & Wright, 2017), apenas um dos participantes desta pesquisa foi identificado com tal histórico e de intensidade moderada. A ausência de histórico de abuso físico na maior parte dos homens avaliados pode estar relacionada ao fator de minimização e negação dos maus-tratos no autorrelato. Foi identificado, através de itens do instrumento CTQ, que quatro homens minimizaram ou negaram os maus-tratos na infância. Tal minimização ou negação pode estar relacionada com o fenômeno da naturalização da violência por parte desses homens, dessa forma, não reconhecendo como violenta algumas práticas educativas parentais como palmadas, beliscões e empurrões (Marasca et al., 2013). Ainda que seja escassa a literatura acerca da minimização e negação de maus-tratos na infância entre homens autores de violência contra mulher, um estudo realizado com 235 adolescentes infratores presos por comportamentos criminosos violentos identificou que as respostas dos adolescentes indicaram que eles possuíam uma tendência a negar o histórico de maus-tratos ao responderem perguntas diretas sobre violência em comparação com perguntas indiretas. Além disso, os resultados da subescala Minimização/Negação do CTQ mostrou que 71% dos participantes apresentaram pontuações suficientes para uma possível subnotificação de maus-tratos (Yalım & Sezgin, 2015).
Outro resultado encontrado, em relação à exposição de violência na infância, foi a experiência de testemunhar violência conjugal entre os pais em dois participantes. Entende-se que características da família de origem como a existência de comportamentos agressivos, ambiente hostil e negligência, podem ser naturalizados, aprendidos e repetidos por modelação pelas crianças que vivenciaram essa realidade. Dessa forma, presenciar agressões na infância leva o sujeito a fazer dessas relações violentas um modelo para a resolução de seus próprios conflitos (Marasca et al., 2013; Vu et al., 2016). No estudo de Kimber et al. (2018), foi possível visualizar tal associação entre a exposição da criança à violência entre parceiros íntimos (VPI) e a perpetração da VPI na idade adulta. Dentre os achados, 16 estudos relataram uma significativa associação entre essas experiências de violência e indicaram que aqueles expostos à VPI na infância podem ter até quatro vezes mais chances de perpetrar alguma forma de VPI na idade adulta. Além disso, quatro estudos incluíram amostras exclusivamente masculinas, identificando que ter testemunhado violência física entre homens e mulheres na infância ou adolescência está associado a um risco elevado de perpetrar VPI física ou física/sexual na idade adulta.
No que tange à identificação da violência e resolução de conflitos nas relações íntimas desta pesquisa, identificou-se que quatro participantes atribuíram maior potencial ofensivo à parceira, bem como se perceberam como aqueles que se importavam mais com a relação, especificamente três participantes. Estudos com homens autores de violência indicam que estes culpabilizam as parceiras pela violência por eles perpetrada (Cortez, Sousa, & Queiróz, 2010; Costa et al., 2016). O estudo de Cortez et al. (2010), que visou compreender a violência entre parceiros íntimos a partir de uma perspectiva relacional de gênero, analisou um conjunto de entrevistas realizadas com quatro casais que possuíam histórico de violência na relação. Os achados apontaram a existência da culpabilização da esposa por parte do parceiro. Tal fato pode ser compreendido como uma tentativa do homem de afastar-se do papel de agressor, aproximando-o do papel esperado pela sociedade que preconiza o homem como aquele que protege e cuida. Segundo Paixão et al. (2018), alguns homens podem se sentir injustiçados ao experienciar a prisão preventiva, revelando ódio e desejo de vingar-se da mulher, culpabilizando a parceira pela vivência da acusação da violência perpetrada. Além de sinalizar para o risco de retaliação por parte do homem, os autores alertam para o não entendimento desses homens da sua conduta violenta e, portanto, criminosa. Desse modo, torna-se fundamental a compreensão da banalização da violência nos relacionamentos conjugais e a importância do apoio social no processo de reflexão de relacionamentos mais saudáveis.
Em relação às crenças legitimadoras de violência conjugal, os oito participantes desta pesquisa concordaram com crenças que demonstram banalização da violência, manutenção do modelo tradicional familiar, bem como crenças relacionadas à violência como sendo um aspecto de cunho privado. Além disso, manifestaram crenças concordantes com estereótipos de gênero e que minimizam a responsabilidade do homem em atitudes violentas. A literatura aponta a influência do contexto cultural na interiorização de valores ideológicos e sociais, como atitudes e crenças sobre os papéis de gênero, promotores de condutas violentas (Alves & Magalhães, 2012; Matos et al., 2006). A sociedade ainda estruturada em moldes patriarcais reforça crenças que legitimam a violência contra a mulher (Paulino-Pereira, Santos, & Mendes, 2017). O estudo de Paixão et al. (2018) corrobora com tais achados, visto que evidenciou que os homens autores de violência contra a mulher perceberam a violência nas relações íntimas como sendo natural ao cotidiano dos casais e de cunho privado, não havendo necessidade da interferência de terceiros. Além do mais, foi possível perceber que o discurso masculino estava permeado por estereótipos de gênero, quando esses compreendem que o papel do homem na relação é assumir uma postura para mostrar sua superioridade.
Ressalta-se que as relações familiares e íntimas são permeadas por relações de poder assimétricas e hierárquicas, pautadas em uma lógica patriarcal. Nessa perspectiva, ao homem é atribuído o papel de detentor do poder em relação à mulher, e ao homem e a mulher são atribuídos papéis de detentores do poder perante os filhos. Para tanto, tal contexto evidencia que no momento em que um sistema familiar deixa de ser um ambiente de proteção e de afeto para seus integrantes, e passa a ser um ambiente onde o poder é exercido de forma agressiva e hostil, a reprodução de crenças legitimadoras de violência e naturalização da violência passam a ser um risco (Lima, Buchele, & Clímaco, 2008; Machado et al., 2006). Em contrapartida, o participante 8 foi aquele que apresentou concordância com crenças legitimadoras de violência conjugal em menor grau. Ainda que esse resultado possa ter sido influenciado pelo fenômeno da desejabilidade social, salienta-se que esse participante possuía histórico de psicoterapia, segundo ele motivada por problemas no relacionamento, e participação em grupo reflexivo de gênero para homens autores de violência contra mulher. Grupos reflexivos de gênero estão sendo implementados por algumas comarcas do Brasil. Apesar de serem desenvolvidos nas mais distintas metodologias, tem em comum o objetivo de modificar a lógica machista e estereotipada de papéis masculinos e femininos, bem como prevenir a reincidência (Zorzella & Celmer, 2016). Ainda que a literatura sobre efetividade desses grupos seja incipiente, as intervenções mostram-se promissoras. Os grupos buscam se distanciar de uma lógica opressiva e punitiva, voltando-se para momentos de interlocuções e reflexões entre os envolvidos, distanciando-se da categorização do homem como agressor e mulher como vítima (Silva et al., 2015; Zorzella & Celmer, 2016).
Outra variável investigada foi a raiva, sendo que todos os participantes desta pesquisa apresentaram nível de raiva desadaptativo. O modelo de masculinidade preconizado pela sociedade, influenciada pelo patriarcado, implica na construção de um homem que é educado desde criança a reprimir suas emoções, como a dor, o carinho, ou todas aquelas que aparentam fragilidade. Por outro lado, toda a demonstração de coragem, dominação e força é exaltada, assim como a expressão da raiva (Lima, Buchele, & Clímaco, 2008). A literatura tem apontado que homens autores de violência contra a mulher expressam sua raiva de forma desadaptativa, corroborando com os achados do presente estudo (Birkley et al., 2015; Farzan-Kashani & Murphy, 2015; Finkel & Eckhardt, 2013). A raiva também foi foco de metanálise conduzida por Birkley e Eckhardt (2015) que buscou examinar as associações entre essa emoção, hostilidade e internalização de emoções negativas e perpetração de violência entre parceiros íntimos em 61 estudos. Dentre os achados, foi identificado que a violência entre parceiros íntimos (VPI) estava associada moderadamente à raiva. Além do mais, a associação raiva-VPI pareceu ser moderada pela gravidade da violência, ou seja, quanto maior o nível de raiva, maior a gravidade da violência.
Seis participantes relataram histórico de uso de álcool, enquanto quatro mencionaram o uso atual dessa substância. A expressão desadaptativa da raiva associada ao uso de álcool em homens autores de violência contra a mulher foi investigada por Romero-Martínez, Lila e Moya-Albiol (2015). O estudo realizado com 37 homens, sendo 16 perpetradores de violência e 21 não perpetradores, buscou investigar o potencial efeito mediador do consumo de álcool na relação íntima e na expressão da raiva. Segundo os achados, elevados níveis de testosterona e cortisol foram associados à elevada expressão da raiva em perpetradores de violência na relação íntima, e essa associação foi mediada pelo alto consumo de álcool. Dessa forma, o uso de álcool pode atuar como um fator catalisador nessa relação, promovendo o surgimento de episódios violentos.
A violência contra a mulher é um fenômeno complexo e multicausal, portanto, é necessário considerar fatores individuais, relacionais, sociais, culturais e ambientais implicados (Leite et al., 2017; OMS, 2002). Entretanto, percebe-se que a violência pautada em gênero e o projeto de afirmação do poder masculino sobre as mulheres são aprendidos no decorrer dos processos primários de socialização e deslocados para a esfera da sociedade em momentos secundários e da idade adulta, alastrando-se de forma sútil ou não, e interagindo com esses outros fatores mencionados (Bandeira, 2014). Superar a assimetria na relação entre homens e mulheres é um grande desafio para almejar uma sociedade justa e igualitária. É através de políticas públicas de enfrentamento à violência direcionada não só às mulheres, mas também aos homens, que essa possibilidade se torna mais próxima. Assim, visando romper com um modelo hegemônico de masculinidade, possibilitando novas formas de ser homem.
Considerações finais
Ao buscar identificar e compreender os fatores de risco envolvidos na perpetuação da violência foi possível constatar o histórico de maus-tratos infantis, crenças legitimadoras de violência conjugal, expressão de raiva, violência e aspectos de resolução de conflitos entre o casal e histórico de uso de substâncias em homens autores de violência contra mulher. O patriarcado e machismo fazem parte da engrenagem que perpetua a violência contra mulheres. Os achados possibilitaram a problematização e compreensão da masculinidade associadas à agressividade, ao exercício de poder patriarcal, ao não controle da raiva, a não responsabilização por seus atos, à minimização da violência e à rigidez nos valores, nas crenças e práticas familiares e conjugais.
Este estudo possui algumas limitações, entre elas a dificuldade de acesso aos participantes e o número reduzido de aceitação ao convite da pesquisa. Acessar a população em questão requer um diálogo com a rede pública de enfrentamento à violência que muitas vezes se encontra sucateada ou sobrecarregada. Entre os motivos referentes à dificuldade de participação dos homens, observou-se a falta de interesse, não querer despender de tempo, receio em falar sobre episódio de violência e até mesmo a falta de responsabilização pelo acontecido.
Ressalta-se que toda a cultura preconiza condutas a serem internalizadas pelos homens e uma delas é a repressão das emoções e da vulnerabilidade e consequentemente do falar sobre si. O desvelar dessas dificuldades permite compreender que o acesso aos homens autores de violência no contexto de investigação é um desafio que comporta muitas e diferentes facetas. Entretanto, espera-se que as contribuições advindas deste estudo perpassem no contexto do ensino, da pesquisa e do processo de ação e intervenção.
Os resultados encontrados podem contribuir para subsidiar intervenções psicossociais para homens autores de violência contra a mulher que visem trabalhar na prevenção e enfrentamento do fenômeno. Verifica-se a necessidade de considerar nas intervenções aspectos relacionados à aprendizagem de estratégias para regulação de emoções, como a raiva, principalmente em homens com histórico de maus-tratos. Além disso, deve preconizar uma abordagem que subsidie a flexibilização de crenças estereotipadas de gênero e de crenças legitimadoras de violência conjugal. Estudos futuros podem investigar a efetividade de intervenções com homens autores de violência contra mulher que considerem os fatores de risco abordados neste estudo.
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Correspondência para:
Julliane Quevedo de Moura
Programa de Pós-Graduação em Psicologia PUC/RS
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Submetido em: 09.12.2019
Aceito em: 30.04.2020