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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.1 no.2 Juiz de fora dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Brincadeira e amizade: lembranças de imigrantes libaneses vivendo no Brasil

 

Play and friendship: memories of lebanese immigrants living in Brazil

 

 

Lorena Queiroz MerizioI; Agnaldo GarciaI,*; Fernando Augusto Ramos PontesII

IUniversidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil
IIUniversidade Federal do Pará, Belém, Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo investigou as lembranças de imigrantes libaneses vivendo no Brasil sobre suas amizades e brincadeiras na infância, vivida no Líbano, e as de amizades e brincadeiras da infância de seus filhos, no Brasil. Quatro imigrantes libaneses vivendo na Grande Vitória, Espírito Santo, foram entrevistados. Os relatos foram transcritos e analisados de acordo com categorias previamente estabelecidas: (a) amigos de infância no Líbano; (b) amigos da infância dos filhos no Brasil; (c) brincadeiras da infância no Líbano; (d) brincadeiras da infância dos filhos no Brasil; (e) percepção de diferenças culturais entre o brincar e a amizade nos dois países em diferentes momentos históricos. Os dados foram discutidos à luz da obra de Robert Hinde. Pode-se concluir que, apesar das semelhanças em alguns aspectos das amizades e das brincadeiras, diferenças culturais estão presentes na estrutura da rede de amigos e no conteúdo dos relacionamentos.

Palavras-chave: Amizade, Brincar, Infância, Líbano, Brasil


ABSTRACT

This article investigated the memories of Lebanese immigrants living in Brazil about friendships and play habits in their childhood in Lebanon, and about friendships and play habits of their children in Brazil. Four Lebanese immigrants living in Metropolitan Vitoria, Espirito Santo, were interviewed. The reports were transcribed and analyzed according to previously established categories: (a) childhood friendships in Lebanon, (b) childhood friendships of their children in Brazil, (c) childhood play habits in Lebanon, (d) childhood play habits of their children in Brazil, (e) perception of cultural differences between play and friendship in the two countries in different historical moments. The data were discussed in light of Robert Hinde's work. It was concluded that, despite the similarities in some aspects of friendships and play, cultural differences were present in the structure of friendship network and in the relationship content. hips and play, cultural differences were present in the structure of friends network and in the relationship content.

Keywords: Friendship, Play, Childhood, Lebanon, Brazil


 

 

O presente trabalho procurou investigar e comparar as lembranças de imigrantes libaneses no Brasil acerca de suas amizades e brincadeiras de infância, vivida no Líbano, e as amizades e brincadeiras da infância de seus filhos, vivida no Brasil, buscando compreender melhor as relações entre brincadeira, amizade e cultura. Nos parágrafos seguintes, é apresentada uma breve revisão de estudos relacionando brincadeira, amizade e cultura, trabalhos que discutiram aspectos da vida dos imigrantes libaneses no Brasil e, finalmente, uma breve apresentação do referencial teórico a ser utilizado neste trabalho.

 

Brincadeira, Amizade e Cultura

A trilogia brincar, relações interpessoais e cultura é indissociável: são elementos dialeticamente relacionados que se afetam mutuamente. Carvalho, Magalhães, Pontes e Bichara (2003) entendem que, partindo do pressuposto de que cultura é o conjunto de ações e conseqüências de ações humanas, é lícito conceber a brincadeira como uma prática cultural, tendo por base o contexto no qual se constitui a identidade de seus membros. Assim, brincadeiras representariam práticas culturais e, como tais, abarcam rituais que se transmitem por repetição ou por recriação em ambientes sócioculturais diferentes (Carvalho & Pontes, 2003). Nesse sentido, pode-se considerar as brincadeiras como parte do patrimônio cultural humano, agente de criação e de transmissão de cultura (Pontes & Magalhães, 2002).

Comentando sobre a estrutura da brincadeira, Pontes e Magalhães (2002) entendem que o estudo de brincadeiras tradicionais possibilita a investigação de um fenômeno "espontâneo" infantil, sem o planejamento adulto e sem o recurso da escrita. Por intermédio da brincadeira, pode-se investigar tanto fenômenos da ordem da constituição da cultura como dos relacionamentos. Por regular a atividade em desenvolvimento, a estrutura da brincadeira ou brinquedo em si assume o papel de mediador dos relacionamentos que neles se circunscrevem. Deste modo, o brinquedo não somente estrutura a execução de uma atividade compartilhada, como também, por seu exercício, cria espaço e tempo para o compartilhamento, relacionado ou não à atividade de brincadeira. É neste sentido que os contextos de brincadeira são contextos privilegiados para a construção de relacionamentos cada vez mais complexos, especialmente a amizade.

A amizade é um tipo de relacionamento interpessoal caracterizado pela voluntariedade para seu início e manutenção (Krappmann, 1996). Garcia (2005) afirma que similaridade, simetria, reciprocidade e influência social são características fundamentais nas relações entre amigos. Para Auhagen (1996), a amizade se baseia na mutualidade, possuindo uma dinâmica própria, que pode ser nutrida por aspectos lúdicos.

Em termos afetivos e relacionais, as brincadeiras possibilitam a auto-avaliação e o conhecimento mútuo dos envolvidos, abrindo espaço para encontrar, nos outros, atitudes e habilidades que causem admiração, que combinem com sua maneira de pensar, que causem vontade de conhecer, emergindo daí as primeiras amizades (Dohme, 2003). Contudo, o conjunto de afinidades desenvolvidas por intermédio da brincadeira é construído não em um contexto de relações harmônicas, mas sim no de um colorido afetivo e interacional variado, especialmente no que refere à brincadeira social.

A brincadeira social articula-se com relações interpessoais, comunicação e aprendizagem, assim como provê um estudo do protótipo para a evolução da moralidade. De acordo com Byrne & Whithen (1988) trata-se de uma adaptação para a vida em sociedade. Existe uma dupla via na relação entre brincadeira e desenvolvimento social (Johnson, Christie & Yawkey, 1999). O ambiente social provê à criança habilidades necessárias para brincar com seus pares e, por outro lado, a brincadeira age como um importante contexto no qual a criança adquire habilidade e conhecimento social. Desse modo, a prática social afeta a brincadeira da criança, dirigindo para valores e normas culturalmente específicas. Reciprocamente, a brincadeira tem papel chave no desenvolvimento social, provendo um contexto no qual a criança adquire habilidades sociais, tais como alternância de turno, compartilhamento e cooperação, todas essenciais para o desenvolvimento da compreensão do pensamento e das emoções do outro (Bekoff & Allen, 1998).

Amizade e brincadeira estão diretamente relacionadas na infância. A brincadeira é uma forma de exploração social ou de autoexploração das habilidades sociais (Thompson, 1998), elementos fundamentais para construção da amizade. Desse modo, é possível identificar, como demonstra o clássico trabalho de Werner e Parmelee (1979), que a oportunidade de engajarse em atividade de brincadeira mutuamente agradável pode ser o motivo mais forte na escolha e manutenção da amizade entre crianças.

É nesse sentido que os estudos sobre a amizade infantil têm demonstrado a sua relevância emocional, social e cognitiva para a criança, proporcionando oportunidades para o desenvolvimento emocional e a socialização, além de ser um dos relacionamentos que maior satisfação traz à vida de uma criança (Garcia, 2006). Do mesmo modo que a brincadeira apresentará características diferentes em função dos grupos culturais em que estão situados aqueles que brincam, a amizade terá conotações e aspectos subjetivos relacionados à microcultura do grupo e à estrutura sócio-cultural da sociedade mais ampla onde essas relações se estabelecem.

Freqüentemente, os estudos sobre a amizade na infância tratam a cultura em dois níveis interrelacionados: a cultura dos pares e a cultura de forma mais ampla, geralmente relacionada a um povo ou nação. Em relação ao primeiro aspecto, Corsaro e Rizzo (1988), por exemplo, investigaram a socialização na cultura dos pares entre crianças italianas freqüentando uma escola maternal destacando como parte da cultura do grupo a preocupação com o cultivo e manutenção da amizade e a ligação da amizade com a qualidade ou a perícia no desempenho de atividades específicas, como brincar e comunicar-se. Como exemplo do segundo aspecto, Schneider, Fonzi, Tani e Tomada (1997) compararam crianças canadenses e italianas quanto às habilidades de comunicação na resolução de conflitos entre amigos, apontando diferenças culturais quanto à qualidade da comunicação e à estabilidade das amizades. Entre as crianças italianas houve menos conflito, fato atribuído à superioridade (devido ao ambiente cultural) nas habilidades de comunicação destas crianças para resolvê-los. A qualidade da comunicação, facilitando a resolução de conflitos, foi considerada um fator importante para a maior estabilidade das amizades entre as crianças italianas. Apesar da maioria das amizades ter-se mantido durante o ano escolar, menos amizades terminaram entre as crianças italianas quando comparadas às canadenses.

As relações entre brincadeira e amizade na infância são claras, assim como a influência da cultura sobre ambas. Contudo, pouco tem sido investigado sobre a relação entre brincadeira e amizade em diferentes países com diferentes tradições culturais.

 

Imigrantes Libaneses no Brasil

A colônia libanesa no Brasil é a maior do mundo, com cerca de sete a oito milhões de pessoas. Representa aproximadamente o dobro da população do próprio Líbano, de aproximadamente 3,5 milhões de pessoas (Rubin, 2007).

Segundo Gattaz (2005), a imigração libanesa para o Brasil ocorreu principalmente a partir da década de 1880. De acordo com Moraes (2002), a grande corrente imigratória de libaneses para o Brasil ocorreu em 1914, em função da Primeira Guerra Mundial e da dominação otomana. Mas foi entre os anos de 1910 e 1940 que a imigração libanesa se tornou mais expressiva. Gattaz (2005) considera como a última fase da imigração o período durante e após os anos da Guerra do Líbano (1975-1990).

No Brasil, muitos optaram pelo Espírito Santo, principalmente Vitória, Cachoeiro de Itapemirim e Alegre, onde se dedicaram ao comércio e às pequenas indústrias. As razões de escolha do Espírito Santo estariam ligadas, principalmente, ao fato de que muitos tinham parentes no Estado. Viajavam por conta própria, muitas vezes ajudados por parentes e amigos já estabelecidos em terras capixabas, que falavam das excelentes condições de vida no local.

Amigos e familiares ajudavam na manutenção, adaptação e segurança dos imigrantes. O vínculo do parentesco sempre foi importante para os libaneses. Famílias de descendentes continuam hoje o trabalho iniciado pelos antepassados, ocupando um lugar de destaque nos vários ramos da atividade capixaba (Campos, 1987).

Outros autores trataram da trajetória de imigrantes libaneses no Brasil. Abumrad (2007) relata histórias de 40 empreendedores libaneses no país, apontando a falta de registros escritos. Zaidan (2001) discutiu a imigração libanesa no Pará e a integração dos libaneses com o povo brasileiro. Segundo o autor, até 1914 desembarcaram em Belém entre 15 mil e 25 mil imigrantes sírios-libaneses. Outros autores ainda trataram da trajetória do imigrante libanês no Espírito Santo (Campos, 1987) e no Estado de São Paulo, particularmente em Cajuru (Gomes, 2004). Greiber, Maluf e Mattar (1998) reúnem relatos de imigrantes libaneses e sírios em São Paulo, a respeito dos costumes, religião, forma de casamento, convivência com outros imigrantes e a vida na nova terra. Santos (2006) investigou a integração de imigrantes sírios e libaneses em Ilhéus, apontando que as assimilações deixaram um legado significativo para a cidade, principalmente no comércio e na gastronomia, destacando o bom relacionamento de etnias tão diferentes, que fazem parte da construção cultural e social da região.

Osman (1998) destacou o papel na mulher no movimento migratório libanês para o Brasil, cuja importância, segundo a autora, não tem sido devidamente reconhecida. Além do espaço doméstico, participaram no espaço do trabalho, opinando, decidindo, influenciando, traçando projetos, reelaborando trajetórias e reorganizando o papel da família. Compreender sua atuação contribuirá para a superação de preconceitos quanto a estereótipos de submissão e pouca (ou nenhuma) participação na organização familiar. Para a autora, a presença feminina na preservação dos valores tradicionais e na adequação aos novos valores adquiridos durante o processo migratório foi essencial.

Osman (2007) investigou os fatores que levaram imigrantes libaneses no Brasil a retornarem ao Líbano, os quais estariam ligados à preservação da cultura, como língua, família e religião, e a facilidade para casamentos com membros da própria comunidade. Entrevistou libaneses, imigrantes retornados, de primeira, segunda e terceira gerações. A maioria era de comerciantes, de classe média ou média baixa, com alguns profissionais liberais (engenheiros, médicos e advogados). O tempo de permanência desses imigrantes no Brasil foi bem variado, assim como o tempo de retorno ao Oriente Médio. Quanto maior o tempo de permanência no Brasil, maior foi a dificuldade de adaptação ao Líbano, especialmente os da primeira geração, após morarem 20 ou 25 anos no Brasil. Os jovens também apresentaram grandes dificuldades de adaptação: o comportamento, as regras, a língua, o sistema educacional e a religião se apresentaram muito diferentes no Oriente Médio. Um dos pontos apontados foi a conversa das jovens com um homem fora da família a qual podia fazer com que elas se tornassem mal vistas e mal faladas na comunidade. As famílias eram grandes, incluindo sobrinhos, tios e avós, sendo a maioria dos casamentos feitos na mesma aldeia de origem da família.

Ykegaya (2006) tratou da construção da identidade étnica dos imigrantes libaneses muçulmanos residentes na cidade de Foz do Iguaçu, no Paraná. Segundo o autor, a representação de si, elaborada pelo grupo de imigrantes, está baseada na relação com o lugar de origem, na religião muçulmana e na atividade comercial, consideradas especificidades da cultura libanesa na base da construção de sua identidade étnica.

Os libaneses representam um importante grupo de imigrantes no Brasil. Contudo, os estudos sobre sua vida social em nosso país ainda são raros.

 

Robert Hinde: Em Busca de um Referencial Teórico

O presente artigo utiliza como referencial teórico as propostas de Robert Hinde (1979, 1987, 1997), que representa um dos autores contemporâneos que mais contribuiu para a tentativa de organização de uma "ciência do relacionamento interpessoal" tendo como base princípios fundamentais da Etologia clássica (Garcia, 2005).

De acordo com Hinde (1997), o desenvolvimento social do ser humano envolve um sistema de relações com diferentes níveis de complexidade, que afetam e são afetados uns pelos outros (de processos fisiológicos, passando por interações, relacionamentos, grupos e sociedade) e ainda a estrutura sociocultural e ambiente físico. Enfatiza a necessidade da descrição dos diversos níveis de complexidade, como um meio para compreender a dinâmica dos relacionamentos. Ainda destaca a importância da classificação dos dados observados, a análise e síntese dos resultados da análise.

Para organizar a área, Hinde (1997) parte do conteúdo dos relacionamentos, passando para a diversidade e a qualidade das interações. Reciprocidade, complementaridade, intimidade, percepção interpessoal e compromisso são consideradas categorias que ajudariam a organizar dados descritivos sobre relacionamentos.

Dois aspectos se destacam na sua principal obra sobre o tema (Hinde, 1997): (1) uma estrutura geral para inserir os relacionamentos dentro de vários níveis de complexidade; (2) a apresentação e discussão de diversas dimensões investigadas nos estudos do relacionamento. O primeiro aspecto é pouco desenvolvido pelo autor, mantendo apenas um modelo esquemático. Neste artigo, este modelo mais amplo serve de referencial para integrar os diferentes aspectos presentes nos relacionamentos, em sua complexidade.

Para Hinde (1997), há um relacionamento se os indivíduos têm uma história comum de interações passadas e o curso da interação atual é influenciado por elas. O autor trata de níveis distintos de complexidade com propriedades próprias (interações, relacionamentos, grupos sociais), os quais se interrelacionam e se influenciam mutuamente. Cada um desses níveis influencia e é influenciado pelo ambiente físico e pela estrutura sócio-cultural (idéias, mitos, valores, crenças, costumes e instituições).

No nível comportamental, um relacionamento envolve uma série de interações entre indivíduos que se conhecem. Assim, a descrição de uma interação deve referir-se ao conteúdo do comportamento apresentado (o que fizeram juntos), à qualidade do comportamento (de que forma foi feito) e à padronização (freqüência absoluta e relativa) das interações que o compõem. Algumas das mais importantes características dos relacionamentos dependem de fatores afetivos/cognitivos (Hinde, 1997).

Devido à sua abrangência, permitindo tratar de diferentes níveis de complexidade, o modelo apresentado por Hinde (1997) mostra-se como uma opção para o estudo em questão. Na presente oportunidade,os relacionamentos (e atividades compartilhadas entre os participantes, como o brincar) são analisados dentro de diferentes contextos ambientais e sócio-culturais, além de transitarem pelo nível das interações (mediadas pelo brincar), pelos relacionamentos (de amizade) e mesmo pelos grupos (como o familiar).

Cultura e ambiente físico também se afetam mutuamente e servem não apenas como cenário para os relacionamentos. Também fazem parte do conteúdo destes últimos, atuando como fatores de mediação entre os indivíduos.

 

Brincadeira, Amizade e Cultura: Lembranças de Imigrantes Libaneses

As relações entre brincadeira, amizade e cultura ainda são pouco conhecidas. A contribuição para esta área de pesquisa do conhecimento de pessoas que tenham vivido em dois países e culturas diferentes também tem sido pouco explorada, no sentido de comparar essas culturas. Neste caso se inserem os imigrantes que, tendo passado a infância em seu país de origem, emigram para outros países com uma cultura diferente.

A presente pesquisa teve por objetivo investigar as lembranças de imigrantes libaneses vivendo no Brasil sobre brincadeiras, amizades e fatores culturais de sua infância no Líbano e da infância de seus filhos no Brasil, procurando comparar essas memórias. O Brasil foi considerado por todos os entrevistados como um país onde sua inserção social e cultural foi bem sucedida. Assim, conhecer melhor como as amizades e o brincar mudaram da geração que imigrou para a primeira geração no Brasil envolve interesse prático no sentido de indicar possíveis fatores responsáveis por essa adaptação a um novo contexto cultural. Conhecer melhor as brincadeiras e os padrões de amizade de pais e filhos, no Líbano e no Brasil, pode ajudar a compreender e fornecer subsídios para auxiliar na adaptação de outros imigrantes em nosso país. O exemplo brasileiro, neste caso, fornece dados interessantes pela percepção positiva dos próprios imigrantes quanto à sua adaptação ao país.

Em suma, este trabalho procura contribuir para o conhecimento do brincar e da amizade em diferentes culturas a partir da visão de imigrantes, explorando as propostas de Robert Hinde para o estudo do relacionamento interpessoal. Busca, assim, contribuir também para uma visão mais ampla desta área de investigação, considerando aspectos ambientais e culturais como fatores fundamentais para a compreensão do relacionamento interpessoal.

 

Método

Participantes

Participaram da pesquisa quatro libaneses (dois homens e duas mulheres) com idades entre 56 e 69 anos que, tendo nascido e passado a infância no Líbano, se estabeleceram no Brasil, na região da Grande Vitória. Todos pertenciam a famílias cristãs e constituíram família no Brasil, tendo filhos brasileiros. João, 44 anos, nasceu em Beirute e reside no Brasil há 33 anos. Paisagista, é casado com uma brasileira com a qual teve três filhas (21, 17 e 5 anos). Ana, 65 anos, nasceu em Baalbeck e migrou para o Brasil em 1953. Dona de casa, é casada com um primo em primeiro grau (também libanês), com o qual teve quatro filhos (39, 38, 36 e 23 anos). Antônio, 69 anos, nasceu em Zahle e veio para o Brasil em 1948, com 12 anos. Empresário, é casado com uma prima em segundo grau (também libanesa), com a qual tem um filho de 20 anos. Rute, 59 anos, nasceu em Bintjbeil. Dona de casa, casou-se com um primo em segundo grau (também libanês), com o qual tem um filho de 20 anos.

Procedimentos

Foram realizadas entrevistas semiestruturadas abordando as amizades de infância dos participantes (no Líbano), as amizades da infância dos filhos (no Brasil) e a comparação entre ambas. Ainda foram investigadas as brincadeiras da infância dos participantes e as brincadeiras de seus filhos quando crianças, as diferenças e semelhanças entre elas, as relações entre brincadeira e amizade, e os aspectos culturais destacados pelos participantes.

As entrevistas se basearam em um roteiro com questões abertas e fechadas. Estas foram gravadas, transcritas e analisadas de modo qualitativo por análise de conteúdo. A pesquisa procurou abordar os seguintes aspectos: amizades na infância, amizades dos filhos na infância, comparação entre ambas, brincadeiras na infância, brincadeiras dos filhos quando crianças, diferenças e semelhanças entre as duas, brincadeira e amizade e aspectos culturais. Os dados foram organizados de acordo com estas categorias prévias, procurando-se manter a estrutura narrativa das respostas apresentadas dentro de cada item. Para fins de proteção da identidade dos participantes e das pessoas citadas, os nomes apresentados são fictícios.

As entrevistas foram conduzidas individualmente por um dos pesquisadores e duraram entre uma hora e uma hora e meia cada. A partir do material transcrito, o conteúdo das mesmas foi analisado. A análise partiu de categorias pré-estabelecidas a partir de pesquisas anteriores. As respostas permitiram estabelecer o detalhamento de cada categoria e possíveis subcategorias foram estabelecidas empiricamente a partir das respostas. Este procedimento se mostrou adequado para compreender com riqueza de detalhes as experiências dos participantes. As entrevistas em profundidade permitiram aos participantes expor suas lembranças de forma livre e aberta. Posteriormente, instrumentos para uma análise quantitativa poderão ser propostos a partir de análise qualitativa.

 

Resultados

Os resultados são apresentados em sete itens, correspondentes às categorias temáticas préestabelecidas. Os três primeiros analisam as amizades na infância no Líbano dos próprios participantes, como perceberam as amizades dos filhos no Brasil e uma comparação entre as amizades no Líbano e no Brasil. Os três itens seguintes analisam as brincadeiras que tinham no Líbano, as brincadeiras dos filhos no Brasil e uma comparação entre elas. Finalmente, discorrem sobre as relações entre amizade e brincadeira, incluindo a percepção de fatores culturais.

1. Amigos de Infância no Líbano

Os participantes relataram suas lembranças acerca dos seus amigos de infância, incluindo as atividades compartilhadas, locais associados às amizades e suas características e peculiaridades, além do grau de envolvimento da família nas amizades.

Em sua infância, Ana considerava apenas os primos (do mesmo gênero) como amigos, o que era incentivado por sua família, de modo que não teve experiências de amizade extra-familiares. Para Rute, as primeiras amizades foram estabelecidas com os vizinhos (familiares) e depois com colegas de escola. Ainda encontrava as amigas na igreja e nas casas das amigas. Juntas, faziam palavras-cruzadas, passeavam, lanchavam e jogavam baralho. Quando o clima permitia, viajavam nos finais de semana. Havia muita sinceridade e cumplicidade entre os amigos, já que "eram amizades muito sadias". Os pais dela conheciam suas amigas.

João recorda-se dos primos (vizinhos) e dos meninos da escola como amigos de infância. As constantes idas à igreja também facilitavam as amizades. Ele destaca que costumava brincar com meninos muçulmanos, mas qualquer situação representava o estopim para discussões e conflitos que envolviam os pais. Por sua vez, os amigos de infância de Antônio eram da escola e da vizinhança. Na maior parte dos casos, os amigos de escola e os vizinhos eram os primos, com os quais costumava brincar de bola. Construía os próprios brinquedos e seus amigos freqüentavam as casas uns dos outros para brincar. Devido aos conflitos no país (guerra), não ficavam muito na rua brincando.

Os quatro relatos apontam a amizade como um relacionamento importante em suas infâncias. Quanto à rede de amigos, esta era composta por familiares (primos), vizinhos ou colegas da escola ou da igreja. As famílias valorizavam o estabelecimento e a manutenção das relações de amizade com outros familiares (primos).

Freqüentar a casa um do outro para brincar era uma atividade importante para a manutenção das amizades.

2. Amizades dos Filhos no Brasil

Os participantes também falaram sobre as amizades dos filhos na infância, incluindo as atividades realizadas e os lugares associados às amizades, entre outros aspectos. De acordo com Ana, os amigos de seus filhos eram vizinhos e colegas da escola. Ela sempre foi presente nas amizades dos filhos, participando das conversas e brincadeiras. Procurava conhecer os pais dos amigos e os ambientes que os filhos freqüentavam. Rute conhecia os amigos de infância do filho. Conhecia os pais desses amigos, tornando-se amiga deles. As brincadeiras ocorriam nas garagens dos prédios (havia poucas meninas).

João conhecia os amigos de infância do filho (em sua maior parte, eram vizinhos, colegas da escola e primos). Costumeiramente, o filho e os amigos iam a parques, aos jardins do palácio e ao clube libanês. Acredita que a escola intermediou a formação das amizades do filho e ficava atento à educação e à família desses amigos. Antônio conhecia as amigas de suas filhas, ainda que de modo superficial. Considerou a escola o melhor lugar para se fazer amigos e como os pontos mais importantes das amizades de suas filhas "[...] o companheirismo e a socialização que elas aprenderam a ter e a fazer. Elas aprenderam com os amigos enquanto brincavam". Ainda se referiu à verticalização das cidades como desencadeadora de novas formas de brincar.

No Brasil, a escola e a vizinhança foram apontadas como fontes das amizades dos filhos na infância. Os pais acompanharam essas amizades, mantendo ligação com esses amigos e seus pais (com quem fizeram amizades).

3. Comparação entre as Amizades no Líbano e no Brasil

Ao comparar suas amizades de infância no Líbano com as amizades dos filhos, no Brasil, Ana considerou mais fácil iniciar uma amizade no Brasil em virtude da cultura, do comportamento e do desprendimento das pessoas. De acordo com Rute, o Brasil propicia a construção e a intensificação das amizades pelo clima favorável e a convivência "pacífica", sem guerras.

Para João, não há diferença entre as amizades que ele mantinha na infância e as que o filho teve, em virtude de os amigos possuírem personalidades semelhantes. Contudo, reconhece uma maior facilidade para ser criança no Brasil em comparação ao Líbano, pela convivência religiosa pacífica. Para ele, ser amigo no Líbano e no Brasil envolve características semelhantes, pois "amizade se adquire, não se compra". Antônio, apesar da guerra, brincava na rua. No entanto, a verticalização urbana reduziu essa possibilidade e também o espaço de brincar, de modo que suas duas primeiras filhas brincavam na garagem do prédio ou dentro de casa. Durante as férias escolares, se aproximavam dos primos (amigos). "A semelhança entre a época delas e a minha são as amizades que existem. Só dá pra brincar se tiver amigo, né?!". Acha que se envolve nas amizades delas somente se necessário, tentando ser superficial, como seus pais eram.

De modo geral, os quatro participantes acreditam ser mais fácil fazer amigos no Brasil em virtude de aspectos culturais e do contexto ou situação política e social do país (ausência de guerras).

4. Brincadeiras no Líbano

Os participantes descreveram as brincadeiras e os brinquedos da infância no Líbano. Quando criança, Ana costumava brincar de casinha com as primas. Ela mesma fazia os brinquedos. "Nossas brincadeiras eram com pedras, a gente catava [...] cercava com as pedras. Brinquedo a gente não tinha, não". Não era permitido brincar com meninos. Os pais vigiavam até mesmo as brincadeiras das meninas. Segundo Rute, suas brincadeiras mais comuns no Líbano eram amarelinha, pula-corda e queimada, que ocorriam nos quintais das casas onde ela ou as amigas moravam e no pátio da escola. Brincava de casinha e com bonecas (compradas). Apesar da possibilidade de interagir com meninos (a escola facilitava a aproximação), ela se relacionava mais com as meninas por questões de afinidades, interesses e pensamentos em comuns. Os meninos brincavam com bola e as meninas não participavam. Seus irmãos tinham um grupo específico de amigos, para brincar principalmente com pião e bola-de-gude. Para ela, o tipo de brincadeira "separava" meninos e meninas. Em virtude da neve que cobria a cidade durante muitos dias ao longo do ano, as brincadeiras precisavam ser adequadas para ambientes fechados, de forma que o baralho transformou-se em uma alternativa plausível de entretenimento. Tanto em casa quanto na escola era necessário modificar as formas de brincar para se proteger do frio intenso.

João brincava de bolinha-de-gude, de corrida, de jogar bola e outros esportes. As brincadeiras aconteciam nas casas dos amigos, nas ruas da vizinhança e no pátio da escola. Os brinquedos eram artesanais, construídos e improvisados por eles mesmos, sem contar com a ajuda dos adultos. Havia contato entre gêneros, mas nem sempre brincavam juntos em virtude do tipo de brincadeira. Segundo Antônio, a corrida era uma brincadeira comum com os amigos (criavam seus próprios carrinhos a partir de objetos acessíveis em seu cotidiano), bem como brincadeiras com bola, diversos "piques" e cantigas de roda.

A amizade e o brincar ocorriam basicamente entre crianças do mesmo gênero, refletindo nas brincadeiras e nos brinquedos. As brincadeiras mais comuns entre as meninas eram casinha, bonecas, "cozinhadinho", amarelinha, pula-corda, queimada e baralho. Entre os meninos era bola, corrida, pião, bolinha-de-gude, esportes e pique. Em ambos os gêneros, alguns brinquedos eram artesanais, construídos com objetos do cotidiano das crianças.

5. Brincadeiras dos Filhos no Brasil

Os participantes relataram, então, as brincadeiras e os brinquedos mais comuns da infância de seus filhos no Brasil. Os filhos de Ana brincavam de casinha, de "cozinhadinho", de pique-esconde e com jogos de tabuleiro (todos comprados em lojas). Considera que o brincar junto contribui para a manutenção das amizades. O filho de Rute brincava de moto e carrinho de "Fórmula 1", motorizados, e na praia. As brincadeiras ocorriam na garagem do condomínio. O vídeo-game era muito utilizado nos encontros com amigos, que se reuniam também para assistir televisão.

O filho de João jogava bola e apostava corridas na garagem do prédio. Os brinquedos eram comprados pela facilidade em adquiri-los. As filhas de Antônio gostavam de brincar com bonecas, assistir televisão com os amigos e colecionar papel de carta. Como havia mais espaço para brincadeiras na casa dos avós, este era o local onde elas andavam de bicicleta, brincavam de "pique" e jogavam jogos de tabuleiro com os primos.

Apesar de algumas formas de brincar terem se mantido no Brasil, uma diferença a destacar nas brincadeiras dos filhos foi a presença de brinquedos industrializados.

6. Comparando as Brincadeiras no Líbano e no Brasil

Ao comparar as brincadeiras e os brinquedos da infância no Líbano com aqueles da infância dos filhos no Brasil, Ana relatou que a maioria das brincadeiras de infância dos filhos era diferente das suas. Em comum, brincavam de casinha e fazer "cozinhadinhos". Para Rute, foram poucas as brincadeiras em comum entre ela e seu filho, pela diferença de gênero. Destaca como semelhantes: amarelinha, queimada e bonecos. Seus irmãos e seu marido brincavam de rodar pião, jogar bolinha-de-gude, jogar bola e apostar corridas, como seu filho.

Segundo João, o filho tinha brincadeiras semelhantes às suas quando criança: jogar bola, corridas, pião e bolinha-de-gude. Antônio afirma que podia brincar mais na rua (mesmo com os conflitos) e suas filhas brincavam mais dentro do apartamento. Para ele, as brincadeiras na escola, como correr e pular, se assemelhavam às de sua época e país.

Em suma, apontaram diferenças nos objetos e na maneira de brincar. Em parte isto ocorreu devido à facilidade de acesso ao brinquedo pronto, em virtude da expansão da indústria de brinquedos infantis e pela verticalização das moradias, com redução do espaço físico.

7. Amizade, Brincar e Cultura: A Percepção dos Participantes

Os participantes destacaram alguns traços culturais do brincar e da amizade. Neste sentido, procuram transmitir costumes, valores, língua e características culturais libanesas para os filhos. Rute mostrou-se feliz por ser libanesa, mas admite que a maior convivência com brasileiros a modificou, de modo que atualmente ela se identifica muito com a cultura do Brasil. Durante sua infância no Líbano, estudou em escolas mistas (em termos de gênero e religião), o que proporcionou ambientes agradáveis de convivência. No Brasil, procurava clubes e instituições libanesas para sentir-se confortável e integrada. Segundo ela, o casamento entre primos é uma tradição libanesa, uma "cultura que realmente não existe em outros lugares". Ela atribui grande valor à cultura libanesa, mas não força o filho a assumi-la, uma vez que ele nasceu e foi criado no Brasil, estando acostumado e satisfeito com o "jeito" brasileiro. Demonstra muito orgulho de sua terra-mãe. Todavia, sente uma grande 'vergonha' decorrente dos inúmeros conflitos lá existentes. Segundo Rute, os conflitos ocorrem entre as religiões, por uma antiga disputa de poder. Para ela, o filho ter nascido e sido criado aqui foi melhor, pois ele pôde aproveitar a infância e/com as amizades. Ressalta que ela e o esposo sempre buscaram guiá-lo para boas amizades, por meio das conversas e diálogos esclarecedores. Afirma que "aqui eu me achei. Eu me encontrei aqui na paz, na tranqüilidade. Eu me encontrei aqui, entendeu?! Então eu eduquei meu filho conforme a área em que ele viveu, a cultura".

João afirmou que, entre os cristãos, ao contrário dos muçulmanos, não há segregação entre homem e mulher. Nos colégios em que estudou, havia meninos e meninas na mesma sala de aula, sem privilégios decorrentes do gênero. Alguns conflitos entre crianças de diferentes religiões começavam por motivos banais. Quando veio para o Brasil, procurou clubes e instituições libanesas para sentir-se mais acolhido, apesar de já ter familiares aqui. Afirmou "ter criado" no filho o amor pela pátria dos pais e avós, para que ele tivesse orgulho de sua ascendência libanesa. Os demais participantes também reconheceram fatores religiosos afetando a convivência social entre as crianças no Líbano.

Entre os fatores culturais afetando as amizades e as brincadeiras no Líbano, a religião ocupou posição de destaque. A religião era importante na formação familiar e nas atividades cotidianas no Líbano. No Brasil, procuraram preservar a cultura libanesa, incluindo a culinária ou o apreço pelo ouro e pelas jóias, característica bem presente nessa cultura. Fizeram questão de transmitir aspectos culturais de seu país de origem aos filhos brasileiros, como a língua árabe. Ainda gostariam que os filhos conhecessem o Líbano e citam costumes sociais, como o casamento entre primos. Enaltecem o Brasil pelo clima, pela "paz e tranqüilidade", sentindo-se envergonhados pelos conflitos no Líbano, que alguns tentam justificar pela religião. Ressaltaram que a infância dos filhos foi melhor por ter sido vivenciada no Brasil.

 

Discussão

De acordo com os relatos, as amizades de infância apresentaram similaridades e diferenças entre os dois países. Em ambos, os amigos eram outras crianças do mesmo gênero e tinham o brincar como atividade de destaque com os amigos. Como apontado por Pontes e Magalhães (2002), as brincadeiras colaboram com a construção da amizade atuando como mediadores dos relacionamentos. As brincadeiras estão na base das amizades (Dohme, 2003), contribuindo para a sua formação (Werner e Parmelee, 1979).

No Líbano, contudo, parecia haver uma maior sobreposição das relações de amizade com as relações familiares. Os primos foram freqüentemente citados como amigos, o que era incentivado pela família. No Brasil, apesar da presença de familiares (especialmente primos) entre os amigos, a família parece não ter exercido o mesmo papel de destaque na rede de amigos (Garcia, 2005), sendo citadas como fontes importantes de amigos a escola, a vizinhança e a igreja. Um dos fatores culturais responsáveis para o valor dados às amizades dentro da família estava provavelmente associado às tensões culturais entre diferentes grupos, em função principalmente de diferenças religiosas, como entre cristãos e muçulmanos.

No Brasil, a escola e a vizinhança foram apontadas como fontes importantes de amizades dos filhos. Outra diferença refere-se a uma maior independência dos filhos em relação aos pais para a escolha dos amigos no Brasil, fato atribuído a um menor nível de tensões culturais. No Brasil, os pais parecem se envolver mais com os amigos dos filhos (de fora da família) e mesmo com os pais desses amigos, chegando a fazer amizade com eles. Deste modo, comparativamente à situação relatada no Líbano (pelo menos na época da infância dos participantes), as redes sociais de brincadeira e amizade entre pares no Brasil são incorporadas à rede dos adultos de um modo mais aberto.

O ambiente físico também foi um fator relevante para as amizades. Além dos objetos (brinquedos), cujas propriedades estavam associadas às características culturais de cada lugar, ainda houve menção de aspectos do ambiente mais amplo, como a estrutura das moradias e mesmo o clima. Os pais ressaltaram a verticalização das cidades como desencadeadora de novas formas de brincar (fato que seria comum às cidades nos dois países).

Dois aspectos culturais afetaram as amizades diretamente: o brincar e a religião. No Líbano, segundo os participantes, a religião exerce uma forte influência sobre a formação familiar, as atividades cotidianas e as relações sociais, afetando diretamente as amizades. De modo geral, acreditam ser mais fácil fazer amigos no Brasil em virtude de aspectos culturais, tais como maior liberdade religiosa, menor interferência das famílias nas amizades dos filhos, entre outros. No Líbano e no Brasil as amizades infantis, segundo os participantes, estavam associadas a brincadeiras. O brincar pode ser interpretado como uma importante forma de mediação cultural para a relação entre amigos na infância nos dois países. O brincar, enquanto fenômeno básico da cultura, serviria de objeto cultural em torno do qual as amizades infantis se organizariam, ao menos em parte.

Amizades e brincadeiras também se afetam mutuamente em uma relação dialética. Assim, a separação entre gêneros nas amizades infantis está associada com a separação dos brinquedos para os diferentes gêneros (tanto no Líbano quanto no Brasil). A literatura tem relatado tais aspectos como traços universais do comportamento de brincar, presentes em diferentes culturas (Carvalho & Pedrosa, 2002; Carvalho & Pontes, 2003).

Apesar das diferenças culturais, há traços semelhantes entre as brincadeiras nos dois países. No Líbano e no Brasil, as brincadeiras das meninas estavam voltadas para as atividades femininas consideradas mais tradicionais, como brincar de casinha ou de cozinhar e as dos meninos eram mais competitivas. Algumas diferenças podem estar mais relacionadas com o momento histórico do que com diferenças entre os países. Assim, no Líbano, em ambos os gêneros, alguns brinquedos eram artesanais, enquanto no Brasil, havia facilidade de adquirir o brinquedo pronto, em virtude da expansão da indústria de brinquedos.

Todos consideraram que as brincadeiras contribuíram efetivamente para a formação e a manutenção dos relacionamentos de amizade. A brincadeira, em sua íntima relação com a cultura, pode ser considerada como produto e produtora de ações humanas, que, transmitidas de geração a geração, denotam identidades grupais e pessoais.

É possível apontar, de acordo com Byrne e Whithen (1988), que o brincar refere-se a uma adaptação para a vida em sociedade. No caso do Líbano, os fatores religiosos e sociais que afetam as amizades e o brincar serão os mesmos fatores que manterão a segregação religiosa e social no país. Possivelmente, um ambiente social de guerra ou de paz, de conflitos religiosos ou de tolerância religiosa, esteja fornecendo à criança habilidade e conhecimento social para lidar com essas condições sociais (Johnson et al., 1999). Ou seja, a prática social afeta a brincadeira da criança e, vice-versa, a brincadeira afeta o desenvolvimento social, provendo um contexto no qual a criança adquire habilidades sociais (Bekoff & Allen, 1998).

Conforme proposto por Hinde (1997), os grupos também afetaram os relacionamentos, especialmente o grupo familiar que, segundo os participantes, apresentaria diferenças entre o Líbano e o Brasil. Os participantes ainda perceberam a influência da sociedade como um todo sobre as amizades e indicaram diferenças entre o Líbano e o Brasil quanto a este aspecto, especialmente pela ausência de conflitos entre grupos em nome da religião no Brasil.

Tomando por base o modelo sugerido por Hinde (1997), pode-se encontrar nas respostas acima relações dialéticas entre três dimensões centrais: os relacionamentos (as amizades e os relacionamentos familiares, que estão intimamente relacionados), as estruturas sócioculturais (ligadas à religião, às brincadeiras, entre outros elementos) e o ambiente físico (que sofre as modificações do ser humano, incluindo os brinquedos e os aspectos geográficos e ecológicos do ambiente urbano). Na comparação das duas culturas, tanto os aspectos ambientais quanto as estruturas sócio-culturais revelam particularidades e similaridades.

De acordo com as narrativas dos participantes, o brincar surge como uma prática cultural (Carvalho et al., 2003; Carvalho & Pontes, 2003), algo transmitido como cultura (Pontes & Magalhães, 2002). Como apontado por Corsaro e Rizzo (1988), diferenças culturais na amizade, no brincar e na comunicação entre diferentes países também foram encontradas, sendo possível identificar fatores culturais afetando os padrões de amizade devido a diferenças culturais (Schneider et al. 1997).

 

Considerações Finais

Pode-se concluir que o brincar e a amizade foram afetados diretamente pelo contexto ambiental e sócio-cultural, incluindo, entre outros, fatores religiosos e práticas culturais ligadas ao brincar e às relações de amizade. Assim, seguindo a terminologia proposta por Hinde (1997), as estruturas sócio-culturais e o ambiente físico, em suas dimensões mais amplas (ecológicas e geográficas) e restritas (objetos presentes no ambiente físico, os brinquedos) se mostraram relevantes para compreender as relações de amizade. O modelo de Hinde (1979, 1987, 1997) serve, assim, como ponto de partida para uma análise mais ampla dos relacionamentos. A consideração de fatores sócio-culturais, como costumes sociais e religião, e de fatores ambientais, representa um enriquecimento na pesquisa do relacionamento interpessoal, ao lado das dimensões psicossociais tipicamente investigadas.

Os dados obtidos poderão contribuir para um maior conhecimento e melhoria da qualidade de vida de imigrantes e seus descendentes no Brasil. Para tanto, contudo, são necessários mais estudos sobre relações interpessoais dessa população, que explorem os diversos aspectos desses relacionamentos.

 

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Recebido em: 12/06/08
Aceito em: 29/03/09

 

 

* Endereço eletrônico para correspondência: agnaldo.garcia@uol.com.br

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