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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.5 no.1 Juiz de fora jun. 2012

 

ARTIGOS

 

A Gestão na economia solidária: um estudo nas incubadoras de empreendimentos solidários

 

The management in solidarity economy: a study in the incubators of solidarity enterprises

 

 

Daniel Calbino1; Ana Paula de Paes de Paula

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

 

 


RESUMO

O trabalho buscou compreender se as incubadoras de empreendimentos solidários conseguem criar ferramentas de gestão condizentes com a realidade dos empreendimentos incubados. Além disso, identificar qual a concepção dos seus integrantes sobre o discurso da neutralidade da gestão. Foram escolhidas para um recorte qualitativo três incubadoras. Como técnica de coleta de dados, realizaramse entrevistas semiestruturadas e revisões documentais. Para a análise dos dados, adotou-se a técnica de análise de conteúdo. Constatou-se que as incubadoras partilham das concepções de que a gestão não é neutra. Observou-se, também, que elas afirmam a necessidade de ressignificar o conhecimento para os empreendimentos. No entanto, a ressignificação está mais voltada para a criação de produtos e/ou métodos pedagógicos do que para modificações no processo de gestão. Dessa forma, constatase que, apesar de as incubadoras terem potencialidade para a ressignificação do conhecimento gerencial, essas inovações não vêm ocorrendo; quando ocorrem, são de modo pontual.

Palavras-chave: Economia Solidária, Gestão, Incubadoras de Empreendimentos Solidários


ABSTRACT

The work searched to understand whether the incubators of solidarity enterprises are able to create management tools which are appropriate to the reality of the incubated enterprises. In addition to that, we attempted to identify how their participants conceive the management neutrality discourse. Three incubators were chosen for a qualitative cut. Semi-structured interviews and documental reviews were chosen as data collection techniques. For data analysis the content analysis technique was adopted. It was verified that the incubators share the notion that the management is not neutral. It was also observed that they affirm the need to re-signify the knowledge for the enterprises. However, the re-signification is more related to the creation of products and/or pedagogical methods than to modifications in the management process. Therefore, it was verified that, although the incubators have a potential for the re-signification of the management knowledge, these innovations have not been occurring, and, when they do, it happens in an isolated way.

Keywords: Solidarity Economy, Management, Incubators of Solidarity Enterprises


 

 

O presente artigo tem por objetivo compreender se as incubadoras tecnológicas de cooperativas populares vinculadas à Rede Universitária de incubadoras conseguem criar ou adaptar processos e ferramentas de gestão condizentes com a realidade dos empreendimentos solidários incubados e qual a concepção dos seus integrantes sobre a gestão: se eles a visualizam como neutra ou partem da premissa de que ela carrega em si todo um ideal político. Este estudo se justifica porque a revisão bibliográfica sobre a temática no Brasil revelou que ainda são poucos os trabalhos referentes aos estudos sobre a gestão nos empreendimentos solidários2.

Além disso, a abordagem da neutralidade da gestão, embora seja um debate clássico, ainda permanece em aberto para reflexões no âmbito dos estudos organizacionais críticos. Tragtenberg (1971) já apontava que a administração é permeada por ideologia e que, portanto, a escolha de qualquer modelo de gestão está imbuída de interesses políticos, de modo que não pode ser considerada neutra. Nessa mesma perspectiva, Paes de Paula (2005) e Nogueira (2001, 2005), ao abordarem os estudos de administração no setor público, também relatam que a gestão em si não é neutra. Ao analisarem as propostas da nova gestão pública (reforma do Estado), implementada nas décadas de 1980 e 1990 em diversos países, os autores constataram que, apesar de existir um discurso de neutralidade, na prática isso se mostrava falacioso, pois a nova gestão pública tinha seus ideais fundados na cultura mercantil e na hegemonia neoliberal. Já Dagnino (2009) e Novaes e Dias (2009), ao avaliarem as propostas de desenvolvimento tecnológico e de inovação, não só negam o discurso da tecnologia como um processo neutro, monolítico, a-cultural e a-social, como levantam a necessidade de se repensarem novos processos tecnológicos para os empreendimentos econômicos solidários.

Por outro lado, tomando como referência os empreendimentos solidários, que podem ser definidos por associações, cooperativas populares, bancos populares e empresas ocupadas por trabalhadores, observa-se que eles buscam se estruturar de maneira diferente das organizações convencionais. Enquanto uma organização de Economia Mercantil tem como fim a busca pelo lucro, nos empreendimentos solidários as propostas que a tangenciam geralmente almejam objetivos além dos aspectos econômicos, visando a um equilíbrio entre os fatores sociais, políticos e culturais com os econômicos (França, 2008), que demove a ideia de uma gestão neutra.

Dessa maneira, diante da impossibilidade de visualizar a gestão como neutra, a-política e adaptada para qualquer realidade organizacional e das especificidades organizacionais que existem nos empreendimentos solidários (equilíbrio entre valores econômicos, sociais, políticos e culturais), faz-se necessário repensar a gestão nesse cenário, buscando uma possível ressignificação do conhecimento gerencial (França, 2008; Dagnino, 2009).

Mas por que a escolha das incubadoras tecnológicas de cooperativas populares como objeto de estudo? As incubadoras são, em sua maioria, órgãos ligados às diversas Universidades do país, que têm por objetivo utilizar os recursos humanos e os conhecimentos da Universidade na formação, qualificação e assessoria de trabalhadores para a construção de atividades autogestionárias, visando à sua inclusão no mercado de trabalho (Guimarães, 1999). Além de fomentarem a criação de diversos empreendimentos solidários, os estudos dos autores deste artigo sobre os processos metodológicos das incubadoras vinculadas à Rede de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCP) apontam as incubadoras como entidades propícias ao desenvolvimento de modelos de gestão alternativos, pois: (i) desenvolvem projetos de pesquisas e estudos relacionados à Economia Solidária; (ii) a maior parte do conteúdo dos cursos de formação técnica são referentes às atividades administrativas; (iii) criam seus próprios materiais didáticos utilizados nos cursos de formação; (iv) apresentam profissionais capacitados nas atividades de incubação (docentes, discentes, pesquisadores e técnicos); e (v) apresentam diversas experiências nas incubações de empreendimentos solidários nos moldes autogestionários.

Nesse sentido, foram escolhidas, para um recorte qualitativo, três incubadoras [Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade Estadual da Bahia (ITCP/UNEB), Incubadora Regional de Cooperativas Populares da Universidade Federal de São Carlos (INCOOP/UFSCAR) e Incubadora Tecnológica de Empreendimentos Solidários da Universidade Federal da Bahia (ITES/UFBA)], que apresentaram grande potencial para o desenvolvimento de tecnologias sociais ou inovações nos processos de gestão3 Busca-se, então, compreender se essas incubadoras estão conseguindo criar as atividades de gestão inovadoras, ressignificando o conhecimento gerencial.

 

Referencial Teórico

Origens, definições e manifestações da Economia Solidária

Diante da conjuntura desfavorável aos trabalhadores das décadas de 1970 e 1980, floresceram propostas como reação ao processo de fechamento de postos de trabalho, de exclusão social, da crise de valores e de propostas emancipatórias (Santana Junior, 2007). Uma delas é chamada de Economia Solidária, que pode ser vista tanto como alternativa de geração e renda, e/ou como uma proposta formada por militantes com diversas concepções de cunho social, que buscam novas estratégias de contraponto à economia mercantil.

A Economia Solidária possui diversas influências e raízes, dentre elas os princípios do cooperativismo do início do século XIX, inspirados pelos socialistas libertários, como Robert Owen, Saint-Simon, Louis Blanc, Fourier e Proudhon. Um ponto em comum entre esses autores era a proposta de que os trabalhadores se reunissem em associações e cooperativas, e rompessem com a estruturada assalariada, tornando-se os donos dos meios de produção, com o direito de participarem dos processos de decisão das organizações. Emergem, assim, princípios que se tornaram a essência do cooperativismo: a propriedade social dos meios de produção, a gestão democrática desses meios e a orientação da produção em função da satisfação das necessidades humanas.

Nesse sentido, o que se observa é que hoje essas propostas parece que se tornaram a base da Economia Solidária. A concepção do Fórum Brasileiro de Economia Solidária (n.d.), que se trata de um órgão formado por diversas entidades públicas, da sociedade civil e de movimentos sociais, define a Economia Solidária por um projeto emancipatório que não se restringe aos problemas sociais gerados pelo neoliberalismo, mas trata-se de um projeto de desenvolvimento integral que visa à sustentabilidade, à justiça econômica, social, cultural e ambiental e à democracia participativa. Ela se fundamenta na cultura da cooperação da solidariedade e da partilha, rejeitando as práticas da competição, da exploração e da lucratividade capitalista.

Essa conceituação, além de focar uma nova proposta de valores solidários e de se estruturar de maneira autogestionária, propõe também servir de plataforma política para uma nova sociedade. Compartilhando dessa vertente política sobre a Economia Solidária, Singer (2002) e Candeias (2005) conceituam que seus elementos vão além da proposta de geração de trabalho e renda, em que predominam valores de gratuidade, de cooperação e de autogestão sobre a lógica do individualismo. Além disso, quando ocorre uma articulação dessas iniciativas econômicas populares com outros atores sociais, contribui-se para a

Já França e Laville (2004), França (2008), Mance (1999) e Arroyo e Shuch (2006) acreditam que, além de ser um projeto político, que se estrutura para superar o capital, a Economia Solidária pode ser estruturada via redes solidárias: "ela se estrutura a partir de empreendimentos que operam em qualquer dimensão de alguma forma associativista, como cooperativa ou associação, fórum, grupo, rede, etc" (Arroyo & Schuch, 2006, p.20).

Assim, pode-se tentar traçar pontos em comum nestas definições: trata-se de um projeto que busca valores de solidariedade, condensa-se no coletivo, estrutura-se num modelo autogestionário, possui estratégia de produção voltada para as necessidades, tomadas de decisões coletivas e distribuição de renda e capital equitativas. Observa-se também como essas bases se assemelham com as do cooperativismo do século XIX; todavia, hoje, com novas manifestações.

Quanto às formas de manifestação da Economia Solidária, têm-se como agentes e organizações envolvidos: associações, cooperativas, empresas ocupadas, clubes de trocas, finanças solidárias, entidades de apoio, redes solidárias, fóruns regionais e nacionais, grupos de pesquisadores e políticas governamentais, que se constituem com eixo central na proposta do trabalho coletivo.Referente aos órgãos de apoio à Economia Solidária, pode-se abordaras incubadoras de empreendimentos solidários.

Definição, origens e a criação da Rede Universitária de Incubadoras

As incubadoras de empreendimentos solidários podem ser definidas como entidades universitárias destinadas à incubação de empreendimentos e grupos de produção associada, caracterizando-se por serem multidisciplinares, pois integram professores, alunos de graduação e pósgraduação e funcionários pertencentes às mais diferentes áreas do saber. Elas também atendem a grupos comunitários que desejam trabalhar e produzir em conjunto, dandolhes formação em cooperativismo e Economia Solidária e apoio técnico, logístico e jurídico, para que possam viabilizar seus empreendimentos autogestionários (Singer, 2002).

Nessa mesma perspectiva, a ITCP pode ser vista como um projeto de extensão universitária que visa a transferir o saber técnico específico desenvolvido dentro da Universidade para uma camada da população composta principalmente por pessoas que atuam em trabalhos precários ligados ao setor informal da economia (Pereira, 2002).

O surgimento das ITCPs teve inspiração em 1992, a partir do programa Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida, idealizado pelo sociólogo Hebert de Souza, o Betinho, com a proposta de articular um trabalho de pesquisa e extensão nas Universidades que atendesse às camadas populares da sociedade e fomentasse a pesquisa no campo da Economia Solidária na academia (Bocayuva, 2001).

Com isso, a busca por iniciativas que gerassem trabalho e renda fez com que professores da Fundação Oswaldo Cruz, junto com a Universidade de Santa Maria (Rio Grande do Sul), criassem uma cooperativa popular, formada por moradores da região da Maré (Rio de Janeiro), que pudesse prestar serviços para a própria Fiocruz, o que resultou no surgimento da Cooperativa de Manguinhos (Bocayuva, 2001; Pereira, 2002).

Fruto dessa experiência e para apoiar outras cooperativas que pudessem surgir na cidade do Rio de Janeiro, os professores e estudantes da Universidade Federal do Rio de Janeiro do Centro de Pós-graduação de Engenharia (UFRJ/COPPE) criaram, em 1995, a primeira incubadora de empreendimentos solidários.

Após a criação da primeira ITCP no país, nos anos seguintes, surgiram diversas incubadoras, que passaram a contar também com o apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) e do Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas (PRONINC), em parceria com o Comitê de Entidades Públicas no Combate à Fome e Pela Vida (COEP).

Em 1999, as ITCPs formaram a Rede de Incubadoras Universitárias, que se reúne periodicamente para trocar experiências, aprimorar a metodologia de incubação e posicionar-se no âmbito do movimento nacional de Economia Solidária.

Diante da importância que as incubadoras exercem na função formativa de conhecimentos gerenciais para as incubadas, torna-se necessário a compreensão dos processos que constituem as tecnologias e a gestão.

Embates sobre a neutralidade da gestão

Tragtenberg (1971), ao analisar a "evolução" das teorias da administração, constatou que a teoria geral da administração é ideológica, porque suas categorias básicas são históricas e respondem às necessidades específicas dos sistemas sociais. Para corroborar sua tese, mostra que os modelos burocráticos de administração já ocorriam bem antes de serem implementados nas indústrias e visavam a manter o controle de determinado grupo sobre a sociedade. Retomando ainda o processo de desenvolvimento produtivo e o surgimento das primeiras iniciativas de teorias científicas de administração, o autor utiliza o exemplo de dois momentos da Revolução Industrial para mostrar a influência dos fatores sociais na constituição das teorias.

O período da primeira Revolução Industrial foi influenciado pelas teorias sociais globais de Saint-Simon, Fourier e Marx. Esses autores elaboraram modelos macrossociais, tendo em vista as condições institucionais da sociedade industrial. Na segunda Revolução Industrial, que se iniciou com a introdução da eletricidade e a formação de grandes holdings industriais, encontra-se como resposta intelectual a teoria clássica da administração nos estudos de Taylor e Fayol. Paralelamente, em resposta ao problema humano na empresa industrial, ocorre a elaboração da teoria da Escola das Relações Humanas. Observa-se, aqui, que o aumento da dimensão da empresa no período da segunda Revolução Industrial ocasionou uma mutação, em que as teorias sociais de caráter totalizador e global (teorias de Saint-Simon, Fourier e Marx) cederam lugar às teorias microindustriais de alcance médio (Taylor e Fayol) (Tragtenberg, 1971).

Dessa maneira, Tragtenberg (1971) conclui que a teoria geral da administração é ideológica na medida em que traz em si a ambiguidade básica do processo ideológico, que consiste no processo de vincular à teoria geral da administração as determinações sociais reais como técnica (de trabalho industrial, administrativo e comercial) por mediação do trabalho e afastar-se dessas terminações sociais reais, compondo-se em um universo sistemático, organizado, refletindo deformadamente o real como ideologia.

Paes de Paula (2005) e Nogueira (2001, 2005), também, compartilham do posicionamento de Tragtenberg (1971) sobre a administração como um processo ideológico, determinada por fatores históricos e sociais; dessa maneira, nãoneutra. Ao analisarem as propostas da nova gestão pública (reforma do Estado), implementada nas décadas de 1980 e 1990 em diversos países, os autores constataram que, apesar de existir um discurso de neutralidade, na prática, isso se mostrava falacioso, pois a nova gestão pública tinha seus ideais fundados na cultura mercantil e na hegemonia neoliberal.

E isso se mostrou presente, principalmente, na limitada participação da sociedade civil no governo, gerando, assim, uma dicotomia entre política e administração. Não se poderia ter uma participação qualquer ou uma autêntica cidadania em um quadro determinado pela centralidade do mercado. A livre concorrência necessitava de uma sociedade igualmente competitiva, ao passo que a modalidade participativa de gestão requeria uma atitude mais cooperativa ou menos antagônica dos movimentos sociais. Era, em suma, preciso despolitizar o processo de abertura do Estado para a sociedade (Nogueira, 2001, 2005; Paes de Paula, 2005).

Observa-se, assim, que a gestão não é neutra. Tanto ao analisar as primeiras teorias gerais da administração quanto ao verificar os exemplos da administração pública gerencial, estas respondem a interesses e contextos históricossociais, de maneira que a constituição da gestão em um contexto alternativo de economia mercantil deve corresponder aos fatores ideológicos propostos por seus princípios. Contudo, aqui, questiona-se novamente: a técnica é neutra? Pode esta ser adaptada para qualquer contexto?

A negação da neutralidade e da replicação tecnológica

Para Novaes e Dias (2009) e Dagnino (2009), a tecnologia hoje é entendida como um meio para atingir fins, como a ciência aplicada em ferramentas para aumentar a eficiência na produção de bens e serviços. Esta costuma ser apresentada à sociedade como a-histórica, politicamente neutra e sujeita a valores estritamente técnicos. Ela aparece como uma instância não-social, de pura racionalidade técnica, orientada apenas para o uso. Porém, essa concepção da tecnologia é influenciada pela visão mecanicista do progresso científico, que se apoia no suposto de que as tecnologias têm uma lógica funcional autônoma, que pode ser explicada sem recorrer à sociedade. Mas por que a tecnologia não é neutra? Por que tem valores? A tecnologia pode ser transferida por meio de um processo de oferta e demanda para qualquer contexto sociocultural? Ou seja, pode ser replicada do contexto de empresas convencionais para os empreendimentos solidários?

Recorrendo às concepções de Feenberg (2002), Novaes e Dias (2009) e Dagnino (2009) defendem que a tecnologia não é neutra, pois envolve questões políticas, sendo um importante veículo para o controle social, a dominação cultural e a concentração de poder industrial. Dessa forma, a racionalidade técnica seria também uma racionalidade política, na qual os valores de um sistema social específico e os interesses de classe dominante se instalam no desenho das máquinas e em outros supostos procedimentos "racionais".

Assim, para Novaes e Dias (2009) e Dagnino (2009), a tecnologia é construída socialmente no sentido de que grupos de consumidores, interesses políticos e outros próximos influenciam não apenas a sua forma final, como também seu conteúdo. Isso porque no processo de construção dos artefatos tecnológicos ocorrem negociações entre os grupos sociais relevantes, com preferências e interesses diversos, sendo que

o significado do artefato é outorgado pelos grupos sociais que obtiveram maior sucesso no processo de negociação. Também a leitura de cada grupo de interesse a respeito de um mesmo artefato pode ser distinta, gerando artefatos semanticamente distintos. Os autores citam um exemplo para elucidar que as maneiras diferentes como grupos sociais interpretam e utilizam um objeto técnico (no caso, uma bicicleta) não são extrínsecas a eles, pois a bicicleta pode tanto significar um equipamento esportivo como um meio de transporte. Por isso, para entender o desenvolvimento de um artefato tecnológico, torna-se crucial levar em conta "o contexto sociopolítico e a relação de forças entre os diversos grupos com ele envolvido" (Novaes & Dias, 2009, p.38).

Nessa perspectiva, a tecnologia, por envolver diversos interesses políticos, pode tornar-se um importante veículo para o controle social, a dominação cultural e a concentração de poder industrial. Novaes e Dias (2009) recorrem às teorias de Marx para mostrar esse conflito de interesses. Segundo os autores, Marx relatava que o conflito em torno da maquinaria mostra que as máquinas começaram a ser introduzidas não apenas para ajudar a criar um marco dentro do qual poderia se impor uma disciplina ao trabalho, mas também devido a uma ação consciente por parte dos patrões, para contrapor às greves e a outras formas de militância dos trabalhadores.

Quanto ao segundo ponto, a proposta de transferência e replicação da tecnologia também é criticada pelos autores. Dagnino (2009) e Novaes e Dias (2009), ao abordarem as propostas do desenvolvimento de tecnologias, ressaltam que, por mais que um produto oriundo de uma proposta tecnológica pudesse ter seus atributos a priori especificados, dificilmente ele poderia ser transferido e utilizado por outras pessoas de culturas diferentes, em ambientes distintos daqueles para o qual foi concebido. Isso porque cada contexto envolve uma série de particularidades que exigem respostas próprias, de modo que não faz sentido admitir a possibilidade de executar a transferência de tecnologias preconcebidas.

Um exemplo próximo é o caso da ex-União Soviética, que recorreu ao uso da técnica dos países capitalistas (modelo fordista de produção) de maneira bruta e sem uma determinada adaptação, fazendo com que seu modo de produção não se diferenciasse dos modelos capitalistas, criando, na verdade, um socialismo de mercado (Segrillo, 2000). Isso ocorreu porque, ao adotar um modo de gestão hierarquizado, com divisões de tarefas e centralizações das funções diretivas, a participação dos cidadãos nas decisões políticas e estratégicas tornou-se impossibilitada, restringindo um discurso de cunho social apenas aos aspectos econômicos, ou seja, de distribuições de sobras.

Dessa maneira, observa-se que a gestão e a técnica não são neutras, pois elas foram construídas historicamente e carregam, assim, diversos valores e interesses ideológicos de grupos dominantes. Ainda, as tentativas de transferência e replicabilidade da gestão e da técnica de maneira preconcebida e sem ressignificações não são possíveis, em virtude das peculiaridades que existem em diversos contextos sociais.

 

Metodologia

O método utilizado na pesquisa foi o qualitativo, que visa a compreender a subjetividade dos sujeitos, sem propor generalizações, mas vinculadas à geração de conhecimento, respeitando as singularidades dos sujeitos (Rey, 2005). Como técnica de coleta de dados, foram realizadas 13 entrevistas semiestruturadas, sendo quatro com membros da ITCP/UNEB4, quatro da ITES/UFBA5 e cinco da INCOOP UFSCar6. As entrevistas semiestruturadas caracterizam-se como uma técnica que não visa a constituir um roteiro fixo, mas a propor o fluxo livre de informações dos sujeitos entrevistados (Chizzotti, 2008). Paralelo às entrevistas, recorreu-se também às revisões documentais das três incubadoras pesquisadas. As revisões documentais são definidas como documentos conservados no interior de órgãos públicos e privados de qualquer natureza, ou com pessoas: registros, anais, regulamentos, circulares, ofícios, memorandos, balancetes, comunicações informais, filmes, etc. (Vergara, 2006). Aqui, analisaram-se os artigos e relatórios produzidos pelas incubadoras7.

Para a análise dos dados das entrevistas e dos documentos das incubadoras, adotou-se a técnica de análise de conteúdo, definida por Bardin (1977), como "um conjunto de técnicas de análise de comunicação que contém informação sobre o comportamento humano atestado por uma fonte documental" (p. 42). Para Chizotti (2008), a análise de conteúdo tem por objetivo compreender criticamente o sentido das comunicações, do conteúdo manifesto ou latente, que existe nos textos escritos, ou de qualquer comunicação (oral, visual ou gestual). Por fim, quanto às categorias de análise, recorreu-se a três: compreender se as incubadoras desenvolvem inovações nos processos de gestão, quais são essas atividades e qual a compreensão dos membros sobre a neutralidade da gestão.

 

Apresentação e análise dos resultados: concepções de gestão e ressignificação do conhecimento gerencial

ITCP/UNEB

A incubadora tecnológica de cooperativas populares da Universidade Estadual da Bahia iniciou suas atividades no início de 1999 a partir do convite de uma entidade financiadora para desenvolver atividades de incentivos a empreendimentos solidários. É um programa de pesquisa e extensão da Pró-Reitoria de Extensão da UNEB, que tem por objetivo assessorar a formação de cooperativas populares autogestionárias. A ITCP/UNEB tem um quadro de 12 membros, em sua grande maioria técnicos e professores da Universidade, com idade média de 45 anos. Quanto aos empreendimentos incubados, no momento da pesquisa, eles informaram que trabalham com cinco empreendimentos econômicos solidários, os quais se estruturam de modo autogestionário, no formato de cooperativas populares e associações.

No que se refere à concepção de alguns membros da incubadora a respeito da neutralidade da gestão, constatou-se, via análise de dois artigos publicados, que eles compartilham das visões de que a gestão não é neutra, e por isso precisa ser adequada à realidade dos empreendimentos solidários. Na fala de S. Guimarães (2008), "a incubadora vem constatando, ao longo da sua experiência, que os instrumentos utilizados para a gestão das empresas capitalistas tradicionais não se adequam às especificidades dos empreendimentos autogestionários da economia popular solidária" (p. 27). Nesse sentido, "Reflexões sobre os resultados das ações implementadas somadas às contribuições dos grupos durante processos avaliativos mais os resultados do diagnóstico educacional apontaram para a necessidade do desenvolvimento de uma tecnologia educacional inovadora" (S. Guimarães, 2008, p.27).

Dessa maneira, os membros da incubadora afirmam a necessidade de criar modos de gestão e de propor a criação de tecnologias sociais para os empreendimentos solidários como um dos princípios da metodologia da incubadora: "A incubação de empreendimentos é um processo educativo fundamentado na construção coletiva do conhecimento, [...] buscando valorizar o indivíduo, sua comunidade num processo de desenvolvimento de tecnologias sociais nas áreas de formação, gestão, desenvolvimento de novos produtos" (Guimarães, 2008, p.1: grifo nosso).

Observa-se que no plano teórico existe a consciência da necessidade de se criarem tecnologias sociais que visem à ressignificação do conhecimento produzido e atendam às demandas das organizações autogestionárias. Quando se analisaram os documentos institucionais produzidos pela incubadora8 e os entrevistados foram questionados sobre quais atividades desenvolvem nesse sentido, foram relatadas: (i) a criação de tecnologias sociais para materiais de sisal; (ii) a constituição de pães integrais para as comunidades locais; (iii) a criação de produtos para deficientes visuais; (iv) a criação de metodologias para atividades de letramento; e (v) a contabilidade social.

No que se refere às duas primeiras propostas de tecnologias sociais, constatouse que estas se constituíram em parceria com departamentos da UNEB, com o objetivo de criarem produtos inovadores para as incubadas. Assim, com o Colegiado de Química e com o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (CEPED), da UNEB, foram criados componentes de edificações em fibra de sisal a serem produzidos pela Cooperativa de Produção de Jovens da Região do Sisal (COOPERJOVENS), e em parceria com o Colegiado de Nutrição, o desenvolvimento de produtos de panificação pela Cooperativa Múltipla Fontes de Engomadeira (COOFE), voltados para pessoas com carências nutricionais da comunidade local (ITCP/UNEB, 2005).

Mais especificamente, no que se refere à constituição do projeto de fibra de sisal na COOPERJOVENS, eles relatam que propõem o desenvolvimento tecnológico de um produto inovador, tanto no material, ao utilizar compósitos de matrizes de argamassas reforçadas com fibras de sisal, quanto na concepção espacial (design), para a fabricação de componentes para edificações, drenagem ou irrigação, a exemplo de telhas e calhas a serem produzidas de forma autogestionária (ITCP/UNEB, 2005).

Ainda relatam que, pelas matérias-primas disponíveis na região, optou-se, a curto prazo, pela produção de reciclagem e artefatos de papel de fibras, considerando a potencialidade local e a necessidade de um trabalho voltado para a conservação e a preservação do meio ambiente. Nessa mesma perspectiva, eles vêm estruturando um polo agroindustrial para a produção de componentes de edificações em argamassa reforçada com fibras de sisal como uma alternativa aos materiais produzidos com o amianto (ITCP/UNEB, 2005).

Observa-se, assim, que a incubadora enfatiza que o projeto foi constituído visando à inovação de produtos para a cooperativa. Sobre a produção de pães integrais pela COOFE, eles relatam que os produtos já são comercializados e possuem preços diferenciados para as camadas menos favorecidas:

O pão enriquecido com sementes de abóbora, rico em zinco, ferro e fibras, já é produzido e comercializado pela COOFE, após passar pelas análises sensoriais e análises laboratoriais e está à venda com preço diferenciado para os grupos de hipertensos e diabéticos atendidos pelo posto de saúde e com o preço normal de venda, para a população em geral (Guimarães et al., 2007, p.29).

Guimarães et al. (2007) ainda citam que "outro produto desenvolvido é uma barrinha de cereal, adicionada de sementes de abóbora, que passou pelas análises sensoriais e está em estágio final de avaliação laboratorial (análises bromatológicas)" (p.29).

Ainda referente à criação de produtos inovadores, a incubadora relata que desenvolveu produtos junto com a Associação Alternativa de Trabalhadores Cegos, específicos para a utilização por pessoas com deficiência visual, e o projeto de brinquedos/jogos educativos a serem produzidos pelo grupo (ITCP/UNEB, 2002).

Outro ponto abordado foi a tentativa de criação de metodologias voltadas para a alfabetização: "[...] a incubadora vem construindo uma metodologia voltada para a alfabetização e letramento dos coletivos, constituindo uma tecnologia social enquanto inovação no âmbito educacional demandada da necessidade dos cooperantes" (ITCP/UNEB, 2007, p.19).

Contudo, esta proposta foi paralisada em sua fase de execução, pois ocorreu o cancelamento do projeto que financiava os profissionais para a atividade (ITCP/UNEB, 2007).

Observa-se até aqui que o desenvolvimento de tecnologias sociais está voltado apenas para a criação de produtos inovadores e processos pedagógicos. Todavia, a proposta do contador-educador, tema de monografia de um dos estagiários da incubadora, parece ser a tentativa mais próxima da ressignificação do conhecimento gerencial criada pela ITCP. Trata-se de uma contabilidade social, que busca adaptar as terminologias da contabilidade à realidade dos incubados e refletir sobre a importância da contabilidade para melhorar a gestão nos empreendimentos solidários:

Especificamente, pretende-se produzir, em conjunto com os envolvidos nos empreendimentos populares e nas ITCPs, um modelo de contabilidade que seja capaz de simplificar o entendimento acerca das exigências dos instrumentos legais no que se refere aos tributos e obrigatoriedades, bem como mostrar a relevância do profissional de contabilidade para o desenvolvimento dos grupos produtivos assessorados pelas ITCPs. As questões que nos guiam são a de como elaborar esse tipo de sistema contábil adequado aos empreendimentos de Economia Solidária, a transformação do atual sistema contábil num instrumento de fácil manipulação no interior dos empreendimentos, e o lugar, o papel e o perfil do contador-educador nesses processos (Santos, 2009, p.4).

Diante dessa passagem, o que se constata é a proposta da criação de instrumentos de contabilidade em uma linguagem acessível e adaptada à realidade dos empreendimentos solidários. Sobre o papel do contador, afirma-se:

O profissional de contabilidade que, de alguma forma, está inserido nesse contexto de procedimentos das cooperativas, pode contribuir para a qualidade e o fortalecimento propondo um novo sistema contábil direcionado aos grupos produtivos ligados à Economia Solidária, ou seja, um sistema de inserção nesse processo que acompanha os grupos produtivos desde seu nascimento, contribuindo de forma prática e objetiva atendendo a dinâmica da legislação, bem como das questões legais destacadas em todos os âmbitos governamentais, nos quais evidenciamos os procedimentos iniciais de legalização, manutenção e de planejamento tributário, sendo os mesmos de grande preocupação para quem pretende gerar renda com a produção (Santos, 2009, p.12).

Para facilitar o acesso dos procedimentos contábeis e burocráticos legais, o contador-educador deverá conhecer os princípios do grupo produtivo, contribuindo para que o mesmo possa ter uma estrutura coesa no que se refere à organização da entidade, pois a sociedade 'culturalmente' pensa na informalidade sempre quando se retrata a qualquer atividade popular (p.15).

De acordo com o grupo produtivo, o contador-educador deve implementar um sistema de fácil entendimento dessas questões, bem como levar a uma reflexão para que os responsáveis por esses empreendimentos solidários possam construir propostas, a fim de lutar por melhores tratamentos tributários nas cooperativas populares (p.16).

A contabilidade social visa, também, a acompanhar os grupos desde sua fase inicial, a atender a dinâmica da legislação e a repensar as questões tributárias. Apesar de não romper com a lógica atual do sistema tributário (ou seja, de não pagar impostos, propondo, assim, um novo paradigma desvinculado do Estado), a criação de instrumentos que facilitem melhorias no processo de gestão dos empreendimentos solidários e que respeitem suas peculiaridades parece ser um avanço no campo de inovações para a ressignificação do conhecimento gerencial.

Com os relatos apresentados, observa-se que os membros da incubadora negam a visão de neutralidade da gestão e propõem tentativas de repensar a gestão para um contexto alternativo. No entanto, essas tentativas ocorrem mais por meio do desenvolvimento de inovações no campo dos produtos para as cooperativas (fibra sisal, pães integrais e EVA) e da abordagem de novas metodologias de ensino. As tentativas de ressignificação do conhecimento gerencial pela incubadora emergem apenas na proposta do contador-educador.

ITES/UFBA

A incubadora tecnológica de empreendimentos solidários da Universidade Federal da Bahia, desde 2001, tinha um histórico de pesquisas e militância na área de Economia Solidária. Contudo, foi a partir do final de 2004 que a ITES/UFBA começou a desenvolver as atividades de incubação por iniciativa do convite da Petrobrás para o desenvolvimento e execução de um projeto da Petrobras que visava à criação de redes solidárias. A ITES/UFBA tem seu quadro de profissionais formado, majoritariamente, por estudantes de graduação e pós-graduação da UFBA, contando com 25 membros. Quanto aos empreendimentos incubados, ela busca inovações no processo de incubação e realiza essa atividade em redes solidárias, incubando não só cooperativas ou associações de produção ou serviço, como também bancos comunitários, associações de bairros e cooperativas culturais. Além dessas atividades, realizam um diagnóstico socioeconômico nas redes incubadas com o intuito de criar planejamento estratégico para o seu desenvolvimento. Atualmente, a incubadora trabalha com cinco redes solidárias no entorno do município de Salvador.

Os membros da incubadora, quando questionados sobre como visualizam a gestão, revelaram que esta não é neutra e precisa ser ressignificada para os contextos autogestionários:

A gente, muitas vezes, tem que fazer instrumentos, porque os instrumentos que existem, muitas vezes, não estão para a Economia Solidária. [...] Daí, a gente pode ver que, mesmo que alguns instrumentos tenha alguma semelhança, a forma como são aplicados é o xis da questão (Entrevistado 2)

Sem dúvida, esse discurso é fundamental em todo o nosso trabalho de administração. Ainda mais no meu caso, desenvolvendo teoria organizacional crítica. É o nosso trabalho desenvolver ferramentas de gestão que sejam adaptadas para a realidade dos empreendimentos. A gente até criou um discurso muito pesado a isto. A gente passou muito tempo fazendo crítica à organização gerencial, mas não conseguimos criar ferramentas gerenciais para isso. E acaba que, muitas vezes, a gente acaba recorrendo aos modelos convencionais. Este é um esforço imenso na nossa frente; é um trabalho lento, árduo. É uma agenda de pesquisa que tem que ser iniciada o mais rápido. Se não for iniciado logo, você fica dependente das metodologias. A palavra 'plano de negócio nos incomoda profundamente. É preciso criar novas palavras (Entrevistado 1)

Dessa forma, consciente da necessidade de ressignificar o conhecimento gerencial, a incubadora está trabalhando em um núcleo formado por estudantes para a sistematização dos processos de gestão

[...] Este material que eu te falei é o que estamos tentando, criando um núcleo para isso. É um dos trabalhos mais importantes que a gente quer logo estar sistematizando este conhecimento e socializando. É uma tecnologia social mesmo. Mas você não pode fazer a crítica à visão privada. A gente não pode inventar nada de novo depois de tanto acúmulo. A gente tem que readaptar (Entrevistado 1)

Constata-se que a proposta de criar tecnologias sociais por meio de ferramentas de gestão adaptadas à realidade dos empreendimentos solidários parece um avanço no campo da administração. Possivelmente, o fato de a incubadora ter surgido dentro de uma escola de gestão (Escola de Administração da UFBA) e de o perfil das lideranças ser de uma perspectiva crítica da Administração tem potencializado essas iniciativas.

INCOOP/UFSCar

Inspirada na pioneira ITCP/COPPE/UFRJ, a incubadora regional de cooperativas populares da Universidade Federal de São Carlos foi criada como um programa de extensão vinculado à Pró-Reitoria de Extensão da UFSCar em abril de 1999. Desde a fundação, apresenta em seu quadro: docentes, técnicos e alunos de graduação e pós-graduação de diversas áreas. Atualmente, a incubadora conta com aproximadamente 65 integrantes e incuba duas redes solidárias. Quanto às atividades de incubação, estas se apresentam tanto pela criação de cooperativas populares e associações quanto por meio de iniciativas de consumo solidário, de finanças solidárias e de realização de feiras de trocas.

Questionados sobre como os membros da incubadora visualizam a gestão, parecem discordar do discurso da neutralidade:

[...] talvez até algumas ferramentas você pode utilizar. Mesmo porque não existem outras ferramentas. A gente vive o sistema de produção capitalista, hegemônico. É o paradigma que a gente segue estas relações que foram construídas de acordo com este modelo. O que muda um pouco são os princípios. Eu não vejo problema de utilizar algumas ferramentas que estão aí. Mas será que se enquadrariam as ferramentas com os princípios autogestionários? O princípio não-hierárquico de relação? Eu não sei, mas sabendo que possivelmente teria algum problema nisso (Entrevistado 2)

De uma forma geral, ela tem um interesse político, sim, de ter uma hierarquia, de tomadas de decisões... Se for buscar no conceito de gestão mais comum, mais tradicional, ele propõe uma hierarquia, propõe departamentos, em posição. Então, com certeza, ela não é neutra; ela tem um posicionamento político (Entrevistado 4).

Eu acho que envolve a dimensão política, sim.Até a própria questão da produção do conhecimento, da pesquisa, Ela não consegue, muitas vezes, ser totalmente neutra. E ela acaba sendo influenciada pela sua ideologia. Ela tem uma posição clara do que deve ser ou não, mas acaba que a influência acontece (Entrevistado 5)

Esses relatos mostram que os dois primeiros entrevistados comparam os princípios da autogestão com a heterogestão (no caso, as relações hierárquicas), para concluir que as ferramentas de gestão não são neutras. Já o terceiro entrevistado recorre primeiramente à concepção da neutralidade da ciência e, por analogia, conclui que a gestão também é ideológica.

Esses relatos mostram que os dois primeiros entrevistados comparam os princípios da autogestão com a heterogestão (no caso, as relações hierárquicas), para concluir que as ferramentas de gestão não são neutras. Já o terceiro entrevistado recorre primeiramente à concepção da neutralidade da ciência e, por analogia, conclui que a gestão também é ideológica

No que se refere à necessidade de ressignificar o conhecimento, em um dos primeiros relatórios da incubadora, em 2001, já se destacava a importância dessa proposta:

A extensão Universitária na Incubação de cooperativas populares, podemos observar uma preocupação com o processo de ressignificação do conhecimento: É importante para concluir salientar que se, de um lado, a indissociabilidade nos leva a refletir sobre a relevância social do conhecimento produzido, de outro, ela pode ampliar a qualidade com que a Universidade forma seus profissionais, já que implica no abandono da perspectiva instrucionista que parte do pressuposto de que o conhecimento pode ser transmitido, copiado, e não (re)construído, e instiga em nossos alunos uma atitude investigativa, na qual ele passa a ser o sujeito de aprendizagem no processo de construção do conhecimento (Sanchez & Kruppa, 2001).

Nota-se que a incubadora afirma que o conhecimento não é algo que pode ser transmitido, replicado, sem antes ser reconstruído, perspectiva semelhante às concepções de Feenberg (2002), e que os processos de formação não devem limitar-se apenas ao debate técnico, mas contemplar também as questões políticas e de formação cidadã. Em relação às tentativas de ressignificação do conhecimento por meio de tecnologias sociais, foi perguntado aos integrantes como eles visualizam a tecnologia social e quais propostas foram criadas pela incubadora. Os entrevistados tiveram dificuldades de definir o que era tecnologia social:

O que a gente procura ver é a questão de transparência e a relação de conflito e de convivência. A gente procurar ver que tipo de informações circulam, como as informações circulam, como que a gente faz para esclarecer todas as dúvidas, como que se começa um conflito, o que tem que se fazer para ele acabar, o custo de tudo isso. Outra questão que a gente se envolve é a questão da moderação em reuniões. A moderação em reuniões, como que organizam as reuniões, a participação, saber se todos ficam sabendo ou não que está um pouco relacionado com a transparência, mas tem uns outros detalhes um pouco diferentes. Porque, geralmente, quando a gente fala de transparência parece que é prestação de contas, mas a gente vê também a questão de transparência nas relações, nos procedimentos de organizar as reuniões, quem convida, quem não convida, como que é feito o convite. Porque, às vezes, dessa maneira você acaba excluindo as pessoas. E a outra questão, em relação à autogestão, é estar colocando as pessoas dentro de um universo do mercado, dentro de um universo da administração, para que elas consigam fazer isso sozinho, para não ficar dependentes da Universidade, de bolsistas (Entrevistado 3)

É... por eu ter entrado esse ano e estar no mestrado, e esse processo todo, eu tenho pouco conhecimento sobre a tecnologia social. Mas me parece, pelas impressões que eu tenho até agora, que é uma ferramenta forte da Economia Solidária, de geração de renda, emancipação das pessoas que estão presas de algumas dependências. Porque, pra mim, a tecnologia social, o conceito que eu tenho é que são propostas com alguma comunidade carente, que são facilmente replicadas a baixo custo. Mas ainda do movimento, da organização da tecnologia social, eu estou ainda correndo um pouco atrás de informações (Entrevistado 4)

[...] eu não estou tão inserido no debate nesta discussão da tecnologia social. Eu sei que, de certa forma, a tecnologia social é minoria. Não é hegemônica. É um outro tipo de tecnologia que a Universidade faz em grande parte. E se você pegar um panorama aqui na Universidade, é um pouco, é um mínimo. Aquilo que eu te falei, né? Eu tenho pouca leitura, pouca teoria. Eu até acredito que eu faço um pouco de tecnologia social, mas não tô inserido no debate (Entrevistado 5)

Esses relatos mostram que um dos entrevistados, ao responder sobre as tecnologias sociais que a incubadora desenvolve, mencionou mais aspectos vinculados à questão da incubação (transparência, relações de conflito e convivência) do que propostas de criação de tecnologias sociais para novos produtos, processos ou mecanismos de gestão. Não se está afirmando que a criação de instrumentos que abordem sobre como lidar com a transparência, com a relação de conflitos, não seja uma tecnologia social no campo pedagógico, mas o que chamou a atenção foi a dificuldade de levantar as outras iniciativas que a incubadora já vem desenvolvendo.

Foi abordado também, durante as conversas com os membros, que um dos coordenadores faz parte de um fórum de tecnologia social vinculado à Rede de ITCPs. Porém, isso parece não refletir como retorno de informações para os demais integrantes da incubadora, pois, nas passagens citadas, os entrevistados comentaram que não acompanham os debates teóricos da tecnologia social.

Apesar da dificuldade dos entrevistados em abordar iniciativas de tecnologias sociais desenvolvidas pela INCOOP/UFSCar, os documentos da incubadora revelam que existem tentativas voltadas para a criação tanto de novos produtos quanto de saberes gerenciais.

Em relação às tentativas de criação e ressignificação do conhecimento da gestão, a incubadora propôs ao Ministério da Educação (MEC), em 2008, a realização de um curso noturno de graduação em "Gestão em Economia Solidária", com o objetivo de possibilitar a inclusão de pessoas inseridas no movimento de Economia Solidária e que não têm formação superior. Propôs também a criação de uma especialização na mesma temática para profissionais que já atuam no campo da Economia Solidária.

Quando se analisa a grade curricular dessas propostas, observam-se disciplinas voltadas para contabilidade, direito, antropologia, planejamento estratégico, finanças, mas não se constata nenhum detalhamento de como seria a ementa dos cursos e quais os tópicos seriam abordados. Desse modo, não se pode afirmar se existe ou não a ressignificação do conhecimento gerencial com esses cursos.

Retomando o debate das tentativas de ressignificação do conhecimento, o último fator relacionado a tecnologias sociais observado foi o Projeto Inovarural, que visou a inovar no processo, na gestão e no produto de uma organização coletiva de construções habitacionais no município de Itapeva: "A partir deste contexto socioeconômico, a Incoop, tendo em vista a produção de conhecimento e atuação na realidade social de maneira multidisciplinar e interinstitucional, ao longo de sua historia, realizou várias parcerias, dentre elas com o grupo de pesquisa HABIS" (Folz, Sertori, Akemi, & Shimbo, 2009, p.3). Nesse sentido,

"Esta parceria se efetivou a partir do projeto INOVARURAL, que teve como objeto de estudo a organização coletiva e autogestionária em torno da construção de 49 unidades habitacionais para algumas famílias do Assentamento Pirituba II em Itapeva/SP, distante 400 km de São Carlos (ibidem).

Segundo Folz et al. (2009), as inovações ocorreram no processo, pois contaram com a participação das famílias assentadas nos processos decisórios, na formação e na capacitação de pessoas para a construção da habitação e possibilidades de geração de trabalho e renda. Já a inovação na gestão aparece na participação das famílias e dos diferentes agentes envolvidos na cadeia de produção da habitação. Por fim, a inovação no produto ocorreu no desenvolvimento de componentes e sistemas construtivos que utilizavam recursos locais e de preferência renováveis.

Assim, observa-se que a inovação do processo e do produto no Projeto Inovarural parece caminhar nas perspectivas de novas tecnologias sociais. No entanto, as iniciativas de ressignificação da gestão parecem bastante tímidas, sendo consideradas inovadoras apenas por possibilitar a participação das famílias e dos agentes envolvidos nos processos decisórios. A mesma afirmação pode ser feita quando se analisa a criação dos cursos de graduação e pós-graduação na gestão em Economia Solidária. A proposta apresenta a iniciativa de fomentar o debate e a importância da gestão nos empreendimentos solidários, mas não especifica como poderia realizar ou quais seriam as tentativas de inovação.

 

Considerações Finais

As três incubadoras estudadas partilham das concepções teóricas de Tragtenberg (1971), Nogueira (2001, 2005) e Paes de Paula (2005) de que a gestão não é neutra, com destaque para a ITES-UFBA, que recorreu às perspectivas da teoria crítica no campo dos estudos organizacionais para negar a neutralidade da gestão. Constatouse, também, que as incubadoras afirmaram que é necessário ressignificar o conhecimento gerencial para os empreendimentos solidários, por meio de tecnologias sociais.

No entanto, na prática, a ressignificação está mais voltada para a criação de produtos e ou métodos pedagógicos do que para modificações no processo de gestão. Associado a esta tentativa, observou-se apenas o papel do Contador-Educador, pela ITCP/UNEB, e a sistematização, ainda em construção, de um material de formação em gestão adaptado para as incubadas, pela ITES-UFBA. Dessa forma, o que se observa é que, apesar de as incubadoras terem potencialidade para a ressignificação do conhecimento gerencial, dispondo de um quadro de profissionais qualificados (estudantes, professores, técnicos) que realizam pesquisa e estudos sobre a Economia Solidária e apresentam diversas experiências inovadoras neste setor, estas inovações nos processos de gestão não vêm ocorrendo, e quando ocorrem, é de modo muito pontual.

Pode-se atribuir um dos fatores que têm levado a essa limitação, é que, apesar de os entrevistados negarem o discurso da neutralidade da gestão, poucos parecem refletir e fomentar esse debate dentro das incubadoras, limitando-se a criação de ferramentas de gestão para os contextos autogestionários.

Nesse sentido, espera-se que o presente trabalho possibilite fomentar a reflexão sobre a importância de compreender que os processos de gestão nos empreendimentos econômicos solidários "devem" ser diferentes dos contextos organizacionais convencionais e que se fazem necessárias mais tentativas de ressignificação do conhecimento gerencial, especialmente por parte dos integrantes das incubadoras tecnológicas de cooperativas populares.

 

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Recebido em: 04/10/2011
Aceito em: 19/03/2012

 

 

1 Contato: dcalbino@yahoo.com.br
2 Com destaque para os trabalhos de: (i) Andion, C. (2001). As particularidades da gestão em organizações da Economia Solidária. Anais do Encontro da Anpad, Campinas, SP, Brasil, 25; (ii) Azevedo, A. (2003). A Inovação Tecnológica em Empreendimentos Solidários: Utopia ou Realidade? Anais do Colóquio Internacional Poder Local. Salvador, BA, Brasil, 9; (iii) Costa, P. (2003). Procurando desvendar uma nova lógica de trabalho: um relato de três oficinas de gestão para empreendimentos de Economia Solidária. Anais do Encontro da Anpad, Atibaia, SP, Brasil, 27; (iv) Meira, L. (2005). A gestão de empreendimentos econômicos solidários: Olhares das ITCPs USP, UFRJ e UNEB. 107f. Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil; (v) Silva Junior, J. (2006). O desafio da gestão de Empreendimentos da Economia Solidária: As tensões entre as Dimensões Mercantil e Solidária na ASMOCONP/Banco Palmas-CE. Anais do Encontro da Anpad, Salvador, BA, Brasil, 30; (vi) Pereira, A., Balbinot, E., Nagel, F., & Venturini J. (2009). Análise da gestão das dimensões de um empreendimento solidário: o caso do projeto esperança/cooesperança. Revista Eletrônica de Administração, 15(2), 1-32; (vii) Costa, P., & Carrion, R. (2009). Situando a Economia Solidária no campo dos Estudos Organizacionais. Otra Economia, 4(3), 66-81.
3 A partir dos resultados de uma pesquisa quantitativa com as 43 incubadoras vinculadas à Rede Universitária, as três incubadoras foram as únicas que afirmaram: (1) Desenvolver atividades de formação técnica; (2) Desenvolver atividades de formação política: ideológica e organizacional; (3) Desenvolver, de maneira formal e/ou formal e informal, cursos de formação política; (4) Realizar mais de 30 horas por ano em cursos de formação política e técnica; (5) Possuir equilíbrio entre quem ministra os cursos de formação política (estagiários, técnicos, professores apoiadores e coordenadores); (6) Criar seus próprios materiais de formação política (pelo menos, seguem a média das incubadoras, que foi de 48%); (7) Visualizar a Economia Solidária como uma possível estratégia de mudanças sociais; (8) Debater internamente a temática de Economia Solidária; e (9) Desenvolver pesquisas e grupos de estudo em Economia Solidária (Calbino & Paes de Paula, 2010).
4 Dos quatro membros entrevistados, todos faziam parte da coordenação colegiada da incubadora, sendo que dois eram docentes da UNEB, um exercia a função de técnico contratado para as atividades de incubação e o outro era um discente do curso de Contabilidade e bolsista de pesquisa da incubadora.
5 Dos quatro membros entrevistados, todos faziam parte da incubadora, sendo que um dos membros era o coordenador geral da incubadora e docente da UFBA, um exercia a função de secretário da incubadora e os demais eram estudantes de pós-graduação da UFBA, que desenvolviam atividades de pesquisa e extensão.
6 Dos cinco membros entrevistados, um exercia a função de técnico administrativo da incubadora, um exercia a função de professor docente da UFSCar, e os demais eram discentes de programa de pós-graduação da UFSCar, que desenvolviam atividades de pesquisa e extensão.
7 Os documentos utilizados na análise da ITCP/UNEB foram três relatórios escritos pela incubadora, com o ano e título de: (2005). Relatório Proninc; (2002). Estruturação e desenvolvimento de uma incubadora tecnológica de cooperativas populares na UNEB; e (2007). Consolidação dos trabalhos de incubação de empreendimentos solidários desenvolvidos na UNEB. Além disso, foram analisados dois artigos e uma monografia escritos por membros da incubadora: S. Guimarães. (2008). Economia Solidária em destaque; S. Guimarães, Z. Vianna, & M. Nogueira. (2007). Tecnologias Sociais na incubação de empreendimentos populares solidários; e Santos, A. (2009). O contadoreducador: contribuição para o desenvolvimento deempreendimentos solidários. Já na INCOOP/UFSCar, foi analisado um artigo escrito por membros da incubadora: R. Folz, R. Sertori, I. Akemi, & I. Shimbo (2009). Construção de habitação em assentamentos rurais com geração de oportunidades de trabalho e renda - caso: Assentamento rural Pirituba II (Itapeva - SP).

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